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Pensar o sexo e o gênero* * Resenha do livro Varikas, Eleni. Pensar o Sexo e o Gênero. Campinas, Editora Unicamp, 2016.

Varikas, Eleni. Pensar o Sexo e o Gênero. Campinas: Editora Unicamp, 2016

Em Pensar o sexo e o gênero, Eleni Varikas tece uma discussão acerca do conceito de gênero cruzando história intelectual, teoria social e abordagens epistemológicas que partem de paisagens intelectuais e tradições políticas menos conhecidas. Nas 128 páginas do livro – dividido em duas seções principais: as itinerâncias e as impertinências do gênero –, a autora também dialoga, de forma breve e erudita, com autores célebres, como Hannah Arendt, Walter Benjamim e Simone de Beavoir. No decorrer dessa costura de referências, Varikas destaca a necessidade de redefinir o político desafiando suas distinções fundadoras: entre privado e público, pessoal e político, família e comunidade, sociedade civil e Estado. Nesse sentido, pensar sobre as noções de diferença sexual, bem como sobre a experiência singular do sujeito feminino e seu acesso ao universal, é o caminho elegido pela autora para discutir a historicidade do gênero como princípio organizador da política.

Genealogias e fronteiras do pensamento

Varikas empreende uma genealogia do conceito de gênero através de um caminho improvável: iniciando-a na filosofia de Protágoras e suas elaborações sobre o projeto de racionalizar a linguagem a partir da divisão dos substantivos. A passagem pela filosofia grega clássica não acontece por considerá-la uma origem, e menos ainda por ter tido grande influência nos estudos de gênero, mas porque ao ser revisitada de maneira propositalmente anacrônica, levanta questões que estiveram no cerne do debate feminista das últimas décadas sob ângulos inesperados. Para Protágoras, o gênero gramatical é arbitrário, ou seja, depende da terminação dos substantivos, e não de uma essência própria às coisas por eles designadas. Assim, o gênero dos seres humanos não corresponde sempre ao sexo biológico, mas resulta de regras precisas, identificáveis nas práticas sociais que organizam dada sociedade. Nessa perspectiva, o gênero não é somente um princípio de ordem, pautado em uma divisão social de tarefas e funções diferenciadas; é igualmente uma grade de leitura, uma maneira de pensar o mundo e o político pelo prisma da diferença sexual. Não por acaso, esse termo foi deliberadamente emprestado da gramática: justamente por contestar a possibilidade de reduzir o social e o político a categorias sexuadas estáveis e autoevidentes.

Outro tema explorado no texto é a abordagem do conceito de gênero na França em contraposição com seus usos anglo-saxões. Ao discutir a forasteiridade vinculada ao termo gênero (gender) no contexto francês, a autora constrói uma reflexão sobre a influência mútua dos territórios nacionais sobre os territórios de pensamento. Varikas afirma existir um pendor entre as teóricas feministas francesas de rejeitar o termo gênero como uma importação americana, preferindo expressões como “diferença sexual”. Além disso, a autora critica a tendência que se apoia na diversidade linguística dos paradigmas de sexuação para pôr em questão o conceito de gênero como uma abordagem generalizável – o que não quer dizer única –, suscetível de analisar as questões de poder e antagonismo dos sexos. Para ela, a adoção (ou rejeição) da palavra gênero na pesquisa é menos relacionada à polissemia do termo e mais uma questão de disponibilidade das palavras em determinadas línguas. Disponibilidade essa construída por uma dinâmica complexa que envolve tradições intelectuais, combates políticos locais e relações de força disciplinares nacionais e internacionais. Pensar sobre essa historicidade das escolhas teóricas produz um efeito importante: a palavra considerada estrangeira e a ruptura que ela introduz revelam momentos de construção subjetiva e de reflexividade internas a todo conceito. Assim, pensar sobre o termo gênero e sua subsequente distinção conceitual entre sexo e gênero também mostra a necessidade de criticar os usos do conceito de gênero que tendem a hipostasiar o sexo, ao lhe atribuir uma essência imutável, tratando-o como suporte neutro para a construção social.

Partindo de sua condição de intelectual na “errância escolhida”, Varikas anseia dialogar com produções intelectuais de diferentes nacionalidades, sem apagar sua estrangeiridade em relação a essas obras, mas entrando em relação com elas. A autora – que é grega – procura analisar os enveredamentos pelos quais algumas autoras – que, na França, não são reivindicadas pelo feminismo, como Julia Kristeva, ou até mesmo o renegaram, como Hélène Cixous e Luce Iragay –, tornaram-se as maiores representantes do que ficou mundialmente conhecido como a teoria feminista francesa ou o french feminism. Essa configuração parece ter tornado invisíveis as abordagens e conceitos que mais se aproximavam das problemáticas do gênero inicialmente desenvolvidas nos Estados Unidos; criando um antagonismo artificial e fazendo ainda com que uma personagem célebre como Simone de Beavoir desaparecesse de diversos panoramas do pensamento feminista francês. Dessa forma, a noção do nacional se forma mediante uma homogenização interna e uma diferenciação externa do pensamento, que escondem conflitos internos e pautam regimes de visibilidade.

Renovando a conceitualidade do gênero

Uma das tônicas que move Pensar o sexo e o gênero é explorar problemáticas que prolongam e renovam a conceitualidade do gênero em suas interrogações e dilemas. Para tal, Varikas atravessa fronteiras disciplinares e nacionais e costura referências diversas que vão desde os romances de Virginia Woolf à historiografia que aborda o papel das mulheres durante o nazismo alemão; passando ainda pelos manifestos da revolucionária francesa Olympique de Gouges. A partir desse material, a autora dirige o olhar para a subordinação política e social das mulheres para através dela pensar sobre os axiomas, categorias e distinções pelos quais pensamos o político e a política. Assim, é possível

confrontar-se com a invisibilidade política de uma relação que, tendo sido pensada, durante séculos, em termos de hierarquia e dominação, foi paradoxalmente repelida para fora do político, no momento em que a crítica da autoridade arbitrária decretava a hierarquia ilegítima em nome da universalidade do direito natural (p.62).

No entanto, engajar-se nessa reflexão não significa buscar uma origem ou uma “causa primeira” do patriarcado, da hierarquia dos sexos ou da misoginia. Segundo a autora, a especulação sobre as origens e causas primeiras só pertence ao domínio como metalinguagem, e é preciso tratá-la como tal.

Reiterando sua filiação a uma perspectiva histórica benjaminiana – caracterizada pelo imperativo de escovar a história a contrapelo, ou seja, privilegiando a perspectiva do fracasso em vez da do êxito – Varikas defende o potencial heurístico de interrogar o político do ponto de vista daquilo que é marginal e minoritário. Para tal, a autora discorre sobre o silêncio que paira, na história intelectual, sobre a obra “Defesa dos direitos dos homens” (1790), de Mary Wollstonecraft. Nesse texto, Wollstonecraft propõe uma abordagem política das desigualdades sociais produzidas na esfera da família e do mercado, na medida em que define a autonomia de cada indivíduo como critério fundamental para a legitimidade de qualquer outra instituição (em particular da propriedade e da família). Ainda que tenha sido uma fonte importante do radicalismo britânico, essa obra foi silenciada pela história intelectual, graças à tendência de suprimir o conflito e a polissemia ao restituir a historicidade das tradições políticas. O que distingue o texto de Wollstonecraft dos demais manifestos daquele momento é que sua defesa dos direitos universais não criticava unicamente o absolutismo, mas também o despotismo do acúmulo ilimitado e da perpetuação da propriedade privada que implica o assujeitamento da maioria.

Por seu conteúdo, a obra parece ter-se tornado indecifrável aos olhos da tradição canônica do liberalismo contratualista. Também mostrou-se ininteligível para certa historiografia marxista que trata o político como mero epifenômeno da economia, bem como para uma tradição feminista que, centrada no texto “Defesa dos direitos da mulher”, negligenciou a lógica política e as tensões que conduziram de um texto ao outro. Assim, a ausência da “Defesa dos direitos dos homens” na história das ideias políticas pode ser vista como exemplar do encadeamento de esquecimentos do qual as tradições se alimentam; e da dificuldade de integrar a dissonância, a heterogeneidade e a singularidade nos esquemas interpretativos. Tudo o que excede ou dificulta a demonstração de uma evolução progressiva das ideias rumo a um imaginário da modernidade é descartado como algo menor; quando não é silenciado ou apresentado como atípico ou a frente de seu tempo.

Uma crítica à experiência do gênero

Na última parte do livro, Varikas dedica uma sessão à importância, e também às limitações, da noção de experiência para a discussão sobre o conceito gênero. Segundo a autora, as experiências das mulheres, marcadas pelo selo da insignificância e do particularismo, não são consideradas paradigmáticas. Por isso, muitas teóricas feministas se esforçaram para julgar a pertinência das categorias de análise e das ferramentas conceituais à luz das experiências marginalizadas das mulheres. Diante disso, frequentemente as experiências das mulheres foram tomadas como uma espécie de “cultura” de resistência (ou de vitimização) ao patriarcado, sendo tratadas de forma homogênea e generalizada. Essas abordagens caem na certeza da lógica binária do gênero, transformando-a em prisma privilegiado ou exclusivo de uma releitura da história e da sociedade. Em contrapartida, surgiram críticas importantes aos perigos essencialistas dessa perspectiva: como os trabalhos de Joan Scott e Judith Butler.

Varikas reconhece que as formulações de Scott sobre a invisibilidade da experiência e a teoria da performatividade de Butler fazem parte de um insight pós-estruturalista poderoso do feminismo: o de que a experiência não reflete de maneira transparente uma realidade pré-determinada, mas é uma construção social. Portanto, torna-se necessário analisar como as diferenças são estabelecidas, como elas operam e constituem os sujeitos, visto que “não são os indivíduos que têm experiências, mas sujeitos são constituídos pela experiência” (Scott, 1998Scott, Joan. A Invisibilidade da Experiência. Projeto História, nº 16, São Paulo, 1998, pp.303-304.:302). Conforme sugere Avtar Brah (2006)Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Núcleo se Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, Campinas, 2006, pp.329-376., a “experiência” é um processo de significação que é a condição mesma para a constituição daquilo a que chamamos “realidade”.

Apesar de reconhecer a importância da reflexão que as obras de Scott e Butler suscitaram a respeito dos pressupostos teóricos mediante os quais a historicidade do gênero é estudada, Varikas afirma que elas acabam por reforçar, ao invés de subverter, a oposição entre sentido e experiência. Para a autora, o problema central dessa abordagem não é a importância atribuída à linguagem e aos sistemas simbólicos, mas uma determinada teoria da linguagem que privilegia o estudo dos discursos consolidados em vez das práticas linguísticas com as quais as pessoas intervêm, com maior ou menor êxito, nos sentidos estabelecidos. Assim, a crítica que Varikas direciona à Scott e, principalmente, à Butler, vai contra a ideia de que existem regras discursivas que governam a inteligibilidade cultural da afirmação do “eu”: uma ideia que ela acredita não ser falsa, mas tautológica. Tal crítica não parece inédita e tampouco, dado o caráter sucinto do livro, suficientemente desenvolvida.

Interrogações sobre o espaço para transformação social e agência nas formulações de Judith Butler não são novas, e a autora parece tentar responder a muitas delas em sua própria obra. Em Bodies that Matter (1993), por exemplo, responde a muitas críticas suscitadas por seu livro anterior: Problemas de Gênero (1990).No entanto, a forma como combina a dialética hegeliana com o modelo foucaultiano do poder (o poder como múltiplo, disperso e gerador de resistências) parece inquietar Varikas. Apesar de estar ciente das tentativas de Butler de matizar o já tão criticado determinismo linguístico, a autora de Pensar o sexo e o gênero argumenta que a relação que a filósofa estabelece com a linguagem e o sujeito continua amplamente unilateral, visto que as estruturas discursivas permanecem fixas. Nesse sentido, como o gênero é considerado um processo de repetição regulado (performativo), a amplitude das reinterpretações desses atos performativos dos sujeitos é determinada de antemão e seus atos de significação estariam fadados a ocorrer na órbita da compulsão e repetição.

Penso que tanto Butler quando Scott não tentam reduzir tudo a construções linguísticas, mas estão interessadas em descrever as condições de emergência do sujeito. Nesse sentido, sexo e gênero emergem como efeitos – e não causas – de instituições, discursos e práticas. O “eu” e o “nós” que agem não desaparecem, o que desaparece é a noção de que essas categorias são entidades unificadas, fixas e já existentes, e não modalidades de múltipla localidade, continuamente marcadas por práticas culturais e políticas cotidianas (Brah, 2006Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Núcleo se Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, Campinas, 2006, pp.329-376.). A possibilidade de agência e mudança, para além das contingências geradas graças à instabilidade constitutiva da linguagem, pode estar presente se considerarmos uma noção de experiência que não atua como diretriz imediata para a “verdade”, mas como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente; como uma luta sobre condições materiais e significado.

Mesmo que muitas das críticas de Varikas sobre performatividade, materialidade e sujeito pareçam apressadas, ainda assim, a autora coloca em termos interessantes alguns incômodos comumente suscitados pela leitura de Butler e Scott. Para ela, interessada em uma pesquisa da subjetividade, a linguagem deve ser abordada enquanto prática social; uma prática cuja dinâmica é, simultaneamente, aberta e determinada. Nesse sentido, de nada adianta substituir o pressuposto de identidades sexuais unitárias por um paradigma linguístico unitário, que fala pela voz de sujeitos passivos, impedindo que se confronte a questão central: as relações de força através das quais o gênero constrói e é construído pelo político. Na sua perspectiva, a função repetitiva e performativa da linguagem não parece proveitosa justamente porque elipsa e coloca em segundo plano determinadas resistências, ímpetos e desejos que excedem e contestam as regras que pautam a inteligibilidade de gênero. Se o mote que alinhava o livro é a reflexão por ângulos impensados e personagens e tradições intelectuais não hegemônicas, Varikas acredita que um paradigma linguístico centralizador pode dificultar a análise dos “fatos deslocados” e “possibilidades eliminadas” que compõem as paisagens ignoradas do político que tanto lhe interessam.

Por fim, fica evidente como a autora aposta na pluralidade e na imprevisibilidade como fonte do potencial heurístico das experiências. Nessa dinâmica estaria a grande potência política do feminismo: levar a sério as promessas do universalismo e desafiá-lo. Além disso, essa perspectiva permite questionar o automatismo que assimila modernidade e liberdade das mulheres, possibilitando uma análise das verdadeiras continuidades e rupturas que moldam o antagonismo de sexo, e como suas novas configurações moldam a própria definição de modernidade. Por isso, a obra provocativa e sofisticada de Varikas merece a atenção daqueles que se veem às voltas com temas relacionados a gênero, sexualidade e feminismos, já que fornece inspiração teórica com alcance interdisciplinar.

Referências bibliográficas

  • Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Núcleo se Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, Campinas, 2006, pp.329-376.
  • Butler, Judith. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’. Nova Iorque, Routledge, 1993.
  • Scott, Joan. A Invisibilidade da Experiência. Projeto História, nº 16, São Paulo, 1998, pp.303-304.
  • *
    Resenha do livro Varikas, Eleni. Pensar o Sexo e o Gênero. Campinas, Editora Unicamp, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2017
  • Aceito
    25 Set 2017
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