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Tecnologias, infraestruturas e redes feministas: potências no processo de ruptura com o legado colonial e androcêntrico*

Feminist Technologies, Infrastructures and Networks: Potency in The Process of Breaking with The Colonial and Androcentric Legacy

Resumo

Autonomia, linguagem e segurança são as três categorias fundamentais que neste artigo desvelam a noção de tecnologia feminista que vem sendo construída em movimentos feministas da América Latina. Os diferentes sentidos mobilizados nessas categorias são observados a partir da atuação de coletivas latino-americanas de mulheres, pessoas trans e não binárias voltadas para produção e uso das tecnologias de informação e comunicação, redes autônomas e infraestruturas. Nesse cenário, tecnologia feminista é uma perspectiva construída por esses movimentos engajados em um debate tecnopolítico na interface com conhecimentos sobre internet, autonomia, infraestruturas digitais e segurança da informação para ativistas. A partir de pesquisas recentes desenvolvidas pelas autoras, este artigo apresenta e analisa a constituição dessa perspectiva e sua contribuição para a construção de alianças com as tecnologias e redes sociotécnicas que sejam divergentes do legado colonial e androcêntrico.

Tecnologia Feminista; Infraestrutura Feminista; Redes Autônomas e Comunitárias; Segurança Digital; Internet

Abstract

Autonomy, language and security are the three fundamental categories that reveal the notion of feminist technology that has been built in feminist movements in Latin America in this article. The different senses mobilized in these categories are observed from the performance of Latin American collectives of women, trans and non-binary people focused on the production and use of information and communication technologies, autonomous networks and infrastructures. In this scenario, feminist technology is a perspective built by these movements in their engagement in a technopolitical debate at the interface with knowledge regarding internet, autonomy, digital infrastructures, and information security for activists. Based on recent research developed by the authors, this article presents and analyzes the constitution of this perspective and its contribution to the construction of alliances with technologies and sociotechnical networks that diverges from the colonial and androcentric legacy.

Feminist Technology; Feminist Infrastructure; Autonomous and Community Networks; Digital Security; Internet

1. Introdução

Tecnologia Feminista é um termo que vem ganhando repercussão no movimento de mulheres na América Latina e faz referência aos debates e práticas que apontam para a não neutralidade das tecnologias em múltiplas camadas, repensando a imaginação, produção e uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) pelas e para as mulheres, pessoas trans e não binárias. A parcela do movimento feminista que promove esta discussão está engajada em um debate tecnopolítico na interface com conhecimentos sobre internet, autonomia, infraestruturas digitais e segurança da informação para ativistas. A proposta deste artigo é apresentar esse quadro nascente, considerando algumas das formulações presentes, os sentidos mobilizados e as potências que emergem de coletivos de mulheres e projetos desenvolvidos sob esta perspectiva na América Latina.

Em especial, buscaremos dialogar com articulações tecnopolíticas de coletivos e ativistas em torno do debate sobre infraestruturas digitais e redes autônomas feministas. Essas iniciativas vêm contribuindo para o desenvolvimento de uma visão crítica, não universalizante e não binária sobre as potencialidades das tecnologias, reconhecendo que a internet e as TICs podem assumir tanto um lugar de resistência, como ser aquele onde as violações de direitos, inclusive aquelas baseadas em múltiplas desigualdades como as de gênero, raça, classe, se proliferam e o debate social é restringido.

A irrupção de uma politização das tecnologias com um viés feminista vem sendo liderada por coletivas1 1 Doravente, o termo ‘coletivo’ será utilizado neste artigo como substantivo feminino, tal como ocorre entre alguns grupos de mulheres que informaram nossas pesquisas. ‘Coletivo’ é usado comumente como substantivo masculino para designar novas formas de mobilização e organização de grupos em prol de diversos direitos. A opção das autoras está em consonância com Isabelle Stengers e Philipe Pignare (2011) e busca caminhar junto a essas mulheres e suas palavras como antídotos. O mesmo ocorre com a substituição da palavra servidores por servidoras, e outros termos geralmente utilizados no masculino. Débora Oliveira (2019) observa que utilizar substantivos femininos é um mecanismo adotado pelos grupos pesquisados para apontar a estrutura sexista da nossa linguagem e como ela pode transmitir a ideia de que alguns assuntos são masculinos, como aqueles relacionados às tecnologias. de mulheres, pessoas transgênero e não binárias que sustentam a construção da noção de tecnologia feminista. Ao somar essas vozes ao acúmulo acadêmico nesse campo, também é objetivo deste artigo fazer emergir as implicações para a construção de redes sociotécnicas quando elas são pensadas na perspectiva de romper o legado colonial e androcêntrico e em visibilizar que seus impactos não serão os mesmos para os múltiplos grupos sociais e corpos.

Nesse sentido, compreendemos que há neste campo um reconhecimento da importância da representatividade, mas há também uma forte proposta de ir além na medida em que o chamado por envolver mais mulheres, pessoas trans e não binárias no desenho de tecnologias emerge como algo que será determinante para promover alianças que sejam capazes de desestabilizar escolhas naturalizadas e não verbalizadas e desafiar a reprodução de padrões e normas em experiência com infraestruturas e redes digitais. Ou seja, as experiências com tecnologias feministas, mais do que convidar corpos e grupos sociais que sofrem forças de afastamento da interação social com tecnologias a reconhecer e assumir seu protagonismo nesse campo, buscam mobilizar experiências, interesses e necessidades não normativos e incorporá-los em redes sociotécnicas. Nesse processo, conceitos como redes comunitárias, infraestruturas tecnológicas e autonomia, por exemplo, são revisitados em processos que buscam manter as definições abertas à possibilidade de serem reconstruídas, reapropriadas e ressignificadas a partir das múltiplas condições vividas, como veremos mais adiante. Seguindo este movimento que emerge das experiências acompanhadas, mais do que buscar alcançar conceitos definitivos do que seriam tecnologias, infraestruturas e redes feministas, nossa proposta neste artigo é olhar para as desestabilizações e diferenciações que emergem quando as perspectivas feministas são mobilizadas a partir do universo alcançado em nossas pesquisas, caracterizado por tensões e deslocamentos.

Construímos este texto tomando como base as experiências de pesquisa conduzidas pelas autoras deste artigo (Araújo, 2018ARAÚJO, Daniela Camila de. Feminismo e Cultura Hacker: Intersecções entre política, gênero e tecnologia. Tese de Doutorado, Política Científica e Tecnológica, Unicamp, 2018.; Oliveira, 2019OLIVEIRA, Débora Prado. Infraestruturas feministas e atuação política de mulheres em redes autônomas e comunitárias : criar novos possíveis diante da concentração de poder na internet. Dissertação de Mestrado, Divulgação Cientifica e Cultural. Unicamp, 2019 [[http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/335699/1/Oliveira_DeboraPradoDe_M.pdf - acesso em: 12 de março de 2020].
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) acerca das intersecções entre tecnologias e feminismos. Seguindo a trilha destes estudos anteriores, há aqui uma escolha de pesquisa em olhar os tensionamentos que as perspectivas feministas trazem na interação com outros grupos – ou seja, nossa lente está direcionada para fora e não para dentro. Isso não significa olhar para esses movimentos de maneira acrítica ou com uma expectativa de pureza em relação a contradições e relações internas de poder e disputas, mas, como definiu Donna Haraway (1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp7-41 [http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1065_926_hARAWAY.pdf - acesso em: 12 de fevereiro de 2019].
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:15), buscando manter uma “relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão que todas as posições contêm”. Também é importante destacar que embora este trabalho tenha se debruçado sobre intersecções feministas para ativar potências em relação a redes sociotécnicas, elas não são as únicas possíveis. Por fim nos parece importante enunciar que a literatura feminista que mobilizamos nos conduz ao distanciamento de uma pretensão de “imparcialidade”, de “neutralidade” da ciência ou da produção de verdades definitivas. Ou seja, ao nos debruçarmos sobre iniciativas que buscam questionar legados colonialistas e androcêntricos no campo do ativismo em torno de tecnologias digitais, nós também buscamos questionar esse legado na própria produção acadêmica2 2 Considerando o compromisso engajado que assumimos a partir de epistemologias feministas, a partir dos processos de pesquisa, salientamos que Daniela Araújo estudou o movimento feminista na cultura hacker e como resultado desta aproximação passou a integrar o núcleo de organização da MARIALAB em 2017 e Débora Oliveira passou a colaborar em iniciativas da MARIALAB / VEDETAS em São Paulo/SP. Marta Mourão Kanashiro é pesquisadora e ativista na área de tecnologia e vigilância desde 2001, é membra fundadora da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Rede Lavits) e acompanha as atividades de grupos feministas voltados aos temas da rede, como é o caso da coletiva MARIALAB dentre outras. .

A pesquisa de campo de ambas se estruturou a partir de participações em encontros e eventos, alguns exclusivos para mulheres, pessoas transgênero e não binárias que contemplavam experimentações com servidoras3 3 Servidor é um software ou computador que fornece serviços de armazenamento e compartilhamento de dados e arquivos para uma rede de computadores. Existem vários tipos de servidores, como servidores de sites, de e-mail, de impressão, de fax etc., dependendo da função para o qual está voltado. Neste caso, nos referimos a servidores web, responsáveis por armazenar páginas de sites e outros serviços online e permitir o acesso por meio de um navegador. , redes4 4 Ao falar em redes consideramos formas de conexão e relações humano-máquina, e, especificamente neste artigo, estamos considerando redes humanas com conexões digitais para dialogar com um campo que emerge em torno do termo ‘redes autônomas e comunitárias’ a partir de perspectivas e tecnologias feministas. autônomas e comunitárias5 5 Redes autônomas e comunitárias são soluções de conectividade baseadas em paradigmas de abertura do design e de gestão coletiva para promover a conexão compartilhada à Internet ou constituir uma rede digital local. Quando nos referimos a redes autônomas e redes comunitárias estamos criando uma distinção em relação a redes comerciais ou estatais centralizadas, ainda que as experiências neste campo possam variar muito e que exista o risco deste termo se tornar uma etiqueta ampla que ofusque a multiplicidade de experiências desenvolvidas em contextos e territórios específicos (Zanolli et al., 2018). O termo “autônoma” faz referência a busca por não depender -- ainda que de forma parcial -- de empresas e tecnologias proprietárias. Em relação a redes comunitárias, o Fórum de Governança da Internet ou IGF (Internet Governance Forum, na sigla em inglês) atuou na formulação de princípios comuns a essas redes no âmbito do DC3 (Dynamic Coalition on Community Connectivity) – uma coalizão de instituições e pessoas que se consideram partes interessadas neste campo. Na sua declaração online, atualizada em 7 de julho de 2017, o DC3 apresenta redes comunitárias como “um subconjunto de redes de contribuição colaborativa, estruturadas para serem abertas, livres e neutras”. Essas redes, prossegue a declaração, “contam com a participação ativa das comunidades locais no projeto, desenvolvimento, implantação e gerenciamento da infraestrutura compartilhada como um recurso comum, pertencente à comunidade e operado de forma democrática” [https://www.comconnectivity.org/article/dc3-working-definitions-and-principles - acesso em: 12 fev. 2020]. , e aprendizados sobre segurança da informação e vigilância. Também compõem as fontes desta pesquisa uma série de documentos e publicações online que informam as articulações tecnopolíticas e os saberes produzidos por esses grupos. A partir dessas fontes, neste artigo abordaremos discussões relativas a três aspectos distintivos no campo das tecnologias feministas: a proposta de autonomia coletiva, a ativação do imaginário por meio de outras linguagens e narrativas e o tensionamento de uma noção universal de segurança.

É importante notar que as articulações aqui vislumbradas vêm sendo desenhadas de forma mais incisiva na última década, quando a expectativa de autonomia6 6 O debate sobre autonomia digital, internet e tecnologias de informação e comunicação é bastante amplo. No Brasil, esses temas ganharam relevância especial na primeira metade dos anos 2000, vinculados a tópicos como: mÍdia tática, midialivrismo, metareciclagem, cultura hacker, cultura digital, cibercultura. (Bey, 2001; Dimantas, 2010; Rosas, 2007; Silver, 2004; Silveira, 2010). , descentralização e horizontalidade que marcou, em parte, o início do debate sobre a internet e as TICs foi colocada em xeque pelo acirramento da concentração de poder e de processos de vigilância orientados a promover, prioritariamente, novas formas de acumulação por poucas e grandes empresas, e novas formas de controle (Zuboff, 2015ZUBOFF, Shoshana. Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: BRUNO, Fernanda; CARDOSO, Bruno; KANASHIRO, Marta (org.). Tecnopolíticas da vigilância, perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2015, pp.17-68.; Lyon, 2015LYON, David. Surveillance After Snowden. Cambridge, Polity Press, 2015.). Defilippi e Tréguer (2015), por exemplo, apontam que o movimento de redes autônomas procura o resgate de um modelo no qual a comunicação se daria entre pares, de forma descentralizada, sem hierarquias e sob controle dos usuários. O movimento feminista de redes e infraestruturas autônomas, alcançado neste artigo, surge assim na contramão desses processos de concentração de poder e vigilância, visando também a reapropriação e reconfiguração das possibilidades de uma comunicação emancipadora.

2. Tessituras em processo

O relatório Latin America in a Glimpse – Gênero, feminismo e internet na América Latina (2017), organizado pela Derechos Digitales7 7 A Derechos Digitales é uma organização de alcance latino-americano, independente e sem fins lucrativos, fundada em 2005 e cujo objetivo fundamental é o desenvolvimento, defesa e promoção dos direitos humanos no ambiente digital. https://www.derechosdigitales.org/ e a Association for Progressive Communication8 8 APC é uma associação internacional sem fins lucrativos engajada na promoção de infraestruturas de comunicação a grupos e indivíduos que trabalham em prol da mudança social em temas como paz, direitos humanos, proteção do meio ambiente e sustentabilidade e o intercâmbio de conhecimentos entre eles. (APC), contribuiu para o mapeamento das principais organizações e coletivas feministas que pautam as interlocuções entre gênero, direitos humanos e tecnologias na região e que estão presentes neste artigo. O relatório reuniu cerca de 30 iniciativas latino-americanas de diferentes naturezas, entre coletivas, projetos, eventos e pesquisas que vêm articulando uma visão crítica sobre as TICs a uma agenda de defesa da igualdade entre gêneros:

O que encontramos foi uma comunidade altamente ativa de organizações e ‘coletivas’ que abarca praticamente todo o espectro de nós9 9 Quando nos referimos às redes digitais de comunicação, cada “nó” designa um ponto de conexão ou redistribuição que envia, recebe ou transmite informações e dados, normalmente associado a um equipamento ou dispositivo eletrônico como servidores, roteadores, computadores, modem, hub, switch, entre outros. Ou seja, trata-se de uma estrutura física que define cada ponto conectado que forma a arquitetura da rede. Neste artigo, ao adotarmos uma concepção de redes que não estabelece a separação humano-máquina, consideramos que os nós também compreendem as pessoas e coletivas que constroem as conexões. nos entornos digitais, desde a criação de ‘servidoras’ feministas, até a ocupação discursiva da internet através de meios autogestionados. Mulheres que decidiram perder o medo do erro e descobriram o prazer da aprendizagem, experimentação e sororidade (Derechos Digitales, 2017:4).

Com relação às infraestruturas feministas, o relatório descreve mais detidamente iniciativas no Brasil, Argentina e México. VEDETAS e CL4NDESTINA, por exemplo, são dois projetos brasileiros mencionados. VEDETAS tem como proposta promover espaços físicos e digitais exclusivos para mulheres visando o aprendizado e intercâmbio de conhecimentos sobre tecnologias, associados ao desenvolvimento de infraestruturas de redes e servidoras. CL4NDESTINA é uma servidora ativista feminista que oferece hospedagem para sites de coletivas, organizações e movimentos sociais feministas baseados na América Latina. KÉFIR10 10 O projeto KÉFIR foi descontinuado em 2019, enquanto este artigo ainda estava em construção. No entanto, decidimos manter a menção ao projeto, considerando a importância que representou na região, seja pelos debates e articulações que estabeleceu em torno da noção de infraestruturas feministas e especialmente pelas conexões e criações conjuntas desenvolvidas com as demais coletivas mencionadas ao longo do texto. , por sua vez, é um projeto situado na Argentina e no México e se define como uma “cooperativa transfeminista de tecnologias livres”, cuja aposta está no desenvolvimento de comunidades digitais enquanto um “ecossistema” para o desenvolvimento e aprendizagem de ferramentas para comunicação online, tecnologias livres, desenvolvimento web e segurança digital.

Ainda no escopo da pesquisa documental11 11 As coletivas com as quais tivemos contato no trabalho de campo são formadas por mulheres e pessoas trans e não binárias e buscam estabelecer processos de tomada de decisão mais horizontais que modelos hierárquicos tradicionais. São iniciativas variadas e com focos distintos. Neste artigo, considerando questões de segurança e uma breve avaliação de risco diante dos crescentes ataques conservadores no Brasil e outros países da América Latina, optamos por apresentar esses grupos a partir de uma pesquisa documental, compartilhando apenas informações que as próprias coletivas elegeram publicizar. , a APC12 12 Especialmente o site da APC https://genderit.org/, que reúne produções feministas sobre tecnologias. emergiu como uma fonte de informação importante, ao reunir formulações sobre como infraestruturas feministas, redes autônomas e comunitárias estão sendo construídas por mulheres na América Latina, entre outras iniciativas do sul global. Em um podcast que reuniu integrantes dos grupos MARIALAB/VEDETAS, PERIFÉRICAS13 13 PERIFÉRICAS é uma coletiva transfeminista em Salvador - Bahia (Brasil) que desenvolve projetos sociais que promovem a educação de hackers em grupos de pessoas que não tem acesso às tecnologias digitais. e KÉFIR é possível notar como a intersecção desses temas abriga para as coletivas um caráter singular de empoderamento e participação:

Feminista – Autônoma – Infra-estrutura – cada palavra pode deixá-lo perplexo separadamente, e quando você as coloca juntas, parece muita coisa. Mas oferece uma possibilidade brilhante de refazer as políticas de construção de redes comunitárias, de ser nós distribuídos e descentralizados de poder e permitir que as pessoas sejam servidores no verdadeiro sentido, isto é, permitir que criem e sirvam seu próprio conteúdo14 14 https://www.genderit.org/articles/feminist-autonomous-infrastructure-technomagical-fires-warm-your-hearts Último acesso em 10 de novembro de 2020 .

As experiências aqui mobilizadas parecem propor um passo adiante, uma vez que, ao tensionar as normas naturalizadas nesse campo, também trazem a proposta de criação de tecnologias por e para esses grupos sociais, buscando fortalecer mutuamente tecnologias e ações políticas daqueles que escapam às normas hegemônicas. Nas formulações conjuntas de VEDETAS, KÉFIR e PERIFÉRICAS no site Rede Autônoma Feminista15 15 http://redeautonomafeminista.org/ , essa proposta transformadora é expressa da seguinte forma:

Uma das definições de tecnologia feminista é a aplicação de conhecimentos da ciência para apoiar a causa feminista, sendo que esses conhecimentos são desenvolvidos e mantidos por mulheres que desafiam o status do sistema patriarcal normativo, propondo novas formas de politizar o debate sobre tecnologia e seus usos. É uma tecnologia política, constituída através da autonomia da mulher.

A proposta também aparece na apresentação das servidoras autônomas feministas do grupo CL4NDESTINA16 16 https://clandestina.io :

O lugar das tecnologias digitais (e tantos outros) vem sendo negado às mulheres e às diversidades sexuais, mas nós resistimos, e resistiremos, criamos nossas próprias redes online e offline para seguirmos juntas ocupando todos os espaços.

É importante notar ainda que neste campo a invisibilidade das infraestruturas tecnológicas é aproximada à invisibilidade do trabalho, das relações e ainda das desigualdades associadas aos corpos e os problemas específicos que certos grupos sociais enfrentam. É um chamado pelo reconhecimento de materialidades – das infraestruturas e dos corpos – acompanhado de uma elaboração política a partir do feminismo interseccional17 17 A professora de direito norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw (2002), ao se debruçar sobre uma teoria crítica de raça, conceitua a interseccionalidade ao apontar como a materialização de sistemas de diferença prejudicava o acesso de mulheres negras a direitos civis e humanos, impondo limites e riscos estruturais. A autora advoga que a experiência de mulheres negras não pode ser capturada nem só pela perspectiva de raça, nem só pela de gêneros sem que se incorra em um apagamento. Ou seja, desde uma perspectiva interseccional é preciso a combinação para abordar as múltiplas exclusões ou privilégios estruturais que atravessam sujeitos e grupos que não podem ser reduzidos a apenas uma lente. O reconhecimento das diferenças é associado ainda a um movimento em busca de transformações, conforme aponta Patricia Hill Collins (2017:12), que ressalta que Crenshaw “está claramente defendendo a interseccionalidade como uma construção de justiça social, e não como uma teoria da verdade desvinculada das preocupações de justiça social. Ao fazer uma revisão da ampla literatura produzida nesse campo, Piscitelli (2009) aponta que no feminismo interseccional a prática política das mulheres é localizada e pensada a partir de intersecções: “nas suas reformulações, o conceito de gênero requer pensar não apenas nas distinções entre homens e mulheres, entre masculino e feminino, mas em como as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na articulação com outras diferenças de raça, classe social, nacionalidade, idade; e como essas noções se embaralham e misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que, como intersexos, travestis e transexuais, não se deixam classificar de maneira linear como apenas homens ou mulheres”. .

Essa perspectiva feminista, mais do que um discurso de inclusão de mulheres na tecnologia, faz ver as múltiplas camadas de desigualdade e exclusão geradas pelo modelo dominante, incluindo também uma discussão a respeito de diferenças de classe, raça, sexualidade, nacionalidade e naturalidade, conjugados às questões de gênero. Desse modo, além de repensar os modelos hegemônicos que conformam a rede, sob a ótica das tecnologias feministas estabelece-se também uma crítica e reflexão sobre o próprio movimento de infraestruturas e redes autônomas, tensionando as incongruências de um modelo que se pretende livre, mas, muitas vezes, continua a reproduzir uma lógica universalizante, patriarcal e hierarquizada.

A partir do contato com bibliografias, documentos e práticas no percurso de pesquisa, uma das primeiras compreensões sobre as tecnologias feministas é que havia nelas uma proposta de ampliação da noção de infraestruturas sociotécnicas para incorporar categorias feministas, como as noções de consentimento, escuta, cuidado e autonomia. Também de ampliação no sentido de abranger os pactos, espaços, as pessoas e relações e se conectar com processos de aprendizagem e de criação.

Este movimento de expansão está presente no manifesto digital #Do aço à pele18 18 Disponível em: <https://fermentos.kefir.red/brasileiro/aco-pele/>. Acesso em: 25 de setembro de 2018. , redigido a quatro mãos numa colaboração entre ativistas do Brasil e México, assinado por “Nanda de VEDETAS, servidora transhackfeminista do Brasil e Nadège da cooperativa feminista de tecnologias livres KÉFIR”, em que as autoras apontam que a “materialidade eletrônica pode ser um portal para o aprendizado e para a transgressão”. Está presente também na definição de Sophie Toupin e Alexandra Hache de um modo mais amplo:

Um dos principais elementos constitutivos das infraestruturas feministas autônomas está no conceito de auto-organização já praticado por muitos movimentos sociais que entendem a questão da autonomia como um desejo por liberdade, auto-valorização e ajuda mútua. Além disso, entendemos o termo infraestrutura tecnológica de forma expansiva, englobando hardware, software e aplicativos, mas também design participativo, espaços seguros e solidariedades sociais (Toupin S., Hache, A, 2015:23).

Essa perspectiva de infraestrutura, apontam as autoras, passa pela criação de espaços físicos seguros que permitam às mulheres, pessoas trans e não binárias se reunirem e o desejo de instaurar processos de aprendizado conjunto. Exemplo disso é a acolhida de mães e crianças em atividades realizadas pelas coletivas, considerando que esta é uma maneira de incluir essas mulheres em suas especificidades e vivências. Também é parte dessa abordagem, a criação de servidoras feministas19 19 Disponível em: https://giswatch.org/sites/default/files/gw2015-hache.pdf. Acesso em: 04 de dezembro de 2018. ,como mostram as experiências realizadas pelas VEDETAS, CL4NDESTINAS e KÉFIR.

Ao mesmo tempo em que propõem uma expansão, as infraestruturas feministas também apontam a importância de voltar o olhar para o local e romper com universalizações, mantendo os conceitos abertos a experiências situadas, alianças e ao compartilhamento de saberes e técnicas. Essas infraestruturas indicam a necessidade de construção de espaços – on-line e off-line – livres de ataques, onde a liberdade de expressão de mulheres, populações negras e pessoas LGBTQIA+, entre outras, deve ser garantida.

Ao acrescentar a palavra feministas às infraestruturas e propor a perspectiva interseccional ou de solidariedades sociais, esses grupos colocam a não neutralidade das tecnologias e dos aparatos que servem ao funcionamento da internet em primeiro plano. Ao mesmo tempo, frisam que a maior parte das escolhas e relações tecnopolíticas por trás desses aparatos não atendem às necessidades de grupos que são atingidos pelas desigualdades estruturais, como as de gênero, raça, etnia e classe. Ou seja, acrescentar essa palavra se torna uma forma não só de apontar a política por trás das tecnologias e infraestruturas, mas ao mesmo tempo, indicar a quem sua suposta neutralidade vem servindo, afirmando que não são as mulheres, muito menos os grupos que são atravessados por múltiplas desigualdades no sentido apontado pela perspectiva interseccional. Classificar essas tecnologias como feministas enuncia ainda que a perspectiva política adotada neste campo será engajada com uma agenda de transformações e direitos sociais. Outro ponto que aparece conectado, nesse sentido, é uma proposta de alianças na diversidade, considerando que essas alianças não sejam só de resistência, mas também de criação – no sentido de ativar novos paradigmas e experimentações que transcendam estruturas de pensamento, práticas e relações que reproduzam a hierarquização característica das perspectivas colonialista, capitalista, androcêntrica e ocidental (Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp7-41 [http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1065_926_hARAWAY.pdf - acesso em: 12 de fevereiro de 2019].
http://www.clam.org.br/bibliotecadigital...
, 2004HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: a politica sexual de uma palavra. cadernos pagu (22). Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2004, pp.201-246 [https://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09.pdf - acesso em: 12 de fevereiro de 2019].
https://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09...
; Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte-MG, Letramento, 2017.).

3. Sentidos e direções das tecnologias feministas

Alguns aspectos das práticas e experimentações em torno das redes e infraestruturas nos ajudam a compreender e caracterizar a proposta formulada para as tecnologias feministas conduzidas pelas coletivas com as quais tivemos contato. Indicamos três categorias fundamentais - autonomia, linguagem e segurança - que alicerçam a noção de tecnologia feminista e sob as quais pudemos observar os principais pontos de embate com uma noção mais generalizada sobre redes autônomas e infraestruturas.

O projeto autonomista20 20 A expressão “projeto autonomista” vincula-se neste texto às reivindicações de autonomia tecnológica presentes entre as ativistas que compuseram essa pesquisa. Neste universo, é amplo o debate sobre as tensões entre autonomia e soberania tecnológica. Ainda que explorar essas questões fuja ao escopo deste artigo, vale mencionar que não se deve compreender aqui a autonomia como alternativa à soberania tecnológica. Neste sentido, as autoras deste texto entendem que o Estado deve possibilitar e incentivar a tecnologia nacional, especialmente, quando se trata de países em desenvolvimento. Parte do embate entre autonomia e soberania se deve à recusa da regulação e atuação do Estado, como uma das inúmeras facetas da cultura digital. Dentre as muitas vertentes neste cenário, há aquela que vincula a perspectiva de colaboração em rede e autonomia tecnológica (dentre muitos outros aspectos) à ideais libertários conectados ao empreendedorismo, à tecnofilia, e às propostas neoliberais que dominam o Vale do Silício (Barbrook, Cameron, 1995; Coleman, Golub, 2008; Evangelista, 2011; Pessoa, 2017). Este não é o sentido que sobressai nas experiências ativistas aqui apresentadas, que também pode ser conferido na percepção de Bravo (2017) exposta adiante neste texto. foi considerado para muitas autoras e ativistas como aspecto fundamental do que constitui a identidade do movimento feminista latino-americano, principalmente se considerarmos que a ascensão destes movimentos se dá em meio à ditadura militar que se instalou em inúmeros países da região na década de 70 (Alvarez, 2014ALVAREZ, Sonia. Engajamentos ambivalentes, efeitos paradoxais: movimentos feminista e de mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Revista Feminismos (1), Salvador-BA , 2014(a), pp.57-77.). O ativismo feminista contemporâneo, especialmente entre a parcela do movimento que habitualmente tem sido denominada de feminismos jovens (Facchini e França, 2011FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Apresentação Dossiê̂: feminismos jovens. cadernos pagu (36), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.9-24.; Alvarez, 2014ALVAREZ, Sonia. Engajamentos ambivalentes, efeitos paradoxais: movimentos feminista e de mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Revista Feminismos (1), Salvador-BA , 2014(a), pp.57-77.), é marcado por noções como descentralizar, autogerir e colaborar em rede, e por um retorno aos ideais do movimento feminista autonomista, porém sob novos significados relacionados aos corpos, às instituições e aos espaços de poder. Alvarez (2014)ALVAREZ, Sonia. Engajamentos ambivalentes, efeitos paradoxais: movimentos feminista e de mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Revista Feminismos (1), Salvador-BA , 2014(a), pp.57-77. correlaciona essa retomada com a pluralização dos feminismos, expandindo os campos heterogêneos e policêntricos que se cruzam com outros movimentos sociais e outras interseccionalidades.

Nesse sentido, para a militância feminista engajada nos saberes e práticas em torno das infraestruturas e redes, a autonomia aparece como uma base importante, que é pensada não de forma individual, mas em termos coletivos e por meio de uma proposta de alianças, como explica o artigo da KÉFIR:

A maneira como cada projeto se percebe como “autônomo” oscila: eles não recebem financiamento; são dirigidos por ativistas; abarcam conteúdos que denunciam a corrupção e também o sexismo, o racismo, a transhomofobia… No entanto, uma infraestrutura autônoma não para por aí. Implica na virada de um modelo usuário/especialista em "segurança digital" para processos coletivos, orgânicos e adhocráticos; tecer comunidades entre o ferro do servidor e construir alianças com companheiras na mesma trincheira; semear conscientização sobre problemas (as políticas estão em constante mutação); moldar as paisagens da internet; repensar/elaborar nossas noções sobre trabalho e o administrador de sistemas.21 21 Disponível em <https://fermentos.kefir.red/ddow/>. Acesso em 21 de janeiro de 2019.

Essa perspectiva de autonomia coletiva é baseada numa ideia de corresponsabilidade e ajuda a extrapolar a divisão humano/máquina, reforçando que também é parte das infraestruturas o trabalho, a energia e criação humanas. Em outra coluna de diálogo entre a APC e a cooperativa KÉFIR o trabalho de pessoas que permeia o desenho e o funcionamento das infraestruturas é colocado em primeiro plano por Nadège:

Você não apenas configura uma máquina e é isso. É investigação, manutenção, criação, desenvolvimento de conteúdo, advocacy, conscientização, estar em diferentes tipos de espaços, cruzando lutas e ativismos, dando suporte... É um processo contínuo22 22 Disponível em <https://www.genderit.org/articles/ongoing-conversation-feminist-autonomous-infrastructure-erika-smith-and-kéfir>. Acesso em 15 de janeiro de 2019. .

Ao indagar escolhas, ativar outras linguagens, narrativas e memórias e propor processos mais interdependentes e coletivos, as infraestruturas feministas apresentam uma proposta forte de descolonização do imaginário, ao fazer um chamado para pensarmos coletivamente as tecnologias que queremos, feitas por nós e para nós desde contextos específicos, mesmo que conscientes de que, na prática, contradições e negociações coexistirão e que a própria expectativa de ‘pureza’ deve ser evitada.

A proposta de constituição de redes autônomas e comunitárias com infraestruturas feministas, nesse sentido, está distante de um campo romantizado, de solução pronta ou de um caminho para alcançar a autonomia ou descentralização total – pelo contrário, não invisibilizar as contradições e problemas é também um aspecto importante.

A proposta, assim, não é buscar na tecnologia uma solução para desigualdades estruturais e históricas por design, mas promover o encontro e a troca entre diferentes conhecimentos para ativar a experimentação, passível de erros e de limites, e a busca por novos possíveis23 23 “Stengers e Pignarre chamam de ‘alternativas infernais’ o “conjunto de situações que parecem não deixar outra escolha senão a resignação”, por um lado, ou conduz, por outro lado, a realização de uma “denúncia sonora”, que é impotente na medida que conclui de forma genérica que “todo o ‘sistema’ que tem que ser destruído”, paralisando também a ação (Pignarre; Stengers, 2011:24). A noção de alternativas infernais, assim, carrega a hipótese de que o modo de funcionamento do capitalismo pressupõe um sufocamento da ação política e que sua perpetuação é sustentada pela limitação das alternativas possíveis e pela imposição de falsas escolhas que levam a uma narrativa de sacrifícios necessários e de resignação” (Prado, Araujo, Kanashiro, 2020). . A ideia de autonomia, nesse sentido, é mobilizada não como uma expectativa de ruptura total em relação a atores e processos hegemônicos, nem pensada de forma individual, mas proposta como uma construção que acontece de forma coletiva.

A ativista feminista Loreto Bravo (2017), ao escrever sobre redes de telefonia celular autônomas e comunitárias dos povos originários de Oaxaca24 24 Disponível em <https://www.ritimo.org/IMG/pdf/sobtech2-en-with-covers-web-150dpi-2018-01-10.pdf>. Acesso em 20 de janeiro de 2019. , propõe uma ponte ético-política entre a comunidade hacker e as comunidades locais para avançar de uma concepção de soberania tecnológica para conceitos de autonomia e autodeterminação que também aciona coletividades. A principal ruptura aqui seria não pensar nem nos moldes da soberania associada ao desenvolvimento dos Estados-nações, considerando seu papel no processo de colonização, nem pensar em termos das liberdades individuais, numa tradição mais liberal, mas deixar o fluxo aberto para a significação local e para abordagens mais coletivas. Nesse sentido, além da coletividade e interdependência, a territorialização e a contextualização local também são constitutivas da noção de autonomia.

Como mencionamos anteriormente, as experiências feministas em torno das redes e infraestruturas autônomas não são as únicas que podem ativar novos possíveis. A experiência dos povos de Oaxaca resgatada por Loreto Bravo ou, no Brasil, da rede Mocambos25 25 Projetada e desenvolvida pela Rede Mocambos, uma colaboração entre quilombos brasileiros, a Baobáxia é uma rede que funciona com ou sem a internet e que carrega um repositório multimídia. Sobre a Rede Mocambos ver Tozzi, Vicenzo (2010): Redes federadas eventualmente conectadas. Arquitetura e protótipo para a rede Mocambos [https://livrozilla.com/doc/326548/redes-federadas-eventualmente-conectadas - acesso em 20/11/2018]. , uma colaboração entre quilombos, que, entre suas ações, mantém a Baobáxia26 26 Sobre a Baobáxia, consultar: http://www.mocambos.net/tambor/pt/baobaxia, http://media.mocambos.net/baobaxia/doc/Apresentacao/#/7 e https://wiki.mocambos.net/index.php/NPDD/Baobáxia , um “repositório multimídia projetado para operar em comunidades rurais com nenhuma ou pouca internet”, mostram a potência de outros encontros com redes e infraestruturas autônomas que não partem dos feminismos.

Nesse sentido, argumentamos aqui que a auto-organização e autonomia já praticadas de diferentes maneiras por muitos movimentos sociais podem ser ativadas para dar novos contornos ao debate e às práticas tecnopolíticas no campo das redes autônomas e comunitárias. Há aqui uma aposta na potência de ações que conectem diferentes agendas políticas e que ativem a construção de conhecimentos e tecnologias a partir de outros lugares, incluindo aqueles que sofrem força de marginalização e apagamento justamente por, ao existirem, carregar a capacidade de criar novos possíveis.

Nesse movimento de abrir o imaginário e as práticas sociotécnicas, outra infraestrutura hackeada nas experiências feministas é a linguagem. Um dos primeiros aspectos observados, logo nos primeiros encontros que tivemos com estes grupos em nossas pesquisas, em particular nos minicursos promovidos pelas VEDETAS, foi o tensionamento da norma gramatical e os vieses de gênero que ela implica. Termos como ‘servidoras’ e ‘roteadoras’ são usados na conjugação feminina, uma forma de questionar a noção de que o campo de infraestruturas técnicas seria um setor de domínio masculino – ou seja, é uma forma também de não limitar o imaginário coletivo e nossas próprias noções pelos conceitos que a linguagem molda, ou mais além, um modo a “desenfeitiçar” as máquinas.

O esforço de tradução e associação com termos em português ou espanhol é outro trabalho em progresso, assim como a elaboração de manuais e cartilhas autorais, inteiramente na língua materna. Tradicionalmente, os materiais técnicos disponíveis estão em língua inglesa. Reconhecer o impedimento que o idioma muitas vezes acarreta denota uma compreensão de que a exclusão acontece por múltiplas desigualdades.

Nesse sentido, um princípio importante que experiências como a parceria entre VEDETAS, PERIFÉRICAS e KÉFIR apontam é a importância de ativar narrativas locais, o que passa pela linguagem, pelos nomes e por uma reivindicação da memória, sobretudo de resgatar saberes e práticas de mulheres e de grupos que, muitas vezes, sofrem uma força de silenciamento em dinâmicas que tentam impor a inexorabilidade de futuros.

Além da flexão no feminino, nas configurações de rede, por exemplo, os nomes dos dispositivos também eram pensados para representar mulheres nos módulos do laboratório VEDETAS. O próprio nome VEDETAS resgata uma história, que é sempre apresentada nos momentos coletivos como os minicursos:

Vedeta é o nome de estruturas tipo casinhas que ficavam nas praias, de onde era feita a vigilância da costa. Durante a Guerra de Independência da Bahia, no início do século XIX, uma negra ex-escrava chamada Maria Felipa tomou a Ilha de Itaparica de assalto. Durante algumas semanas, sua tropa feminina esteve em vigília nessas casinhas, derrubando embarcações portuguesas. As mulheres da tropa ficaram conhecidas como vedetas, e são bem populares no imaginário popular de Itaparica, associadas ao canto de capoeira Maria Doze Homens. Maria seria a Maria Felipa, que teria derrubado 12 homens de uma vez27 27 Disponível em https://vedetas.org/. Acesso em: 10 de dezembro de 2018. .

Do mesmo modo, os serviços disponibilizados pela Servidora VEDETAS recebem nomes de mulheres consideradas pioneiras em suas áreas de atuação. O etherpad, plataforma para edição de textos que pode ser utilizado simultaneamente por diversas pessoas, recebeu o nome de Antonieta, em homenagem a Antonieta de Barros, primeira mulher negra parlamentar no Brasil em 1934. O ethercalc, planilha editável colaborativamente, recebeu o nome de Eveliyn, cientista formada em matemática em 1945 e que foi uma das pioneiras entre as mulheres negras que trabalharam na IBM e na NASA.

Outro ponto que chama atenção no encontro entre linguagem e ativação de memórias e narrativas territorializadas é o uso frequente de metáforas, buscando com elas aproximar as tecnologias digitais de referências do cotidiano das comunidades, inclusive das mulheres das comunidades. Também de referências de atividades muitas vezes tidas socialmente como ‘femininas’, de menos valor e do âmbito do privado, buscando valorizar essas experiências e conhecimentos, como a costura, receitas, entre outras.

A proposta aqui é a de ativar outras formas de redes e tecnologias que operam localmente e que não são necessariamente digitais para tentar construir uma ponte entre diferentes saberes. Exemplo desta aproximação é a Fuxico28 28 https://fuxico.org/. Acesso em 30 de janeiro de 2019. , dispositivo móvel e autônomo, que cria uma rede sem fio desconectada da Internet, com o objetivo de compartilhar conteúdo digital em rede local e de forma completamente anônima (Zanolli et al, 2018). Criada a partir de uma remixagem do projeto de software livre Piratebox29 29 http://piratebox.cc. Acesso em 20 de fevereiro de 2019. (caixa-pirata), a Fuxico estabelece uma ressignificação deste dispositivo ao substituir a identidade visual e o nome caixa-pirata pela imagem de um fuxico, técnica artesanal com retalhos de tecido, datada do período colonial, muito comum no interior do nordeste brasileiro. Cada trouxinha de tecido é costurada a muitas outras para a confecção de peças de vestuário e decoração, em uma prática realizada por mulheres que se reúnem em torno desse fazer para um espaço de troca e conversa. Ao fazer esta associação, a Fuxico quer acionar o sentido do compartilhamento de saberes entre mulheres em um espaço íntimo e seguro como objetivo principal do projeto.

Os conceitos expressados aqui se aproximam das reflexões trazidas por Maffia (2005)MAFFIA, Diana. Epistemología Feminista: por una inclusión de lo femenino en la ciencia. In: GRAF, Norma Blazquez; FLORES, Javier (ed.). Ciencia, tecnología y género en Iberoamérica. México DF: Universidad Autónoma de México – Plaza y Valdés, 2005, pp. 623-633., que, ao formular sua crítica às ciências hegemônicas, revela que a produção de ‘verdades’ é baseada em falsas noções de objetividade e neutralidade, que requisitam o uso de linguagem literal e a exclusão da emoção, considerando, assim, que as metáforas, longe de ter valor para o conhecimento, criam obstáculos para o sentido. A vivência dos minicursos VEDETAS, por exemplo, é exatamente a oposta, as metáforas são valorizadas e, muitas vezes, aperfeiçoadas pelas participantes, que propõem outras mais eficientes ou formulam suas próprias comparações para testar um conhecimento apreendido ou conectá-lo com um conhecimento anterior. A verdade aqui aparece, portanto, no sentido proposto por Maffia (2005)MAFFIA, Diana. Epistemología Feminista: por una inclusión de lo femenino en la ciencia. In: GRAF, Norma Blazquez; FLORES, Javier (ed.). Ciencia, tecnología y género en Iberoamérica. México DF: Universidad Autónoma de México – Plaza y Valdés, 2005, pp. 623-633., de que será verdadeiro aquilo que for legitimado por diferentes perspectivas, sendo, portanto, um sentido que não é acabado, mas que pode ser renegociado.

Diante dos processos de vigilância e concentração de poder e das violências discriminatórias que atravessam a Internet, em muitos espaços sobre tecnologias livres e redes autônomas e comunitárias passou a ser realizado em paralelo o debate sobre o fortalecimento de medidas de segurança. Os temas muitas vezes se fundem e a autonomia se torna condição necessária para a segurança. Nesse sentido, as tecnologias feministas lembram que as medidas de segurança também não são universais e que a construção de espaços seguros passa por uma combinação de subjetividades, corresponsabilidades e cuidado mútuo.

A Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista30 30 A Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista reúne informações sobre alguns casos de ataques sofridos por mulheres e traz exemplos de medidas de segurança que podem ser pensadas em cada caso. Ela é um dos conteúdos incorporados por padrão na biblioteca da Fuxico . Acesso em: 06 de dezembro de 2018 , desenvolvidas por mulheres ativistas aponta:

Somos pessoas diferentes, estamos em contextos diferentes e as possibilidades de estarmos em uma situação de perigo, seja on-line ou não, são múltiplas. Por isto, antes de entrar na paranoia, sabendo de todas as possíveis vulnerabilidades que enfrentamos na nossa vida, é essencial analisarmos as ameaças que são específicas do nosso contexto31 31 Disponível em: <http://feminismo.org.br/guia/guia-pratica-seguranca-cfemea.pdf>. Acesso em: 06 de dezembro de 2018. .

Enquanto alguns grupos podem se preocupar, especialmente, com a vigilância de aparatos de repressão do governo, como feministas que lidam com a questão do aborto no Brasil; outras podem estar sob risco a partir do conflito de grandes interesses econômicos, como acontece com algumas comunidades impactadas por mineradoras, por exemplo. Outros grupos ainda podem estar sob risco de ataque de seus pares, como mulheres que sofrem violências na rede e fora dela de parceiros ou ex-parceiros ou de pessoas de sua convivência que carregam valores misóginos, LGBTQIA+fóbicos ou racistas, por exemplo. Os ataques podem ser direcionados ainda a propagar o discurso de ódio numa tentativa de promover a autocensura e silenciar vozes diversas. É preciso considerar, enfim, que mesmo num pequeno grupo, respostas para perguntas como – o que faz você se sentir seguro ou inseguro? – podem variar muitíssimo e que as medidas de segurança devem ser contextualizadas.

Com isso, a segurança não é pensada numa camada de ferramentas e ações individuais a serem acionadas no uso de determinadas tecnologias, mas atrelada a uma construção coletiva, que passa pela prática do cuidado mútuo e pela construção e desconstrução do que é coletivamente considerado aceitável ou não. Também por um compromisso de compartilhamento de saberes que possam ajudar a informar decisões, considerando possibilidades e limites em contextos específicos, sem acionar narrativas generalizadas sobre perigos inevitáveis que podem conduzir ao medo, considerando que preservar o bem-estar das pessoas envolvidas numa experiência compartilhada é também uma medida de segurança, pensada de forma mais ampla, e de autocuidado coletivo.

Outro dispositivo acionado nesse sentido é a criação de espaços seguros – os encontros exclusivos para determinados grupos sociais, como só mulheres ou só de mulheres negras. Nas oficinas das VEDETAS, por exemplo, buscando criar um ambiente de fala seguro, homens cis não podem participar. Em eventos mistos, nos quais há algum espaço dedicado à discussão de gênero, como o Espaço Ada na Cryptorave32 32 A Cryptorave é um evento com duração de 24 horas, realizado anualmente desde 2014 e organizado de forma voluntária e colaborativa por coletivos ativistas sediados no Estado de São Paulo. É inspirada na Cryptoparty, uma iniciativa global e descentralizada para a realização de eventos que discutem a vigilância e a segurança na rede e introduzem noções básicas de criptografia. Em 2015, a Cryptorave passou a concentrar as atividades que continham a discussão sobre gênero no espaço denominado Ada Lovelace, em homenagem à matemática britânica da primeira metade do século XIX, considerada como a primeira programadora da história. A Coletiva Hackerfeminista MariaLab foi uma das precursoras na organização das atividades programadas para o Espaço Ada. Atualmente, os debates sobre gênero estão mais disseminados nas diversas trilhas da Cryptorave e inclui também um espaço em homenagem a Chelsea Manning. , ainda que não seja possível limitar a presença de homens cisgênero, busca-se priorizar o lugar de fala das mulheres na coordenação das atividades, o que por vezes gerou conflitos quando essa premissa não foi observada.

Quando consideramos que as universalizações que atravessam lugares de fala como a branquitude e a cis-heteronormatividade podem fomentar a sensação de que certos espaços não devem ser ocupados por mulheres, pessoas trans e negras, por exemplo, os espaços exclusivos acabam sendo extremamente importantes para, por alguns momentos, remover fisicamente algumas camadas de hierarquização. Os recortes raciais e socioeconômicos aplicados na constituição destes espaços seguros são algumas práticas que refletem a posição interseccional assumida pelas coletivas. Critérios como a autodeclaração de raça/cor, o local de residência e as condições econômicas das participantes são levados em conta no momento de inscrição e seleção para oficinas e cursos realizados pela MariaLab, seja dentro do projeto VEDETAS ou fora dele.

Eles, porém, não podem ser olhados como uma prática isolada, sob o risco de serem percebidos equivocadamente como uma forma de segregação, quando se desenham como um esforço de prática de autocuidado e de condição de trânsito.

Também se tornam espaços em que os conhecimentos sobre tecnologias podem ser desenvolvidos a partir de um compromisso de ruptura com formas hierárquicas e meritocráticas, como constata a pesquisadora norte-americana Laura Forlano (2017)FORLANO, Laura. Infrastructuring as critical feminist technoscientific practice. Spheres (3), 2017 [http://spheres-journal.org/infrastructuring-as-critical-feminist-technoscientific-practice/ - acesso em: 06 de abril de 2019].
http://spheres-journal.org/infrastructur...
:

Uma abordagem feminista da infraestrutura, como prática tecnocientífica crítica, enfatiza as preocupações com a justiça social, remedia essa distância, integrando aspirações e ideais às ações. Essa capacidade de navegar e construir relacionamentos que transgridem limites epistemológicos em torno da expertise tecnológica é particularmente importante porque abre a possibilidade de fluxos alternativos de conhecimento. Uma abordagem feminista do hacking e do making não se apega a ideias ingênuas sobre a meritocracia. Pelo contrário, reconhece a desigualdade estrutural que torna a participação possível para alguns e impossível para outros. O design, incluindo o desenho de sistemas e infraestruturas sociotécnicas, pode ser usado tanto para desafiar a opressão como para a injustiça, bem como para gerar futuros alternativos possíveis mais equitativos (Forlano, 2017FORLANO, Laura. Infrastructuring as critical feminist technoscientific practice. Spheres (3), 2017 [http://spheres-journal.org/infrastructuring-as-critical-feminist-technoscientific-practice/ - acesso em: 06 de abril de 2019].
http://spheres-journal.org/infrastructur...
:3).33 33 Disponível em: http://spheres-journal.org/infrastructuring-as-critical-feminist-technoscientific-practice/. Acesso em: 12 de dezembro de 2018.

Nas experiências acompanhadas, os espaços seguros, o acolhimento e a perspectiva de cuidado mútuo se mostraram bastante importantes para que determinados corpos pudessem sair fortalecidos e assim atuar sobre as desigualdades presentes também em outras relações e experiências coletivas que vivenciam. O que pode resultar na permeabilidade e transposição de alguns acordos para os locais de interação coletiva. Como um exemplo disso, mencionamos o caso da Cryptorave, que desde sua primeira edição em 2014, instituiu uma política antiassédio em atenção aos temas de privacidade e segurança que norteiam o evento, e também como forma de se posicionarem publicamente contra casos de assédio sexual ou moral, racismo, homofobia e transfobia ou qualquer outra forma de discriminação34 34 Disponível em <https://we.riseup.net/cryptorave/politica-anti-assedio>. Acesso em 06 de julho de 2019. .

De outro lado, tais discussões a respeito da segurança colaboram para o reconhecimento da dimensão de gênero, numa perspectiva interseccional, imbricada nas violências online e a nomeação dessas violações, respaldando também o debate na esfera jurídica e de defesa dos direitos humanos. As contribuições destas coletivas têm resultado na formulação de documentos públicos (Coding Rights; InternetLab, 2017) que pautam a agenda internacional em torno do tema.

O ativismo voltado para questões relativas à privacidade e segurança na utilização da internet e das TICs é marcado por um lado, pela busca de soluções tecnológicas (para anonimato, por exemplo) ou pela modificação das formas de uso, construção e apropriação das TICs, e, por outro lado, por uma atuação mais voltada para regulamentação, governança e advocacy. De forma geral, os grupos que se voltam para esses temas mesclam esses aspectos, mas atuam de forma cotidiana e mais incisiva em um deles (Pessoa, 2017PESSOA, Filipe Mattiazzo. O avanço do Capitalismo Informacional e as tecnologias de comunicação: práticas de contra-vigilância de coletivos e grupos brasileiros. Monografia, Ciências Sociais, Unicamp, 2017.).

As tecnologias como tratadas pelas coletivas abrem espaço a novos aspectos por estabelecerem exatamente uma perspectiva feminista sobre a relação com as TICs. A concepção de segurança não está restrita aos artefatos tecnológicos em si ou a práticas em ambiente online, mas se expande para pensar a segurança desde os espaços de aprendizagem e construção destas tecnologias. Essa não é uma perspectiva comum com coletivos que lidam com privacidade e segurança das TICs, mas uma construção que abarca o ponto de partida de mulheres, pessoas trans e não binárias, suas necessidades singulares, e que altera profundamente esses processos.

As tecnologias feministas e as coletivas têm empenhado, assim, esforços em compartilhar uma cultura de segurança e privacidade e, nesse sentido, estão também engajadas em propostas de formação técnica, na produção de material educativo sobre o tema e no desenvolvimento de artefatos sociotécnicos que têm a segurança da informação, o anonimato e a privacidade como premissas. Ainda que voltem-se para questões relativas a regulamentação, governança e advocacy, e criem alianças nessas direções, as ações mais correntes, dos grupos aqui pesquisados, são aquelas em que o foco incide mais fortemente no compartilhamento de conhecimentos e desenvolvimento de ferramentas e habilidades para que as ativistas comecem a aderir às práticas de segurança, construir novas práticas e ampliar a compreensão sobre as tecnologias de que fazem uso, reconhecendo os interesses políticos e econômicos que as sustentam.

As atividades acompanhadas abordaram estratégias de segurança da informação que vão desde orientações para criar senhas seguras até o entendimento dos metadados, e partem da premissa de que conhecer como funciona a comunicação em rede e os riscos aos quais estão expostas, faz com que as mulheres tenham mais consciência e controle sobre suas ações na rede (Moawad, 2016:7). Contudo, ao considerarem uma perspectiva feminista, o significado de segurança reflete a corporeidade e as contingências impostas aos corpos femininos e não normativos, incluindo as solidariedades sociais que não estão presentes em outros coletivos com temas e ações semelhantes.

4. Considerações finais

O campo das infraestruturas feministas é uma forma de realizar um chamado para que sejamos protagonistas da construção de tecnologias que queremos desde outras perspectivas políticas, alianças, desenfeitiçamentos e interesses. Infraestruturas feministas, portanto, não se definem apenas por materialidades eletrônicas feitas por mulheres, mas carregam o compromisso com um esforço ativo de repensar o espaço, os pactos, a linguagem e as referências, as relações entre pessoas e grupos e mesmo entre humanos e máquinas a partir de outras perspectivas, que resgatem a memória e saberes locais e indaguem universalizações.

Nesse sentido, a intersecção entre infraestruturas feministas e redes autônomas e comunitárias propõe um compromisso em compartilhar saberes, rever práticas, ampliar e visibilizar a ativação tecnológica que vem acontecendo em alianças entre não hegemônicos. Propõe ainda que nossas redes sejam construídas a partir de relações tecnopolíticas mais colaborativas e menos desiguais, em que saberes não sejam hierarquizados, infraestruturas e corpos não sejam invisibilizados e incorporem perspectivas múltiplas.

A partir das experiências das coletivas é possível pensar que as infraestruturas feministas trazem uma reivindicação de materialidade, de heterogeneidade e de proposta de aliança na diversidade entre grupos não hegemônicos que confrontam processos de homogeneização da atividade humana e não humana em bancos de dados digitais e confrontam simultaneamente disputas de poder que atravessam a internet e que também operam fora dela. É importante destacar que a proposta das infraestruturas feministas não é operar apenas na construção de contraposições e resistências, mas também no sentido de resgatar o exercício da utopia, da imaginação e da criação a partir do encontro entre múltiplos grupos e corpos. Mais do que resistências a processos hegemônicos, o que se coloca em perspectiva aqui é a capacidade de insistir em existir, em recusar o apagamento, e em ativar outras vivências e materialidades coletivamente para manter a criação tecnológica aberta ao que não está previsto, não foi programado e calculado ou mesmo para aquilo que já existe em termos de invenção técnica, de saberes e de modos de viver, mas que sofre investidas de invisibilidade.

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  • 1
    Doravente, o termo ‘coletivo’ será utilizado neste artigo como substantivo feminino, tal como ocorre entre alguns grupos de mulheres que informaram nossas pesquisas. ‘Coletivo’ é usado comumente como substantivo masculino para designar novas formas de mobilização e organização de grupos em prol de diversos direitos. A opção das autoras está em consonância com Isabelle Stengers e Philipe Pignare (2011) e busca caminhar junto a essas mulheres e suas palavras como antídotos. O mesmo ocorre com a substituição da palavra servidores por servidoras, e outros termos geralmente utilizados no masculino. Débora Oliveira (2019)OLIVEIRA, Débora Prado. Infraestruturas feministas e atuação política de mulheres em redes autônomas e comunitárias : criar novos possíveis diante da concentração de poder na internet. Dissertação de Mestrado, Divulgação Cientifica e Cultural. Unicamp, 2019 [[http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/335699/1/Oliveira_DeboraPradoDe_M.pdf - acesso em: 12 de março de 2020].
    http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
    observa que utilizar substantivos femininos é um mecanismo adotado pelos grupos pesquisados para apontar a estrutura sexista da nossa linguagem e como ela pode transmitir a ideia de que alguns assuntos são masculinos, como aqueles relacionados às tecnologias.
  • 2
    Considerando o compromisso engajado que assumimos a partir de epistemologias feministas, a partir dos processos de pesquisa, salientamos que Daniela Araújo estudou o movimento feminista na cultura hacker e como resultado desta aproximação passou a integrar o núcleo de organização da MARIALAB em 2017 e Débora Oliveira passou a colaborar em iniciativas da MARIALAB / VEDETAS em São Paulo/SP. Marta Mourão Kanashiro é pesquisadora e ativista na área de tecnologia e vigilância desde 2001, é membra fundadora da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Rede Lavits) e acompanha as atividades de grupos feministas voltados aos temas da rede, como é o caso da coletiva MARIALAB dentre outras.
  • 3
    Servidor é um software ou computador que fornece serviços de armazenamento e compartilhamento de dados e arquivos para uma rede de computadores. Existem vários tipos de servidores, como servidores de sites, de e-mail, de impressão, de fax etc., dependendo da função para o qual está voltado. Neste caso, nos referimos a servidores web, responsáveis por armazenar páginas de sites e outros serviços online e permitir o acesso por meio de um navegador.
  • 4
    Ao falar em redes consideramos formas de conexão e relações humano-máquina, e, especificamente neste artigo, estamos considerando redes humanas com conexões digitais para dialogar com um campo que emerge em torno do termo ‘redes autônomas e comunitárias’ a partir de perspectivas e tecnologias feministas.
  • 5
    Redes autônomas e comunitárias são soluções de conectividade baseadas em paradigmas de abertura do design e de gestão coletiva para promover a conexão compartilhada à Internet ou constituir uma rede digital local. Quando nos referimos a redes autônomas e redes comunitárias estamos criando uma distinção em relação a redes comerciais ou estatais centralizadas, ainda que as experiências neste campo possam variar muito e que exista o risco deste termo se tornar uma etiqueta ampla que ofusque a multiplicidade de experiências desenvolvidas em contextos e territórios específicos (Zanolli et al., 2018ZANOLLI, Bruna; JANCZ, Carla; GONZALES, Cristiana; ARAUJO, Daiane; OLIVEIRA, Débora Prado. Feminist infrastructure and community networks: an opportunity to rethink our connections from the bottom up, seeking diversity and autonomy. In: Global Information Society Watch 2018: Community Networks. APC, 2018 [https://www.giswatch.org/en/infrastructure/feminist-infrastructures-and-community-networks - acesso em: 21 de abril de 2019].
    https://www.giswatch.org/en/infrastructu...
    ). O termo “autônoma” faz referência a busca por não depender -- ainda que de forma parcial -- de empresas e tecnologias proprietárias. Em relação a redes comunitárias, o Fórum de Governança da Internet ou IGF (Internet Governance Forum, na sigla em inglês) atuou na formulação de princípios comuns a essas redes no âmbito do DC3 (Dynamic Coalition on Community Connectivity) – uma coalizão de instituições e pessoas que se consideram partes interessadas neste campo. Na sua declaração online, atualizada em 7 de julho de 2017, o DC3 apresenta redes comunitárias como “um subconjunto de redes de contribuição colaborativa, estruturadas para serem abertas, livres e neutras”. Essas redes, prossegue a declaração, “contam com a participação ativa das comunidades locais no projeto, desenvolvimento, implantação e gerenciamento da infraestrutura compartilhada como um recurso comum, pertencente à comunidade e operado de forma democrática” [https://www.comconnectivity.org/article/dc3-working-definitions-and-principles - acesso em: 12 fev. 2020].
  • 6
    O debate sobre autonomia digital, internet e tecnologias de informação e comunicação é bastante amplo. No Brasil, esses temas ganharam relevância especial na primeira metade dos anos 2000, vinculados a tópicos como: mÍdia tática, midialivrismo, metareciclagem, cultura hacker, cultura digital, cibercultura. (Bey, 2001BEY, Hakin. Taz: zona autônoma temporária. (coleção Baderna) São Paulo: Conrad, 2001.; Dimantas, 2010DIMANTAS, Hernani. As zonas de colaboração MetaReciclagem: pesquisa-ação em rede. Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2010.; Rosas, 2007ROSAS, Ricardo. Truquenologia: elementos para se pensar uma teoria da gambiarra tecnológica. São Paulo, 2007 [http://virgulaimagem.redezero.org/ricardo-rosas-in-memoriam/ - acesso em: 12 de fevereiro de 2019].
    http://virgulaimagem.redezero.org/ricard...
    ; Silver, 2004SILVER, David. Internet/cyberculture/digital culture/new media/fill-in-the-blank studies. New Media & Society (l6). London, Sage Pub, 2004, pp.55-64 DOI: https://doi.org/10.1177/1461444804039915. Acesso em: 12 de fevereiro de 2019.
    https://doi.org/10.1177/1461444804039915...
    ; Silveira, 2010SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo. Revista da USP (86). São Paulo, 2010.).
  • 7
    A Derechos Digitales é uma organização de alcance latino-americano, independente e sem fins lucrativos, fundada em 2005 e cujo objetivo fundamental é o desenvolvimento, defesa e promoção dos direitos humanos no ambiente digital. https://www.derechosdigitales.org/
  • 8
    APC é uma associação internacional sem fins lucrativos engajada na promoção de infraestruturas de comunicação a grupos e indivíduos que trabalham em prol da mudança social em temas como paz, direitos humanos, proteção do meio ambiente e sustentabilidade e o intercâmbio de conhecimentos entre eles.
  • 9
    Quando nos referimos às redes digitais de comunicação, cada “nó” designa um ponto de conexão ou redistribuição que envia, recebe ou transmite informações e dados, normalmente associado a um equipamento ou dispositivo eletrônico como servidores, roteadores, computadores, modem, hub, switch, entre outros. Ou seja, trata-se de uma estrutura física que define cada ponto conectado que forma a arquitetura da rede. Neste artigo, ao adotarmos uma concepção de redes que não estabelece a separação humano-máquina, consideramos que os nós também compreendem as pessoas e coletivas que constroem as conexões.
  • 10
    O projeto KÉFIR foi descontinuado em 2019, enquanto este artigo ainda estava em construção. No entanto, decidimos manter a menção ao projeto, considerando a importância que representou na região, seja pelos debates e articulações que estabeleceu em torno da noção de infraestruturas feministas e especialmente pelas conexões e criações conjuntas desenvolvidas com as demais coletivas mencionadas ao longo do texto.
  • 11
    As coletivas com as quais tivemos contato no trabalho de campo são formadas por mulheres e pessoas trans e não binárias e buscam estabelecer processos de tomada de decisão mais horizontais que modelos hierárquicos tradicionais. São iniciativas variadas e com focos distintos. Neste artigo, considerando questões de segurança e uma breve avaliação de risco diante dos crescentes ataques conservadores no Brasil e outros países da América Latina, optamos por apresentar esses grupos a partir de uma pesquisa documental, compartilhando apenas informações que as próprias coletivas elegeram publicizar.
  • 12
    Especialmente o site da APC https://genderit.org/, que reúne produções feministas sobre tecnologias.
  • 13
    PERIFÉRICAS é uma coletiva transfeminista em Salvador - Bahia (Brasil) que desenvolve projetos sociais que promovem a educação de hackers em grupos de pessoas que não tem acesso às tecnologias digitais.
  • 14
  • 15
  • 16
  • 17
    A professora de direito norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw (2002)CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Revista Estudos Feministas. Universidade Católica de Salvador, 2002 [http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf - acesso em: 06 de abril de 2019].
    http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-c...
    , ao se debruçar sobre uma teoria crítica de raça, conceitua a interseccionalidade ao apontar como a materialização de sistemas de diferença prejudicava o acesso de mulheres negras a direitos civis e humanos, impondo limites e riscos estruturais. A autora advoga que a experiência de mulheres negras não pode ser capturada nem só pela perspectiva de raça, nem só pela de gêneros sem que se incorra em um apagamento. Ou seja, desde uma perspectiva interseccional é preciso a combinação para abordar as múltiplas exclusões ou privilégios estruturais que atravessam sujeitos e grupos que não podem ser reduzidos a apenas uma lente. O reconhecimento das diferenças é associado ainda a um movimento em busca de transformações, conforme aponta Patricia Hill Collins (2017COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, 5(1), 2017 [http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559 - acesso em: 22 de outubro de 2019].
    http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/i...
    :12), que ressalta que Crenshaw “está claramente defendendo a interseccionalidade como uma construção de justiça social, e não como uma teoria da verdade desvinculada das preocupações de justiça social. Ao fazer uma revisão da ampla literatura produzida nesse campo, Piscitelli (2009)PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, Heloisa Buarque de; PISCITELLI, Adriana; SZWAKO, José. Diferenças, Igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. aponta que no feminismo interseccional a prática política das mulheres é localizada e pensada a partir de intersecções: “nas suas reformulações, o conceito de gênero requer pensar não apenas nas distinções entre homens e mulheres, entre masculino e feminino, mas em como as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na articulação com outras diferenças de raça, classe social, nacionalidade, idade; e como essas noções se embaralham e misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que, como intersexos, travestis e transexuais, não se deixam classificar de maneira linear como apenas homens ou mulheres”.
  • 18
    Disponível em: <https://fermentos.kefir.red/brasileiro/aco-pele/>. Acesso em: 25 de setembro de 2018.
  • 19
    Disponível em: https://giswatch.org/sites/default/files/gw2015-hache.pdf. Acesso em: 04 de dezembro de 2018.
  • 20
    A expressão “projeto autonomista” vincula-se neste texto às reivindicações de autonomia tecnológica presentes entre as ativistas que compuseram essa pesquisa. Neste universo, é amplo o debate sobre as tensões entre autonomia e soberania tecnológica. Ainda que explorar essas questões fuja ao escopo deste artigo, vale mencionar que não se deve compreender aqui a autonomia como alternativa à soberania tecnológica. Neste sentido, as autoras deste texto entendem que o Estado deve possibilitar e incentivar a tecnologia nacional, especialmente, quando se trata de países em desenvolvimento. Parte do embate entre autonomia e soberania se deve à recusa da regulação e atuação do Estado, como uma das inúmeras facetas da cultura digital. Dentre as muitas vertentes neste cenário, há aquela que vincula a perspectiva de colaboração em rede e autonomia tecnológica (dentre muitos outros aspectos) à ideais libertários conectados ao empreendedorismo, à tecnofilia, e às propostas neoliberais que dominam o Vale do Silício (Barbrook, Cameron, 1995; Coleman, Golub, 2008; Evangelista, 2011EVANGELISTA, Rafael de Almeida. Singularidade, transhumanismo e a ideologia da Califórnia. 35º Encontro Anual da Anpocs;GT-01 Ciberpolítica, ciberativismo, cibercultura. Agosto, 2011 [https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/35-encontro-anual-da-anpocs/gt-29/gt01-21/837-singularidade-transhumanismo-e-a-ideologia-da-california/file - acesso em: 06 de abril de 2019].
    https://www.anpocs.com/index.php/encontr...
    ; Pessoa, 2017)PESSOA, Filipe Mattiazzo. O avanço do Capitalismo Informacional e as tecnologias de comunicação: práticas de contra-vigilância de coletivos e grupos brasileiros. Monografia, Ciências Sociais, Unicamp, 2017.. Este não é o sentido que sobressai nas experiências ativistas aqui apresentadas, que também pode ser conferido na percepção de Bravo (2017) exposta adiante neste texto.
  • 21
    Disponível em <https://fermentos.kefir.red/ddow/>. Acesso em 21 de janeiro de 2019.
  • 22
  • 23
    “Stengers e Pignarre chamam de ‘alternativas infernais’ o “conjunto de situações que parecem não deixar outra escolha senão a resignação”, por um lado, ou conduz, por outro lado, a realização de uma “denúncia sonora”, que é impotente na medida que conclui de forma genérica que “todo o ‘sistema’ que tem que ser destruído”, paralisando também a ação (Pignarre; Stengers, 2011:24). A noção de alternativas infernais, assim, carrega a hipótese de que o modo de funcionamento do capitalismo pressupõe um sufocamento da ação política e que sua perpetuação é sustentada pela limitação das alternativas possíveis e pela imposição de falsas escolhas que levam a uma narrativa de sacrifícios necessários e de resignação” (Prado, Araujo, Kanashiro, 2020).
  • 24
  • 25
    Projetada e desenvolvida pela Rede Mocambos, uma colaboração entre quilombos brasileiros, a Baobáxia é uma rede que funciona com ou sem a internet e que carrega um repositório multimídia. Sobre a Rede Mocambos ver Tozzi, Vicenzo (2010): Redes federadas eventualmente conectadas. Arquitetura e protótipo para a rede Mocambos [https://livrozilla.com/doc/326548/redes-federadas-eventualmente-conectadas - acesso em 20/11/2018].
  • 26
  • 27
    Disponível em https://vedetas.org/. Acesso em: 10 de dezembro de 2018.
  • 28
    https://fuxico.org/. Acesso em 30 de janeiro de 2019.
  • 29
    http://piratebox.cc. Acesso em 20 de fevereiro de 2019.
  • 30
    A Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista reúne informações sobre alguns casos de ataques sofridos por mulheres e traz exemplos de medidas de segurança que podem ser pensadas em cada caso. Ela é um dos conteúdos incorporados por padrão na biblioteca da Fuxico . Acesso em: 06 de dezembro de 2018
  • 31
    Disponível em: <http://feminismo.org.br/guia/guia-pratica-seguranca-cfemea.pdf>. Acesso em: 06 de dezembro de 2018.
  • 32
    A Cryptorave é um evento com duração de 24 horas, realizado anualmente desde 2014 e organizado de forma voluntária e colaborativa por coletivos ativistas sediados no Estado de São Paulo. É inspirada na Cryptoparty, uma iniciativa global e descentralizada para a realização de eventos que discutem a vigilância e a segurança na rede e introduzem noções básicas de criptografia. Em 2015, a Cryptorave passou a concentrar as atividades que continham a discussão sobre gênero no espaço denominado Ada Lovelace, em homenagem à matemática britânica da primeira metade do século XIX, considerada como a primeira programadora da história. A Coletiva Hackerfeminista MariaLab foi uma das precursoras na organização das atividades programadas para o Espaço Ada. Atualmente, os debates sobre gênero estão mais disseminados nas diversas trilhas da Cryptorave e inclui também um espaço em homenagem a Chelsea Manning.
  • 33
  • 34
    Disponível em <https://we.riseup.net/cryptorave/politica-anti-assedio>. Acesso em 06 de julho de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2019
  • Aceito
    17 Jun 2020
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