O Outro na cidade: da multiculturalidade à interculturalidade
A tendência para a manifestação da multiculturalidade é hoje uma realidade crescentemente vivida nas sociedades de acolhimento de imigrantes, fazendo emergir cidades multiculturais enquanto lugares de passagem, encontro ou mestiçagem cultural, de rivalidade ou contraste social e mesmo de antagonismo e crispação de cariz interétnico, inter-religioso ou socioeconómico, sobretudo quando estas circunstâncias se sobrepõem com ou suscitam situações de exclusão social, cultural e económica. Esta plataforma de potencial cruzamento e confronto multicultural, porém, por si só não implica a existência de contactos e interações significativas entre as culturas copresentes, que podem coexistir sem que haja lugar a trocas relevantes entre culturas, isto é, sem que se verifique efectivamente uma circunstância intercultural.
A interculturalidade coloca-se conceptualmente a um nível relacional e horizontal, remetendo idealtipicamente para a existência social de diferentes culturas e grupos que interagem entre si de diversos modos num quadro institucional e legal onde a cada um é conferido o direito à sua diferença, às suas práticas e aos seus princípios morais, normativos e de conduta, que carecem de reconhecimento e respeito mútuos. O carácter essencialmente horizontal das relações interculturais fabrica-se, então, em termos idealtípicos, a partir de uma premissa social predominantemente não estratificante.1 Deste ponto de vista, uma abordagem intercultural é uma forma de ultrapassar a mera coexistência entre grupos, frequentemente assente em estruturas institucionais e práticas de disputa ou exclusão, elaborando modos activos de procura de diálogo e de conhecimento do outro, e buscando uma intervenção política, cultural e social que substitua uma lógica de conflito por uma lógica de criatividade (Hernández, 2009). O objectivo almejado será sempre um esforço de integração que incorpore as diferenças de práticas, racionalidades e processos de subjectivação, alicerçando-se numa matriz intersubjectiva que reconheça a complexidade do que está em jogo e o jogue criticamente com as possibilidades e limites de variáveis como diálogo, divergência, antagonismo (Arpini, 2007).
O reconhecimento da multiculturalidade e o desígnio de uma integração intercultural têm vindo a fazer o seu caminho, apesar dos obstáculos e retrocessos, tanto no universo académico como, de modo não surpreendentemente mais tímido, no domínio das políticas públicas. E este caminho tem-se devotado essencialmente a propostas de pensar e agir sobre processos de exclusão e hegemonização sobre comunidades imigrantes ou indígenas sujeitas a processos históricos de submissão, aniquilamento ou aculturação. No quadro das possibilidades crescentemente oferecidas pela maior abertura e legitimação abstracta que o plano político das vontades e o plano legal das estruturas legais e institucionais oferecem à expressão e à salvaguarda da diversidade social e cultural, emerge um contexto que favorece maneiras concretas para que as práticas, as convicções e os modos de vida de cada comunidade se reforcem como factos sociais totais que evidenciam a complexidade própria dos modos de ser, estar, pensar e agir que definem determinado grupo, comunidade ou etnia.
Este cenário de maior reflexão e protecção, frequentemente apenas formal, pode contribuir para uma afirmação da coesão e existência formal, material e imaterial dessas comunidades em moldes diversos daqueles que funcionavam para essas comunidades e para o contexto exterior, interferindo, perturbando e actuando na configuração – embora de modo não inevitavelmente linear nem puro – das suas fronteiras identitárias. Nesta medida, a consolidação de políticas e práticas interculturais respaldadas na defesa dos direitos e da identidade do outro suscita um debate em torno do lugar que podem ocupar certas crenças e rituais, associados por determinados grupos a eixos estruturantes de pertença cultural, gravitando o debate – e a sua recorrente politização – em torno do confronto entre visões de protecção ou de denúncia do estatuto patrimonial dessas crenças e rituais no quadro de sociedades laicas e com uma moldura jurídica específica. O pomo joga-se frequentemente em torno da complexa discussão acerca da possibilidade ou impossibilidade de certos conjuntos de práticas culturais atentarem precisamente contra as bases de direitos nos quais se funda a matriz jurídica e institucional que fomenta a abordagem intercultural, mas também sobre os modos como a defesa de direitos culturais concretos pode comprometer objectivamente outros direitos (Stopler, 2005; Siobhán, 2006; Bhabha, 2009). Indiscutivelmente, a promoção de condições para a integração numa sociedade de características multiculturais ou, pelo menos, nas quais se verifique a existência pluricultural de grupos maioritários e minoritários, tem de assentar em pressupostos como a tolerância (no sentido de capacidade de interconhecimento e de reconhecimento da alteridade). As incidências concretas e as consequências dessa tolerância na sua aplicabilidade apresentam, contudo, um conjunto complexo de limitações (Lopes, 2012). Assim, é neste campo, difícil e persistentemente aberto ao debate que nos propomos aduzir algumas notas acerca do caso da mutilação genital feminina (MGF) em Portugal, não raro apresentada por quem a defende e pratica como um facto de cultura.
Mutilação genital feminina, violência de género e direitos humanos: algumas notas sobre o caso português
A possibilidade de mudança real de hábitos e mentalidades tende a ser marcada por lentidão e gradualidade, gerando focos de resistência amiúde capazes de persistir, sobretudo quando entra em confronto com crenças e relações de poder de base claramente assimétrica, como é o caso das diferenças de género produtoras de submissão e até violentação feminina (Pais, 1995; Pickup;Williams;Sweetman, 2001). Efectivamente a situação das mulheres imigrantes ou de minorias étnicoculturais nas sociedades desenvolvidas é determinada pela articulação de diferentes relações de poder em que se encontram inseridas. Neste âmbito, as abordagens feministas das migrações, por exemplo, têm salientado que a situação das mulheres migrantes passa por uma análise multidimensional que convoque as questões de género, classe social e pertença étnica, cultural, simbólica e profissional (Altamirano, 1997; Hondagneu-Sotelo, 2000; Silvey, 2004; Nawyn, 2010). Um dos aspectos concretos nos quais se cruzam e se materializam a desigualdade e a subalternização feminina é o da violência doméstica. Sublinhe-se que o fenómeno da violência doméstica possui um âmbito conceptual e analítico insusceptível de incorporar a MGF, que corresponde a um fenómeno inconfundível com aquele. A violência doméstica é classificada pela Organização Nações Unidas como
toda e qualquer ação de violência baseada no género que resulte, ou possa resultar, em danos ou sofrimento físicos, sexuais ou psíquicos das mulheres, inclusive ameaças, coerção ou privação sumária de liberdade, quer ocorra na vida pública ou privada (UN, 1993:artigo 1º).
No extremo desta problemática temos o caso da MGF, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu como qualquer procedimento que envolva a remoção total ou parcial dos órgãos genitais externos praticados por razões culturais, religiosas e não-terapêuticas (OMS, 2009). Em termos especificamente procedimentais, a MGF consiste na remoção de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos, praticada em mulheres adultas e em crianças entre os 4 e os 14/15 anos como acto de índole ritual2 por uma circuncisadora tradicional (fanateca) de entre os membros mais velhos da comunidade com a utilização de uma lâmina de corte, faca ou vidro cortante para remoção do clítoris ou até mesmo dos pequenos lábios com fundas consequências físicas e psicológicas traumáticas e também de saúde, sobrevindo infecções recorrentes, dor crónica, hemorragias dolorosas e complicações durante o parto, não raro com severidade (Osifo;Evbuomwan, 2009).3
Esta prática de natureza ritualística assenta num costume sociocultural de natureza patriarcal (Shweder, 2000),4 contando como procedimento clássico dos sistemas de dominação com a participação activa dos dominados (mulheres, que não raro ocupam até um lugar central na estrutura social de relações nos contextos de origem). O jaez consuetudinário desta prática estriba-se, por isso, nas desigualdades de género como mecanismo de controlo da sexualidade da mulher.5 É suportado por valores sobre pureza, modéstia e ascese que a mulher vista como impoluta deve preservar, pelo que é geralmente iniciada e executada por mulheres que a vêem como motivo e desejo de inclusão social, ou receio de rejeição pela comunidade. Manuela Cunha salienta a necessidade de problematizar a MGF como conjunto de práticas situadas em universos de significação muito distintos. Recorda a autora que
sob a terminologia MGF esconde-se uma diversidade de realidades, sentidos e experiências. Consoante o contexto em que decorram e as relações de poder envolvidas, para algumas mulheres é algo traumático e violento, com sequelas sérias na sua saúde sexual e reprodutiva; outras encaram-na como uma experiência positiva e até empoderadora […], mesmo que, à semelhança de tantos outros rituais de iniciação pelo mundo fora – femininos e masculinos –, fisicamente dolorosa (Cunha, 2013:843).6
Apesar da multiplicidade de formas por via das quais se exerce a MGF e da variabilidade de contextos de simbolização e valorização em que essa prática ocorre, o que lhe confere uma particular complexidade e pluralidade fenomenológicas e interpretativas, o facto é que a crença na bondade do acto ablativo e a representação da sua inevitabilidade conferem-lhe uma capacidade socialmente reprodutiva muito vincada, estando a prática de mutilação “no centro de toda a dinâmica social” dos grupos que a ela recorrem (Erlich, 1986:271).
Apresentando-se como um facto de natureza cultural, a MGF apela abstractamente, dir-se-ia, a hermenêuticas particularistas assentes nas diferenças socioculturais inerentes ao relativismo cultural, cuja caricatura interditaria a escolha ou o julgamento desvalorizador, tidos na caricatura como deslegitimadores e etnocêntricos. Fora da redução adulteradora da posição relativista, é evidente que no plano ético qualquer atentado contra a vida humana ou a integridade física se coloca num patamar superior à aceitação acrítica – e, portanto, contra-relativista – do factor cultural ou étnico definido por si próprio. Nesse sentido, as diferenças culturais só podem ser aceites no limite ético da dignidade humana, incompatível com a violação da vida e da integridade física e mental dos seres humanos, sejam mulheres ou homens.7 O choque entre a preponderância do direito à diferença e a preponderância do direito à igualdade ilustra-se na problemática da MGF, fazendo sobrevir nas sociedades com níveis mais elevados de desenvolvimento económico, social e político, de diversidade cultural crescente, uma negociação e uma definição permanentes dos seus limites (Santos, 2002) à luz dos adquiridos éticos institucionalizados e formalizados nos direitos humanos. Reconhecendo um intervalo de debate cujas fronteiras são amplas e movediças, remetendo para aspectos de articulação que constituem uma espécie de negociação entre práticas culturais auto e hetero-definidas enquanto tal e direitos reivindicados e disputados (Hernlund; Shell-Duncan, 2007), assente-se no consenso de que as questões étnico-culturais não podem sobrepor-se aos direitos humanos. Entendendo que os direitos humanos são construções sociais, eles podem ser objecto de relativização social e cultural, mas nos limites reconhecidos pela ética, ela própria igualmente engendrada socialmente.
Assim, a diversidade cultural só pode ser protegida, promovida e aceite desde que não coloque em causa os direitos humanos, quer a nível das liberdades fundamentais, como por exemplo, a liberdade de expressão, quer a nível da integridade física e mental ou do direito à vida. Ou seja, como estipula a Convenção Sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais emanada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2005, ninguém poderá invocar a diversidade cultural para atentar contra os direitos e liberdades garantidos pelo direito internacional (UNESCO, 2005:artigo 2º).
Em todo o caso, o ritual existe,8 afectando actualmente muitos milhões de mulheres (ascendendo, segundo cálculos da Organização Mundial de Saúde, a 200 milhões de mulheres – WHO, 2018),9 e é praticado de modo habitual e corrente em cerca de uma trintena de países (WHO, 2014; 2018; Teixeira;Lisboa, 2016), localizados sobretudo na região subsaariana do continente africano (mas atingindo latitudes tão diversas quanto a Colômbia, a Malásia ou Israel), entre os quais Guiné-Bissau, país lusófono que integra este lote, e no seio do qual se verifica uma prática ritualística de MGF, essencialmente concentrada em algumas etnias predominantemente islâmicas e que constituem uma parte bastante significativa da população que corporiza esta prática tanto na Guiné-Bissau como nas comunidades radicadas em Portugal (Johnson, 2007; Oberreiter, 2008; Piedade, 2008; Martingo, 2009; Lisboa et alii, 2016). Sublinhe-se, todavia, que no que concerne à MGF, procurar nexos causais automáticos entre a pertença religiosa e a adopção dos rituais de mutilação é um exercício arriscado do ponto de vista de uma hermenêutica científica do fenómeno, podendo conduzir a reificações e determinismos cuja base não encontra documentação de suporte e que carreariam como consequência até não intencional o reforço de posicionamentos de base xenófoba no seio de um debate já de si “tão polarizado e carregado de imputações ideológico-morais” (Cunha, 2013:836). Com efeito, e circunscrevendo a análise apenas à África, o polimorfismo social e cultural da MGF e das suas motivações transforma a sua “prática num comportamento prosseguido por praticantes de todas as grandes crenças religiosas do continente – cristianismo, islamismo e as religiões tradicionais” (Odukogbe et alii, 2017:139). Carla Martingo, por exemplo, que estudou a MGF na população guineense, não deixa de sublinhar que “o corte dos genitais femininos observa-se tanto em populações muçulmanas, como em judeus e cristãos, mas com particular incidência em populações islamizadas” (Martingo, 2009:165); até porque se trata de uma prática bem anterior ao surgimento do Islão.
Nos bairros ou comunidades onde residem guineenses em Portugal constata-se que estas etnias se tendem a fechar sobre si próprias, gerando uma estrutura comunitária e relacional pouco porosa a redes exteriores de sociabilidade. Facilitando uma eventual perpetuação desta prática, os casamentos são predominantemente endogâmicos e intra-étnicos como forma de manter a coesão familiar, cultural e simbólica ligada aos valores de origem, o que reforça o carácter de silenciamento sobre a prática da MGF e sobre quem a vive e a ela é submetida. Convém lembrar, todavia, que continua a ser difícil afirmar se há uma prática de MGF perceptível e reiterada em Portugal (Martingo, 2009; Lisboa et alii, 2016), ainda que em 2016 se tenha estimado – a partir de dados dos Censos de 2011 – em 1830 o número de mulheres/meninas com 15 anos ou menos sujeitas de facto ou potencialmente sujeitas a MGF (Teixeira; Lisboa, 2016).
Manifestar-se contra este costume pode ser, por isso, difícil tanto para as mulheres como para os homens que, do interior do grupo, questionam a legitimidade ou mesmo que se manifestam contra tal prática. Os posicionamentos críticos e de denúncia da parte de membros das próprias comunidades onde se pratica a MGF podem tender a ser assimilados a efeitos de dissolução da sua integridade sociocultural e da imobilidade que a sustenta. Um dos maiores obstáculos à mudança erigida a partir da acção de membros do grupo reside, pois, nesta dimensão de auto-representação contracultural. Adoptando uma terminologia habermasiana, é como se a acção organizada de mulheres que sofreram MGF ou de outros membros da comunidade que a pratica fosse perspectivada como fazendo parte do sistema que se oporia ao mundo de vivência a que pertenceriam o quotidiano e a identidade de comunidade em si (Habermas, 1984, 1987, 1990).
Recorrendo, uma vez mais, ao exemplo de membros da comunidade guineense radicada em Portugal (mas também de outras comunidades nacionais imigrantes), e no âmbito da auscultação de mulheres que foram sujeitas enquanto crianças à MGF, estudos como o de Sandra Piedade (2008) ou o de Edna Silva (2012) desenham um cenário entranhado no silêncio, na vergonha, na conformação e no trauma, expressando muitas das mulheres entrevistadas ou inquiridas elementos axiais à sua identidade respaldados no medo, na inibição e na humilhação e vivendo quotidianos de supressão de sentimentos e de uma auto-imagem feita de um percurso identitário deteriorado ou interrompido, no qual a MGF constitui um marco central no seu desenvolvimento psicossocial. Ambos os estudos dão igualmente conta de uma transformação em curso, sobretudo em mulheres jovens submetidas à MGF, no modo como muitas se dizem dispostas a interromper o ciclo de reprodução social de uma prática que aprenderam a criticar. A mudança decorrerá essencialmente do aumento da escolaridade e da sua consequência socializadora (que não deve ser menosprezada), resultando também de uma exposição de efeito eventualmente socializador (embora ocorrendo frequentemente numa matriz de confronto com valores e crenças anteriores e possuindo, além disso, eficácia variável e difícil de aferir) aos valores sociais dominantes da sociedade de acolhimento e das estruturas de intervenção dos poderes públicos.
Da resposta necessária aos limites, ambivalências e desafios
Mas a prática é consuetudinária e revela poder de continuidade, ilustrando como caso a participação da dominada na manutenção social do regime que a oprime. No estudo que conduziu em torno dos discursos e das representações produzidas por elementos da comunidade guineense em Portugal, por exemplo, Edna Silva (2012) afirma existir um número significativo de mães, tias ou avós que assumem fazer o que pensam ser o melhor para as suas filhas, sobrinhas ou netas de acordo com a tradição, que concebem como benéfica e necessária para as possibilidades matrimoniais das próprias mutiladas. Evidentemente que a complexidade da realidade da MGF não se altera automaticamente porque se criou um aparato legislativo ou porque se inscreveu o problema na agenda institucional de estruturas decorrentes de decisões políticas,10 passos, todavia, imprescindíveis para que se possam obter resultados. Concretizar o desiderato político faz-se proveitosamente – embora com graus diversos de eficácia e num quadro que tem inevitavelmente de se estender no tempo – incluindo pressupostos de instauração e promoção do diálogo intercultural, abrindo com essa experiência espaços de reflexão e análise da interacção interventiva com as populações envolvidas. Reconhecendo que esta formulação reúna laivos de truísmo, frequentemente não se estabelecem condições práticas, logísticas e humanas, suportadas institucional e formacionalmente, para a configuração de espaços de relação que, mais do que punir ou impor,11 possibilitem efectivamente uma capacitação e um empoderamento das mulheres12 para que estas passem a não deixar que as suas filhas sejam mutiladas.
O pano de fundo da intervenção deverá evitar a trivialização da cultura, consistindo esta posição na ideia de que as pessoas estão presas irremediavelmente a princípios socioculturais avassaladores e inescapáveis, tornando-as incapazes de se conceber fora dos eixos de significação cultural que recortam o corpo de uma certa forma, tornando-o aceitável ou mesmo desejável. Esta asserção, já de si discutível nos contextos de origem, torna-se muito mais difícil de defender em contextos multiculturais de sociedades de acolhimento capazes de suscitar múltiplas pertenças e de fornecer um cenário caleidoscópico de fluidez entre comunidades que à partida se poderiam supor como fechadas. Mas a intervenção deverá igualmente reconhecer a complexidade e a variabilidade de práticas, que frequentemente correspondem à sua adopção por mulheres adultas, associando-lhes mundivisões de relação intrínseca entre um corpo saudável e sexualizado como resultado de procedimentos nem sempre facilmente inseríveis na ampla categoria de MGF (Bagnol; Mariano, 2008a), como as práticas vaginais de mulheres de certas zonas e grupos em Moçambique, por exemplo (Bagnol; Mariano, 2008b).
É nesse sentido que Manuela Cunha advoga a destrinça entre os direitos das crianças e adolescentes e os direitos das mulheres adultas, que uma criminalização cega e universal da MGF não prevê, já que nega a mulheres legalmente emancipadas uma opção de prosseguimento de alterações corporais segundo os seus próprios termos (Cunha, 2013). A necessidade de protecção dos direitos das crianças e adolescentes deve, por isso, ser pensada à luz de uma rejeição da alterização do constrangimento social, segundo a qual só há MGF quando se trata de membros de certa origem étnica, nacional ou religiosa, retirando desta conotação negativa e estigmatizada todo o conjunto de práticas de intervenção medicalizada nos genitais, vista como legítima e aceitável e, portanto, normalizada. Com efeito,
o discurso dominante sobre as cirurgias de cosmética genital associa-as não à MGF mas a outras cirurgias cosméticas socialmente aceites (e. g. nariz, peito) e remete-as para o quadro do direito das mulheres à livre escolha e a tomar decisões sobre o seu corpo (…) [o que pode redundar no] risco de discriminarmos entre genitais “europeus” e “africanos” (Cunha, 2013:850).
O desafio é de natureza simultaneamente radicada, por um lado, na necessidade de produção e utilização de conhecimento sociológico, antropológico e histórico, e, por outro, na indispensabilidade de aplicação de um plano de formação de profissionais habilitados especificamente para a detecção, reconhecimento e intervenção em famílias e crianças em risco. Conhecer a realidade do fenómeno em Portugal, enquadrar as razões socioculturais e os sentidos simbólicos das práticas, contemplar o jaez intrincado e multímodo da interferência do género e da classe social13 na forte hierarquização da condição da mulher imigrante ou das minorias, perceber a posição dos pais sobre a MGF, sem julgar, transmitir respeito pelas suas práticas tradicionais, desaprovar com subtileza e empatia a mutilação explicando as consequências físicas e psíquicas para as crianças, educar sobre a anatomia dos órgãos genitais femininos, explicar as complicações do ato no presente e no futuro ou reconhecer a representatividade de dirigentes locais e mobilizar a sua vontade de participação são competências fulcrais num processo de formação de profissionais para que se possa ambicionar a geração de um processo de mudança social e o encorajamento do abandono desta prática, que além de materialmente constituir uma violação dos direitos humanos, coloca crianças e mulheres em perigo de vida, provocando sentimentos de baixa autoestima, depressão, ansiedade, fobias, pânico e desordens psicóticas de variada ordem.
Ou seja, a análise e a acção dela decorrente devem suscitar o reconhecimento de que a tendência para uma realidade multicultural é uma constatação que em si mesma engendra limites, ambivalências e desafios que não podem ser ignorados, dado o seu potencial de tensão nas relações de geometria variável entre comunidades, na relação entre indivíduo reconhecido com entidade cívica e formal e comunidade reconhecida na sua identidade colectiva e no seu património (Touraine, 1992), e nos modos como esses múltiplos patamares de relações podem ser contextualizados normativamente, tanto no nível do sistema jurídico-legal em vigor como no nível da realidade portuguesa como estrutura social complexa. Neste sentido, é preciso alertar e formar professores, sociólogos, antropólogos, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e mediadores sociais para que se passe definitivamente do reconhecimento meramente celebrativo do multiculturalismo como produto da modernidade, não muito distante de propostas como a de Brian Barry (2001), num movimento que, de resto, não é de agora no plano das propostas de campos do conhecimento como a sociologia, a antropologia ou a história, para a consecução de um diálogo intercultural que obrigue à troca entre hábitos e mundividências, frequentemente antitéticas, diálogo esse inelutavelmente atravessado pela difícil relação entre posições hegemónicas e contra-hegemónicas. Um desafio gigante e certamente mais fácil de inserir num registo de conceptualização do que de concretização.