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Mariza Corrêa: laços, memória e escritos


A certa altura de Orlando, Virgínia Woolf escreve:

Defronta agora o biógrafo com uma dificuldade que é melhor confessar do que esconder. Até este ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos privados e históricos têm tornado possível o cumprimento do primeiro dever de um biógrafo, que é caminhar, sem olhar para a direita nem para a esquerda, sobre os rastros indeléveis da verdade; sem se deixar seduzir por flores; sem fazer caso da sombra; sempre para diante, metodicamente, até cair em cheio na sepultura, e escrever finis na lápide sobre as nossas cabeças (Woolf, 1972Woolf, Virgínia. Orlando. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1972, Tradução de Cecília Meireles [1928].:37).

Irônica, a autora narra, em seguida, um enigmático episódio na Turquia, quando Orlando aos 350 anos de idade de uma vida longuíssima, depois de deitar-se como homem, acordou como mulher. A ficção é primorosa e guarda, dizem os especialistas, notas biográficas de Vita Sackeville-West, amiga íntima de Woolf. Ficção e biografia de um personagem que muda de gênero – termo que não fazia parte do léxico da época – Orlando é, sobretudo, exercício imaginativo da memória pessoal da escritora. Seu romance inscreve o tempo num regime diverso de historicidade. Articula a longa duração da história inglesa, do século XVI até a era Vitoriana, à vida de um indivíduo (que vive como homem e como mulher) em uma narrativa que incorpora temporalidades e inflexões variadas de gênero.

O impacto da leitura de Orlando foi se ampliando ao longo dos anos de convivência, de trabalho e de amizade com Mariza Corrêa (1945-2016). Antropóloga original e sutil, avessa ao exibicionismo mundano, ela nos ensinou que a atividade intelectual vigorosa passa sempre pela escrita. Sua obra mostra o quanto o arrimo da ideia do real como construção complexa de sentidos permeada por dispositivos de poder sustenta-se numa atenção redobrada à narrativa e à maneira de fazê-la. A paixão de pensar e o encanto pela literatura fomentaram nela uma dicção singular. Era pela escrita – e não só pelo conteúdo de seus argumentos – que ela punha a imaginação a serviço do discernimento rigoroso, inseparável do alcance de suas análises.

A melhor maneira de homenageá-la – e de aplacar a falta que ela nos faz – é trazer aqui uma parte do brilho e da extensão de seu raio de influência. “Escritos, laços e memórias” é, assim, tributo ao seu legado intelectual; reconhecimento de sua importância – sopesada, neste dossiê, por autoras e autores de diferentes gerações; gratidão pelo que ela nos ensinou.

Peter Fry, um dos fundadores no início de 1970 do que viria ser o Departamento de Antropologia da Unicamp – junto com Verena Stolcke (a orientadora de Mariza no mestrado) e Antonio Augusto Arantes1 1 Sobre o assunto, consultar o relato saboroso de Antonio Augusto Arantes (2006). Ver também Entrevista com Verena Stolcke (feita por Rafael Nascimento César e Thais Lassali, 2017); Entrevista com Peter Fry (feita por Christiano Tambascia, Vanessa Sander, Vitor Queiroz e Marcelo Perilo, 2018). – abre o dossiê com uma homenagem muito pessoal. Peter relembra os anos iniciais da intensa convivência, dentro e fora da Unicamp, com Mariza e seu marido, Plínio Dentzien – ele, vindo da Inglaterra, o casal, dos Estados Unidos. Capturados pelo humor inconfundível de Peter e por seu talento de nos fazer ver as coisas por frestas inusitadas, acompanhamos os primeiros passos de Mariza na antropologia, quando ele foi seu professor e depois colega de trabalho, além de amigo de uma vida inteira.

O estudo pioneiro de Mariza, Os Autos e os atos, que Peter examinou como integrante da banca que lhe conferiu o título de mestre, é abordado com angulações diversas em quase todos os artigos do dossiê, a partir da versão que o tornou famoso, Morte em Família (1983). Guita Debert realça a sua contribuição para os estudos de gênero e justiça, em meio ao retrato de corpo inteiro da obra, da trajetória e do empenho de Mariza na construção institucional da antropologia brasileira. A mescla bem dosada de reminiscências pessoais e reflexões sobre o alcance do trabalho da homenageada incita os leitores a revisitarem seus livros e artigos.

Com foco em Morte em família (1983) e “A babá de Freud e outras babás” (2007), Heloisa Pontes escrutina o modo como Mariza desvelou as articulações entre gênero e classe presentes na ordenação jurídica dos crimes cometidos, em relações de conjugalidade, por homens e mulheres. Heloisa enlaça os achados desse estudo ao assunto das babás, entre elas a de Freud, que serviu de acicate para Mariza examinar, com olhos bem abertos, a tessitura esgarçada das relações entre classe e raça no Brasil. Longe de ser um assunto “menor”, Mariza é eloquente na demonstração da relevância das babás para o entendimento da economia dos afetos das famílias abastadas e para a reflexão feminista contemporânea.

Em “Contextos de formação”, Maria Filomena Gregori alia análise à memória de uma geração tecida no contexto buliçoso do fim da ditadura, da emergência do feminismo, dos debates acalorados entre a esquerda tradicional e os novos sujeitos políticos. Seguindo de perto os ensinamentos de Mariza, Gregori mostra como sua obra se tornou referência incontornável na literatura sobre violência e gênero. Ao mesmo tempo que ela incitou o questionamento do dualismo entre vítimas e algozes, desataviou a frágil dicotomia entre o tradicional e o moderno que alicerçava, no pensamento social brasileiro, a compreensão das dinâmicas familiares. Mariza foi pioneira ao descortinar as implicações analíticas e políticas da diversidade e da riqueza dos arranjos familiares que não se ajustam ao modelo rígido (e esquemático) da família patriarcal.

Em “Os feminismos de Mariza”, Maria Lygia Quartim de Moraes mostra como ela alargou a perspectiva de análise da antropologia e do próprio feminismo. A profundidade de sua visão e da abrangência de seus temas deve-se também ao desvelamento das estruturas e das estratégias de poder e dominação. Sua obra, frisa Maria Lygia, é um alerta sobre as implicações da biologização das diferenças sociais em nome do racismo, do machismo e da homofobia.

A contribuição de Mariza para o adensamento da perspectiva feminista advém da perspicácia com que ela desmontou os engates espinhosos entre gênero, classe e raça no Brasil. As ilusões da liberdade (2001), Antropólogas& antropologia (2003) e Traficantes do simbólico (2013) – esses livros magistrais com títulos de romance – são examinados nos dois últimos artigos do dossiê. Em “Lady Frazer e seu marido”, Luís Felipe Sobral destaca dois pontos fundamentais de Antropólogas & antropologia: a importância do gênero como categoria para esquadrinhar e repensar a história da antropologia; a potência metodológica da noção de anomalia, mobilizada por Mariza com a intenção de iluminar as contradições do sistema normativo da disciplina que ela elegeu como profissão e mirou como objeto de estudo. Tais pontos sustentam também a pesquisa de Sobral sobre a posição anômala de James G. Frazer na epistemologia da antropologia. Denegada por ela e acolhida pela literatura, a obra de Frazer circulou na França graças à atuação empenhada de Lady Frazer. Mariza, temos certeza, adoraria saber dos bastidores dessa pesquisa e das peripécias de Lady Frazer junto aos antropólogos de língua inglesa e francesa, no intuito de ampliar a fama e a recepção da obra de seu marido.

O estudo de Mariza sobre a escola de Nina Rodrigues – tese de doutorado defendida em 1982 e publicada em 2001 com o título As ilusões da liberdade – injetou tônus nas pesquisas sobre a história da antropologia e produziu novas derivas na etnografia das relações raciais à brasileira. Na pegada do engenho da homenageada na escolha dos títulos de seus trabalhos, Christiano Tambascia e Gustavo Rossi, em “Sidetracks”, oferecem uma contribuição notável para o entendimento dos eixos mais gerais e persistentes que marcaram a obra de Mariza: o processo de formação e desenvolvimento institucional da antropologia no Brasil e as inflexões de gênero na prática e na escrita dessa disciplina. Ao mesmo tempo que pinçam as linhas de força do trabalho de Mariza, Tambascia e Rossi ampliam o arco da leitura com o compasso que utilizam para apreender o entrelaçamento, em sua obra, de raça e gênero. Os “netos” de Mariza dão a ver, assim, a irradiação da linhagem robusta que ela ajudou a criar na Unicamp e a espalhar pelo Brasil.

Por fim, agradecemos à Iara Beleli por nos presentear com um artigo inédito de Mariza, “Cara, cor e corpo”, e pelos comentários feitos para localizá-lo no conjunto das preocupações da homenageada. Nada mais apropriado para dar vida às inquietações de Mariza que a leitura desse texto sobre as gramáticas corporais internalizadas por homens e mulheres em nossa sociedade. Em suas palavras

temos estado até agora tão ocupadas em definir esta gramática – já razoavelmente delineada – que vamos deixando escapar da análise os detalhes mais delicados, as formas mais sutis em que se expressam as relações entre os sexos. Por enquanto só a literatura de ficção tem se ocupado delas, mas talvez seja importante começar a pelo menos tentar mapear este território de pequenas percepções no qual as mulheres se movem a maior parte do tempo (Corrêa, neste dossiê).

Virginia Woolf deu forma literária a esse alerta. Mariza Corrêa guiou-se com ele na vida e na antropologia.

Referências bibliográficas

  • Antropologia como “experiência de qualquer viajante”: entre lugares, autores e anedotas. Entrevista com Peter Fry (por Christiano Tambascia, Vanessa Sander, Vitor Queiroz e Marcelo Perilo, Proa - revista de antropologia e arte, no 8, vol.1, 2018, pp.112-140.
  • Arantes, Antonio Augusto. Origens do Departamento de Antropologia da Unicamp. In: Eckert, Cornelia; Pietrafesa de Godoi, Emilia. Associação Brasileira de Antropologia. Homenagens: 50 anos Nova Letra, 2006, pp.37-50 [http://www.abant.org.br/conteudo/livros/ABA50Anos.pdf – acesso em: 04 nov. 2018]).
    » http://www.abant.org.br/conteudo/livros/ABA50Anos.pdf
  • Corrêa, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.
  • Corrêa, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil Bragança Paulista/SP, Editora da Universidade São Francisco, 2001.
  • Corrêa, Mariza. Antropólogas & antropologia Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003.
  • Corrêa, Mariza A babá de Freud e outras babás. cadernos pagu (29), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.61-90.
  • Corrêa, Mariza. Traficantes do simbólico e outros ensaios sobre a história da antropologia Campinas/SP, Editora da Unicamp, 2013.
  • Imagina as coisas que se podia imaginar: jovens antropólogos e uma tese embaixo do braço. Entrevista com Verena Stolcke (por Rafael Nascimento César e Thais Lassali). PROA: revista de antropologia e arte, no7, vol. 1, 2017, pp.167-179.
  • Woolf, Virgínia. Orlando Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1972, Tradução de Cecília Meireles [1928].
  • 1
    Sobre o assunto, consultar o relato saboroso de Antonio Augusto Arantes (2006)Arantes, Antonio Augusto. Origens do Departamento de Antropologia da Unicamp. In: Eckert, Cornelia; Pietrafesa de Godoi, Emilia. Associação Brasileira de Antropologia. Homenagens: 50 anos. Nova Letra, 2006, pp.37-50 [http://www.abant.org.br/conteudo/livros/ABA50Anos.pdf – acesso em: 04 nov. 2018]).
    http://www.abant.org.br/conteudo/livros/...
    . Ver também Entrevista com Verena Stolcke (feita por Rafael Nascimento César e Thais Lassali, 2017); Entrevista com Peter Fry (feita por Christiano Tambascia, Vanessa Sander, Vitor Queiroz e Marcelo Perilo, 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018
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