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Desenvolvimento, poder, gênero e feminismo

Este dossiê problematiza a diversidade de processos sociais que se elaboram sob o rótulo de “desenvolvimento” e foca nas implicações desses processos diante da estruturação de (des)igualdades de gênero privilegiando perspectivas feministas. Compreende que o polêmico termo “desenvolvimento” é um eficiente mecanismo de rotulação para que se realizem intervenções que se caracterizam como pequenos, médios ou grandes programas e projetos de investimento com uma multiplicidade de parcerias e expressivo envolvimento do Estado (Vainer; Araújo, 1992Vainer, C.; Araujo, F. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992.). Como tal exige um olhar crítico, não somente para a inserção de, e impacto sobre, mulheres envolvidas nos programas e projetos, mas também sobre os próprios processos de planejamento e execução de ações visando investimentos em desenvolvimento. São muitas maneiras diferentes de articular políticas de gênero com os objetivos almejados por outros projetos, programas e políticas.

Independente dos principais objetivos anunciados desses projetos e programas, as intervenções concretas têm graus diferentes de normatização que, se não sempre, pelo menos frequentemente, se referem ao estabelecimento de metas que envolvem a promoção de igualdade de gênero. A frouxidão ou rigidez, ou mesmo a mera existência ou inexistência, dessa normatização explícita e programática de metas de gênero, comunica disputas sobre a identificação, pouco consensual, do que constitui o “poder” quando se trata da promoção de igualdade de gênero num contexto de desenvolvimento. Há polêmicas no campo feminista sobre as interpretações mais estruturais e as interpretações mais subjetivas e individualistas do que é empoderamento para mulheres. Mesmo assim, se reconhece que essa densamente significativa “palavra chamativa” (ou seja, em jargão desenvolvimentista, “buzz word”, cujas semânticas políticas foram destrinchadas por Cornwall [2007Cornwall, Andrea. Buzzwords and fuzzwords: deconstructing development discourse. Development in Practice 17 (4-5), 2007, pp.471-484.]) faz a sua presença muito notável em quase todos os projetos e programas que assumam com mais energia o objetivo de promoção de igualdade de gênero, sendo, ou não, numa perspectiva feminista.

Ter uma instância institucional que se ocupa em elaborar e, na medida do possível, transversalizar uma política de gênero, por positivo que seja, de forma alguma assegura que programas e projetos que recebem recursos prioritários para a sua execução situam o componente de gênero em lugar privilegiado entre as suas prioridades. A existência de órgãos internacionais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas, devidamente informados sobre as metas internacionais conveniadas em grandes encontros promovidos por feministas e endereçados às causas feministas, é um grande passo para a inclusão da questão de gênero entre os planos de ação dos que querem contar com financiamento expressivo. O diálogo do feminismo com os que apresentam planos de investimento oferece guias que esclarecem o que se deve entender como metas que satisfazem a agenda de gênero. No entanto, pelo menos dois fatores limitam a eficácia da aplicação dessas políticas: o primeiro, e mais forte, é o domínio amplo da semântica desenvolvimentista econômico-financeira na elaboração de projetos e programas em todas as suas fases (planejamento, execução, avaliação) que se candidatam a receber investimentos que visam beneficiar os seus países ou regiões; o segundo, e muito significativo também, é a discórdia reinante sobre o que constitui, efetivamente, um ganho para uma política de gênero, passando desde a mera inclusão de números expressivos de mulheres entre as impactadas (positivamente?) pela ação, até a recomposição consequente de estruturas de poder intersectadas que contribuam para desafiar a continuidade de domínios androcêntricos, racistas, etnicamente intolerantes e centralizadores de riqueza.

Tanto na página das Organizações Unidas e nos relatórios do Banco Mundial quanto em textos como o de Nanes, Quadros e Farias (2017)Nanes, Giselle.; Quadros, Marion.; Zarias, Alexandre. WID, WAD e GAD: uma introdução ao debate sobre Mulheres, Gênero e Desenvolvimento. In: Santos, D. A. dos; Cardoso, M. G. C.; Scott, P. (org.). Gênero, Diferenças e Desigualdades, Políticas Públicas e Desenvolvimento: Algumas Leituras Fundamentais. Recife, Edufpe, 2017. (Série Gênero e Política Públicas, no4), pp.17-45. é nítido que a luta para inclusão de mulheres nas pautas de grandes projetos de investimento tem ocorrido num ambiente progressivamente mais crítico, fruto em grande parte de avaliações empíricas, realizadas por feministas, de insucessos e esquecimentos, quando não expressamente perdas, para as mulheres em projetos e programas concretos. Quando se trata de políticas feministas, o estabelecimento de metas de gênero encontra representação por meio de ministérios ou secretarias que, mesmo sendo tratados como de rango menor no escalão de postos a serem distribuídos politicamente e instituições promotoras e executoras a serem financiadas, pelo menos oferecem uma interpretação mais favorável à igualdade de gênero. A existência desses espaços favorece a percepção da diferença entre programas e projetos associados ao desenvolvimento e projetos e programas que visam prioritariamente a promoção de igualdade de gênero. A sequência histórica que passa de Mulheres em Desenvolvimento (WID) para Mulheres e Desenvolvimento (WAD) e depois Gênero e Desenvolvimento (GAD) muito transparentemente demonstra que, por belo que seja o discurso de integração e cooperação, é muito menos eficiente que o discurso de confrontação e de insistência. Certamente, isso se dá em função das questões de relações de poder arraigadas estruturalmente que as políticas de desenvolvimento implicitamente visam reforçar.

Não é pelo grau de colaboração concreta com elaboradores de políticas de desenvolvimento que se caracteriza integração de políticas para mulheres como ações feministas. Mesmo compartilhando adesão aos objetivos da Agenda 2030, acordada na cúpula de Desenvolvimento Sustentável de 2015, pautando-se pelas agendas de ação e metas acordadas e divulgadas internacionalmente, percebem-se diferenças entre as ênfases do Banco Mundial e das Nações Unidas. O exame do relatório anual de 2017 do Banco Mundial (Banco Mundial, 2017) que visa desenvolvimento, qualificando-o como sustentável quando precisa referir a caminhos escolhidos por algumas ações concretas, reporta que os seus investimentos seguem dois objetivos gerais: 1) erradicar a pobreza extrema até 2030, e 2) impulsionar a prosperidade compartilhada. Declara, adicionalmente, que as áreas prioritárias para alcançar os objetivos são a) acelerar o crescimento econômico sustentável e inclusivo, b) investir nas pessoas para construir capital humano, e c) incentivar a resiliência a choques e ameaças globais. Nos descritores dessas áreas há referências explícitas a metas como eliminação de exploração sexual, promoção de empreendedorismo feminino e combate à violência contra as mulheres. Quando se compara isso ao pronunciamento da Agência das Nações Unidas, esta é mais enfática tanto sobre a abrangência da adesão à agenda de desenvolvimento sustentável, quanto, mais concretamente, à atenção para igualdade de gênero (transversal em 12 dos 17 objetivos específicos enumerados, com o objetivo número 5 especificamente designado de “igualdade de gênero”) elencando metas inspiradas no conteúdo da Plataforma de Pequim da Quarta Conferência Internacional sobre a Mulher em 1995. A aproximação da ONU a metas feministas é expressivamente mais forte, mas a colocação de metas feministas para ambas é inquestionavelmente subordinada à ideia maior de desenvolvimento, exigindo uma postura de aliança, competição e negociação para poderem ser contempladas com práticas favoráveis à igualdade de gênero.

E também não é consensual o que se pode chamar de “desenvolvimento”, variando muito de contexto em contexto. Diante desses termos, o propósito deste dossiê é evidenciar como diferentes programas e projetos abordam de várias maneiras a igualdade de gênero e empoderamento de mulheres entre as suas metas, e de como isso tem provocado transformações nas estruturas de poder e nas vivências de projetos de vida de mulheres afetadas pelos investimentos que se entendem como, de alguma forma, contribuintes para o desenvolvimento. Tais transformações podem ser entendidas tanto como contribuindo para o desmonte quanto para o reforço de estruturas de poder hegemônicas.

A discussão nos artigos incluídos na edição 2016:1 da revista internacional Gender and Development1 1 A Revista Gender and Development anuncia sucintamente sobre a sua missão: “Its aim is to inspire, influence and support development and humanitarian policy and practice, promoting social justice and gender equality. ... We publish accessible yet rigorous articles by gender and development practitioners, policymakers and researchers, and feminist activists from around the globe” (veja http://www.genderanddevelopment.org/about/). , editado pela Organização Não-Governamental Internacional OXFAM, revela controvérsias em torno do anúncio da Agenda internacional 2030 de desenvolvimento sustentável, dirigindo-se expressamente a formulador@s de políticas e programas, pesquisador@s e feministas, evidenciando um otimismo crítico, temperado por questionamentos sobre as reais possibilidades de avançar na promoção de igualdade de gênero e debelar estruturas patriarcais. Semelhantes debates em contextos históricos diversos apareceram anteriormente, na própria revista, na edição 13:1, em 2005, sobre as metas do milênio. Os assuntos e aplicações específicas são inumeráveis, como fica muito claro no elenco de temas discutidos nas edições da revista, bem como em livros introdutórios como o de Momsen (2004)Momsen, Janet Henshall. Gender and Development. London and New York:Routledge, 2004. e de abordagens críticas feministas como Moser (1993)Moser, Caroline O. N. Gender planning and development: theory, practice and training. New York, Routledge, 1993., Fraser (2002Fraser, Nancy. Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero. In: Bruschini, C.; Unbehaun, S. G. (org.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo, Fundação Carlos Chagas/Editora 34, 2002, pp.59-78., 2009Fraser, Nancy. Feminism, Capitalism and the Cunning of History. New Left Review 56, 2009, pp.97-117.) e em diversos artigos encontrados nos Cadernos Pagu, na Revista de Estudos Feministas, na Feminismos, e nos Cadernos de Crítica Feminista. Quanto mais se dissecam os projetos e programas específicos mais se descobre que a denominação de um projeto como sendo de “desenvolvimento”, mesmo sendo uma via para alcançar metas e acesso a recursos que se coadunam com políticas de gênero, é de menor importância a realização de tal busca de metas guiada por políticas explícitas com objetivos principais de promoção de igualdade gênero.

Dimensões multifacetadas da relação entre projetos de desenvolvimento e políticas de gênero são a problemática discutida de diversas maneiras em diferentes realidades nos artigos neste dossiê. Dá-se realce à importância da diferenciação entre projetos e políticas, apresentando e questionando impactos desejados e indesejados de práticas de planejamento e execução sobre as relações de gênero. Os primeiros artigos, mais panorâmicos, conceituam as maneiras pelas quais diferentes atores parceiros e populações afetadas em/por programas e projetos de investimentos têm contribuído para a estruturação de poder(es) numa diversidade de contextos, geográficos e sociais, com atenção para como se aborda gênero e a sua (dis)sintonia com perspectivas feministas. Os próximos artigos abordam em termos gerais a relação entre feminismo e desenvolvimento de uma ótica feminista. Focam em projetos de desenvolvimento nos quais ações direcionadas à promoção de igualdade de gênero são claramente secundarizadas; ressaltam grandes obras infraestruturais que visam fornecer a base para produtos e para serviços demandados pela economia (energia, mineração, logística portuária, etc), nos quais a normatização e a pactuação internacionais requerem consideração de relações de gênero, mas os objetivos básicos dos projetos não são dirigidas principalmente ao alcance das metas relacionadas com gênero. Em seguida, e finalmente, são artigos que examinam ações inspiradas, em graus diferentes, em políticas de gênero e feminismo que tanto enfrentam quanto se articulam com aspectos de discursos desenvolvimentistas na sua implementação. São programas e projetos, urbanos e rurais, que se entendem como associados a políticas sociais que têm o diferencial de poderem alavancar o desenvolvimento e que se dirigem a setores sociais compreendidos como importante na formação, aquisição de habilidades e empoderamento de mulheres em assuntos chaves para as relações de gênero no campo e na cidade.

Enfatizando trabalhos com perspectivas críticas ao conceito e aos indicadores que classificam o desenvolvimento e gênero, e que focam América Latina e Brasil, mas que também abrangem um contexto internacional mais amplo, o conjunto de trabalhos neste dossiê mostra como esses diferentes contextos de projetos e programas de investimento enquadram, de várias maneiras, a busca de poder para e/ou com as mulheres. Pretende-se, assim, identificar estruturas de poder que favorecem e que desfavorecem processos sociais que inserem diferentemente as relações de gênero em contextos de desenvolvimento e promoção de (des)igualdade de gênero.

O artigo de Cecília Sardenberg acompanha a intensificação da internacionalização da discussão da relação entre o feminismo e o desenvolvimento com realce para a atuação política da Comissão sobre o Status das Mulheres (CSW) veiculando e negociando pontos de vista feministas, desde a participação dessa comissão na formação das Nações Unidas no final dos anos 1940. Perfila a passagem de feminismos nacionais diversos para um movimento cada vez mais internacionalizado de mulheres que culminou em Beijing, em 1995, e suas reuniões quinquenais sucessivas, sempre priorizando posicionamentos independentes de mulheres, cujas reuniões da CSW são promovidas pela ONU e evidenciam diálogo aberto e a perpetuação de diferenças de opinião. As diferenças entre perspectivas, inseridas na polarização entre modelos capitalistas e socialistas de desenvolvimento nas primeiras décadas, foram se transformando com o tempo, afastando-se de teorias que enfatizavam a naturalidade da complementação de papéis entre os sexos que contribuíam para limitar estratégias de promoção de mulheres, e abraçando visões de relações sociais entre os sexos e busca de promoção de igualdade de gênero, implicando em combate a estruturas patriarcais. Sardenberg situa a participação de mulheres latino-americanas, com marcada atuação brasileira amplamente documentada, como progressista e questionadora, enfrentando visões fundamentalistas religiosas e nacionais no cenário internacional. Mostra como tal ação foi reforçada num feminismo de Estado fortalecido com governos brasileiros simpáticos ao feminismo que criaram espaços institucionais e ações diplomáticas que evidenciaram uma sintonia entre as delegações oficiais do Estado (nas conferências propriamente ditas) e a sociedade civil (nos fóruns paralelos com ações privilegiadamente feministas com forte atuação de ONGs e representantes dos movimentos sociais), exemplificada na interação entre mulheres em Beijing e Houairou, respectivamente. As propostas mais feministas extrapolam as estritas limitações presas à negociação geopolítica entre nações nas conferências, atingindo questões de gênero que se pautam numa mudança de relações de poder entre homens e mulheres e que configuram ganhos quando incluídos, pelo menos parcialmente, nas declarações e propostas de acordos oficiais provenientes das conferências. A autora demonstra preocupação com as forças políticas e econômicas que contribuem para retrocessos nessas institucionalizações de perspectivas feministas ao relatar como a guinada neoliberal do governo no Brasil resulta no desmonte de espaços específicos para defender feminismo e os direitos humanos em geral.

Mesmo quando não ocorra num ambiente muito público de disputa de poder, nacional e internacional, a persistência da resistência a propostas mais feministas e questionadoras de metas paradoxalmente “empoderadoras” de mulheres se torna muito evidente na análise cuidadosa de Andrea Cornwall, no artigo que aborda o discurso em projetos e programas de desenvolvimento e investimento que prega que investir em mulheres é “um bom negócio”. Ela entende essa produção publicitária e contabilística como uma adesão a metas basicamente neoliberais, nocivamente muito distantes da compreensão feminista que empoderar mulheres significa construir formas de acabar com desigualdade de gênero e promover transformação estrutural que se orienta por noções de justiça. Mesmo que a publicidade dos executores do projeto se autocongratule pelo seu investimento em mulheres, a investigação mais elaborada costuma mostrar que essas mulheres foram incorporadas como força de trabalho em atividades marcadas como femininas e pouco libertadoras para as mulheres. Eles confundem “fazer mulheres trabalhar para o desenvolvimento com fazer desenvolvimento trabalhar para as mulheres”. Esse empoderamento “lite” se serve de ideias prezadas no feminismo como agência e escolha/decisão, distorcendo-as para repetir uma noção de que as mulheres trabalham muito, pensam na comunidade e praticam conscientes qualidades maternais que possam contribuir para solavancar família, comunidade e nação para fora da pobreza. Assim, são recursos para atingir resultados para desenvolvimento que possam ser positivamente avaliados mais pela sua contribuição ao crescimento econômico de que à igualdade de gênero em si. Tal visão tem uma cegueira singular aos constrangimentos ocasionados por normas sociais, relações afetivas e práticas instituídas que prejudicam a construção da igualdade de gênero. Ela se vale de uma transversalização do conceito de empoderamento que retira dele os conteúdos ancorados em cadeias de equivalência feministas, fazendo-o servir a interesses mais mercadológicos, consumistas, empreendedores e empresariais. Não coloca na mira políticas de cidadania ou mudanças em relações afetivas e conjugais que possam servir para descarregar as mulheres de trabalhos representados como naturalizadamente femininos. Entende investimento em mulheres como um componente do que chama de “responsabilidade social” em empreendimentos que preservam estruturas patriarcais. Cornwall advoga uma ênfase que diverge da busca individualizada de sucesso que o empoderamento lite promove, invocando a necessidade de centrar em consciência crítica feminista e em ação coletiva.

Os próximos três artigos do dossiê são de estudos longitudinais que convergem ao focar em ações calcadas no uso aberto de recursos internacionais na implantação de esforços localizados de investimento intensivo em energia, mineração, comercio e indústria de grande vulto, na formação de vocações locais e no estímulo de circulação de capital. Trata-se de investimentos em grandes projetos de engenharia desenhados para alcançar espaços bem além dos seus locais específicos de implantação, com metas extra-locais e grandes efeitos na organização social e espacial de populações locais. A barragem binacional de Salto Grande entre Argentina e Uruguai, estudada por Catullo, fornece energia para locais distantes e provoca fortes efeitos nas moradias das famílias que sobrecarregam, sobretudo, as mulheres, entre as populações atingidas, forçando novas rotinas sócio-espaciais no ambiente novo que precisam enfrentar. Scott conta como se inserem mulheres em três grandes projetos de investimento em Pernambuco, no Nordeste brasileiro, sem que nenhum deles vislumbre desenvolver nenhuma política de gênero: a construção da barragem de Itaparica que reassentou 80 mil pessoas; a construção do estádio para a Copa do Mundo no Oeste da Região Metropolitana do Recife que propagou uma imagem de legados de uma renovação urbana, desapropriou as moradias de mais de duzentas famílias de um loteamento e incentivou uma política de combate à exploração sexual; e a implantação do Complexo Portuário-Industrial de Suape, ao Sul da Região Metropolitana, que provocou intensas migrações de trabalhadores de construção civil e relações entre migrantes e moradores (e especialmente moradoras) locais. Acevedo Marin e Maia analisam as redefinições espaciais que um projeto de exploração de minérios que levou a construção do Complexo Albras/Alunorte em Barcarena no estado de Pará no Norte do Brasil introduzindo exclusão de mulheres de trabalho e resistência nas confrontações resultantes sobre uso de território entre populações tradicionais. Mostram como, nesse processo de exclusão e reação à uniformidade da lógica capitalista, a participação feminina nas ações coletivas foi de essencial importância para o fortalecimento da resistência ao “desenvolvimento imposto” valorizando a confluência de ações coletivas das mulheres das populações tradicionais.

Esses artigos, em conjunto, deixam transparecer, acima de tudo, a ausência histórica e estrutural de prioridade à questão de igualdade de gênero. Mostram repetidos processos da imposição da perda de espaços de existência, espaços de vida, espaços de socialização e de vizinhança. Espaços perdidos que reemergem através de memórias que operam para afetar mulheres, que tinham intensiva e longa convivência com os ambientes locais antes da implantação dos projetos, causando processos de tristeza e desestabilização emocional pelas faltas, bem como em intensivo envolvimento na tentativa de recuperar a vida perdida. Repetem-se insucessos na implantação de novos espaços urbanos e industriais planejados como modernos, dinâmicos e inovadores, mas cuja reorganização de ocupação acentua desigualdades e sujeita populações subalternas e relocadas aos efeitos de deterioração material e social do ambiente, sobretudo à poluição proveniente das novas atividades promovidas, e à distância imposta ao convívio. Seguem, repetidamente, os passos previsíveis de projetos de desenvolvimento, de planejamento do espaço, da sua apropriação, e da criação de “dramas sociais” e conflitos na utilização dos novos espaços impostos. Semantizados como intrusos nos seus próprios territórios, relocados frequentemente para territórios em que sua presença como relocados interfere no espaço de existência de ainda outras populações, buscam identidade, justiça e respeito à história. Acionam-se atores internacionais e do Estado (com a OIT, o Ministério Público, audiências públicas, o INCRA, sindicatos, associações, etc.) na defesa de ideias como pluralismo jurídico, bem como de direitos de populações afetadas, muitas tradicionais, num ambiente desigual de negociação diante do poder relativo das parcerias que negociam em torno dos conflitos. Profundamente atingidas, é na descoberta mais coletiva, de identidade e de classe, de novos caminhos de resistência e de retomada dos seus espaços de existência que muitas mulheres se encontram mais engajadas na vida política, como cidadãs reivindicadoras, muito mais na resistência e na defesa de movimentos que propõem modelos alternativos de desenvolvimento, e na diminuição de prejuízos do que no acúmulo de ganhos.

Os seguintes quatro artigos versam sobre três realidades rurais e uma realidade urbana, incluídas em programas que podem ser descritos como associados a políticas que visam modificações amplas de relações sociais em territórios e contextos que tocam profundamente as mulheres. São programas que integram explicita ou explicitamente redefinições de acesso a recursos materiais e sociais para mulheres, apresentando-se como empreendimentos que mostram algum tipo de consciência de responsabilidade social que beneficia mulheres. Revelam uma variabilidade de consequências quando examinados do ponto de vista de igualdade de gênero e de questionamento de relações de poder que reforçam práticas patriarcais. Carmen Diana Deere, referindo a uma política de gênero estimulado pela FAO, apela especificamente pela necessidade de buscar o objetivo de desenvolvimento sustentável 5 (igualdade de gênero) da plataforma das Nações Unidas, intersectando com outros objetivos da mesma plataforma. Exemplificando entre dados nacionais de uma multiplicidade de países latino-americanos e, às vezes, em comparação com nações de outras regiões, concentra atenção na importância de ter estatísticas censitárias confiáveis e, sobretudo, com sensibilidade a diferenças de gênero com referência a propriedade, divisão de trabalho e de atividades cotidianas, e aquisição e uso de terra por pequenos agricultores. Tal prática, além de tornar mais evidentes algumas desigualdades, favorece a promoção do envolvimento de mulheres em atividades empoderadoras fundamentais na economia rural. De outra perspectiva, ainda transversalizada e focando desenvolvimento sustentável em áreas rurais brasileiras, Emília Pietrafesa de Godoi e Vilênia Aguiar examinam as implicações de políticas territoriais de desenvolvimento, dando relevo à importância da interrelação entre gênero, etnia, geração e raça no cotidiano dos territórios como construídos de maneiras múltiplas e intensivas pelas mulheres rurais. Tanto percebem a necessidade de valorizar essa contribuição das mulheres, quanto enfatizam que o direcionamento dos programas embasados em territórios costuma enfatizar princípios de mercado, quando, de fato, outros princípios relacionais são tão ou mais fortemente presentes para as mulheres que participam neles. Ao investigar a fruticultura irrigada do Vale do São Francisco, Marilda Menezes, Roberto Véras e Camilla Almeida desvendam uma estratégia de criação de uma produção agrícola de extraordinário dinamismo que identifica essa região do sertão nordestino como um espaço de intensa oferta de trabalho para mulheres. Quando nas periferias urbanas se formam núcleos de produção agrícola, são cada vez mais dissociados da pequena agricultura familiar rural. Estabelece-se uma ruralidade na qual a incorporação das mulheres a partir de empregos e algumas políticas de suporte de previdência e renda favorece uma flexibilidade na dedicação ao trabalho por meio da complementação de renda que, de fato, não leva a grande fortalecimento delas. @s autor@s mostram que é pelo envolvimento ativo na vida sindical em defesa de melhores condições para todos os trabalhadores, com atenção especial para as mulheres, que se evidencia um acréscimo no poder delas. A intersecção entre classe e trabalho, questionando a maneira que os empregadores tratam os seus empregados, é que permite que algumas mulheres se destaquem. O Bolsa-família ganha a atenção de Giselle Nanes e Marion Quadros como um programa de transferência de renda que realiza uma priorização explícita das mulheres na sua concessão. Mesmo que o programa se aplique em áreas rurais e urbanas, o artigo privilegia as mulheres urbanas investigadas na Região Metropolitana do Recife. A própria concessão da bolsa como política de combate à pobreza termina por reificar diversos atributos naturalizados como femininos para além da baixa renda, reforçando a dedicação de mulheres ao cuidado da saúde e da educação de seus filhos dependentes. Simultaneamente, a convivência com as mulheres mostra que o programa tem possibilitado a algumas se livrarem de relações conjugais violentas, distanciando-se de parceiros e criando um aumento na sua autonomização, fazendo com que a ressignificação positiva da separação seja um aspecto mais importante que a perda de um parceiro que contribui (ou não) à casa.

Esses artigos tratam de convergências difusas de políticas e programas de desenvolvimento com perspectivas seja de simples inclusão de mulheres, seja de promoção de igualdade gênero, incorporadas numa semântica desenvolvimentista que sugere que atingir metas mais feministas pode coadunar com ideias de crescimento econômico. Essas convergências criam espaços particularmente polissêmicos sobre o que pode ser entendido como empoderamento feminino, encontrando fendas nas relações de poder que assinalam alguns avanços para as mulheres, ao mesmo tempo em que enfrentam subterfúgios que promovam ações que ressignificam muito pouco nas relações entre homens e mulheres, provocando o que efetivamente seja uma celebração da manutenção do status quo. A ilusão desenvolvimentista de consumo e riqueza plenos para todos é reformatada como um combate à pobreza que reifica a ocorrência de acirramentos históricos de relações de classe, mantendo muitas e colocando muitas outras populações “às margens do desenvolvimento”. Sem falta, o combate à pobreza faz parte do elenco numeroso de metas inter-relacionadas que informam o cardápio de indicadores que possam orientar o planejamento e o direcionamento de programas.

Mecanismos de registro, regimentação e fiscalização bidirecional se tornam chaves para negociações nas quais coletividades, movimentos e institucionalidades digladiam para suas metas serem respeitadas, como evidenciado nas discussões envolvendo Censos Agrícolas Mundiais, Food and Agriculture Administration, MDA PPIGRE, INCRA, Sindicatos Rurais, CONTAG, Ministérios de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza, coletivos rurais de mulheres, fóruns de territórios, territórios de cidadania. Quando esses programas se descrevem, costumam adjetivar o desenvolvimento para sugerir algum aspecto de ganho social constante, explicitamente ou não, entre as metas prioritárias do desenvolvimento sustentável, nas quais o alcance de uma meta de promoção de igualdade de gênero pode somar. A repetição de anúncios da consecução de algum progresso na implementação dessas metas de igualdade de gênero e mudanças estruturais, negociadas internacionalmente, costuma ocorrer para divulgação ampla. Esses programas de desenvolvimentos mais “adjetivados” socialmente, pelas suas interconexões, são mais amenos nos avanços das condições para as mulheres e no direcionamento ao alcance de metas associadas à agenda mais feminista. Mas as limitações esmiuçadas nos estudos aqui incluídos, semelhantes ao percurso crítico seguido por Cornwall ao identificar o “empoderamento lite”, mostram um por um como tais “sucessos” frequentemente sofrem processos de desmonte: 1) Mesmo idealizados em legislações e registros de dados mais sensíveis à condição da mulher, são escamoteados quando tais legislações e regulamentações são retratos irreais da prática, e geram estatísticas ausentes e ilusórias configurando-se como representações enganosas de reais processos de tomadas de decisão; 2) Mesmo mostrando ampliação de trabalho para mulheres, tais inserções são enfraquecidas por ações do mercados de trabalho altamente desfavoráveis aos trabalhadores e às trabalhadoras, devidamente resistentes a transformações nas relações de poder associadas a classe, recriando e regimentando desigualdades; 3) Mesmo sugerindo que novas qualidades de trabalho estão aparecendo, incorrem numa questionável essencialização/estereotipização de características de uma divisão de trabalho que feminiliza algumas práticas em vez de que ampliar a disponibilidade de todos os tipos e condições de trabalho para homens e mulheres; 4) Mesmo incluindo aprendizado de novas práticas nas suas agendas, oferecem capacitações cuja propostas de transformação são ilusórias; e, 5) Mesmo reputados como promovendo significativa participação feminina, não mobilizam tanto as mulheres, especialmente quando inseridas numa organização de implementação vertical, de cima para baixo, cuja credibilidade de persistência é muito menor que quando a proposta é mais horizontal, ou mesmo de baixo para cima.

Em estudo anterior sobre estratégias de desmonte de resistência a projetos de desenvolvimento (Scott, 2012Scott, Parry. Descaso planejado: uma interpretação de projetos de barragem a partir da experiência da UHE Itaparica no rio São Francisco. In: Zhouri, A. (org.). Desenvolvimento, reconhecimento de direitos e conflitos territoriais. Brasília, ABA, 2012, pp.122-146.), sem realçar questões de gênero, se percebeu que os impactados (incluindo, evidentemente, as impactadas) são sujeitos a atos sistemáticos identificáveis de exclusão (desmoralização, metamorfose institucional, abandono planejado, e incorporação burocrática), e os estudos neste dossiê reforçam essa percepção mostrando diferenças de acordo com a idealização dos projetos. A crítica feminista, tendo tornado muito mais visível as possibilidades almejadas pela sua agenda internacional, é a primeira a apontar as limitações impostas a essa agenda pelas estruturas que visam modificar, sempre em negociação intensiva e posta em pauta em casos específicos. Pelo que se observa nos estudos aqui, para projetos, programas e políticas conseguirem ser pelo menos levemente associados a ideias respaldadas na agenda feministas, as perspectivas são mais alvissareiras quando os espaços associados para implementação se caracterizam por descrições de relações sociais mais solidárias em territórios de existência e de vida (conforme descritos por Escobar, 2008Escobar, Arturo. Territories of Difference: Place, Movements, Life, Redes. Durham, Duke University Press, 2008.) de que quando se associam a territórios de circulação de capital através de produtos para inserção no mercado. Projetos de desenvolvimento são compostos por atores que planejam como querem ocupar territórios, e os seus idealizadores e executores podem abrir ou fechar portas para ideais feministas, sabendo-se sempre que enfrentarão pressão para inclusão, bem como estratégias de desmonte. A força da resistência pode crescer quando é respaldada na consciência, na memória de espaços vividos e no envolvimento em resistência através de coletividades situadas nos espaços de vida de pessoas. Por mais oposição que enfrentem, é possível vislumbrar uma busca de ganhos nesses projetos, programas e políticas quando eles, nos locais em que estão levados para frente, oferecem, conjuntamente, caminhos coletivos compartilhados para andar em busca das metas da agenda feminista.

Referências bibliográficas

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  • Vainer, C.; Araujo, F. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional. Rio de Janeiro, CEDI, 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018
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