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“O Rio de Janeiro é uma terra de homens vaidosos”: mulheres, masculinidade e dinheiro junto ao funk carioca * * Este artigo resulta de pesquisa de pós-doutorado, conduzida no PPGSA-IFCS-UFRJ, financiada por bolsa do PNPD-CAPES Institucional. Uma versão anterior foi apresentada na mesa “Music, aesthetics and market in Latin American margins” do Congresso da Latin American Studies Association, em Nova Iorque (LASA, 2016). Agradeço aos pareceristas anônimos de cadernos pagu por suas valiosas e enriquecedoras sugestões a este artigo. Os resultados que apresento aqui são, naturalmente, de minha inteira responsabilidade.

Resumo

A partir da articulação entre gênero e materialidade tomamos o dinheiro como objeto estético para evidenciar a relacionalidade da pessoa masculina funk . O dinheiro revela-se como adorno, como articulador de relações e como substância. A mulher, que em algumas leituras é pensada como objetificada, revela as potências do feminino que compõem o homem. Como desdobramento da análise, reconceituamos o corpo e a pessoa, tomando-os como não circunscritos, repensando junto a noção de “objeto”. Igualmente, trazemos um sentido outro para a noção de “ostentação”, deslocando o consumo de uma chave moralizante.

Dinheiro; Materialidades; Ostentação; Gênero; Corpo

Abstract

Departing from the nexus between gender and materiality we take money as an aesthetic object in order to elicit the relationality of the male funk person. We bring to the fore money as adornment, as articulator of relations and as substance. Woman, in some accounts described as being objectified, reveals the feminine powers engendering male personhood. We reconceptualize the body and the person as non-discrete entities, rethinking together the notion of "object." We also bring a new meaning to the notion of “ostentation”, avoiding a moralizing approach to consumption.

Money; Materiality; Ostentation; Gender; Body

Introdução

O funk carioca é um gênero de música eletrônica nativo do Rio de Janeiro, Brasil, derivado da apropriação do soul e do hip-hop nova-iorquinos bem como do Miami bass da década de 1970. Um ritmo de estilo singular, diferenciado de suas influências primeiras, fortemente associado aos jovens moradores das favelas e periferias da cidade. Se esses jovens são muitas vezes vistos como seus produtores e fruidores primordiais, a música funk é, por outro lado, ampla e massivamente consumida, não se atrelando a um grupo social particular. 1 1 Todos os desenhos e imagens são de minha autoria e seus usos são de minha inteira responsabilidade. Atendendo ao pedido de meus interlocutores em campo mantive seus nomes originais, com exceção daquele que designo como Luizinho. Igualmente, possuo autorização de Mr. Catra para reproduzir sua imagem. Por fim, noto que, em função de limitações espaciais, as letras das músicas constantes do texto foram parcialmente transcritas. O funk produziu uma estética própria, mas nem por isso circunscrita, o que se traduz não apenas em suas letras e sonoridades, mas em um uso ativo e significativo dos objetos indumentários. 2 2 É possível, contudo, delinear diferenças estilísticas que estratificam o consumo da música, meta que não é a nossa aqui.

Neste artigo, parto de dados etnográficos recolhidos em minha pesquisa de doutorado para relacionar gênero e estética tendo como norte duas questões conceituais específicas. De um lado, quero seguir em minha exploração do entendimento da pessoa trazendo à baila não apenas as relações das quais ela se compõe, mas sobretudo os objetos materiais e estéticos agenciados, exercício que me possibilitará elicitar a relacionalidade da pessoa masculina funk. De outro lado, quero empreender uma exploração do dinheiro em sua materialidade, tomando-o não tanto em seu papel de medida abstrata de valor ou meio de compra, ou como puro símbolo de poder e riqueza. Quero, outrossim, enfatizar sua dimensão de adorno, sem contudo abandonar sua significação como símbolo de poder e riqueza. Apreenderei o dinheiro, portanto, como adorno e objeto estético, cujo sentido resulta, inclusive, da elaboração sobre o legado de sua representação.

Este texto segue pela trajetória que venho traçando ao apreender os objetos estéticos, sejam eles bens de consumo ou artefatos, como próteses, no sentido que Strathern concedeu a essa noção – “coisas que são a um só tempo da pessoa e mais do que a pessoa” ( Strathern, 1991Strathern, Marilyn. Partial connections . Lanham, Altamira Press, 1991.: 76) – e que concorrem na produção da forma. Apreendo assim a estética como a assemblage feita por meio de objetos retirados do mercado e aos quais são atribuídos sentidos próprios através do consumo. Tomo o consumo como movimento criativo e transgressor, por meio do qual os sujeitos concedem sentidos imprevistos aos bens pelos usos que deles fazem. Consumo é, portanto, também um insumo que possibilita a produção de estilos e a materialização de gostos.

A etnografia que apresento a seguir deriva de minha pesquisa junto à rede de relações que compõe o cantor Mr. Catra, muito renomado e bem sucedido no universo da cultura pop brasileira. O artista pertence à primeira geração de músicos do funk carioca, ritmo que emergiu ainda na década de 1980. Catra, um negro com cerca de cinquenta anos, iniciou sua carreira no funk na própria relação com os chefes do tráfico de favelas localizadas no entorno da Tijuca, bairro em que ele viveu em uma casa de família de classe média, tendo sido criado simultaneamente por seu pai adotivo branco, o dono da casa, e sua mãe biológica negra, a empregada doméstica da família. 3 3 Ao longo de dezoito meses acompanhei Mr. Catra, seus familiares, amigos e parceiros de criação. O trabalho de campo foi conduzido no estúdio de gravação, nos deslocamentos noturnos para cumprir a agenda de shows e na casa da família. Acompanhei ainda as mulheres do núcleo familiar do artista nas incursões para compras e nas visitas ao cabeleireiro. A esses dados, somo ainda aqueles levantados para a minha pesquisa de mestrado, conduzida ao longo de outros dezoito meses de trabalho de campo, em um baile funk no Rio de Janeiro. Acompanhei um grupo de jovens na festa, e ainda em suas compras de vestuário, visitas a barbeiros, nas produções de beleza anteriores à festa, que ocorriam em suas casas em seus locais de trabalho.

Mr. Catra é uma figura complexa, e essa complexidade se traduz não apenas em sua filiação ao funk como também no trânsito que exerce entre diferentes ritmos musicais – ele canta samba, MPB, dub, hip-hop, forró –, e entre diferentes ambientes sociais. Neste artigo, me centrarei não tanto na pessoa do artista, como fiz em outras ocasiões ( Mizrahi, 2009Mizrahi. De agora em diante é só cultura: Mr. Catra e as desestabilizadoras imagens e contra-imagens funk”. In: Gonçalves, Marco Antonio; Head, Scott (org.). Devires Imagéticos: representações/apresentações de si e do outro . Rio de Janeiro, 7Letras, 2009, pp.203-231. ; 2012bMizrahi. Mr. Catra: cultura, criatividade e individualidade no funk carioca. In: Gonçalves, Marco Antonio; Marques, Roberto; Cardoso, Vania (org.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro, 7Letras, 2012b, pp.109-136. ; 2016bMizrahi. Mr. Catra: cultura, criatividade e individualidade no funk carioca. In: Gonçalves, Marco Antonio; Marques, Roberto; Cardoso, Vania (org.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro, 7Letras, 2012b, pp.109-136. ), mas tomarei Mr. Catra como guia no desvendamento dos processos que engendram a constituição de masculinidades no Rio de Janeiro. Noto assim que, se traço meu raciocínio a partir do funk, nem por isso quero essencializar a minha análise. Veremos aqui em interseção funkeiros, bicheiros e chefes do tráfico.

Os objetos estéticos de meu interesse são aqueles que compõem diferentes aparências e possuem como foco um tipo de masculinidade exemplar, associada aos homens mais velhos – os padrinhos do funk – e ao ethos masculino dos chefes do tráfico de drogas das favelas. Esses “objetos” podem ser um maço de dinheiro, um fuzil, joias, bem como tênis, roupas e chapéus. Mas para além dos objetos materiais temos a “mulher”, da qual o “homem” se faz ladear na esfera da festa e que é presença recorrente em suas falas cotidianas. Nessa conjuntura, a mulher, que poderia ser concebida como objetificada, é também um dos adornos que permitem ao homem se entender como tal. A mulher e seu papel constitutivo contribuem para que vejamos o aspecto relacional que define a noção de pessoa masculina que aqui designo como funk . Se os objetos materiais são pensados como adornos da pessoa , fazendo emergir o “homem” enquanto pessoa social, a mulher é adorno empoderador do homem. Essas “identidades”, como veremos ao longo deste texto, não estão fixas nem tampouco definidas, de modo que a mulher, em especial, surgirá ocupando diferentes posições.

O universo masculino que descortinaremos demanda que a mulher seja recorrentemente acionada para descrevê-lo revelando uma noção de pessoa que contrasta fortemente com sua contraparte feminina, produzida como um em si e independente do homem, dado não pouco significativo em um universo recorrentemente classificado como machista. O funk, como esperamos mostrar, permite ver agentividade do feminino mais do que a sua subjugação por um polo masculino dominante em representações consideradas como demonstração de uma “cultura machista”, uma ideia que as reflexões em torno das práticas BDSM ( Gregori, 2015Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: o contrato e a erotização em cenários sadomasoquistas. Etnográfica 19(2), Portugal, 2015, pp.247-265. ; McClintock, 2003Mcclintock, Anne. Couro Imperial: raça, travestismo e culto da domesticidade. cadernos pagu (20), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, pp.7-85. ) me ajudarão a clarificar. Ao explorar, por meio da articulação entre pessoas e coisas, relações de gênero mais propriamente definidas em um registro heterossexual, quero trazer uma reflexão que contribua com os estudos de masculinidades, campo que vem mostrando especial rendimento junto a pesquisas conduzidas em torno das relações homoafetivas, como vemos com, entre outros, Simões (2011)Simões, Julio Assis. Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo. In: Trench, Belkis; Rosa, Tereza Etsuko da Costa (org.). Nós e o Outro: envelhecimento, reflexões, práticas e pesquisa . São Paulo, Instituto de Saúde, 2011, pp.119-138. e França (2012)França, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo . Rio de Janeiro, EDUERJ, 2012. .

Por fim, vale notar que o diálogo que estabeleço entre gênero e materialidades se faz em continuidade com o exercício de repensar as noções de objeto, corpo e pessoa a partir da diluição de suas fronteiras. Iniciei esse exercício em diálogo estreito com as teorias amazônicas de produção do corpo, da pessoa e das artes ameríndias ( Lagrou, 2007Lagrou, Els. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks, 2007. ) que me ajudam a formular a ideia de um “corpo artefatual” (Mizrahi, 2014). Venho me dedicando mais explicitamente a essa reconceituação de corpo, pessoa e objeto em diferentes artigos ( Mizrahi, 2012aMizrahi. Cabelos como extensões: relações protéticas, materialidade e agência na estética funk carioca. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares , 9 (2), Rio de Janeiro, 2012a, pp.137-157. ; 2014bMizrahi. Mulher já nasce veada: estéticas do corpo, gênero e pessoa no Brasil urbano. Versión Temática 33, Cidade do México, 2014b, pp.119-131. ; 2015aMizrahi. Cabelos ambíguos: beleza, poder de compra e “raça” no Brasil urbano. Revista Brasileira de Ciências Sociais 30 (89), São Paulo, 2015a, pp.31-45. ), fazendo surgir a pessoa como um agregado dessas instâncias todas. Aqui são centrais a noção de actant de Latour (2005)Latour, Bruno. Reassembling the social . Oxford, Oxford University Press, 2005. , na qual o ator social é um agregado de instâncias humanas, não humanas e agências, bem como as teorias melanésias da pessoa, como introduzidas acima por meio da noção de prótese.

O dinheiro e sua presença ostensiva

Já amanhecia e, depois de haver feito seis shows, Mr. Catra nos propôs que fôssemos até o baile funk da favela da Mangueira, em São Cristóvão, Zona Norte do Rio de Janeiro. Nessa noite, ao invés de nos deslocarmos todos juntos em um único carro, como fazíamos quando saíamos de van, cruzamos a cidade divididos em quatro diferentes carros de passeio. 4 4 Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde de carros”, meu carro poderia ser dirigido por mim mesma ou por um dos “seguranças” de Mr. Catra. Invariavelmente, eu levava comigo outros membros da entourage do artista.

Chegamos à Mangueira. Mr. Catra estaciona o seu veículo próximo à rua que dá acesso ao baile e nós estacionamos logo atrás. Ao sair do carro, eu lhe pergunto se ele pagaria naquele momento ao guardador que nos cercava e qual seria o valor adequado. Queria eu mesma ter um parâmetro e saber o que deveria fazer em relação ao meu carro. Sem emitir qualquer palavra, ele tira do bolso de sua calça um gordo maço de notas de dinheiro, composto por outros maços menores, reunidos por um elástico preso em cruz. Segurando em uma de suas mãos o amarrado de dinheiro e sem qualquer preocupação em escondê-lo, ele separa com a outra mão uma nota de cinquenta reais. Em seguida, pergunta ao guardador se ele teria trinta reais para lhe dar de troco e paga por ele e por mim.

Vamos andando em direção à entrada do baile, que se desenrola ao ar livre e ao longo de uma rua comum, cujas calçadas são ocupadas por quatro diferentes e subsequentes equipes de som: paredões de alto-falantes que emitem a música funk tocada por seus respectivos DJs. 5 5 O mais comum é que bailes funk se desenrolem em quadras de esportes, estejam elas localizadas em favelas, comunidades ou em clubes. Estes últimos são, em geral, obsoletos e localizados na cidade formal. O início da rua está vazio e em cada um de seus lados postam-se três garotos, perfilados um atrás do outro e separados alguns metros de si. Vendem drogas. Gritando, oferecem “papel de cinco e de sete”. Cada um deles segura em uma de suas mãos sacos plásticos transparentes e incolores que nos deixam ver o conteúdo resultante das transações monetárias feitas ao longo da noite. A outra mão fica livre para entregar a droga e receber o dinheiro, que é em seguida inserido no saco plástico do qual é retirado também o troco. Mr. Catra para em frente a um desses meninos, leva a mão ao bolso, traz à tona mais uma vez o seu maço de dinheiro e repete a operação feita ao pagar o guardador do carro.


6 6 As fotografias e os desenhos são de minha própria autoria e responsabilidade.

Essa presença ostensiva do dinheiro e sua presentificação recorrente é o mote deste artigo. Nos dois parágrafos anteriores vemos o dinheiro ser exibido sem nenhum pudor, o que é intrigante, especialmente no Rio de Janeiro, cidade em que a prudência recomenda que os objetos de valor sejam usados com discrição de modo que exibir um maço de dinheiro em plena rua para em seguida colocá-lo no próprio bolso é considerado um ato temeroso. O mesmo vale para os sacos de dinheiro que eram segurados pelos vendedores de maconha, cocaína e afins. Por que eles deveriam ser transparentes? Poderiam perfeitamente ser opacos e impermeáveis ao olhar, como é talvez o mais usual em outros contextos.

A invisibilidade do dinheiro, argumenta Graeber (1996)Graeber, David. Beads and money: notes toward a theory of wealth and power. American Ethnologist 23(1), New York, 1996, pp.4-24. , está diretamente ligada a seus poderes quase mágicos, à sua capacidade de, uma vez retirado de circulação, revelar seu potencial de comensurabilidade. Mas o ponto entre os sujeitos desta etnografia parece ser precisamente o oposto. O poder do dinheiro advém precisamente de sua exibição e da concomitante visualização. A magia do dinheiro é exercida em proximidade estreita à possibilidade de ele ser visto. Funciona assim em um registro estético mais próximo daquele descrito por Strathern (2013)Strathern, Marilyn. Learning to see in Melanesia . Lectures given in the Department of Social Anthropology, University of Cambridge, 1993-2008, HAU Marterclass Series, v. 2, 2013. em Learning to see in Melanesia . O dinheiro participa da produção de uma estética, feita em performance, que produz a forma adequada, apropriada, de modo a extrair do outro um nível particular de atenção. E, nesse processo, a pessoa revela e traz à flor da pele as suas potencialidades internas. O dinheiro, dessa perspectiva, tem o papel de provocar no outro o olhar e trazer para si os olhares do espectador fazendo com que a pessoa social emerja. A pessoa é efetivamente vista, conhecida, quando está adornada e aparamentada. Mas é também o olhar do outro enquanto espectador que contribui para que a forma adequada seja produzida. E aqui o dinheiro, mesmo que acumulado e entesourado, deve ser gasto e exibido. Como se deu novamente em uma terceira ocasião, dessa vez em uma tarde de visita à esposa de Mr. Catra, Sílvia, em quem eu daria um abraço por seu aniversário.

Mr. Catra estava prestes a sair para mais uma de suas turnês noturnas e Sílvia, me chamando de “nem”, corruptela de neném que se converteu em nome carinhoso utilizado tanto no trato com as crianças como com os adultos quando se quer abordar algum tema delicado, me pergunta se eu acompanharia sua prima Verônica até o banco. Desse modo, explica Sílvia, o marido teria mais tempo em casa antes de sair para trabalhar. Eu lhe respondi que sim, não haveria problemas.

Cerca de trinta minutos depois partimos para o banco. Em meu carro, íamos eu e Verônica, além das quatro crianças acomodadas no assento traseiro, enquanto Mr. Catra seguia só em seu veículo. Já na agência bancária, ele salta do carro, vai até o caixa eletrônico e retorna com um maço de dinheiro na mão. Verônica, a quem Mr. Catra entregaria o dinheiro a ser dado a Sílvia, estava sentada ao meu lado, no banco do carona, de modo que o esperado seria que Mr. Catra entregasse o dinheiro à sua parente através da janela à ela adjacente. Mas não. Diferentemente, ele deu a volta pela frente do meu carro e, colocando-se ao meu lado, pareceu contar as notas que segurava. Em seguida, atravessou por minha janela sua mão adornada por joias, esticando-a em frente aos meus olhos, e entregou o pacote de dinheiro à sua parente.


Alguns conceitos mais

Em outra ocasião (Mizrahi, 2016), elaborei com mais vagar sobre os diferentes significados que o dinheiro pode adquirir e que não se esgotam na mensuração monetária e nem dizem respeito apenas ao caráter utilitário da vida social. Aqui, quero levar a sério a presença do dinheiro e sua exibição ostensiva no ambiente que investigo de modo a dele extrair significados outros. Significados que extrapolam o valor do dinheiro como meio de troca ou como veículo de entesouramento de riqueza. O dinheiro, em vez de disruptivo da vida social, revela-se como nódulo de relações bem como articulador de relações outras. 7 7 A perspectiva do dinheiro como disruptivo de relações sociais está presente desde as análises de Marx (1983) e Simmel (2004) chegando a autores mais recentes, como Taussig (1980). Essa perspectiva vem sendo questionada pelas novas sociologia e antropologia da economia, renovação que tem em Viviana Zelizer um de seus nomes mais atuantes. No que diz respeito às relações de gênero, nosso interesse aqui, gostaria de destacar as contribuições da autora em sua consideração do dinheiro em seus usos domésticos e na esfera das relações íntimas ( Zelizer, 1989 ; 2009 ; 2011 ), bem como as reflexões empreendidas por Piscitelli (2004 , 2013 ) e Piscitelli, Assis e Olivar (2011) em torno da prostituição e da circulação transnacional de pessoas.

A noção de “coisa-conceito”, como formulada por Henare, Holbraad e Wastell (2007)Henare, Amira; Holbraad, Martin; Wastell, Sari. Introduction. In: Henare, Amira; Holbraad, Martin; Wastell, Sari (org.). Thinking through things: theorizing artefacts ethnographically . London, New York, Routledge, 2007, pp.1-31. , parece conter um caminho produtivo para a exploração que intencionamos. Tomaremos o dinheiro não apenas como condutor de nossa investigação, em uma perspectiva que poderíamos chamar de maussiana e mais próxima da proposta de Appadurai (1986)Appadurai, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. In: Appadurai, Arjun. The social life of things: commodities in cultural perspectives. Cambridge, Cambridge University Press, 1986, pp.3-63. . E, se seus aspectos agentivos certamente se farão ver em nossa descrição, não privilegiaremos a noção de agência ( Gell, 1998Gell, Alfred. Art and agency: an anthropological theory . Oxford, Oxford University Press, 1998. ; Latour, 2005Latour, Bruno. Reassembling the social . Oxford, Oxford University Press, 2005. ), mas tomaremos o dinheiro como dispositivo que abre para mundos alter na medida em que coloca a possibilidade de reconceituar noções cujos significados estão estabilizados. Essa reconceituação nos possibilitará, entre outras coisas, trazer uma perspectiva outra para a ideia de “ostentação”, usualmente atrelada a um olhar desconfiado sobre a exibição ostensiva de objetos. O trabalho seminal de Vianna (1988)Vianna, Hermano. O mundo funk carioca . Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988. já nos permite antever o poder que os bens de consumo adquirirão no universo das festas pops nacionais, uma lógica atualizada não apenas pelo funk contemporâneo e suas muitas vertentes, como ainda pelo forró eletrônico ( Marques, 2015Marques, Roberto. Cariri eletrônico: paisagens sonoras do nordeste . São Paulo-SP, Intermeios, 2015. ) e pelas “festas de aparelhagem” do tecnobrega ( Lemos; Castro, 2008Lemos, Ronaldo; Castro, Oona. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2008. ), entre outros.

Em particular, trata-se de problematizar a conjunção entre mulheres, dinheiro e bens, que vemos presente também em outros contextos brasileiros. Envolve, portanto, o esforço de romper com uma certa naturalização de seu simbolismo enquanto móveis autoevidentes ou autoexplicativos na constituição de masculinidades heterossexuais, exploradas muitas vezes junto à vida no crime ( Feltran, 2011Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Editora Unesp, CEM, Cebrap, 2011. ; Grillo, 2013Grillo, Carolina Cristoph. Coisas da Vida no Crime: tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2013. ). O fascínio pelos bens “de marca” é atuante inclusive na constituição de masculinidades homossexuais, como nuançou França (2012)França, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo . Rio de Janeiro, EDUERJ, 2012. . A autora parte da noção de estilo – que refina por meio da interessante proposta de Facchini (2011)Facchini, Regina. “Não faz mal pensar que não se está só”: estilo, produção cultural e feminismo entre as minas do rock em São Paulo. cadernos pagu (36), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2011, pp.117-153. de tomar o estilo como tradução estética e visual dos códigos que encarnam a força atuante dos marcadores sociais de diferença – para, por meio dos objetos de consumo, desenhar diferentes estilos de autoapresentação que correspondem a distintas masculinidades vivenciadas em locais de lazer noturno e sociabilidade homoeróticos.

Ao elaborar sobre o dinheiro e o nexo que o articula a outros objetos do desejo, advogo por uma abordagem que reconheça o papel constitutivo que as materialidades desempenham na conformação das subjetividades e de mundos sociais particulares, como defendeu de modo precursor Miller (1987)Miller, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford, Basil Blackwell, 1987. . E, se o consumo de objetos de valor por jovens das periferias brasileiras foi abordado a partir de lógicas identitárias ( Pinheiro-Machado, 2012Pinheiro-Machado, Rosana; Scalco, Lucia Mury. Brand Clans: Consumption and Rituals Among Low-income Young People in the City of Porto Alegre. International Review of Social Research 2(1), Berlim, 2012, pp.107-126. ), como expressão de tensões entre classes ( Caldeira, 2014Caldeira, Teresa Pires do Rio. Qual a novidade dos rolezinhos?: espaço público, mudança e desigualdade em São Paulo. Novos Estudos (98), Cebrap, São Paulo, 2014, pp.13-20. ) ou ainda como bens posicionais ( Trotta; Roxo, 2014Trotta, Felipe; Roxo, Marco. O gosto musical de Neymar: pagode funk, sertanejo e o imaginário popular do bem-sucedido. Revista Ecopós 17 (3), Rio de Janeiro, 2014, pp.1-12. ), busco, junto ao funk, um caminho outro, que o afaste de uma chave representacionalista, para pensar o fascínio exercido pelos bens de consumo. 8 8 Para uma análise mais específica sobre o funk ostentação e sua cadeia de produção imagética, ver Pereira (2012). Em continuidade com a formulação que fiz em outra ocasião – ao mostrar que a atração que as marcas exercem sobre os rapazes funkeiros expressa uma relação tensa com a alteridade, uma relação de simultâneo desprezo e fascínio pelo “playboy” ( Mizrahi, 2007bMizrahi. Indumentária funk: a confrontação da alteridade colocando em diálogo o local e o cosmopolita. Horizontes Antropológicos , 13 (28), Porto Alegre-RS, 2007b, pp.231-262. ) –, aqui tomo o dinheiro como entrada para elaborar sobre o que estou chamando de masculinidade funk .

Um tipo de masculinidade que se define relacionalmente e na qual o dinheiro, tomado como nódulo principal das articulações que aqui faremos, contribui para enfocar, em específico, as relações de gênero que se inscreverão igualmente em outros objetos estéticos masculinos. Outros marcadores de diferença, como “raça” e “classe”, mesmo que atuantes no mundo que descortinamos, estarão subentendidos na problemática que ora enfocamos. “Classe” e “raça”, interessantemente, são marcadores atuantes nas relações com a sociedade englobante. “Classe”, como mostro em minha exploração dos cabelos femininos ( Mizrahi, 2012bMizrahi. Mr. Catra: cultura, criatividade e individualidade no funk carioca. In: Gonçalves, Marco Antonio; Marques, Roberto; Cardoso, Vania (org.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro, 7Letras, 2012b, pp.109-136. ; 2015aMizrahi. Cabelos ambíguos: beleza, poder de compra e “raça” no Brasil urbano. Revista Brasileira de Ciências Sociais 30 (89), São Paulo, 2015a, pp.31-45. ), é definida não tanto pela renda, mas pelo gosto, acompanhando assim a reconceituação da noção de classe como feita por Bourdieu (1984)Bourdieu, Pierre. Distinction . London, Routledge and Kegan Paul, 1984. . Dessa perspectiva, todos os presentes nesta etnografia pertencem à mesma classe. O mesmo pode ser dito em relação à “raça”, uma vez que todos ali se consideram “da cor” 9 9 A exceção se faz com Luizinho, que surgirá mais adiante no texto, a cujas falas não tive acesso, que tem aparência de branco e mostra ter gosto distinto. , mesmo que Mr. Catra seja negro de pele bastante escura, Sílvia, sua esposa, seja uma “morena” de “pele mais clarinha”, como ela mesma se descreveu, e Cíntia, comadre do casal Catra, que poderíamos considerar “branca”, mas que afirma não ser branca. 10 10 Mr. Catra explora magistralmente as relações entre “brancos” e “negros” por meio de suas paródias musicais ( Mizrahi, 2009 ; 2012b ; 2016b ). Já a produção dos cabelos femininos permite acessar, por meio da estética, discursos silenciosos que se fazem na interseção entre raça, classe e gênero ( Mizrahi, 2012a ; 2015a ). Sinteticamente, argumento, junto com minhas amigas em campo, que o estilo de cabelos femininos valorizado não é nem “liso”, como o das “brancas”, nem se adequa a uma representação cristalizada do “negro” que no Brasil sobrepõe “raça” e “classe”. Os cabelos valorizados são anelados e ambíguos e permitem fluidez à pessoa feminina funk, potencializando sua circulação pela cidade sem que isso se traduza em uma busca por “embranquecer”, mas que evita a vinculação a uma imagem fixa do que é ser negro no Brasil. Por fim, chamo atenção para a “sexualidade”, um marcador importante no mundo que descortinamos. Pois a partir das relações que analisamos, e somente delas, vemos em ação um mundo marcadamente heterossexual. 11 11 Como meio de desestabilizar essa imagem tão marcadamente heterossexual que meu material traz, vale à pena lembrar da dançarina Lacraia, um homem pardo, muito alto, magro e comprido, que acompanhava MC Serginho em suas performances. Vestida por saias curtas e tops que deixavam seu abdômen de fora, com os cabelos curtos descoloridos, sapatos de altas plataformas e fortemente maquiada, Lacraia não apenas dançava como dava beijos em rapazes que subiam ao palco supostamente porque em troca receberiam algo como R$ 50,00. Lacraia faleceu em 2011 e a família não revelou a causa de sua morte. E se veremos relações que são pautadas pelo dimorfismo sexual – dimorfismo que é inclusive reiterado pelas falas nativas –, veremos também a oposição feminino e masculino ser atenuada pelas relações de gênero.

Neste artigo, o dinheiro a um certo modo desempenha papel análogo ao que a pulseira de escrava desempenha na fascinante análise intereseccional das relações S/M empreendida por McClintock (2003)Mcclintock, Anne. Couro Imperial: raça, travestismo e culto da domesticidade. cadernos pagu (20), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, pp.7-85. . Mas se o cenário descrito pela autora é marcado por “desigualdades extremas” ( McClintock, 2003Mcclintock, Anne. Couro Imperial: raça, travestismo e culto da domesticidade. cadernos pagu (20), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, pp.7-85.: 20), nosso caso envolve assimetrias financeiras e as assimetrias de poder advindas do poder do dinheiro, além das de gênero, que expressam diferenças não necessariamente operadas por “classe” ou “raça”. Ao deslocar o dinheiro de sua significação como meio de troca e destacar sua dimensão de adorno, quero ainda fazer dele o ponto de articulação para elaborarmos sobre o “tipo de atuação possível em situações de desigualdade extrema” ( McClintock, 2003Mcclintock, Anne. Couro Imperial: raça, travestismo e culto da domesticidade. cadernos pagu (20), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, pp.7-85.: 20). 12 12 Outras referências fundamentais à uma abordagem interseccional são Brah (2006) e Piscitelli (2008) . Privilegio aqui a análise de McClintock na medida em que se afina ao meu anseio de pensar tais articulações junto aos objetos materiais, ao consumo e à estética. Desse modo, privilegio o diálogo com a literatura feminista que permita trazer à tona as potências da mulher e a agência do feminino sem que se faça mister pautar as narrativas das mulheres no universo funk por uma agenda de igualdade e simetria, mais própria ao feminismo liberal. 13 13 Ver, por exemplo, Gomes (2015) e Lyra (2016) para trabalhos que buscam destacar os poderes do feminino no funk ao atribuir a suas agentes uma agenda “feminista”.

Sigamos assim explorando os sentidos do dinheiro em um mundo funk. 14 14 Para uma análise da articulação entre dinheiro e relações amorosas a partir das letras de canções, em específico de sambas das primeiras décadas do século XX, ver Oliven (2014) . Sentidos que advêm de usos e manuseios que, se parecem ostensivos, se dão lado a lado com uma certa economia no emprego das palavras e do gestual corporal. Como me mostrou Cíntia, outra boa amiga em campo, em mais uma noite de festa, ao trazer à baila o “presepeiro” e o “escandaloso”.

O presepeiro, o escandaloso, as palavras e as coisas

Aguardávamos por Negão, como chamamos Mr. Catra de modo informal, em frente a uma boate em Ipanema, Zona Sul da cidade e uma de suas áreas mais valorizadas, onde o artista faria um show. Em seguida iríamos todos juntos para a festa de aniversário de Luizinho, como chamarei o amigo bicheiro de Mr. Catra. 15 15 De modo a atender à solicitação de meus interlocutores em campo, mantive seus nomes verdadeiros, com exceção de Luizinho, como cuidado de proteger a identidade de uma figura cuja vida se desenvolve estreitamente vinculada à ilegalidade. A comemoração ocorreria na badalada The Week, clube noturno de grandes proporções localizado na Zona Central da cidade, originalmente voltado para o púbico gay e que se converteu em reduto cosmopolita da música eletrônica. 16 16 Para uma etnografia da boate The Week, ver França (2012) . Ali Catra também faria uma breve apresentação.

Mr. Catra demora mais do que o esperado e eu e Cíntia decidimos aguardar em meu carro enquanto conversamos. Ela se senta no lugar do motorista e pede que eu tire algumas fotos suas para postar em seu perfil de uma rede social. Diz que ficará com “cara de rica”. Cíntia é uma mulher de pele clara que ganha um tom dourado quando se expõe ao sol. Sempre a pensei como “branca”, classificação que ela desfez quando em uma véspera de Natal a presenteei com um gloss de cor vermelha justamente por eu saber que, como elas haviam me ensinado, moças de “boca preta” evitavam brilhos labiais daquela cor e davam preferência aos tons claros. Foi quando ela desfez o mal-entendido e, levantando o seu lábio, me mostrou que sua gengiva era escura. Como me diria ainda em outra ocasião, ela era “da cor que os gringos gostam”. Era, como afirmavam, “da cor”.

Ela descreve Luizinho, que eu vira apenas uma vez em um show no Jockey Clube da Gávea, clube de elite localizado em bairro de perfil similar. Eu tinha sua imagem clara em minha mente: um homem branco, careca e corpulento, um pouco acima do peso considerado ideal e que, com um charuto na mão, gesticulava freneticamente em direção ao palco em que se apresentava Mr. Catra. E é precisamente o gestual de Luizinho que Cíntia destaca, dizendo que não gosta de “homem perigoso”, acrescentando que ele é do tipo “escandaloso”. Este último traço ela detalha por contraste ao “presepeiro”, como seria Mr. Catra e que, segundo ela, age como aquele que é “o cara”, como quem é seguro de si. Uma diferença que reside não apenas nos gestuais, mas nos modos de manipular os objetos materiais.

Cíntia segue em sua descrição

Se você pede a Catra “me dá aí cinco contos pra eu comprar ali alguma coisa para eu beber”, ele irá “desfolhar todo aquele dinheiro” [e Cíntia imita-o calmamente passando os dedos pelas notas de dinheiro] de preferência de modo que suas mãos, anéis e dinheiro fiquem em frente aos seus olhos.

Exatamente como ele fez comigo ao entregar a Verônica o dinheiro a ser dado a Sílvia.

Catra [continua Cíntia] faz tudo isso, desfolha todo aquele dinheiro, para tirar dele uma nota de dez reais e dar à pessoa para que ela mesma compre a bebida que quer. Já o “escandaloso” [segue ela] iria gritar pra todo mundo ouvir que ele está te pagando a bebida [Então ela simula como agiria Luizinho, que diria em alto e bom som]: “vai lá minha filha, pega a bebida!”. Ou chamaria o garçom: “aqui, ô garçom, traz uma bebida pra ela aqui!”, gesticulando, apontando “pra mina” e “gritando”.

Luizinho, talvez por não dominar plenamente o significado e os poderes dos “objetos”, recorre às palavras e aos gestos para fazer uma afirmação excessiva e escandalosa de seu poder. O que contribui para notarmos que o modo com que o dinheiro nos recepcionou ao chegarmos à favela da Mangueira não era tão excepcional assim. Voltemos àquela noite

Subimos a rua onde se desenrola o Baile da Mangueira e Mr. Catra pede à Cíntia que lhe enrole um cigarro não tarifado. Ela, além de assistir a Sílvia em casa durante a gravidez de Silvinha, a terceira filha biológica do casal, era também uma espécie de braço direito de Mr. Catra.

Atingimos o centro da festa. São quase seis horas da manhã, o dia está claro e a rua lotada. Mr. Catra deixou no carro o chapéu de risca de giz que usou ao longo da noite, sempre que subiu ao palco para suas apresentações profissionais. Sua careca escura e reluzente torna fácil a tarefa de segui-lo com o olhar. A roupa que ele veste é mais uma variante das que traja nas noites de turnê: porta um jeans escuro amplíssimo e uma blusa t-shirt branca de mangas longas e em proporções igualmente grandes. Usa o seu colar cuja corrente resulta do encaixe de grandes placas de ouro, de formatos que alternam hexágonos e estrelas de seis pontas, emoldurando ao centro a cara de um leão. A estrela de seis pontas é uma “Estrela de Davi” e o rosto ao centro do colar é do “Leão de Judá”, referências ao fato de ele ser “hebreu”. 17 17 Para as relações de Mr. Catra com a religião, ver Mizrahi (2007a) . Em seu pulso esquerdo, Mr. Catra traz um grande relógio também dourado, talvez de ouro maciço. No outro pulso, carrega uma pulseira formada pelas mesmas placas de ouro que vemos no colar. Seus dedos estão adornados por diversos anéis, sempre em ouro, como o que traz ao topo a grande Estrela de Davi cravejada de pedras brilhantes e incolores, colocado em seu dedo indicador, ou o que reproduz o rosto de um leão, colocado no dedo anelar da mesma mão.


A indumentária de Mr. Catra, como de muitos MCs de funk, se inspira no visual dos cantores norte-americanos de hip-hop, no vestuário dos jogadores da liga norte-americana de basquete e na moda skate, resultando em peças muito amplas. Mais ainda do que as já amplas roupas usadas pelos meninos funkeiros e pelos jovens MCs, usualmente inspirados pelos surfistas . Diferentemente das mulheres, que produzem sua própria moda 18 18 Em outro texto, elaborei sobre as demandas de um corpo funk e suas influências sobre a modelagem das roupas. Para os traços estruturantes do gosto feminino funk, ver Mizrahi (2007b, 2011, 2017). , os homens atualizam sobre seu corpo uma tendência global.

Na Mangueira, enquanto dançamos, curtimos e bebemos, observamos o movimento do baile. Fazemos isso cercados pela música funk, pelo cigarro que circula e pelo “uísque e Red Bull”, famoso drink feito da mistura da bebida de origem escocesa e energético.

Um rapaz sobe e desce a rua, intermitentemente, com o “bico para o alto”: segura seu fuzil em riste. É um dos “seguranças de cinquenta merréis” que circulam pelo baile da favela “só pra falar que é nóis”. Dizer que “é nóis” indica pertencimento ao Comando Vermelho, a facção que controla a comunidade da Mangueira, e a exposição ostensiva de armas, assim como de dinheiro, ouro e bebidas, afirma o poderio da facção ao mesmo tempo em que a torna mais poderosa. Avisa que “a firma é forte”, como podemos ver também em vídeos postados em sites de compartilhamento de imagens que mostram armas, dinheiro e pacotes de substâncias ilícitas, acompanhados por músicas de proibido , o subgênero de funk que versa justamente sobre as relações entre os traficantes e a polícia. Mas os fuzis para o alto causam também frisson e compõem a festa.

Ao nosso lado, dança um “gerente do tráfico”, ladeado por duas moças, ambas com seus olhos fortemente maquiados por sombra colorida cintilante e desenhados por delineador e máscara pretos. O rapaz tem pele clara, cabelos acinzentados e crespos. É forte e veste uma calça jeans ampla e escura, mas não tão larga como a que veste Mr. Catra, além de possuir corte diferente. Se assemelha ao estilo “semi- baggy ”, ou “ carrot-cut ”, de cintura alta e ajustada, com pernas de corte amplo e afuniladas em suas extremidades. O seu torso está desnudo, o que não é raro entre os rapazes musculosos que frequentam o baile.


Sobre o torso definido, KC veste um “cordão” de aparência e espessura similares aos dos cabos de aço. Feito em material dourado, o colar dá três voltas em seu pescoço, de onde pende uma medalha retangular de cerca de dez centímetros de extensão, cinco centímetros de altura e um centímetro de espessura. Suas iniciais estão inscritas por pequenas pedras brilhantes e incolores. O rapaz traz ainda em uma de suas mãos um estilo de anel vindo da indumentária punk, também conhecido como “soco inglês”. Esse tipo de anel consiste em uma trava sob a qual são fixadas duas, às vezes três, argolas nas quais são introduzidos os dedos, que ficam assim próximos e imobilizados. O anel de KC reúne quatro de seus dedos, deixando livre apenas o seu polegar, e é feito em metal dourado, enquanto que os punks costumam usar adornos prateados. Seus braços, talvez devido aos efeitos tensores que os exercícios físicos produzem nos músculos, estão levemente flexionados, e o seu punho, graças à pouca mobilidade que o anel lhe impõe, está cerrado.


Um pouco mais distante, um outro rapaz musculoso. Sobre o torso veste apenas uma grande medalha redonda em metal dourado, de cerca de nove centímetros de diâmetro. Toda a sua circunferência é adornada por pequenos cabochões de cristal incolor e translúcido. Em seu centro está gravada a letra C, o que pode ser uma alusão ao seu nome pessoal como também ao “Comando Vermelho”, ou simplesmente “Comando”. Usar um grande C como pendente é comum entre aqueles que “fecham” com a referida facção, mesmo que a inicial do nome próprio seja outra.


O sol já estava alto na Mangueira e eu gostaria de ir embora, mas Cíntia queria ainda aguardar Mr. Catra e “as crianças”, os dois filhos mais velhos do MC, para colocá-los “na direção de casa”. Diz que fica preocupada com Mr. Catra “e esses ouros todos”. Mas logo partimos. Mr. Catra segue com os filhos na direção de sua casa e eu sigo com Cíntia para Ipanema, para deixá-la antes de ir para minha própria casa, em Botafogo, também na Zona Sul. No carro, ela fala satisfeita que Mr. Catra lhe pagou o salário da semana, explicando que ele lhe entregou o dinheiro “no talento”, discretamente, sem fazer alarde. E, contente, o elogia, dizendo que ele a “apadrinha” para que ela, por sua vez, possa “apadrinhar” a filha dele. Com o dinheiro que dele recebe, ela pode comprar os presentes que dá à sua afilhada e manter a relação de apadrinhamento que a une à família. Já a expressão “no talento” empregada por Cíntia nos traz mais uma vez essa economia de gestos e palavras que coexiste com e parece mesmo ser complementar à ostensividade dos objetos e do modo como eles são empregados.

A relacional pessoa masculina

Os rapazes de torso nu e calças “semi- baggy ” que vimos no baile da Mangueira se vestem como os “bombados” dos bailes funk, com uma pequena, mas significativa, diferença: as joias que aqueles vestem, ao invés de serem em metal prateado, como é usual entre os “bombados”, são feitas em ouro, de modo a denotar poder, também financeiro, como denotam os carros, o uísque, as notas de dinheiro e as mulheres das quais se fazem acompanhar. Esse poderio financeiro, por sua vez, não se desconecta da potência sexual. Dessa perspectiva, se a roupa justa e o corpo em evidência expressam a potência do feminino, o poder do masculino – que segundo Mr. Catra reside na “piroca”, no seu órgão sexual – é potencializado pelo poder financeiro, que por sua vez é objetificado pelas notas de dinheiro e por outros objetos dos quais se cercam, neles incluídas as mulheres. As mulheres, em acordo com essa lógica, não querem apenas o dinheiro, mas a potência que ele encarna, inclusive a potência sexual. É por esse motivo que no baile funk a “hora da putaria” é também a “hora da mulherada”, pois são elas que se divertem dançando e cantando as narrativas que versam, de modo muitas vezes explícito, sobre as trocas sexuais e amorosas. 19 19 Nos bailes funk de favela – crescentemente raros, em parte graças à entrada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nessas comunidades – as playlists se fazem na alternância entre os “proibidos” e a “putaria”. Os primeiros podemos definir, de maneira sintética, a partir das referências às investidas violentas da polícia na comunidade, que se desdobram ainda no embate com o tráfico local e nos embates entre diferentes facções. Já a “putaria” versa essencialmente sobre as relações amorosas e eróticas, fazendo menção à genitália, de modo explícito ou figurado.

Na música Mercenária , Mr. Catra nos fala sobre o modo ambíguo com que ele e outros homens se relacionam com o potencial de atração que o poder monetário exerce sobre as mulheres.

[Então, meus amigos. Por favor, prestem atenção. A gente sofre pra caralho, plantando, correndo pra lá e pra cá... e ela vem e leva o lucro! Leva o malote, irmão. Então, por favor... por favor, DJ. Por favor...]

Irmãos, cuidado...

[Ela gosta de lanche do Bob’s. Lanche do Bob’s, quer toda hora, Bob’s. Quer ir pro mirante, toda hora! Cento e cinquenta suíte!]

Que ela quer o seu malote/O que ela quer/Ela quer o seu malote

Atividade meu mano/Humildemente/Eu me libertei!

Mercenária/Mercenária/Eu não sou um canguru/E você não está na Austrália

Ela é sanguessuga /Tá pronta pra te dar o bote/Eu vou te dar um papo /Tá de olho no seu malote

Fica toda excitada/Doida para dar no couro/Quando bate de frente/Com tuas peças de ouro

A libido sem/Safadeza é sua sina/E fica molhadinha/Quando sente cheiro de gasolina

Mercenária/Mercenária/Eu não sou um canguru/E você não está na Austrália

Se liga sangue bom/Ela raspa o seu bolso/E só te larga depois que te deixa no osso

Danadinha/Dá até sair sangue/Só pra comprar/Aquele traje da Gang

bom, bom/Ficou ruim a coisa ficou feia/Se tu rodar/Ela te abandona na cadeia

Mercenária/Mercenária/Eu não sou um canguru/E você não está na Austrália 20 20 Mercenária , de Mr. Catra.

É interessante notar que o termo “peças”, que na letra se refere às joias de ouro como as que ele, KC e outros usam, é denominação também para as armas de fogo. A associação que se estabelece é entre poder financeiro, potência sexual e poderio bélico. A música de Mr. Catra é antiga, tem cerca de quinze anos, mas a associação permanece. Mais recentemente, uma outra música, de autor diferente, hit nos bailes, trouxe um refrão que se baseia na mesma analogia: “é só pentada violenta”. “Pentada” deriva do pente de balas que é descarregado com os tiros de fuzil ou, analogamente, da atividade do órgão sexual masculino. “Pente certo” pode designar um encontro sexual furtivo, eventual. E antes da “pentada” existiu o “toma”, presente tanto em canções “eróticas” como nas ditas “violentas”, associações que mostram o erótico e o violento como aspectos que podem ser pensados também a partir de suas continuidades.

Todas essas metáforas nos falam de um poder do masculino que se faz ver na continuidade entre poder financeiro, potência sexual e poderio bélico em contraste com um poder do feminino que também reside no órgão sexual. Poder que reside “na buceta”, como grita a também famosa cantora de funk Valeska ao subir ao palco, mas que se desdobra para o corpo e para a beleza pessoal em vez de armas, dinheiro e o sexo oposto. Esse paralelismo na expressão das potências dos diferentes gêneros pode ser notado por meio da subversão que faz Mr. Catra de uma canção da própria Valeska. De tempos em tempos, os dois artistas se apresentam juntos e se ela faz uma ode à “sainha” – a minissaia que ao evidenciar e realçar o corpo seduz o outro ao mesmo tempo em que afirma e compõe as potências do feminino – ele a substitui pela “maquininha”, referência às máquinas de caça-níquel e de pôquer, presentes nos muitos cassinos clandestinos controlados por bicheiros e que efetivamente produzem dinheiro. Geram grande parte da renda dos seus controladores e potencializam o masculino. Pois se aquele que é “o cara” e aquele que é o “bicheiro” – correlatos do “presepeiro” e do “escandaloso” – possuem gostos e gestuais distintos, o modo como ambos se relacionam com as mulheres e o dinheiro não é tão diferenciado. Na música a seguir, Mr. Catra, além de substituir a “sainha” pela “maquininha”, homenageia diferentes “contraventores”, figuras emblemáticas da cultura do jogo do bicho no Rio de Janeiro e alguns deles amigos pessoais seus. 21 21 Como mostra Cavalcanti (2009) , os “bicheiros” e a atividade de mecenato que desempenham são importantes na engrenagem do carnaval carioca.

Eu fiz essa canção/Com a maior saudade/Do João Ratão, Seu Miro/E do Castor de Andrade

Vou te dar um papo /Cê tem que ser blindão/Crime é crime/Contravenção, contravenção

Crime é crime/Não é contravenção/Esse é o regime/Respeito e blindão

Tu tem que ser disciplinado/Para poder desfrutar/Dos carro importado/E vários fardo gastar

Pois cada um tem seu harém/Mas sem perder a linha/O lucro é garantido/No talão, na maquininha

Se liga sujeito/Respeito é bom se ligar/Agora eu sou bicheiro/E ninguém vai me segurar

Eu fiz essa canção/Com maior saudade/Do João Ratão, Seu Miro/E do Castor de Andrade

Vou te dar um papo /Cê tem que ser blindão/Crime é crime/Contravenção, contravenção

Minha maquininha/Agora eu sou bicheiro/E ninguém vai me segurar/Olha o respeito 22 22 Contravenção , de Mr. Catra.

Mr. Catra canta que é preciso ser disciplinado, “ter blindão”, ter conduta reta, direita, para poder administrar tanto dinheiro e tantas mulheres. Em suma, diz ele, não é fácil assumir a responsabilidade que envolve a vida que escolhem. E essa conduta estreita – o “proceder” que rege como um “sente” que é correto agir – é acompanhada de uma estética que, de suas perspectivas, é ascética, especialmente no que toca aos pelos que adornam cabeças e faces. Se os homens mais velhos apreciam o estilo “carecão” – a cabeça totalmente raspada – acompanhado de barbas e cavanhaques, a estética dos mais jovens tem por marca fundamental seus cabelos ornamentadores, formado por muitos desenhos, cortes e colorações. Descolorir e recortar cabelos, assim como usar brincos, é algo próprio aos jovens e um estilo desprezado pelos mais velhos ( Mizrahi, 2007bMizrahi. Indumentária funk: a confrontação da alteridade colocando em diálogo o local e o cosmopolita. Horizontes Antropológicos , 13 (28), Porto Alegre-RS, 2007b, pp.231-262. , 2012cMizrahi. A moda funk: juventude, gênero e geração desenhando diferenças estilísticas. In: Barbosa, Lívia (org.). Juventudes e gerações no Brasil contemporâneo . Porto Alegre, Sulina, 2012c, pp.211-237. ).

A retórica que vincula masculinidade e relação com múltiplas mulheres está presente em diversas canções. Uma delas se tornou um clássico nos bailes.

Tu é uma mina fiel/Valeu, o maior orgulho/Mas tu mexeu com as nossa amante/Eu tô comprando esse barulho

Se liga no meu papo/Que é tão interessante/Um homem de verdade/Tem que tê uma amante

Baile tá lotado/A chapa tá fervendo/Se tem mulher casada/De neurose eu tô correndo

Geral já me conhece/Já sabe o meu lema/O que eu quero é solução/Tô correndo de problema

Se tem mulher solteira/Aceite esse convite/Vem junto com o Mascote/Eu tô pagando uma suíte

É um papo neurótico/Papo de trique-trique/Sou homem de verdade/Gosto muito de uma amante

Quem é que fortalece/Às quatro da madrugada?

Tem que tê tem que tê/Tem que tê uma mamada

A mina é sinistra/Desenrola ajoelhada/Tem que tê tem que tê/Tem que tê uma mamada

Chapadão no fim da noite/Não quero saber de nada/O que seria de nós/Se não fossem as mamadas 23 23 Tem que ter uma amante , de MC Mascote.

Dentro da lógica das imagens e contra-imagens que rege o funk, a música cantada por MC Mascote gerou uma “resposta” do feminino, produzida pela cantora Vakeska. Essa resposta é muito apreciada pelas moças do baile, na medida em que assume a perspectiva delas ao defendê-las dos homens que “esculacham as mulheres”. 24 24 “Esculachar” uma mulher significa, de modo amplo, conspurcar sua imagem. Isso pode se dar tanto por meio de agressões verbais como por meio de agressões físicas.

O amigo deu papo/Que é muito interesante/Ele disse que um homem/Tem que tê uma amante

Se liga aí amiga/No que a Gaiola vai falá/Mulher de verdade/Qué um otário pra bancá

Ele chega no baile/De cordão e celular/Quando vê uma gatinha/Ele corre pra azará

Mas no final das contas/É um otário pra bancá/Mas no final das contas/É um otário pra bancá 25 25 Um otário pra bancar , do grupo Gaiola das Popozudas.

Na primeira música, o cantor afirma que o homem “de verdade” tem que ter “muitas amantes”, arrolando outras categorias de mulher, como a “fiel”, a “solteira” e a “mamada”. Refaz assim as classificações que separam as mulheres em diferentes tipos que relacionam papéis que não devem ser acumulados. Pois não é socialmente franqueado à uma mulher casada o mesmo tipo de comportamento que ao homem, a quem é permitido e valorizado que fale sobre suas muitas relações. Já a mulher, se estabelece relações fora do casamento, deve agir de modo velado, sem compartilhar em conversas intragênero, pois a relação extramatrimonial pertence ao campo da transgressão. Liberdade similar a do homem terá talvez a “piranha”, que deve ser diferenciada da “prostituta”, terminologia que designa a profissional do sexo. A “piranha”, diferentemente, faz o que quer com o corpo, pautada por sua motivação individual.

A canção do MC Mascote reitera a noção de masculinidade relacional que viemos delineando até aqui, ao mesmo tempo em que afirma a maior liberdade que teria o homem face à mulher. Mas se ao homem é franqueado ter muitas mulheres, se ao homem cabe o poder do dinheiro e, em uma leitura mais hegemônica, caberia também maior liberdade, ao homem resta uma dependência de se fazer sempre na relação com as mulheres. Poder aqui não nos fala apenas sobre relações hierárquicas, ou não o faz de modo simplista, mas ajuda-nos a notar como assimetrias de poder e desigualdade de gênero nem sempre significam a subjugação de uma parte pela outra. Uma ideia que a discussão sobre prazeres perigosos feita por Gregori (2015Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: o contrato e a erotização em cenários sadomasoquistas. Etnográfica 19(2), Portugal, 2015, pp.247-265. ; 2016Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo-SP, Companhia das Letras, 2016. ) me ajuda a refinar.

No universo das práticas S/M e BDSM, a relação dominador/dominado, mestre(a)/escravo(a), não apenas não é unívoca como não se resume a um dominador que exerce livremente o seu poder para satisfazer ao seu desejo de maneira exclusiva. Colocar-se na posição de dominador envolve desenvolver as habilidades necessárias para atender, inclusive, a quem se domina. Como coloca a autora, “são muitas as atribuições das Rainhas, Mestres ou Mistresses” ( Gregori, 2015Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: o contrato e a erotização em cenários sadomasoquistas. Etnográfica 19(2), Portugal, 2015, pp.247-265.: 257). Devem ter “energia” aparentemente ilimitada, pois o “top que apresenta seus limites nem é considerado um verdadeiro dominador” ( Gregori, 2015Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: o contrato e a erotização em cenários sadomasoquistas. Etnográfica 19(2), Portugal, 2015, pp.247-265.: 258). Não à toa, no universo que descreve, a presença de dominadores é significativamente mais reduzida do que a de dominados. E se ali o prazer advém da relação de subjugação de escravos a seus mestres, os primeiros se submetem ao mesmo tempo em que exercem o poder de, por meio da manipulação, obter o que querem do dominador, colocando-o assim a serviço de seus desejos.

As diferentes categorias de mulher que as músicas funk fazem ver são explicativas do universo com o qual lidamos. A “mulher” que acompanhei em suas incursões embelezadoras – ao salão de cabeleireiro, mas também em momentos anteriores às festas ou em situações cotidianas – demonstra se construir como um em si. Não presentifica o homem em suas falas cotidianas nem tampouco é ele o móvel fundamental de suas transformações de beleza, ideia que comecei a explorar em Mizrahi (2014b)Mizrahi. Mulher já nasce veada: estéticas do corpo, gênero e pessoa no Brasil urbano. Versión Temática 33, Cidade do México, 2014b, pp.119-131. . Para essas mulheres não é o fazer-se acompanhar de homens que causa um grande impacto visual, como no caso masculino.

Os homens possuem um especial gosto em chegar à festa ladeado por duas mulheres, cada uma enlaçada em um de seus braços. Já para as mulheres, o que causa um “baque” é chegar à festa bela, em um carro imponente e acompanhada de sua entourage , preferencialmente as amigas mulheres. O homem, nessa composição, desempenha muitas vezes papel análogo ao do motorista, do secretário ou do segurança. Ao mesmo tempo, há mulheres cujo lugar na festa é definido pelo de acompanhar homens. Isso, contudo, não é indício de que eles sejam fundamentais para a constituição da sua pessoa. O “homem de verdade”, como avisa a resposta de Valeska, pode ser mais um “otário para bancar”, um iludido que, se pensa que é desejado, pode estar sendo submetido às vontades das mulheres que o “empoderam para que ele faça o que elas desejam.

Vemos, assim, as diferentes perspectivas – que se opõem ao mesmo tempo em que mostram pontos de aproximação – que homens e mulheres têm em relação aos seus encontros. Pois na festa funk aquela que o homem pensa ser uma amante potencial pode ser também uma moça que o usará para conseguir o que quer e ao fim da noite abandoná-lo. Mas, como mostra Mr. Catra com a imagem da “mercenária” – a mulher interesseira que estabelece relação com os homens para obter os bens materiais que almeja –, os homens são relativamente cientes do modo como podem ser usados pelas mulheres. Dominam a perspectiva feminina, mas, dependentes da mulher, se submetem ao jogo. Sabem que, potencialmente, podem ser apenas mais “um otário para bancar”. Ou, como coloca Mr. Catra que ao mesmo tempo em que canta que se “libertou” da mulher “mercenária”, o faz rindo de si mesmo, afirmando que “todo mundo tem a sua mercenária”.

A exploração das relações de gênero mostra, como outras não fazem, que as categorias que definem a pessoa no universo funk não possuem lugar fixo. O que não é o mesmo que negar o poder coercitivo que as assimetrias de poder, inclusive financeiro, podem gerar. Trata-se antes de nuançar essas relações destacando as diferentes agências e potências de um e outro lados. Pois o homem, clara e explicitamente, pode ser marido, amante, “cachorro” e “facinho”, simultaneamente. Já a mulher, a partir de uma ordem moral estabelecida, não deve ter esses papeis confundidos. Contudo, esses papéis podem ser e efetivamente são misturados ainda que de maneira muitas vezes velada. Algumas mulheres, graças às suas habilidades de manobra, conquistam maior liberdade no gerenciamento de suas relações amorosas, como a “piranha”, categoria que em muitos momentos é acionada como sinônimo de “sortuda” ou “privilegiada”. De modo que a madrinha da filha pequena pode ser também a namorada madura do filho adolescente e simultaneamente dar expediente em uma casa de massagens, papéis que nem sempre são reiterados ou explicitados, mas que estão longe de serem desconhecidos.

Uma última imagem

Marilyn Strathern, a quem frequentemente recorro na tentativa de solucionar as armadilhas que o funk me coloca, nos fala, em “O efeito etnográfico” ( Strathern, 2014Strathern, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo, Cosac e Naify, 2014, pp.345-405. ), sobre imagens particulares em campo, que tomam também a forma de eventos, que a um certo modo perambulam por nossa mente, e cujos sentidos vão sendo adensados, mas não necessariamente fechados, a cada vez que a elas retornamos por meio da escrita. Iniciei este artigo recorrendo a uma delas: o ir e vir de joias e dinheiro desfilados à frente de meus olhos, como se, e talvez de fato, feito de modo deliberado. Agora, recorro a outra dessas imagens, que se impõe na medida em que elaborar sobre o dinheiro me conduziu fatalmente às relações de gênero e ao modo como são vivenciadas as relações de poder que as envolvem.

Era mais uma tarde na casa da família Catra, e Sílvia, altiva, desce as escadas que vêm de seu quarto, após o banho. Está perfumada e seus cabelos longos, anelados e acobreados, encontram-se molhados, penteados e soltos, além de escurecidos pelo efeito da água. Sílvia está em período intermediário de sua gestação e alterna o uso de vestidos soltos com as bermudas e calças que pinça do armário do marido. Mas, nessa tarde, ela veste uma camiseta branca sem mangas que, por estar justa em sua barriga crescida, encontra-se enrolada na altura de seu estômago. Traja ainda, como um short curto, uma cueca do tipo boxer , provavelmente de Mr. Catra, na cor creme, com acabamento em elástico externo no cós. A peça está ajustada ao seu corpo. Cobre seu quadril e a região da barriga abaixo do umbigo.

Sílvia senta-se à cabeceira da mesa de jantar, acende seu cigarro artesanal, levanta a tampa de seu laptop e me chama para que eu veja algumas fotografias. A imagem que ilustra o plano de fundo da área de trabalho de sua máquina é composta por uma mesma fotografia multiplicada nove ou doze vezes, formando um único quadro. Uma imagem refratada, como a holográfica, mas cujas partes são idênticas. A fotografia, em preto e branco, mostra ela e Mr. Catra do busto pra cima. Ele veste uma blusa t-shirt escura e não está especialmente adornado. Sílvia tampouco está ornamentada. Está sem as extensões de cabelo que usualmente compõem a sua cabeleira, assim como sem suas joias, suas roupas exuberantes ou seu corpo em evidência. Parece ainda calçar sapatos sem salto, pois vê-se na mesma altura que o marido, que não é especialmente alto para padrões masculinos. Sílvia, sim, pode ser considerada uma mulher alta. Os dois estão próximos, lado a lado, mas não abraçados. Um posicionado em diagonal ao outro, talvez se tocando pelos ombros, sérios e sem sorrir. Ela, em especial, possui um ar levemente desafiador.

Trago essa imagem, que já explorei em outra ocasião ( Mizrahi, 2014bMizrahi. Mulher já nasce veada: estéticas do corpo, gênero e pessoa no Brasil urbano. Versión Temática 33, Cidade do México, 2014b, pp.119-131. ), por dois motivos. De um lado, penso que era precisamente sobre essa simultânea igualdade e assimetria que Sílvia queria comunicar. Sobre como, nesse contexto, diferença não era sinônimo de desigualdade, de dominação de uma parte e subjugação da outra, algo que o cotidiano que se desvendava na minha frente me ajudava a intuir e que o diálogo entre gênero e materialidades me permitiu refinar.

Essa imagem é preciosa também na medida em que me possibilita retornar aos objetos estéticos, aos adornos, que são aqui também bens de riqueza. Pois, se Sílvia reforça o ponto que fizemos ao fechar a sessão anterior – a de que as relações dominado/dominador não se reduzem à subjugação simplista de um polo pelo outro –, ela também nos mostra o poder que os objetos possuem de comunicar as potências da pessoa. Como em Learning to see in Melanesia ( Strathern, 2013Strathern, Marilyn. Learning to see in Melanesia . Lectures given in the Department of Social Anthropology, University of Cambridge, 1993-2008, HAU Marterclass Series, v. 2, 2013. ), o corpo nu, no espaço doméstico, pouco revela sobre as potências da pessoa. Se o olhar moralizante que temos sobre o consumo, como argutamente argumenta Miller (1994Miller, Daniel. Modernity: an ethnographic approach: dualism and mass consumption in Trinidad . Oxford, New York, Berg, 1994. ; 2013), tende a tomar a superfície dos corpos e os objetos que o adornam como elusivos e acobertadores da verdade do self , o mundo funk nos mostra precisamente o oposto. É ao tomarmos como guias os objetos com os quais as pessoas se adornam, em especial no momento de exibição e troca que a festa propicia, que torna-se possível trazer à tona a pessoa social e as potências das quais ela se compõe. É por meio da ornamentação da superfície do corpo que essas potencialidades são exibidas revelando que não há nada de elusivo no que as aparências comunicam.

É portanto dessa perspectiva que neste artigo tomamos o dinheiro como adorno, como trazendo à tona as potencialidades da pessoa masculina funk que não se encontram desvinculadas nem do poder financeiro, nem da potência sexual, e muito menos da relação com as mulheres. Ao tomar o dinheiro em sua materialidade, o pensamos também não apenas como composto por relações, mas como produtor de relações, como vimos com a relação de apadrinhamento que une Cíntia aos Catra, sustentada pelo dinheiro que deles ganha e com o qual compra os presentes para sua afilhada. E por fim, o dinheiro pôde ser pensado ainda como substância, um aspecto que agora torno explícito.

Na etnografia que acompanhamos, o “dinheiro” nos coloca um problema fundamental, que a discussão em torno da substância feita por Carsten (2004)Carsten, Janet. After kinship . Cambridge, Cambridge University Press, 2004. ajuda a elucidar. Pois de um lado vemos nas falas dos sujeitos funk uma certa essencialização do corpo masculino, expressa no poder que a “piroca”, enquanto dado biológico, possui na constituição da masculinidade. Uma essência que forja a masculinidade e que está contida no corpo, mais precisamente na genitália. É por esse motivo que o homem “não pode” usar calças justas, pois se o fizesse ficaria com “uma piroca de tangerina”. Ficaria com seu órgão sexual deformado pelo pouco espaço. Roupa, nesse caso, não está relacionada a um aspecto simbólico convencional que o coloca em oposição ao feminino, mas atende às demandas de um corpo “macho” definido por sua natureza biológica. De outro lado, como igualmente mostra esta etnografia, o homem só se faz relacionalmente. Dessa perspectiva, não haveria nada intrínseco a o definir, mas somente na relação com a sua contraparte genderizada ele se faria homem.

É aqui que o dinheiro entendido como substância nos moldes de Carsten (2004)Carsten, Janet. After kinship . Cambridge, Cambridge University Press, 2004. nos auxilia, permitindo pensar a potência masculina como parcialmente inata – o poder da genitália – e parcialmente adquirida – o poder do dinheiro. Pois ao tomarmos o dinheiro como substância podemos converter o feito no dado, na piroca, incorporando ao corpo aquilo que não apenas afirma as potencialidades do homem, face inclusive à mulher, mas que compõe esse mesmo corpo e suas potencialidades. Carsten (2004)Carsten, Janet. After kinship . Cambridge, Cambridge University Press, 2004. me autoriza, portanto, a seguir na defesa de uma pessoa relacional masculina sem contudo ter que silenciar seus discursos em torno de uma essência do corpo, de modo que o dinheiro, como capacidade adquirida, é transformado no poder da piroca , como dado. 26 26 Carsten (2004) , por meio dos significados atribuídos ao sangue pelos malaios, busca elaborar uma noção de substância que escapa à ideia de substância como essência de um corpo e do gênero, como no caso indiano, e substância como se referindo às partes femininas e masculinas de um corpo que é definido pela instabilidade de gênero, como no caso melanésio. Não se trata, contudo, de tomar o dinheiro como permutação da potência, um equivalendo ao outro, mas como um transformando-se no outro. Podem ser pensados assim como entidades separadas, mas simultaneamente relacionadas.

Considerações finais

Por meio da etnografia e das elaborações conceituais que apresentei neste artigo – entendendo que a etnografia não pode ser pensada ou apreendida a não ser na relação com as elaborações teóricas que a forjam e que produz –, trouxe para um contexto moderno uma noção de corpo e pessoa não circunscritos mais comumente considerados em sociedades não ocidentais. Uma proposta contida na própria noção de actant de Latour – um agregado formado por pessoa, corpo e objetos – que vem traçando seu percurso conceitual a partir da defesa intransigente de que as ditas purificações que a ontologia ocidental promove são muito mais o resultado da operação de um cógito cartesiano do que produto efetivo dos arranjos práticos que derivam da vida social ( Latour, 1994Latour, Bruno. Jamais fomos modernos . Rio de Janeiro-RJ, Editora 34, 1994. ). A possibilidade de pensar o corpo e a pessoa no Ocidente como feitos tanto pelo mundo dos objetos bem como por sua dimensão biológica está igualmente contida na noção de ciborgue como elaborada por Haraway (2009)Haraway, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Haraway, Donna; Kunzru, Hari; Tadeu, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano . Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2009, pp.33-118. , na qual se inspira Strathern para formular não apenas a noção de prótese, mas sua ampla teoria da pessoa ( Strathern, 1988Strathern, Marilyn. The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia . Berkeley, University of California Press, 1988. ). A formulação de corpo que trago evidencia ainda sua interface com a produção de corpos em sociedades amazônicas nas quais os corpos não são apenas feitos, produzidos, mas feitos “pelo mundo dos artefatos”, como argumenta Lagrou (2016)Lagrou, Els. Um corpo feito de artefatos. O caso da miçanga. In: Fausto, Carlos; Severi, Carlo (org.). Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias . Paris, Saint-Hilaire, coleção França/Brasil, 2016, pp.139-161. para o caso da incorporação das miçangas em sociedades ameríndias. 27 27 Para outras relevantes pesquisas concernentes à relação entre corpos e objetos materiais em sociedades amazônicas, ver, entre outros, Hugh-Jones (2009) , Santos-Granero (2009) e J. Miller (2009) . Tomei assim pessoa, corpo e objetos como formando uma instância única, na qual a pessoa ou o corpo não precedem um ao outro ou aos objetos, mas corpo biológico e corpo feito se confundem. Penso assim em um corpo que é todo ele artefatual (Mizrahi, 2014).

Se a literatura etnológica nos mostra uma histórica conversão de adornos da pessoa em dinheiro ( Graeber, 1996Graeber, David. Beads and money: notes toward a theory of wealth and power. American Ethnologist 23(1), New York, 1996, pp.4-24. ), vimos aqui o dinheiro ser convertido em adorno empoderador da pessoa. O dinheiro funcionou assim em um registro análogo ao que se dá entre os kachin: ao invés de capital a ser investido é convertido em adorno da pessoa. São primariamente “artigos de ostentação” [ items of display ] ( Leach, 1996Leach, Edmund. Sistemas políticos da Alta Birmânia . São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1996.: 197). A magia do dinheiro, seus poderes mágicos, derivam das faculdades de visibilização e de visualização, do mostrar e do ver, produzindo discursos estéticos erigidos sobre os objetos materiais e a visualidade e não tanto sobre a palavra e a fala.

Ao repensar o corpo e o objeto, penso ter trazido um sentido outro à ideia de “ostentação”, termo que não apenas dá nome a um subgênero de funk como atrela-se a um modo enviesado e moralizante de se lidar com o consumo daqueles supostamente recém-chegados ao mundo dos bens. Em um universo estético muitas vezes criminalizado e associado à pobreza ( Facina, 2009Facina, Adriana. “Não me bate doutor”: funk e criminalização da pobreza. Comunicação apresentada no V Enecult , Salvador-BA, 2009. ), busquei pensar o poder do dinheiro e daquilo que ele compra por meio da desestabilização da ideia de que a exibição ostensiva de bens de riqueza se faz de maneira irrefletida ou como resultado simples dos poderes do mercado sobre consumidores vistos como passivos. O que o funk nos mostrou, diferentemente, é que o uso e o manusear dos objetos se faz de maneira bastante refletida e na busca por trazer à tona e ao olhar do outro as potências da pessoa. Vimos isso ocorrer tanto no momento da performance de gênero como no que diz respeito ao outro externo, comunicando à sociedade envolvente os poderes da pessoa funk. O funk, como venho aprendendo, permite-nos sempre desconfiar de arranjos que são a um primeiro olhar, e somente a um primeiro olhar, tradicionais.

É escorregadio o universo funk, o que se traduz na própria ideia de que o homem e a mulher não possuem lugar fixo nesse mundo. Pois o “dinheiro” nos ajudou a desvendar uma lógica que ao mesmo tempo em que se erige sobre a oposição feminino e masculino, coloca em xeque essa mesma oposição, atenuando-a na vida cotidiana sem, contudo, desaparecer com ela. Na festa, a mulher que ladeia o homem surge como uma extensão sua: o adorno que é também sua parte destacada e englobada que mostra o masculino como imprescindivelmente constituído do feminino. Mas podemos ver também a mulher transitar por esses muitos papéis, seja de maneira explícita, como faz a “piranha”, seja de maneira velada, como fazem outras mulheres. A “piranha” explicita essa condição de fluidez da mulher que em outros casos está velada.

O atenuar da oposição feminino e masculino é mais facilmente acessível por meio do modo com que cada um dos gêneros significa o dado biológico, o corpo e os objetos materiais. As relações de gênero que descortinamos se constituem fortemente a partir do dimorfismo sexual, que, contudo, não coloca em posições simétricas e opostas o dado biológico. E junto, não apenas não se sustenta a oposição humano e não humano como a própria noção de “objeto material” é forçosamente reconceitualizada.

Essas diferenças na composição das pessoas feminina e masculina, e na maneira com que um e outro gênero se relacionam com o gênero oposto, e o lugar que este último possui na composição do self, puderam ser acessadas ao refletirmos sobre o modo com que cada um dos gêneros significa o sexo biológico, o corpo e os objetos materiais. Pois essas duas coisas, que parecem simétricas, “piroca” para o masculino e “buceta” como seu correlato feminino, estabelecem relações diferenciadas com os objetos materiais e adentram ordens de significação igualmente diferenciadas no que concerne à noção de eu. Ambas, “buceta” e “piroca”, referem-se aos órgãos sexuais de um e outro sexo, mas são significados a partir de lógicas distintas. O poder da piroca, como vimos, é potencializado pelo dinheiro ou funciona no mesmo registro que o dinheiro. Recensearíamos assim como objetos masculinos os carros, as joias, as armas e, não menos importante, as mulheres, além do próprio dinheiro. Já do lado feminino, temos as roupas, os cabelos, as unhas e a forma corporal. O homem, significativamente, não está presente.

Essa ausência dos homens de um lado e a presença do dinheiro e das mulheres de outro nos fala precisamente do aspecto relacional constitutivo do gênero masculino. Sem deixarmos de observar que o dinheiro é o meio de troca por excelência, e a mulher, como a literatura etnográfica mostra, é o bem de troca por excelência. Mas podemos voltar a Strathern (2013)Strathern, Marilyn. Learning to see in Melanesia . Lectures given in the Department of Social Anthropology, University of Cambridge, 1993-2008, HAU Marterclass Series, v. 2, 2013. e notar que se a mulher aparece como adorno do homem é o homem que produz uma reificação de si por meio de seu corpo, anexando a ele os muitos adornos. Adornos que revelam suas capacidades internas e as relações das quais ele se compõe. É o homem, portanto, que surge objetificado aos olhos do espectador enquanto a mulher traz à luz os poderes do feminino de que é feito esse homem.

As capacidades da pessoa funk emergem no jogo da visualidade, com os objetos de adorno corporal argolando aquele que olha. E nesse processo de ir e vir de olhares e perspectivas, a pessoa emerge. O dinheiro nos interessou portanto e sobretudo por seus aspectos estéticos, muito mais do que econômicos, e pelo modo como sua manipulação e sua visibilização nos permitiram acessar as performances encenadas para extrair a atenção do outro. A significação que a forma encerra não se desvincula entretanto da representação imediata a que o dinheiro remete: medida abstrata de valor e símbolo essencial de poderio financeiro. Trata-se, sobretudo, do que e como se deve ser visibilizado e de como a pessoa se revela por meio de seus objetos. O corpo, como a pessoa, é composto de flesh e de objetos.

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  • Zelizer, Viviana. A negociação da intimidade . Petrópolis, Vozes, 2011.
  • 1
    Todos os desenhos e imagens são de minha autoria e seus usos são de minha inteira responsabilidade. Atendendo ao pedido de meus interlocutores em campo mantive seus nomes originais, com exceção daquele que designo como Luizinho. Igualmente, possuo autorização de Mr. Catra para reproduzir sua imagem. Por fim, noto que, em função de limitações espaciais, as letras das músicas constantes do texto foram parcialmente transcritas.
  • 2
    É possível, contudo, delinear diferenças estilísticas que estratificam o consumo da música, meta que não é a nossa aqui.
  • 3
    Ao longo de dezoito meses acompanhei Mr. Catra, seus familiares, amigos e parceiros de criação. O trabalho de campo foi conduzido no estúdio de gravação, nos deslocamentos noturnos para cumprir a agenda de shows e na casa da família. Acompanhei ainda as mulheres do núcleo familiar do artista nas incursões para compras e nas visitas ao cabeleireiro. A esses dados, somo ainda aqueles levantados para a minha pesquisa de mestrado, conduzida ao longo de outros dezoito meses de trabalho de campo, em um baile funk no Rio de Janeiro. Acompanhei um grupo de jovens na festa, e ainda em suas compras de vestuário, visitas a barbeiros, nas produções de beleza anteriores à festa, que ocorriam em suas casas em seus locais de trabalho.
  • 4
    Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde de carros”, meu carro poderia ser dirigido por mim mesma ou por um dos “seguranças” de Mr. Catra. Invariavelmente, eu levava comigo outros membros da entourage do artista.
  • 5
    O mais comum é que bailes funk se desenrolem em quadras de esportes, estejam elas localizadas em favelas, comunidades ou em clubes. Estes últimos são, em geral, obsoletos e localizados na cidade formal.
  • 6
    As fotografias e os desenhos são de minha própria autoria e responsabilidade.
  • 7
    A perspectiva do dinheiro como disruptivo de relações sociais está presente desde as análises de Marx (1983)Marx, Karl. A mercadoria. In: Marx, Karl. O capital: crítica da economia política . São Paulo, Abril Cultural, Vol.1, Livro Primeiro, Tomo 1, 1983, pp.45-78. Coleção Os Economistas. e Simmel (2004)Simmel, Georg. The philosophy of money . 3ed. Londres, Routledge, 2004. chegando a autores mais recentes, como Taussig (1980). Essa perspectiva vem sendo questionada pelas novas sociologia e antropologia da economia, renovação que tem em Viviana Zelizer um de seus nomes mais atuantes. No que diz respeito às relações de gênero, nosso interesse aqui, gostaria de destacar as contribuições da autora em sua consideração do dinheiro em seus usos domésticos e na esfera das relações íntimas ( Zelizer, 1989Zelizer, Viviana. The social meaning of money: “special moneys”. American Journal of Sociology 95 (2), September 1989, pp.342-377. ; 2009Zelizer, Viviana. Dinheiro, poder e sexo. cadernos pagu (32), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2009, pp.135-157. ; 2011Zelizer, Viviana. A negociação da intimidade . Petrópolis, Vozes, 2011. ), bem como as reflexões empreendidas por Piscitelli (2004Piscitelli, Adriana. Entre a Praia de Iracema e a União Europeia: turismo sexual internacional e migração feminina. In: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sergio. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras . Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pp.283-318. , 2013Piscitelli, Adriana. Brasileiras nos mercados transnacionais de sexo . Rio de Janeiro, EDUERJ, 2013. ) e Piscitelli, Assis e Olivar (2011)Piscitelli, Adriana; Assis, Glaucia de Oliveira; Olivar, José Miguel Nieto. Gênero, sexo, afeto e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil . Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2011. em torno da prostituição e da circulação transnacional de pessoas.
  • 8
    Para uma análise mais específica sobre o funk ostentação e sua cadeia de produção imagética, ver Pereira (2012).
  • 9
    A exceção se faz com Luizinho, que surgirá mais adiante no texto, a cujas falas não tive acesso, que tem aparência de branco e mostra ter gosto distinto.
  • 10
    Mr. Catra explora magistralmente as relações entre “brancos” e “negros” por meio de suas paródias musicais ( Mizrahi, 2009Mizrahi. De agora em diante é só cultura: Mr. Catra e as desestabilizadoras imagens e contra-imagens funk”. In: Gonçalves, Marco Antonio; Head, Scott (org.). Devires Imagéticos: representações/apresentações de si e do outro . Rio de Janeiro, 7Letras, 2009, pp.203-231. ; 2012bMizrahi. Mr. Catra: cultura, criatividade e individualidade no funk carioca. In: Gonçalves, Marco Antonio; Marques, Roberto; Cardoso, Vania (org.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro, 7Letras, 2012b, pp.109-136. ; 2016bMizrahi. A música como crítica social: lógica dual e riso conectivo no funk carioca. Anthropológicas , 27(2), Recife, 2016b, pp.64-96. ). Já a produção dos cabelos femininos permite acessar, por meio da estética, discursos silenciosos que se fazem na interseção entre raça, classe e gênero ( Mizrahi, 2012aMizrahi. Cabelos como extensões: relações protéticas, materialidade e agência na estética funk carioca. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares , 9 (2), Rio de Janeiro, 2012a, pp.137-157. ; 2015aMizrahi. Cabelos ambíguos: beleza, poder de compra e “raça” no Brasil urbano. Revista Brasileira de Ciências Sociais 30 (89), São Paulo, 2015a, pp.31-45. ). Sinteticamente, argumento, junto com minhas amigas em campo, que o estilo de cabelos femininos valorizado não é nem “liso”, como o das “brancas”, nem se adequa a uma representação cristalizada do “negro” que no Brasil sobrepõe “raça” e “classe”. Os cabelos valorizados são anelados e ambíguos e permitem fluidez à pessoa feminina funk, potencializando sua circulação pela cidade sem que isso se traduza em uma busca por “embranquecer”, mas que evita a vinculação a uma imagem fixa do que é ser negro no Brasil.
  • 11
    Como meio de desestabilizar essa imagem tão marcadamente heterossexual que meu material traz, vale à pena lembrar da dançarina Lacraia, um homem pardo, muito alto, magro e comprido, que acompanhava MC Serginho em suas performances. Vestida por saias curtas e tops que deixavam seu abdômen de fora, com os cabelos curtos descoloridos, sapatos de altas plataformas e fortemente maquiada, Lacraia não apenas dançava como dava beijos em rapazes que subiam ao palco supostamente porque em troca receberiam algo como R$ 50,00. Lacraia faleceu em 2011 e a família não revelou a causa de sua morte.
  • 12
    Outras referências fundamentais à uma abordagem interseccional são Brah (2006)Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2006 , pp.329-376. e Piscitelli (2008)Piscitelli, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura 11(2), Goiânia, 2008, pp.263-274. . Privilegio aqui a análise de McClintock na medida em que se afina ao meu anseio de pensar tais articulações junto aos objetos materiais, ao consumo e à estética.
  • 13
    Ver, por exemplo, Gomes (2015)Gomes, Mariana. My pussy é o poder: representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural. Dissertação (Mestrado em Cultura e Territorialidades), Universidade Federal Fluminense, 2015. e Lyra (2016)Lyra, Kate. Rio’s feminist funk: an undulating curve of shifting perspectives. Brasiliana-Journal of Brazilian Studies , London 4(2), 2016, pp.343-371. para trabalhos que buscam destacar os poderes do feminino no funk ao atribuir a suas agentes uma agenda “feminista”.
  • 14
    Para uma análise da articulação entre dinheiro e relações amorosas a partir das letras de canções, em específico de sambas das primeiras décadas do século XX, ver Oliven (2014)Oliven, Rubem. Reciprocity in Brazilian songs of love and money. Journal of Classic Sociology 14 (1), London, 2014, pp.100-109. .
  • 15
    De modo a atender à solicitação de meus interlocutores em campo, mantive seus nomes verdadeiros, com exceção de Luizinho, como cuidado de proteger a identidade de uma figura cuja vida se desenvolve estreitamente vinculada à ilegalidade.
  • 16
    Para uma etnografia da boate The Week, ver França (2012)França, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo . Rio de Janeiro, EDUERJ, 2012. .
  • 17
    Para as relações de Mr. Catra com a religião, ver Mizrahi (2007a)Mizrahi. Funk, religião e ironia no mundo de Mr. Catra. Religião e Sociedade 27 (2), Rio de Janeiro-RJ, 2007a, pp.114-143. .
  • 18
    Em outro texto, elaborei sobre as demandas de um corpo funk e suas influências sobre a modelagem das roupas. Para os traços estruturantes do gosto feminino funk, ver Mizrahi (2007b, 2011, 2017).
  • 19
    Nos bailes funk de favela – crescentemente raros, em parte graças à entrada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nessas comunidades – as playlists se fazem na alternância entre os “proibidos” e a “putaria”. Os primeiros podemos definir, de maneira sintética, a partir das referências às investidas violentas da polícia na comunidade, que se desdobram ainda no embate com o tráfico local e nos embates entre diferentes facções. Já a “putaria” versa essencialmente sobre as relações amorosas e eróticas, fazendo menção à genitália, de modo explícito ou figurado.
  • 20
    Mercenária , de Mr. Catra.
  • 21
    Como mostra Cavalcanti (2009)Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. Festa e contravenção: os bicheiros no carnaval do Rio de Janeiro. In: Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro; Gonçalves, Renata (org.). Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009, pp.91-123. , os “bicheiros” e a atividade de mecenato que desempenham são importantes na engrenagem do carnaval carioca.
  • 22
    Contravenção , de Mr. Catra.
  • 23
    Tem que ter uma amante , de MC Mascote.
  • 24
    “Esculachar” uma mulher significa, de modo amplo, conspurcar sua imagem. Isso pode se dar tanto por meio de agressões verbais como por meio de agressões físicas.
  • 25
    Um otário pra bancar , do grupo Gaiola das Popozudas.
  • 26
    Carsten (2004)Carsten, Janet. After kinship . Cambridge, Cambridge University Press, 2004. , por meio dos significados atribuídos ao sangue pelos malaios, busca elaborar uma noção de substância que escapa à ideia de substância como essência de um corpo e do gênero, como no caso indiano, e substância como se referindo às partes femininas e masculinas de um corpo que é definido pela instabilidade de gênero, como no caso melanésio.
  • 27
    Para outras relevantes pesquisas concernentes à relação entre corpos e objetos materiais em sociedades amazônicas, ver, entre outros, Hugh-Jones (2009)Hugh-Jones, Stephen. The fabricated body: objects and ancestors in Northwest Amazonia. In: Santos-Granero, Fernando (org.) The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood . Tucson, University of Arizona Press, 2009, pp.33-59. , Santos-Granero (2009)Santos-Granero, Fernando. From baby slings to feather bibles and from star utensils to jaguar stones: the multiple ways of being a thing in the Yanesha lived world. In: Santos-Granero, Fernando (org.). The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson, University of Arizona Press, 2009, pp.105-127. e J. Miller (2009)Miller, Joana. Things as persons: body ornaments and alterity among the Maimanidè (Nambikwara). In: Santos-Granero, Fernando (org.). The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson, University of Arizona Press, 2009, pp.60-80. .

Músicas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2016
  • Aceito
    09 Set 2017
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