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Gênero no mundo do trabalho*

Abreu, Alice de Paiva; Hirata, Helena; Lombardi, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016

As contribuições feministas nos estudos do trabalho têm sido centrais para analisar o trabalho das mulheres e para alargar e complexificar os próprios modos de compreensão do que é trabalho. A noção de divisão sexual do trabalho já deixa clara a necessidade de compreender o trabalho remunerado e o não remunerado enquanto dimensões inter-relacionadas do trabalho social (Sorj, 2000Sorj, Bila. Sociologia e Trabalho: mutações, encontros e desencontros. Revista Brasileira de Ciências Sociais 15(43), São Paulo, 2000, pp.25-34.). Pois como argumenta Bruschini (2007)Bruschini, Maria Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não remunerado?. In: Araújo, Clara; Picanço, Felícia; Scalon, Celi (org.). Nova conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada. Bauru, EDUSC, 2007, pp.21-58., é na articulação entre o mercado de trabalho, o mundo doméstico e as relações sociais de gênero que o trabalho das mulheres pode ser compreendido.

A noção de divisão sexual do trabalho e suas implicações teórico-analíticas são particularmente úteis para pensar questões como as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho, segregação ocupacional, cuidado e trabalho doméstico, migração, precariedade e subemprego. Esses e outros temas são desenvolvidos tendo como pano de fundo as discussões sobre divisão sexual do trabalho e por meio da elaboração de quadros interpretativos do trabalho das mulheres, na coletânea Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais, organizada por Alice Rangel de Paiva Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi.

O livro é resultado do colóquio internacional “Trabalho, cuidado e políticas sociais: Brasil-França em debate”, realizado nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro em agosto de 2014 e tem como mérito o esforço de comparação – e de cooperação – internacional sem a redução ou o apagamento da diversidade e das diferenças entre os dois países. Os 23 artigos que compõem o livro estão divididos em 6 partes temáticas e apontam para caminhos, problematizações, impasses e questões novas (ou novas formas de olhar velhas questões) nas áreas de trabalho e gênero.

O título do livro dá pistas sobre a narrativa que organiza os debates desenvolvidos ao longo da obra, qual seja: a díade gênero e trabalho, sumarizada na expressão divisão sexual do trabalho mencionada anteriormente, e já consagrada nos estudos sociológicos brasileiros pelo menos desde o fim da década de 1970 e início dos anos 1980 (cf. Araujo, 2002Araujo, Angela Maria Carneiro. Apresentação. cadernos pagu (17-18), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2002, pp.131-138.), pode se beneficiar das recentes teorizações no campo dos estudos de gênero em torno do conceito de interseccionalidade, ou de consubstancialidade, como prefere Danièle Kergoat, ou ainda de imbricação, como aparece no artigo de Jules Falquet. Tais conceitos visam dar conta da inter-relação entre os diferentes marcadores sociais da diferença e da desigualdade – ou modalidades de relação de poder – como gênero, classe, raça/etnia, nacionalidade, idade, entre outros. É importante notar, no entanto, como o faz Piscitelli (2008)Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura 11(2), 2008, pp.263-274., que tais conceitos adquirem contornos e conteúdos diferentes segundo a abordagem e a filiação teórica das autoras e autores que os utilizam. Dessa forma, os marcadores sociais privilegiados pelas diferentes autoras e autores, assim como seu estatuto na (re)produção da diferença e da desigualdade, bem como o papel atribuído às pessoas como agentes de transformação não apenas variam como são objeto de acalorado debate nos estudos feministas e de gênero internacionais. Em 2016, por exemplo, as sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge lançaram um livro cuja função é introduzir o leitor ao vasto campo dos estudos sobre interseccionalidade e de mostrar seu potencial enquanto ferramenta analítica em diferentes cenários sociais.

A pluralidade dos usos e entendimentos do conceito de interseccionalidade e seus tropos pode ser facilmente percebida ao longo do livro organizado por Alice de Paiva Abreu, Helena Hirata e Maria Rosa Lombardi. Percebe-se, por exemplo, a ênfase dada por várias autoras francesas à inter-relação entre gênero e classe (cf. capítulos 1, 3, 10 e 23), possivelmente motivadas pela herança do feminismo materialista e marxista, de elevado destaque naquele contexto nacional. Há exceções, como a tentativa de Marc Bessin de incluir a ideia de temporalidade – a partir da categoria idade – no debate sobre interseccionalidade no capítulo 20, por exemplo.

A primeira parte do livro, intitulada “Entrecruzar as desigualdades” dedica-se a pensar as formas de articulação entre classe, raça e gênero nas relações sociais. Trata-se da seção em que a discussão em torno das teorias da interseccionalidade ganha maior relevo, seja a partir de análises mais teóricas e do resgate dos argumentos de diferentes autoras e autores das ciências sociais, seja por meio da apresentação de casos empíricos nos quais o entrecruzamento das desigualdades é crucial para que se possa compreendê-los.

No capítulo 1, “O cuidado e a imbricação das relações sociais”, Danièle Kergoat argumenta que o cuidado é paradigmático com relação à ampliação operada pelas feministas na conceituação do que é trabalho. Além disso, a autora contrasta sua noção de consubstancialidade ao conceito anglo-saxão de interseccionalidade. Ambos conceitos visam dar conta da dimensão imbricada das opressões – especialmente as de gênero, raça e classe –, mas para Kergoat, a ideia de consubstancialidade permite reconstruir os processos históricos de produção das opressões, ao invés de tomá-las como fixas.

No segundo capítulo, “Sociologia e natureza: classes, raças e sexos”, Antonio Sérgio Guimarães trata de mostrar como a sociologia tem por objeto o que era tomado como natural e biológico, desvelando seu caráter construído, histórico e cultural. O autor analisa esse processo de desnaturalização nas relações de opressão de classe, raça e sexo (ou gênero), mobilizando, encadeando e esquadrinhando minuciosamente o argumento de clássicos da sociologia, autores latino-americanos, antropólogos e feministas sobre esses temas. E finaliza o texto apontando os recentes esforços de entendimento dessas relações, nos feminismos, enquanto formas de exploração e de dominação imbricadas e articuladas.

O terceiro capítulo, “Transformações neoliberais do trabalho das mulheres: Liberação ou novas formas de apropriação”, escrito por Jules Falquet, dedica-se a resgatar análises feministas materialistas e imbricacionistas mostrando como elas são úteis para pensar o panorama neoliberal atual que impacta o trabalho das mulheres. Assim, a autora coloca em xeque o suposto avanço conquistado pelas mulheres por conta da entrada no mercado de trabalho, apontando para a permanência de desigualdades e para a reconfiguração e o acirramento de lógicas patriarcais, racistas e coloniais já existentes, visíveis, por exemplo, na migração de mulheres pobres e racializadas para trabalhos doméstico e de cuidado.

Adriana Piscitelli escreve o último capítulo da primeira parte, intitulado “Carinho, limpeza e cuidado: experiências de migrantes brasileiras” em que analisa, a partir de uma etnografia multissituada, a trajetória de mulheres brasileiras que desenvolvem atividades no setor de cuidados na Espanha. Piscitelli inclui como cuidado o trabalho sexual, produzindo uma interessante análise sobre o tema a partir do exame de “espaços de agência” (p. 48) em que as brasileiras ressiginificam – sempre parcialmente – suas marcas de subalternização (a interseção entre gênero, nacionalidade/etnicidade, cor e posição social), apelando para qualidades que remetem ao doméstico e que seriam parte de uma especificidade nacional.

A segunda parte do livro “Medir as desigualdades”, visa debater sociologicamente como escolhas estatísticas de mensuração têm efeito sobre o entendimento do trabalho das mulheres bem como apresentar um panorama crítico sobre a presença das mulheres no mercado de trabalho e a persistência das desigualdades de gênero nesse setor. As análises estatísticas e econométricas contemplam a apresentação de dados segmentados por gênero e classe (por vezes, a partir do critério de renda) e gênero e raça. Apenas o capítulo 7 opta por uma apresentação mais centrada na categoria mulher/gênero, de modo que essa seção apresenta diversas soluções práticas para lidar com a imbricação de marcadores sociais em contextos de pesquisa quantitativa ou mista (para um debate metodológico e internacional a respeito da operacionalização da categoria interseccionalidade em pesquisas de grande porte, ver: Steinbugler; Press; Dias, 2006Steinbugler, Amy; Press, Julie; Dias, Janice Johnson. Gender, Race, and Affirmative Action: Operationalizing Intersectionality in Survey Research. Gender & Society 20(6), 2006, pp.805-825.).

O capítulo 5, “Como contar o trabalho das mulheres? França, 1901-2011”, escrito por Margaret Maruani e Monique Meron, visa mostrar como a mensuração do trabalho das mulheres é impactada por decisões políticas e ideológicas, que podem visibilizar ou invisibilizá-lo e mais, que o trabalho das mulheres – e suas classificações – delineia o “lugar das mulheres na sociedade” (p. 62). Assim, as autoras mostram, em argumento refinado, como a ocultação nos recenseamentos do trabalho das mulheres significa subestimar o peso de sua contribuição econômica e diminuir seu estatuto na sociedade.

O capítulo 6, de Nadya Guimarães e Murillo Alves de Brito, “Mercantilização no feminino: a visibilidade do trabalho das mulheres no Brasil” examina as estatísticas de emprego no Brasil entre 1960 e 2010 analisando dois fenômenos inter-relacionados: a crescente mercantilização do trabalho e o aumento das taxas de participação feminina no mercado de trabalho. Assim como no artigo anterior, mas em relação ao caso brasileiro, os autores fazem uma relevante avaliação crítica sobre as formas pelas quais os dados censitários foram colhidos e contados ao longo dos anos, o que tem enormes impactos para a contabilização do trabalho feminino.

O capítulo 7, de Rachel Silvera, intitulado “O salário das mulheres na França no século XXI: ainda um quarto a menos”, dedica-se a elucidar as razões que fazem com que o salário das mulheres seja ainda menor que o dos homens, a despeito dos esforços para que se reduza a desigualdade salarial entre homens e mulheres. A autora chama atenção para dois pontos cruciais para a compreensão dessa desigualdade: a progressão na carreira e a ideia de salário igual para trabalho de valor igual.

Encerra a segunda parte do livro o capítulo 8, “Assimetrias de gênero no mercado de trabalho no Brasil: rumos da formalização”, em que Lena Lavinas, Ana Carolina Cordilha e Gabriela Freitas da Cruz realizam uma cuidadosa análise econométrica para determinar os efeitos da então crescente formalização do emprego no país – em um cenário de redução dos níveis de desigualdade de renda – sobre a diferença de rendimentos e a partição no mercado de trabalho de homens e mulheres. A pouca mudança nas assimetrias de gênero em um cenário favorável ao desenvolvimento econômico e social permite concluir que essas são de fato estruturantes do mercado de trabalho.

A parte três da coletânea “Trabalho e uso do tempo” apresenta reflexões sobre a repartição do tempo social entre homens e mulheres e entre trabalho remunerado e não remunerado. Nestes capítulos, ganha destaque a discussão sobre as diferentes modalidades de trabalho doméstico ou reprodutivo. Enquanto os capítulos com participação de autoras brasileiras (9 e 11) buscam considerar as dimensões inter-relacionadas das desigualdades de gênero, raça e classe, incluindo dados segmentados por gênero e raça, por exemplo, ou buscando mostrar os nexos estruturais entre classe, raça e gênero no caso do trabalho doméstico brasileiro, o capítulo 10 opera com dados estatísticos que consideram unicamente a segmentação entre homens e mulheres, se afastando um pouco da proposta interseccional.

No capítulo 9, de Laís Abramo e Maria Elena Valenzuela, “Tempo de trabalho remunerado e não remunerado na América Latina: uma repartição desigual”, as autoras analisam como a ordem de gênero e a insuficiência de políticas públicas colocam desafios para a conciliação entre trabalho remunerado e vida familiar. Destaco o conceito de “pobreza de tempo” (p. 119) mobilizado pelas autoras para abordar os efeitos das vinculações entre trabalho produtivo e reprodutivo para as mulheres e capturando assim, uma dimensão pouco visível à pobreza aferida pelo critério de renda.

Monique Meron, autora do capítulo 10, “Trabalho remunerado e trabalho doméstico na França: mudanças nos conceitos” discute as enquetes sobre uso do tempo na França entre 1974 e 2010 e as mudanças nas definições de trabalho e desemprego bem como seus diferentes impactos sobre as observações de homens e mulheres. A autora conclui que algumas das definições podem mascarar o trabalho doméstico e voluntário exercido por mulheres e que as escolhas conceituais refletem visões da “divisão das tarefas entre homens e mulheres na sociedade” (p. 134).

Finalizando essa parte, no capítulo 11, “O tempo do trabalho doméstico remunerado: entre cidadania e servidão”, Maria Betânia Ávila discute o trabalho doméstico remunerado a partir da tensão entre o tempo cotidiano, do trabalho, e o tempo histórico, que nos lembra que “No Brasil, a configuração do emprego doméstico foi historicamente tributária da escravidão e das heranças que persistiram como elementos constitutivos das relações sociais” (p. 138). A autora discute como essa tensão se faz presente no contingente de mulheres negras na ocupação e em sua dificuldade de acesso a direitos já conquistados.

A quarta parte do livro “O gênero das carreiras artísticas e científicas” se debruça sobre a presença de mulheres em ocupações prestigiosas e, por vezes, tidas como masculinas. As diferentes pesquisas que informam os artigos dessa seção ajudam a mostrar os desafios e obstáculos enfrentados por mulheres de diferentes inserções profissionais. Tal como ocorre em outros capítulos do livro, a categoria gênero ganha relevo sobre a de interseccionalidade, de modo que esta última (ou seus sinônimos) não aparece ao longo dos capítulos 12, 13 e 14. Já no capítulo 15, a noção de consubstancialidade é explorada em diálogo com o objeto empírico da autora.

No capítulo 12, “Presença feminina em ciência e tecnologia no Brasil”, Alice de Paiva Abreu et. al. avaliam criticamente os avanços e desafios das mulheres com referência à sua participação na sociedade do conhecimento. A despeito dos avanços com relação à educação, ao trabalho e aos direitos das mulheres serem inegáveis, as autoras apontam, com base em um amplo espectro de dados e indicadores, para a perenidade da divisão sexual do trabalho científico e para a necessidade de ampliação da participação feminina, especialmente em cargos de maior destaque.

No capítulo 13 “Aviões e mulheres: Política de igualdade profissional em uma empresa aeronáutica na França”, Nathalie Lapeyre discute uma política de diversidade de gênero – um termo usado para referir-se a ações e medidas que visam eliminar a desigualdade profissional entre homens e mulheres – promovida por uma grande empresa de construção e comercialização de aeronaves francesa. Os efeitos da política são ricamente apresentados pela autora e são significativos com respeito ao empoderamento das mulheres em sua prática profissional e à construção de laços de solidariedade intra e intergeracionais.

O capítulo 14, de Maria Rosa Lombardi e Débora de Fina Gonzalez, “Engenharia e gênero: as mutações do último decênio no Brasil” é resultado de pesquisa que utiliza: 1) estatísticas sobre ensino e emprego na área de engenharia; 2) a produção científica da área que menciona a questão de gênero; e 3) entrevistas com diferentes frentes de mobilização de mulheres engenheiras e estudantes de engenharia, em que são detalhadamente analisadas suas especificidades, demandas e campos de atuação. A despeito dos parcos avanços das mulheres engenheiras, em termos de dados quantitativos, suas estratégias de mobilização são tomadas como fundamentais para a transformação da cultura profissional masculina presente nas engenharias.

Encerra essa parte o capítulo 15, “Superar limites nas carreiras de mulheres musicistas” de Liliana Segnini, que discute a participação de mulheres no trabalho em orquestras. A autora analisou estatísticas sobre o trabalho em orquestra e conduziu entrevistas com musicistas prestigiadas, destacando em suas vivências profissionais os desafios enfrentados diante da desigualdade de gênero num contexto de indústria cultural e de políticas neoliberais no campo da música erudita. A consubstancialidade das relações de gênero e de classe é central ao argumento da autora e enunciada na elevada origem socioeconômica das entrevistadas, que permite que elas galguem posições mais altas em suas carreiras, a despeito da desigualdade de gênero.

A parte cinco do livro, “Cuidado, dinâmicas familiares e profissionais”, discute o trabalho emocional das variadas modalidades de cuidado e as interações sociais entre diversos atores sociais do cuidado. A seção se debruça também sobre o conceito de cuidado, que vem ganhando destaque nas ciências sociais e fora dela, à medida que o envelhecimento da população aumenta a demanda por profissionais desta área.

O capítulo 16, “O cuidado em domicílio na França e no Brasil”, de autoria de Helena Hirata, discute as trajetórias profissionais e pessoais de trabalhadores de cuidado domiciliar na França e no Brasil, apontando convergências e divergências na composição e na situação desses trabalhadores nos dois países. Entre as convergências, Hirata destaca a precariedade do trabalho de cuidado e como isso arregimenta desigualdades sociais (especialmente de classe, gênero, raça e nacionalidade). Essas convergências são mencionadas também a partir de uma minuciosa análise da literatura sobre cuidado.

No capítulo 17, “O cuidado em suas temporalidades e seus atores na França”, Aurélie Damamme argumenta que a temporalidade – especialmente a disponibilidade de tempo e os compromissos de longo prazo – é central para o cuidado. A autora discute como a temporalidade é axiomática para a compreensão da rede de cuidados (que mobiliza diferentes atores) e a formação da interdependência entre provedores e destinatários do cuidado. Para tal, a autora propõe uma instigante aproximação entre os disability studies e os autores da ética do cuidado.

No capítulo 18, intitulado “Cuidados e confiança”, Angelo Soares compreende a confiança – a partir de entrevistas e questionários realizados com trabalhadores na área da saúde, serviços pessoais e de cuidado – em sua dimensão emocional, como uma parte importante do cuidado. O autor revisita o conceito de confiança na sociologia e mostra como a confiança entre quem cuida e quem é cuidado é perpassada por relações de classe, raça e gênero e como pode, inclusive, aliviar a carga de trabalho emocional.

Luz Gabriela Arango discute, finalizando a quinta parte do livro, no capítulo 19, “Cuidado, emoções e condições de trabalho nos serviços estéticos no Brasil”, o cuidado envolvido nos salões de beleza voltados à população negra. A autora mostra, a partir da análise de diferentes tipos de salão, como, nesse contexto, o cuidado com cabelos: 1) coloca questões em termos de gênero, raça e classe – mesmo que sem alterar a ordem social e; 2) adquire o status de reparação não apenas dos cabelos, mas emocional e coletiva, na medida em que promove a valorização da estética negra.

A sexta e última parte do livro, “Cuidado, políticas sociais e cidadania”, discute o cuidado sob a ótica das políticas públicas na França e no Brasil. O elemento estruturador dessa seção é de que os Estados incorporam a linguagem do cuidado para o desenvolvimento de políticas sociais. A tradução realizada pelos diferentes organismos estatais sobre a temática do cuidado pode seguir, no entanto, diferentes caminhos, com consequências bem diversas. Assim, os autores dos capítulos finais do livro buscam apontar alguns caminhos possíveis bem como mostrar suas limitações.

O capítulo 20, “Política da presença: as questões temporais e sexuadas do cuidado”, de Marc Bessin, discute como as políticas sociais podem ser beneficiadas pelas abordagens do cuidado, especialmente no que se refere à noção desenvolvida pelo autor de “presenças sociais”, que confere importância à temporalidade e à interseccionalidade das relações sociais, pois para ele: “As análises temporais do cuidado serão inevitáveis nas discussões sobre a renovação do Estado social, tornando-o capaz de estar atento às desigualdades que ele reforça ao apoiar-se em categorias abstratas e universais” (p. 244).

No capítulo 21, “Políticas públicas diante do envelhecimento no Brasil”, Guita Grin Debert analisa as políticas públicas de envelhecimento no país apresentando duas visões orientadoras contrastantes: a de que o cuidado seria uma responsabilidade do Estado e a de que ele seria, ao contrário, uma responsabilidade privada da família. No segundo caso, ilustrado pelos programas para terceira idade e pelas delegacias de proteção aos idosos extensivamente pesquisados e contextualizados pela autora, as famílias se tornam atores e vetores destacados das políticas públicas gerando impasses e paradoxos.

O capítulo 22, “O cuidado na nova agenda de combate à violência no Brasil”, escrito por Bila Sorj, analisa o programa Mulheres da Paz, enquanto exemplo de um novo modelo das políticas sociais baseado na cidadania participativa. O programa e os limites desse modelo são detalhadamente discutidos a partir da tensão entre discursos que, de um lado, entendem as mulheres enquanto sujeitos de autonomia, independência e empoderamento e de outro, se apoiam na figura da mãe enquanto liderança comunitária e autoridade moral.

Encerrando as discussões do livro, no capítulo 23, “Economia do cuidado e sociedades do bem-viver: revisitar nossos modelos”, Florence Jany-Catrice constrói uma crítica à visão do cuidado enquanto serviço a ser consumido no mercado. A autora nos convida a repensar como entendemos valor e riqueza a partir de uma ética do cuidado e propõe, de forma contundente, a renovação dos nossos modelos econômicos e sociais, fechando o livro de forma radical e expandindo os horizontes do debate sobre divisão sexual do trabalho.

É relevante notar que as duas últimas partes da obra, bem como seus capítulos 1 e 4, avançam em um debate que já vinha se desenvolvendo por algumas das autoras presentes no livro, em uma publicação anterior (Hirata; Guimarães, 2012Hirata, Helena; Guimarães, Nadya (org.). Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo, Editora Atlas, 2012.), a saber, o que é cuidado e como ele pode ser definido e teorizado. Voltando ao texto de 2016, poder-se-ia perguntar: o que justifica considerar algumas facetas da prostituição ou o serviço prestado em salões de beleza como cuidado? Ou ao contrário, por que adotar uma noção mais restritiva do cuidado é mais acertado? Tratam-se de perguntas que, em parte, as autoras buscam responder.

A meu ver, os capítulos que se debruçam sobre o cuidado são também aqueles que melhor podem ser definidos como abordagens interseccionais, as quais constituem o ponto central do livro. A razão disso seria que na medida em que o trabalho de cuidado é realizado largamente por setores oprimidos (e/ou desvalorizados) da população em termos de classe, gênero, raça/etnia, nacionalidade, os modos pelos quais tais categorias são co-construídas e quais seus efeitos são fundamentais para a compreensão do próprio trabalho e passam a ser elas próprias objeto de investigação.

Desse modo, o livro “Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais” constitui-se como uma obra de referência sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho, seus desafios e avanços. A comparação entre países tão diferentes permite um diálogo interessante e a criação de perspectivas ricas e arrojadas sobre um tema importante e que nos faz pensar em horizontes mais igualitários na família e no trabalho. Trata-se de uma leitura instigante e atual que sugere que o gênero, bem como a raça e a classe, mais do que serem temas e variáveis de pesquisa, podem operar como eixos analíticos poderosos para a compreensão da vida social.

Referências bibliográficas

  • Araujo, Angela Maria Carneiro. Apresentação. cadernos pagu (17-18), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2002, pp.131-138.
  • Bruschini, Maria Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não remunerado?. In: Araújo, Clara; Picanço, Felícia; Scalon, Celi (org.). Nova conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada Bauru, EDUSC, 2007, pp.21-58.
  • Hill Collins, Patricia; Bilge, Sirma. Intersectionality Cambridge, UK, Polity Press, 2016.
  • Hirata, Helena; Guimarães, Nadya (org.). Cuidado e Cuidadoras: as várias faces do trabalho de care. São Paulo, Editora Atlas, 2012.
  • Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura 11(2), 2008, pp.263-274.
  • Sorj, Bila. Sociologia e Trabalho: mutações, encontros e desencontros. Revista Brasileira de Ciências Sociais 15(43), São Paulo, 2000, pp.25-34.
  • Steinbugler, Amy; Press, Julie; Dias, Janice Johnson. Gender, Race, and Affirmative Action: Operationalizing Intersectionality in Survey Research. Gender & Society 20(6), 2006, pp.805-825.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    4 Out 2016
  • Aceito
    27 Jul 2017
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