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De “bom exemplo” em “bom exemplo”: consumo cinematográfico e presença das mulheres no espaço urbano da Belle Époque carioca

From on “Good Example” to Another: Cinematographic Consumption and Women’s Presence in Urban Space during Rio de Janeiro’s Belle Époque

Resumo

Este artigo aborda a relação entre o consumo cinematográfico e a presença das mulheres pelo espaço urbano do Rio de Janeiro no início do século XX. Em um ambiente extremamente hierarquizado, verificamos os modos pelos quais o ato de ir ao cinema se inseriu no campo de possibilidades para a circulação das mulheres pelo espaço urbano. Analisamos as estratégias de dominação masculina dentro do projeto de ordem e de família da Primeira República, assim como as táticas adotadas pelas mulheres para resistir a essas estratégias e demonstrar insatisfação com os papéis atribuídos aos gêneros no período.

Cinema; Consumo; Mulheres; Belle Époque; Rio de Janeiro

Abstract

This article discusses the relation between cinematographic consumption and the presence of women in the urban space of Rio de Janeiro in the early twentieth century. In an extremely hierarchical environment, we verify the ways in which the act of going to the movies was inserted in the field of possibilities for the circulation of women in urban space. We analyzed the strategies of male domination found in policies to establish order and support the family during the “First Republic”, as well as the tactics adopted by women to resist these strategies and demonstrate dissatisfaction with the roles attributed to genders in the period.

Cinema; Consumption; Women; Belle Époque; Rio de Janeiro

1. Introdução

Com o advento do regime republicano no Brasil, diversas transformações de ordem social, política e econômica foram acompanhadas por momentos de grande turbulência. Na virada entre os séculos XIX e XX, revoltas populares, motins e tentativas de golpe tornaram o ambiente da então Capital Federal ainda mais instável.

Diante disso, sob o comando do prefeito Pereira Passos, o Rio de Janeiro passou por uma ampla reforma nos primeiros anos do século XX, profundamente inspirada no modelo parisiense, com o intuito de criar um espaço urbano favorável às elites e aos setores da classe média, de alijar a população pobre das regiões centrais da cidade e de apagar a herança imperial representada pela antiga cidade e por suas ruas que lembravam a colonização portuguesa (Chalhoub, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.; Sevcenko, 1984SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.; Carvalho, 1987CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.).

Em consonância com a grande reforma, a diversão cinematográfica ganhava paulatinamente público e espaços para sua exibição. Em 1907, após a inauguração do Cinema Parisiense – o primeiro espaço dedicado exclusivamente à exibição cinematográfica no Rio de Janeiro (Araújo, 1985ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1985.) – os cinematógrafos foram ocupando a paisagem urbana, chamando a atenção de transeuntes e de potenciais espectadores.

Em paralelo, as mulheres fizeram-se presentes na cena pública na Belle Époque, em um processo permeado de tensões e ambiguidades. Sobre a circulação das mulheres no espaço urbano, Caulfield argumentou que ela foi enquadrada dentro do esforço de modernizar as famílias, sendo

a associação entre as concepções de espaço privado e público e mulheres puras e impuras era evidente não somente nas atividades das mulheres da elite, mas também na maneira como as famílias ricas lidavam com as empregadas domésticas (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.:120).

Em outros momentos, a autora reconhece que a cisão marcada pelo gênero entre espaço público e privado também migrou para os setores médios (2000:73-78).

Este artigo pretende investigar as intersecções entre esses dois fenômenos. Mais precisamente, propomo-nos a analisar os modos pelos quais o ato de ir ao cinema se inseriu no campo de possibilidades (Velho, 2003VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.) para a circulação das mulheres pelo espaço urbano. Partimos da hipótese de que, no caso do consumo cinematográfico, havia uma tensão entre as possibilidades de fruição do espaço urbano fornecidas pela diversão cinematográfica e a necessidade de controle dirigido às mulheres dentro do projeto de família nuclear encampado pelo regime republicano (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.:37).

O foco na diversão cinematográfica auxilia-nos a colocar em tensão a clássica distinção entre os binômios homens/espaço público e mulheres/espaço privado. Sem negar o controle, pretendemos verificar de que formas ele era exercido e como as mulheres o referendavam ou o subvertiam, no intuito de compreender as permanências e as mudanças operadas por elas no consumo em um ambiente urbano altamente hierarquizado (Soihet, 2013SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 362-400.; Kushnir, 1996KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição – as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.; Rago, 1985RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.; Sevcenko, 1983SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983., 1984SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.; Carvalho, 1987CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.; Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.; Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.).

O momento da ida ao cinema interessa-nos em dois aspectos. Primeiramente, pretendemos situar esses momentos de lazer e os filmes dentro de uma pedagogia moral (Enne, 2007ENNE, Ana Lucia Silva. O sensacionalismo como processo cultural. Revista ECO-PÓS, v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/1018 - acesso em 14 maio 2018.
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) que situava os sujeitos nas relações de gênero. Ainda, exploraremos os cinematógrafos como espaços de sociabilidade entre homens e mulheres, inseridos em uma cena urbana na qual havia algumas tensões nos papéis a serem desempenhados por ambos.

Ao longo do levantamento em periódicos realizado na Biblioteca Nacional, coletamos 61 fontes – charges, crônicas, editoriais, fotografias, cartas de leitores, artigos – em 15 periódicos, cujos perfis variavam entre jornais com circulação diária (Gazeta de Notícias, Correio da Manhã, O Paiz), revistas ilustradas de sátira aos costumes (O Malho, Careta) e publicações que circulavam entre grupos específicos (Il Bersagliere, jornal voltado para a comunidade italiana radicada no Rio de Janeiro).

Apesar da heterogeneidade dessas fontes, é possível reuni-las se as considerarmos como vestígios de processos de estruturação e de mudança social (Ginzburg, 2007GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.). John e Jean Comaroff (1992) também atentaram para a relação entre micropráticas e macroprocessos, na medida em que “estas histórias parciais, ‘escondidas’ precisam ser situadas nos mundos mais amplos de poder e de significado que as deram vida”1 1 “these partial, ‘hidden stories’ have to be situated in the wider worlds of power and meaning that gave them life” (tradução nossa) (1992:17).

Precisamos destacar que, embora sejam sobre a experiência social de mulheres na vida pública, as fontes revelam marcas de autoria que apontam o fato de não terem sido escritas ou elaboradas por elas, mas sim por homens. Isso nos situa na problemática levantada por Perrot (1989)PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.9, n.18, ago-set. 1989, p. 9-18. Disponível em https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3846 - acesso em 13 out. 2020.
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a respeito do silêncio dos arquivos sobre essa experiência, uma vez que os registros da história na esfera pública sempre privilegiaram os homens, sendo às mulheres reservado o domínio da memória na vida privada.

2. Entre sensações e disputas pela honra: a ida ao cinema das mulheres no raiar do século XX no Rio de Janeiro

Várias autoras sublinharam a centralidade da honra sexual no projeto civilizador da Primeira República (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.; Soihet, 2013SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 362-400.; Schettini, 2006SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.), visto que esse possuía como núcleo de sua tutela a família e, para a reprodução da nação, era necessário resguardá-la material e simbolicamente. No caso das mulheres de classe média e de elite, era sobretudo em relação a esses grupos que incidiam as expectativas de reprodução da nação (Verdery, 2000VERDERY, Catherine. Para onde vão a “nação” e o “nacionalismo”? In: BALAKRISHNAN, Gopal (org). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 311-334.), uma vez que elas eram percebidas como parte do modelo ideal de família encampado pelo regime vigente.

Ao analisar processos criminais referentes à violação da honra de mulheres no período, Caulfield (2000)CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. avaliou que duas noções de honra prevaleciam e disputavam sentido nas narrativas: “a noção patriarcal de honra como um recurso familiar e a noção burguesa de honra como uma virtude individual” (2000:85). Por conta disso, havia uma responsabilidade mútua entre homens e mulheres em preservar a honra sexual das últimas, cabendo ao homem o papel de guardião moral da família e à mulher a contenção da própria sexualidade visando a manutenção de sua ‘pureza’ (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.:85-90).

Nesse sentido, apresentamos a charge veiculada pela revista O Malho2 2 O Malho, Rio de Janeiro, 14.3.1914, p.39. , de autoria do cartunista Stuart. O título bolinatógrafo é bastante sugestivo da recorrência da prática da ‘bolinagem’ nos cinemas do Rio. O ‘bolina’ era um tipo bastante conhecido dos cronistas dos periódicos e da população. Via de regra, um homem jovem das classes mais altas considerado de boa aparência, bem vestido e que se aproveitava de certas ocasiões para flertar com mulheres solteiras e até mesmo casadas. Sua ação não se restringia aos cinemas, que se realizava também em bondes, cafés e outros locais por onde as mulheres circulavam. No entanto, o cinema era de fato um lugar privilegiado na atuação dos bolinas, tal como o título da charge o sugere.

A reação ao comportamento dos ‘bolinas’ poderia variar entre um engajamento no flerte por parte de algumas mulheres e uma indignação extrema por parte de outras mulheres que se sentiam assediadas e de seus pais ou companheiros, passando por uma cumplicidade por parte de outros homens (geralmente desconhecidos das mulheres alvos dos ‘bolinas’), que apresentavam reações de cunho mais conciliador, conforme veremos adiante.

Na charge, o pai aparece como o responsável pela honra da filha, dentro do projeto de família da Primeira República. Em paralelo, o cinema é representado como um local no qual existem possibilidades de interlúdios amorosos, uma vez que a charge mostra não apenas o engajamento no flerte por parte da filha, como também a sua alteração de comportamento em busca de novas sensações e experiências afetivas, com a conclusão “a rapariga está outra”3 3 Lembrando que o termo rapariga é usado na fonte como sinônimo para “mulher”, sem a carga pejorativa e moralista que assumiu em um momento posterior. .

O nome da personagem ser Ingênua, alguns comentários jocosos feitos pelo autor da charge ao relatar sua resposta ao flerte (“emquanto o pai se divertia a valer, a Ingenua já o deixava de ser”) e, ainda, a ironia presente na narrativa a respeito de o cinema ser tido falsamente como um instrumento de educação, revelando-se um meio de corrupção moral, podem ser vistos como índices do incômodo do autor da charge com a frequência de mulheres ao cinema, cujas atitudes não seriam sequer reprimidas pela presença paterna. Assim, na perspectiva do autor, o cinema seria um espaço de perigo à honra sexual das mulheres.

A isso, acrescentamos outro ponto de vista expresso pelo cartunista: o desinteresse pelas atividades domésticas expresso pela personagem Ingenua após a ida ao cinema e o flerte com o ‘bolina’. Desse modo, outro risco da frequência aos cinemas é mostrado na charge: o crescimento da insatisfação das mulheres com o domínio da vida privada e, consequentemente, o aumento do desejo por parte destas de ocupar a cena pública, algo a ser rechaçado na perspectiva do autor.

A ideia de a honra sexual das mulheres ser tutelada por outro homem também foi mostrada na crônica Um bolina em apuros, publicada no jornal O Povo4 4 A classe é desunida... Um bolina em apuros.In: O Povo. Rio de Janeiro, 3.9.1912:4. . Seu protagonista relata a um grupo de amigos o sucesso no cortejo em um cinema a uma mulher casada que, depois de tanto resistir, finalmente teria aceitado suas propostas. Em um ponto, a narrativa é bruscamente interrompida: “Estava elle neste ponto quando três bofetadas se fizeram ouvir. Fôra o terrível “D.Juan” que recebera o castigo merecido. Voltando-se, viu á sua frente um rapaz que lhe exigia a explicação das phrases que acabara de pronunciar”5 5 Op. cit. .

Os ‘bolinas’ também foram representados em um poema publicado em O Povo. Sob o pseudônimo R. Denie, assim se refere a eles:

A imprensa carioca occupa-se do perigo dos cinematographos

Eu cá por mim, por systema,

Commenta um senhor casado,

Não vou, nem mesmo amarrado,

Com minha esposa ao cinema.

- Porque motivo? Interpello:

Vão lá gentes das mais finas...

- A causa aqui lhe revelo:

Tenho medo que me pello...

- Do fogo? – Não, dos bolinas”6 6 In: O Povo, Rio de Janeiro, 7.3.1912: 4 .

O poema nivela ironicamente o medo de incêndios em cinematógrafos – bastante disseminado pela imprensa em virtude de vários casos com mortes – e o receio do assédio dos ‘bolinas’. Deduzindo-se do trecho que é uma fala de um homem, podemos inferir que se encontra expresso um medo de violação da honra sexual da esposa por parte de outros homens. Isso poderia gerar situações de conflito e, de acordo com o senso comum7 7 Para a noção de senso comum como objetivação partilhada da realidade, conferir BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1996. do período, caberia ao homem preservar a honra de sua esposa no espaço público (Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.:85-86).

Ainda sobre os ‘bolinas’, vejamos essas duas charges veiculadas pela revista satírica Careta8 8 Careta, Rio de Janeiro, edição 315 (1914, sem dia nem mês): 13. e pelo jornal A Rua9 9 A Rua, Rio de Janeiro, 28.4.1910: 6 , respectivamente.

O medo revelado pelo homem retratado na primeira charge de ser punido com um tapa nos faz inferir que se tratava de um comportamento em uma zona limítrofe entre o socialmente aceitável e reprovável, ao mesmo tempo que condena o comportamento agressivo por parte das mulheres.

Enquanto isso, na segunda charge, em uma representação da mulher e seus supostos ‘atributos naturais’ de calma e docilidade, há um engajamento no flerte por parte desta. Mais uma vez, o cinema é apontado como um espaço propício para encontros amorosos, o que revela o espectro de reações às atitudes dos bolinas. Inclusive, essa representação do comportamento das mulheres como passivo fazia parte do horizonte de expectativas tanto do comportamento do bolina quanto da tutela por parte de pais, maridos e namorados e justificava o controle da presença delas nos diferentes espaços de sociabilidade.

Em alguns casos, a tutela de uma personagem masculina era requerida para conter situações de assédio, tal como na nota Uma fita extra... O bolina, na qual a protagonista – uma mulher jovem de classe média – solicita a ajuda do pai em defesa de sua honra.

Eis o caso: conhecido politico e militar, acompanhado de sua gentilissima filha, galante senhorita, assistia á sessão, e, quando a sala escureceu, um dos muitos bolinas que por ahi existem (a raça é grande e reproduz como os coelhos) quis exercer a sua acção junto á senhorita.

Esta queixou-se ao pai, a sala accendeu-se, e o bolina exhibiu-se, o pai metteu-lhe a bengala, elle fugiu, os civis intervieram etc., etc.

Essa fita, pelo menos por esses personagens, certamente, não será mais exhibida neste cinema.10 10 A Imprensa, 7.8.1911: 2

A narrativa deixa mais uma vez claro que é uma prática comum nos cinemas, na medida em que os bolinas são uma “raça grande que se reproduz como os coelhos”. Em outras crônicas encontradas11 11 Escãndalo em um cinema. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1.11.1911: 3 , ressaltou-se que muitas vezes as mulheres reagiam de modo mais intenso ao assédio e faziam com que a projeção de filmes fosse interrompida na busca de comover o público contra os bolinas e defender sua honra.

Podemos perceber que, em suas performances de gênero (Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.), os bolinas catalisavam ações sociais que buscavam manter a dominação masculina sobre os corpos e a mobilidade das mulheres no espaço urbano. E o apelo a outros homens na preservação da honra sexual mostrava-se como o outro lado da moeda no controle das mulheres nas suas experiências fora do domínio privado. Mesmo assim, em muitos momentos, havia a possibilidade de as mulheres se engajarem nos flertes e de se aventurarem em novas descobertas afetivas e sexuais pela cena pública.

Também consideramos o bolina inserido nessa nova ordem urbana bastante hierarquizada como o ‘duplo’ embranquecido da personagem do malandro, na medida em que possui características bastante semelhantes a esse personagem analisado por Antonio Candido (1970)CANDIDO, Antônio. Dialética da malandragem. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, n. 8, São Paulo, USP, 1970, p.67-89. em Dialética da malandragem. Ao transitar por vários grupos e espaços, ambos os personagens se situavam dentro de um controle masculino do espaço urbano, por meio do qual as mulheres apareciam como um dos alvos da sua atuação. Além disso, ambos poderiam gerar bastante prejuízo a seus inimigos e detratores, podendo esse ser de ordem moral e/ou material.

No entanto, há uma diferença em torno da legitimidade da presença desses sujeitos nos diferentes espaços públicos. Um homem identificado como ‘malandro’ era submetido a uma série de constrangimentos em sua atuação pelas forças policiais e administrativas. Poderia até ser enquadrado legalmente no crime de vadiagem e submetido às práticas vexatórias da revista, da prisão e da identificação policial, além da possibilidade de ter sua foto exposta em jornais e revistas de grande circulação12 12 Sobre as práticas de identificação policial em relação ao crime de vadiagem, conferir Cunha (2002). . Mas os bolinas conseguiam na maior parte das situações escapar a esses mecanismos de vigilância. Nas crônicas coletadas para este artigo e em outras, é raro constatar uma abordagem policial mais contundente contra seus atos.

Pela sua posição de classe e de raça, o bolina era percebido como um igual, por mais que seu comportamento fosse em muitos momentos predatório em relação às mulheres. Quase não havia nas crônicas publicadas pela imprensa a contestação da legitimidade da presença dele nos cinematógrafos, embora denunciassem suas práticas como invasivas. Desse modo, ele poderia exercer sem maiores constrangimentos seu duplo papel de controle da presença das mulheres nesses espaços e da possibilidade de interlúdios afetivos e sexuais.

Em se tratando da honra sexual, outro tópico era bastante abordado pela imprensa da época. Sendo o casamento um ritual consagrador do ideal de família burguesa e responsável pela contenção dos impulsos sexuais – sobretudo das mulheres (Gay, 2002GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média (1815-1914). São Paulo: Cia. das Letras, 2002.) – o adultério era visto como uma violação grave. Dentro do projeto de família da Primeira República, o adultério era apresentado como um grande perigo (Douglas, 1976DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.) à pureza da união matrimonial e à honra masculina. Inclusive, Gay recorda que “a palavra obedecer, que a mulher era obrigada a pronunciar durante a cerimônia de casamento, não era uma expressão oca” (2002:71).

Em muitas narrativas, o cinema era apresentado como um local ideal para idílios amorosos que fugiam às convenções, tal como ilustrado nas charges Entrevista, publicada na Revista da Semana13 13 RAUL [Pederneiras]. Entrevista. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 27.10.1907: 6 e O patrão foi que attendeu, publicada na revista Careta14 14 Careta, Rio de Janeiro, 18.7.1914: 25 .

A primeira apresenta um casal de amantes que pretendia se valer do escuro reinante da sessão de cinema para o encontro, enquanto a segunda mostra a reação esperada quando o homem é surpreendido pelo adultério de sua esposa. Sendo um tabu, o adultério demandava uma punição severa caso fosse descoberto e o assassinato da esposa era não apenas previsto legalmente, como ainda era legitimado pelo senso comum nessa situação.

Em várias notícias, a imprensa veiculou casos de maridos flagrando idílios amorosos de suas esposas em cinematógrafos e apresentando uma reação pública histriônica e violenta, que muitas vezes demandava a intervenção das forças policiais ou mesmo resultava em ferimentos graves à mulher descoberta15 15 O jornal A Noite veiculou a notícia de um marido que provocou um tiroteio à entrada de um cinematógrafo após flagrar a esposa com um amante, com um título que revela a posição social da mulher. Cf: Um grande escândalo no cinema Velo – uma senhora do nosso high-life surpreendida pelo esposo. A Noite, Rio de Janeiro, 10.9.1914: 2. Por sua vez, o jornal Gazeta de Notícias narrou uma discussão em que o marido, tendo percebido o flerte da esposa com outro espectador de um cinema, ateou-se fogo e a esposa, ao tentar ajudá-lo, também foi atingida pelas chamas. Cf: Um casal em chammas – depois do cinema para o hospital. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21.11.1914: 4. .

No intuito de evitar o flagrante e a potencial violência e exposição humilhante que o acompanhava, algumas mulheres usavam códigos como o ilustrado na charge veiculada pela revista Careta16 16 Uma carta innocente. Careta, Rio de Janeiro, 10.5.1913: 27. .

Publicada no jornal Il Bersagliere, a crônica Um bom exemplo condensa a disputa pela honra sexual entre homens e mulheres das classes mais altas e a dimensão pedagógica do ato de ir ao cinema. Esse periódico circulou pela comunidade italiana entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. O dono do jornal era Paschoal Segreto, empresário do entretenimento carioca, e abordou situações de consumo cinematográfico em várias oportunidades.

Em virtude de ser uma fonte inédita que trata da ida ao cinema a partir do ponto de vista do espectador, resolvemos publicar a parte da tradução da crônica que aborda a discussão entre um casal17 17 Un buon esempio. In: Le chiacchiere di Nasonelli. Il Bersagliere, Rio de Janeiro, 5.5.1908: 11. Tradução nossa do italiano. .

(...)

A primeira parte se passa entre risadas coletivas, cenas humorísticas esplêndidas, a segunda também se passa entre um murmúrio de satisfação dos espectadores e eis a terceira parte, que sabia, graças ao “histórico” afixado no cartaz, ser emocionante a ponto de arrepiar.

Tratava-se de um velho general russo que, para se vingar de um ultraje a ele imposto, mata a chicotadas a jovem esposa e acaba por atirar em seu amante.

Com a mente suspensa, toda a minha atenção estava voltada para o telão esperando o desenlace do drama, quando ouvi a seguinte observação feita com a voz rouca de um bom e idoso cidadão, sentado ao lado de sua virtuosa senhora na fila de cadeiras próxima a que ocupava.

– Fique bem atenta à lição desta noite – dizia o marido – te fiz vir de propósito. É um exemplo salutar que se dá a uma mulher que falta àfidelidade jurada. O cinematógrafo é uma escola. Amanhã traremos filhinha.

– Veremos, veremos – respondia um pouco nervosa a senhora.

O vizinho da frente parecia muito com um antigo professor de física, resmungão insuportável.

A grande luz da lanterna se projeta no telão branco.

Silêncio profundo na sala.

– Eis a esposa infiel que como Judas beija o marido e só pensa em traí-lo – diz o meu vizinho. E vejo na penumbra que tende o punho para o telão.

– Fique atenta – sussurra em seguida à mulher, que dá de ombros.

O drama continua a se desenvolver.

– Veja, veja... Aquele que vem agora é o infame, o cúmplice, o amante. Mas espera, um dia da caça, outro do caçador.

As cenas passavam rapidamente, nítidas, belas, surpreendentes. A esposa introduz o amante em sua sala e se beijam apaixonadamente, enquanto meu vizinho range os dentes e exclama: covardes! Covardes!

– Covardes uma ova – observa a mulher – se se beijam, quer dizer que se amam.

– Pare que vou te dar um tapa.

– Duvido.

– Então você aprova?

– Eu não aprovo nem desaprovo; se o fazem, melhor para eles.

– Calada ou te estrangulo!

– Afinal de contas, o marido é velho e a esposa, veja, é um amor de juventude e beleza.

– Não blasfeme e fale baixo, criatura perversa, te ponho no olho da rua.

Ah, aqui estamos – continua levantando-se rapidamente da cadeira.

Na verdade, olha para a cena o fiel empregado do general russo. Descoberto o idílio, fecha-se de repente e faz um gesto sinalizando: vocês foram pegos. E se retira silenciosamente para avisar o patrão que andava tranquilamente a cavalo.

Encontra-o e o informa de tudo.

– Ah, ah – grunhe o meu homem, virando-se à mulher – agora vai começar! Veja e entenda!

– Só entendo uma coisa e é que aquele empregado miserável tinha de se enforcar imediatamente.

– Enforcar-se? Mas você ficou louca. O exemplo, é preciso o bom exemplo.

– Os velhos ciumentos são apenas cretinos. Aos 70 anos, deveriam se afogar.

– Claro, pra deixar a esposa pra outros.

– Naturalmente.

– Jesus! Se não te torço o pescoço, vou enlouquecer.

O velho senhor russo abre a porta da saleta. A esposa desmaia, o amante tenta salvar-se, há uma janela aberta e dá um salto. Já no chão, uma bala de revólver o atinge no peito.

– Bravo! Grita meu vizinho, batendo as mãos.

Depois, o russo faz o empregado levar a esposa desmaiada ao jardim, a conduz até uma árvore e a mata com a força das chicotadas.

– Eis o meu conceito de justiça – murmurra o vizinho.

– Esbraveje, velho camelo – responde-lhe a esposa zangada.

– Então, não te agrada, minha cara?!

– Me agradaria se em vez daquela desgraçada tivessem prendido você, que não serve pra nada.

– Fala baixo, víbora.

Percebe-se que me divertia bastante com o espetáculo de verdade que me davam de presente na plateia e, simpaticíssima que era, aprovava com entusiasmo a mulher do vizinho.

– Não acabou – continua o marido esfregando as mãos.

O general russo volta ao jardim e ordena ao empregado colocar em um saco o corpo do jovem amante tombado e depois jogá-lo ao mar do alto de uma rocha.

Dito e feito.

A última cena desenrola-se admirável e comovente e meu velho vizinho dá um largo suspiro de satisfação enquanto se levanta, dizendo: - Agora estou satisfeito!

A mulher o olha e lhe pergunta com um sorriso diabólico:

– Conte-me aqui: se por acaso estivesse no lugar dessa pobre mulher do general, o que você faria?

– Não diga mais nada, desgraçada.

– Disse por acaso.

– “O que faria?” e ainda me pergunta, deveria tremer só de pensar.

– Então...

– Faria um massacre, mesmo com uma centena na minha frente. Te perdoei uma vez, mas na segunda...

– Calma, meu bom velhinho, a segunda seria como a terceira.

– Ah, mas como você me irrita, vá pro inferno!

E agarrou a esposa pelo braço lançando-lhe olhares bizarros.

Na crônica, há um conflito entre duas visões acerca dos papéis sociais nas relações de gênero. O marido colocou-se no lugar de autoridade patriarcal, a quem a mulher deveria respeito e obediência, cabendo-lhe impor restrições e punições corporais e morais. Esse tipo de subordinação não era apenas englobado dentro do modelo de família burguesa encampado pela Primeira República, como algo socialmente aceito e até mesmo esperado pelo senso comum da época, o que pode ser comprovado pela ameaça constante de castigo corporal por parte do marido sem que ele fosse alvo de censura.

A metáfora bíblica que aciona o diálogo sobre adultério (Judas) deflagra um estereótipo (Goffman, 1988GOFFMAN, Erwin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTC, 1988.) misógino que operava com bastante força como categoria interpretativa nas relações conjugais, de acordo com o qual a mulher é a fonte do ‘mal’, da ‘perdição’ e da possibilidade de ruína de um casamento, competindo ao homem preservá-lo e à sua honra também. E a punição do adultério com a morte apresentada no filme insere-se como chave de leitura da experiência social por parte dos espectadores.

Por sua vez, em um gesto de resistência (Certeau, 1990CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1990.), a esposa projetou-se na relação amorosa encenada para, em seguida, questionar sua subordinação às tiranias do marido. Em suas respostas, valeu-se da ironia como forma de comunicação, uma tática (Certeau, 1990CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1990.) para tentar conquistar a plateia que assistia à discussão, visto que a cena se deu em um cinema, ambiente fechado e onde situações como essa fugiam à regularidade do ritual da projeção de filmes. Foi bem sucedida em cativar a atenção para si, algo explicitado pelo fato de o autor-testemunha ter revelado simpatia por suas falas na narrativa e ter se identificado com o seu ponto de vista.

A ironia operou no diálogo como a desestabilização da leitura de mundo referendada pelo senso comum, que culminou com a ridicularização final do marido, a partir da revelação de que já fora traído. E o cômico pôde assumir na narrativa da crônica a centralidade contestadora de algumas concepções referentes ao casamento e ao poder atribuído ao homem na relação conjugal. Em suma: na crônica, o riso é a consagração moral da insubordinação face à autoridade representada pelo marido.

Além da performance em torno das relações de gênero, podemos extrair da crônica o apelo à dimensão educativa do cinema, então uma nova mídia massiva que recentemente ocupara o espaço urbano higienizado pelas reformas do prefeito Pereira Passos. A fala do marido de que “o cinematógrafo é uma escola” ressoa ao longo de todo o diálogo com a esposa e era um argumento muito levantado em editoriais do período a respeito dos impactos da nova tecnologia.

A crônica faz menção a um filme de melodrama, no qual uma jovem esposa e seu amante são punidos com a morte após serem descobertos pelo marido. A performance em torno da honra sexual e os requintes de crueldade e de humilhação com os quais a esposa foi assassinada – presa a uma árvore, alvo de chicotadas sob o olhar de várias testemunhas – situam-se no horizonte da pedagogia moral pretendida pelo melodrama que, segundo Enne,

implica o reconhecimento dos lugares sociais, das virtudes e penalidades para sua corrupção, muitas vezes relacionada ao universo do privado que, via dramatização, é colocado para apreciação e julgamento público (...) (2007: 75).

O filme descrito opera em sua narrativa um reforço do olhar e da autoridade masculinos, uma tendência da produção cinematográfica no período silencioso já constatada por Mulvey (1983)MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 437-454.. Ao longo da crônica, foi explorada a tensão entre a leitura pretendida pelo filme e a recepção por parte dos espectadores. A punição à esposa foi lida de modo subversivo à hierarquia entre os gêneros dominante à época por parte da esposa na plateia. No fim da crônica, a ridicularização da figura do marido e da visão dos papéis de gênero no casamento aponta para as possibilidades de mudança social que viriam nas décadas seguintes em relação às mulheres.

Mesmo diante de um projeto hierarquizante das relações de gênero na Primeira República reforçado pela pedagogia moral (Enne, 2007ENNE, Ana Lucia Silva. O sensacionalismo como processo cultural. Revista ECO-PÓS, v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 70-84. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/1018 - acesso em 14 maio 2018.
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) presente nos filmes exibidos, é importante ressaltar as possibilidades de leituras dissonantes como a retratada na narrativa do cronista Nasonelli18 18 Outras fontes também abordaram a dimensão educativa do cinema no tocante às relações de gênero e, em algumas especificamente, ao adultério feminino como tabu no casamento. Cf: O Imparcial, Rio de Janeiro, 22.11.1913: 2; Bordados e typewriters. A Imprensa, Rio de Janeiro, 30.5.1911: 2; A triste vida de uma midinette. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12.12.1915: 1. , que se situavam dentro do que foi descrito por El Far:

as mulheres das primeiras décadas do século XX, em especial as que tiveram acesso a uma educação refinada, evidenciavam cada vez mais seu descontentamento com o pequeno papel reservado ao sexo feminino dentro e fora de suas casas (2004: 299).

Não apenas os filmes eram inseridos dentro de uma pedagogia, o próprio ato de ir ao cinema também o era. Em se tratando de relações de gênero, era um dos poucos momentos que as mulheres das classes mais altas tinham fora do ambiente doméstico, muitas vezes inclusive desacompanhadas de seus maridos, noivos e pais, embora tivessem de se submeter em algumas dessas saídas à mãe ou a outra figura feminina.

Seguimos a pista de Hansen de que

o surgimento da espectatorialidade cinematográfica está profundamente interligada com a transformação da esfera pública, em particular com os percursos de gênero no cotidiano e no lazer19 19 “(...) the emergence of cinema spectatorship is profoundly intertwined with the transformation of the public sphere, in particular the gendered itineraries of everyday life and leisure” (tradução nossa). (1991: 2).

Ao considerarmos os registros imagéticos (fotografias, filmes ‘naturais’, charges) e as crônicas veiculadas pelos jornais e pela literatura do período, é notável a presença massiva de mulheres circulando pelo Rio de Janeiro, algo relacionado ao universo do lazer desde a segunda metade do século XIX e potencializado com a exibição cinematográfica.

No caso do Rio de Janeiro da virada entre os séculos XIX e XX, Chalhoub (1996CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.:29-35) considerou que uma ideologia da Higiene perpassava a nova ocupação do espaço urbano. Tendo sido articulada desde a segunda metade do século anterior, ela serviu como uma série de justificativas técnicas encampadas pelo Estado para a remoção das camadas mais pobres das áreas centrais da cidade. Visto que a população recém-liberta da escravidão que circulava pela cidade despertava apreensão nas elites e nos nascentes setores médios, um ‘medo branco’ (Azevedo, 2004AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2004.) traduziu-se em um espaço urbano segregado, hierarquizado e que impunha diversas dificuldades de trânsito não apenas à população negra, como também a mulheres, imigrantes pobres e outros grupos marginalizados.

Dentro desse imaginário teratológico dirigido às classes subalternas, o projeto de ordem da Primeira República previa uma honra sexual na qual um controle da sexualidade era dirigido às mulheres, como já o analisou Caulfield (2000)CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2000..

Várias crônicas ressaltaram as transformações na sociabilidade entre as mulheres a partir do crescimento da frequência aos cinematógrafos. Em Os sabbados cariocas, um cronista anônimo descreve a mulher jovem solteira e a esposa de elite e de classe média que vão assistir a filmes:

Ora, com a morte dos velhos hábitos, mudaram de feição as coisas e as pessoas e, assim, a gentil senhorita que outr’ora, à noite, quedava-se romântica à janela, a ver passar a silhueta fantástica de um Romeu lamentavelmente ridículo, é hoje a elegante demoiselle que vae ao cinema ver a ultima do Max Linder e, enquanto espera, nos intervalos, faz o flirt, com o snob do lado, a matrona caseira, que ficava, nas priscas eras, a mudar as fraldas do pimpolho, nas horas em que o marido honestamente andava à conquista do pão de cada dia, é madame, radiosa e tentadora, que vae á Cavé, ao five ô clock tea, enquanto o esposo anda a suar, tratando de um negocio importante, com cujos proventos comprará um lindo chapéo que madame viu exposto na montra de um chapeleiro em voga.

(...) Depois vieram as avenidas, a multidão desafogou-se, respirou mais livre, a vida da cidade modernisou-se, crearam-se os cinematographos, e a carioca, vestida pelo ultimo modelo de Paris, continuou a vir aos sabbados fazer comprinhas, ver os films sensacionais do Odeon, do Parisiense, do Avenida, tomar chá das cinco.20 20 Os sabbados cariocas. O Povo, 10.11.1912: 1.

Em um curto tão trecho, a crônica aborda uma série de transformações nos hábitos de consumo referentes às mulheres e à paulatina substituição do espaço privado (lar) pelo espaço público em sua rotina que, embora de modo parcial, permitiu a esse grupo um contato com as turbulentas transformações sociais e culturais da época. Também foram ressaltados determinados signos referentes a um consumo de luxo caro às elites e, em menor escala, aos setores médios, tal como Needell (1993NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.:185-205) o havia detectado em sua análise sobre a Belle époque carioca.

Ao se debruçar sobre um momento posterior – os anos 1920 – Gomes (2004)GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. ponderou que havia uma ansiedade masculina quanto a

uma maior presença de mulheres de classe média e alta nas ruas, desfrutando das possibilidades de lazer oferecidas pelo Rio de Janeiro daqueles anos e adotando uma postura de maior iniciativa em áreas do comportamento quanto ao flerte amoroso (2004: 205-206).

Diante do que já expusemos, podemos inferir que os anos 1900-1910 foram o momento em que se gestou a mudança de comportamento descrita pelo autor e o ritual da ida ao cinema um dos pontos fundamentais para a sociabilidade das mulheres.

Algumas considerações a respeito do mercado exibidor carioca e do público na primeira década de funcionamento das salas de cinema no Rio de Janeiro devem ser enumeradas. As primeiras salas dedicadas exclusivamente à exibição cinematográfica foram fundadas na região da Avenida Central (Araújo, 1985ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1985.)21 21 Além da Avenida Central, havia a rua do Ouvidor e a Praça Tiradentes como locais de concentração de entretenimento, as primeiras atraindo um público mais ligado à elite e aos setores médios, enquanto as salas da Praça Tiradentes atraíam um público menos elitizado, embora estas se empenhassem fortemente em afirmar a qualidade de sua programação e o alto nível de seu público nos anúncios e nas notas divulgadas à imprensa da época. , tendo nos anos seguintes expandido rapidamente para os bairros da Zona Sul e nas regiões da Zona Norte e Oeste próximas à estrada de ferro da Central do Brasil22 22 O jornal O Santacruzense relatou em um artigo de 20.5.1909 a inauguração de uma sala em Santa Cruz (Zona Oeste) no domingo anterior. O jornal O Subúrbio veiculou em 13.2.1909 um anúncio do Cinema Americano, na rua Arquias Cordeiro (Méier – Zona Norte), enquanto em 6.7.1909 um artigo no mesmo jornal narrou o evento de inauguração do Cinema Edison, também no Méier. Em 16.10.1909, relatou a inaguração do Cinema Mascotte e o funcionamento do Cinema Meyer, localizados no mesmo bairro. Em 29.4.1911, O Subúrbio anunciou a inauguração do Cinema Orbe, no Riachuelo (Zona Norte). Esses exemplos mostram a rápida expansão das salas de cinema pelo Rio de Janeiro em sua primeira década. . Diante desse cenário, podemos inferir que a localização dos cinemas nas áreas nobres da cidade ou em regiões de acesso relativamente fácil aos nascentes setores médios que habitavam também os subúrbios do Rio de Janeiro era um dos fatores na conformação do público dessas salas.

Por sua vez, os preços costumavam variar de acordo com a região da sala. Na Avenida Central/Rio Branco e rua do Ouvidor, os ingressos de primeira classe saíam normalmente por mil réis na primeira classe e por 500 réis na segunda classe23 23 A título de comparação, é preciso recordar que a Revista Fon-fon – ilustrada e com mais de 30 páginas, destinada aos setores médios – custava 400 réis. , preços que ora eram mantidos, ora reduzidos nos cinemas da Praça Tiradentes24 24 Os anúncios fartamente divulgados pelos periódicos da época aludiam aos preços das sessões e nos valemos aqui de uma média aproximada dos mesmos. . Enquanto isso, os preços nas salas dos bairros da Zona Sul mantinham-se na mesma faixa e os das salas das Zonas Norte e Oeste eram um pouco mais baixos.

No panorama da expansão das salas de cinema pelo Rio de Janeiro, houve outra diversão concorrente: o teatro. Atravessando uma crise na virada entre os séculos XIX e XX, os produtores de teatro se mostraram muitas vezes desconfiados e até mesmo hostis ao avanço do cinema em vários artigos veiculados pela imprensa do período. É importante recordar que essa era uma diversão ainda mais voltada para o público de elite, em razão dos preços e do repertório que costumava encenar25 25 Gomes (2004) avaliou que o teatro de revista foi uma das formas encontradas pelos produtores e artistas de teatro no início do século XX para popularizar esse tipo de entretenimento e, por consequência, concorrer pelo público cada vez mais interessado nas projeções cinematográficas. .

A programação dos cinemas costumava ser bastante variada: filmes naturais sobre cidades europeias e norte-americanas ou lugares qualificados como ‘exóticos’; comédias; dramas; filmes históricos e/ou com temática religiosa ou infantil; filmes feitos a partir de fatos da política e atualidades locais e nacionais ou mesmo fait divers, tais como crimes que ganhavam as páginas de jornais; pornográficos.

Apesar da diversidade na programação e no tipo de público das salas de cinemas, que variavam de acordo com a sua localização, havia um esforço maior por parte dos donos dessas salas em atrair a elite e os setores médios da população. A preocupação quanto ao tipo de público das salas e ao comportamento durante a projeção cinematográfica era alvo de artigos, editoriais e cartas veiculadas pelos jornais à época.

Voltando às charges anteriormente apresentadas, a distinção marcada entre as mulheres pode ser percebida ao analisarmos as personagens mostradas ao longo delas. Em todas, as mulheres frequentadoras dos cinematógrafos possuem uma representação bastante homogênea: vestidos longos de renda ou de seda, chapéus grandes e bem desenhados, guarda-chuvas e outros acessórios que denotavam um consumo de artigos de luxo. Inclusive, na primeira charge, a personagem Ingenua passou a querer frequentar os cinemas, o que demandava uma fonte de renda extra não acessível às classes mais baixas26 26 Chalhoub (2012) argumentou que a renda destinada ao lazer por parte das classes populares era escassa, em razão dos gastos com subsistência e moradia, o que as impelia a divertimentos baratos, como bares, feiras, festejos religiosos populares e cafés-concertos. .

Em outra oportunidade (Lapera, 2012LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. Ideário racial na “Belle Époque” tropical: o caso do cinematographo. Revista do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, n. 6, 2012, p.145-158. Disponível em: http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/11/e06_a16.pdf - acesso em 15 maio 2018.
http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/w...
:148-149), destacamos que as charges veiculadas pelo Jornal do Brasil entre 1908 e 1909 que envolviam alguma situação de consumo cinematográfico apresentaram todas as personagens como brancas, da mesma forma que nas charges aqui divulgadas. Tais fatos podem ser considerados como índices da autorrepresentação do público de cinema, que se percebia como pertencente às classes mais altas e em consonância com um processo de identificação cultural com o ideal europeu de civilização.

Ressaltando-se o duplo aspecto do consumo na demarcação de fronteiras entre diferentes grupos e na ritualização de práticas sociais (Douglas & Isherwood, 2004DOUGLAS, Mary & ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.), argumentamos que o lazer representado pelo cinematógrafo não é de todo acessível às mulheres de modo homogêneo, sendo isto apontado em termos de classe e de raça. Isso não significa afirmar que a presença de mulheres pobres e/ou Afro-brasileiras era vetada nos espaços de exibição27 27 Ao contrário dos EUA, onde havia leis que impunham uma divisão racial ao público cinematográfico, não houve no Brasil nenhuma legislação neste sentido. , mas o acesso era prejudicado não somente por conta do preço dos ingressos e da localização dos cinematógrafos, como também pela ostentação de vestimentas e acessórios caros por ocasião da fruição do espetáculo cinematográfico. Além disso, é possível inferir ainda que as mulheres desses grupos não eram o foco por parte dos donos de cinema em termos de público.

Evidentemente, tais pontos não afastavam totalmente mulheres das classes populares dos cinematógrafos. Ao narrar a história do guarda-civil Joaquim Calado, acusado de matar sua amante Aristea, Chalhoub (2012CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.:222) enumerou como um dos pontos de conflito do casal o fato de Aristea frequentar com amigas e outros homens um cinematógrafo próximo à residência do casal28 28 De acordo com a documentação reproduzida pelo autor (Chalhoub, 2012: 219-222), o casal residia na rua do Santana, região próxima à estação Central do Brasil, área de moradia das classes populares. , o que desagradava ao guarda-civil. Isso configura um indício de que o descontentamento com os papéis reservado às mulheres também migrava para as classes populares. Ainda, era um vestígio da possibilidade de essas mulheres verem no cinema um subterfúgio à dura realidade cotidiana.

Entretanto, em algumas circunstâncias, é preciso ressaltar que o apelo à distinção entre as mulheres era feito de modo ostensivo; por exemplo, no ato de impedir que as empregadas acompanhantes de suas patroas sentassem juntas nas sessões de cinematógrafo. Embora não fosse uma regra explícita, alguns cinematógrafos reservavam às empregadas domésticas a segunda classe, o que por sua vez gerava o protesto das patroas29 29 No artigo Gente séria não! Um patrão e um empregado grosseiros, publicado na página 2 da edição de 16.6.1913 do jornal O Paiz, narra-se a queixa de uma patroa ao delegado contra o exibidor Giácomo Staffa por ter barrado sua empregada de sentar na primeira classe. .

O consumo de artigos de luxo atuava como um importante fator de distinção social entre as mulheres pertencentes às classes mais altas daquelas que não faziam parte delas e em vários momentos essa diferença poderia ser acionada nas interações sociais. No artigo O cinema e a moda, há a descrição de diversos filmes voltados para o consumo das mulheres que eram exibidos em Paris, Nova York e Londres. Após documentar a existência de obras como A história de um vestido, sobre o processo de fabricação das vestimentas voltadas às mulheres das classes mais altas e também de revistas cinematográficas de moda, o autor conclui em tom de entusiasmo que

não está longe o dia em que se inaugurem nos nossos estabelecimentos de modas lindas salas de projecção cinematográfica, onde as nossas elegantes possam ir julgar do effeito que produzirão o seu novo vestido de seda, a sua deslumbrante “sortie de bal”, o seu chapéo de dois tons e outros objetos acariciadores de seus desejos30 30 O Imparcial, Rio de Janeiro, 22.11.1913: 8 .

Inserido na lógica do consumo de artigos de luxo, o uso de chapéus suntuosos por parte das senhoras que frequentavam os cinemas foi alvo de muitas reclamações por parte dos espectadores, inclusive com a promulgação de uma lei banindo seu uso no interior das salas de cinema, em 1908 (Lapera, Souza, 2010: 393). Ironicamente, as espectadoras recusavam-se a cumprir a lei e até pelo menos meados dos anos 1910, o uso dos chapéus geravam polêmicas calorosas em artigos e editoriais dos jornais de grande circulação do Rio de Janeiro.

A charge veiculada pela Revista da Semana em 2.2.190831 31 Revista da Semana, Rio de Janeiro, 2.2.1908: 10. sumariza a “polêmica dos chapéus” nos meses que antecederam a lei. Um espectador tenta assistir a um filme, no que é impedido pelo tamanho do chapéu da senhora que ocupa a cadeira à frente. Essa representação negativa da presença das mulheres nos cinematógrafos da cidade foi amplamente divulgada ao longo do mesmo ano, um vestígio de tensão entre o consumo de luxo e a prática ritual de ir ao cinema.

A crônica Os novos chapéos da moda32 32 O Paiz, Rio de Janeiro, 9.10.1913: 3. apresenta uma forte razão para a resistência dos homens: além de atrapalhar o espetáculo cinematográfico, os alfinetes dos chapéus eram usados pelas senhoras para se defenderem de tentativas de assédio mais violentas. Referindo-se a eles como “os terriveis alfinetes do supposto sexo fragil”, o cronista relatou que “a vontade de uma aproximação naturalmente exagerada, de[u] logar a muito olho vasado”.

Adicionado a isso, outro ponto caro à honra sexual das mulheres: a possibilidade de concretizar o adultério. Qualificado como “trompe-maris” pelo autor, ele avaliou que

aquelles chapéos que tapavam meia cara da mulher, a meia cara que ficava do lado do marido e que deixavam a outra meia absolutamente á disposição do amante, que podia conversar e até beijar a sua maitresse, sem que o felizardo esposo percebesse a normalidade.

O autor transcreveu o depoimento de uma senhora frequentadora dos cinematógrafos que se queixava dos novos chapéus, pois estes não tinham os temidos alfinetes:

Fui hoje a um cinema. Tive o caiporismo de ver sentar a meu lado um audacioso. A principio, olhou-me, depois tocou-me com o cotovello. Fiz que não entendia. É um bom true. O atrevido tomou-se de coragem: tocou-me com o joelho e depois com a propria batata da perna. Fingi ainda que não percebia. Teve o miseravel o topete de metter a mão dentro da minha mão. Resisti-lhe com a minha indifferença. Animado pela minha inercia, que era plano, ousou perguntar-me para onde ia depois da sessão e onde morava. Não lhe respondi. Afinal, quase três quartos de hora passados, como estivessemos no fim e ele insistisse nas suas perguntas, observei-lhe com severidade: “O senhor é muito feliz. Se eu tivesse vindo com o meu chapéo velho, o senhor teria já sido punido pelo meu grampo”. E o animal não se deu por achado. “A moda não é, portanto, o tyranno que se diz... devo-lhe até a minha salvação. Até um proximo encontro”. E o estupido nem sequer teve a gentileza, na rua, de acompanhar-me, por mais que eu olhasse para trás. Fumava um cigarro e flanava serenamente em sentido contrario...

Sendo um raro depoimento concedido por uma mulher a respeito do comportamento dos bolinas nos cinematógrafos, o mesmo revela que o constrangimento causado pela ação desses dificultava a fruição do espetáculo por parte das mulheres.

Porém, é preciso atentar para a mediação exercida pelo jornalista na construção da personagem feminina, algo muito presente na imprensa e na literatura da época e no período imediatamente posterior, tais como as personagens das crônicas de João do Rio. A ironia presente no relato – mais precisamente nas expressões “por mais que eu olhasse para trás” e “o estúpido nem sequer teve a gentileza” – mostra-se como mais um indício da insatisfação das mulheres com o controle e a subordinação a elas impostas. Também revela o potencial de as mulheres levarem a cabo o desejo de ocupar a cena pública sem a tutela quase onipresente de uma figura masculina e, ainda, de explorar o domínio do flerte e do prazer sem os constrangimentos trazidos pelos bolinas. Afinal, a ordem patriarcal também deixava suas possibilidades de fuga e de subversão em aberto.

3. Considerações finais

Apesar de situada em um projeto de ordem urbana bastante hierarquizada, a ida aos cinemas no início do século XX representou para as mulheres a possibilidade de novas experiências estéticas, perceptivas e sociais e a ampliação de suas redes de sociabilidade além da esfera privada. Verificamos que os ‘bolinas’ atuavam como um grupo que ora dificultava essas experiências, ora permitia o engajamento no flerte e em novas possibilidades afetivas e sexuais para as mulheres.

Em termos de controle, as disputas em torno da honra sexual operaram como o principal mecanismo de controle dessa mobilidade e das possibilidades no consumo cinematográfico. Além do constante assédio dos ‘bolinas’, uma pedagogia moral acionada por alguns filmes exibidos à época e reforçada pelas narrativas veiculadas pela imprensa colocava o marido como o chefe da família e a esposa devendo obediência a este, sob o risco de desestabilizar as relações sociais privadas e também a ordem pública, tal como pensada pela Primeira República em se tratando de relações de gênero.

Por sua vez, o consumo de artigos de luxo e sua relação com o ritual da ida ao cinema, que ainda se encontrava em formação à época, revelaram-se cruciais no sentido de delimitar a quais grupos específicos de mulheres esse controle se dirigia. A distinção trazida por esse consumo impunha uma série de constrangimentos morais que geravam tensões entre o público e muitas vezes resultavam em exclusões e constrangimentos ao ingresso de mulheres das classes mais baixas à diversão cinematográfica.

Finalmente, a “polêmica dos chapéus” sumarizou o incômodo dos homens em relação à presença das mulheres no espaço urbano da Belle époque carioca, as possibilidades de resistência por parte delas aos assédios e à distinção proporcionada pelo uso deste artigo de luxo.

Além dos mecanismos de controle, as fontes também nos ajudaram a avaliar as possibilidades de resistências por parte das mulheres que compunham o público de cinema às concepções dominantes em torno da honra sexual, de seu direito de ir e vir e da autoridade masculina como fundamental para a ordem da Primeira República, revelando algumas possibilidades de leitura que seriam responsáveis pela contestação do lugar social ocupado pelas mulheres ao longo das décadas seguintes.

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  • 1
    “these partial, ‘hidden stories’ have to be situated in the wider worlds of power and meaning that gave them life” (tradução nossa)
  • 2
    O Malho, Rio de Janeiro, 14.3.1914, p.39.
  • 3
    Lembrando que o termo rapariga é usado na fonte como sinônimo para “mulher”, sem a carga pejorativa e moralista que assumiu em um momento posterior.
  • 4
    A classe é desunida... Um bolina em apuros.In: O Povo. Rio de Janeiro, 3.9.1912:4.
  • 5
    Op. cit.
  • 6
    In: O Povo, Rio de Janeiro, 7.3.1912: 4
  • 7
    Para a noção de senso comum como objetivação partilhada da realidade, conferir BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • 8
    Careta, Rio de Janeiro, edição 315 (1914, sem dia nem mês): 13.
  • 9
    A Rua, Rio de Janeiro, 28.4.1910: 6
  • 10
    A Imprensa, 7.8.1911: 2
  • 11
    Escãndalo em um cinema. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1.11.1911: 3
  • 12
    Sobre as práticas de identificação policial em relação ao crime de vadiagem, conferir Cunha (2002)CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro (1927-1942). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002..
  • 13
    RAUL [Pederneiras]. Entrevista. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 27.10.1907: 6
  • 14
    Careta, Rio de Janeiro, 18.7.1914: 25
  • 15
    O jornal A Noite veiculou a notícia de um marido que provocou um tiroteio à entrada de um cinematógrafo após flagrar a esposa com um amante, com um título que revela a posição social da mulher. Cf: Um grande escândalo no cinema Velo – uma senhora do nosso high-life surpreendida pelo esposo. A Noite, Rio de Janeiro, 10.9.1914: 2. Por sua vez, o jornal Gazeta de Notícias narrou uma discussão em que o marido, tendo percebido o flerte da esposa com outro espectador de um cinema, ateou-se fogo e a esposa, ao tentar ajudá-lo, também foi atingida pelas chamas. Cf: Um casal em chammas – depois do cinema para o hospital. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21.11.1914: 4.
  • 16
    Uma carta innocente. Careta, Rio de Janeiro, 10.5.1913: 27.
  • 17
    Un buon esempio. In: Le chiacchiere di Nasonelli. Il Bersagliere, Rio de Janeiro, 5.5.1908: 11. Tradução nossa do italiano.
  • 18
    Outras fontes também abordaram a dimensão educativa do cinema no tocante às relações de gênero e, em algumas especificamente, ao adultério feminino como tabu no casamento. Cf: O Imparcial, Rio de Janeiro, 22.11.1913: 2; Bordados e typewriters. A Imprensa, Rio de Janeiro, 30.5.1911: 2; A triste vida de uma midinette. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 12.12.1915: 1.
  • 19
    “(...) the emergence of cinema spectatorship is profoundly intertwined with the transformation of the public sphere, in particular the gendered itineraries of everyday life and leisure” (tradução nossa).
  • 20
    Os sabbados cariocas. O Povo, 10.11.1912: 1.
  • 21
    Além da Avenida Central, havia a rua do Ouvidor e a Praça Tiradentes como locais de concentração de entretenimento, as primeiras atraindo um público mais ligado à elite e aos setores médios, enquanto as salas da Praça Tiradentes atraíam um público menos elitizado, embora estas se empenhassem fortemente em afirmar a qualidade de sua programação e o alto nível de seu público nos anúncios e nas notas divulgadas à imprensa da época.
  • 22
    O jornal O Santacruzense relatou em um artigo de 20.5.1909 a inauguração de uma sala em Santa Cruz (Zona Oeste) no domingo anterior. O jornal O Subúrbio veiculou em 13.2.1909 um anúncio do Cinema Americano, na rua Arquias Cordeiro (Méier – Zona Norte), enquanto em 6.7.1909 um artigo no mesmo jornal narrou o evento de inauguração do Cinema Edison, também no Méier. Em 16.10.1909, relatou a inaguração do Cinema Mascotte e o funcionamento do Cinema Meyer, localizados no mesmo bairro. Em 29.4.1911, O Subúrbio anunciou a inauguração do Cinema Orbe, no Riachuelo (Zona Norte). Esses exemplos mostram a rápida expansão das salas de cinema pelo Rio de Janeiro em sua primeira década.
  • 23
    A título de comparação, é preciso recordar que a Revista Fon-fon – ilustrada e com mais de 30 páginas, destinada aos setores médios – custava 400 réis.
  • 24
    Os anúncios fartamente divulgados pelos periódicos da época aludiam aos preços das sessões e nos valemos aqui de uma média aproximada dos mesmos.
  • 25
    Gomes (2004)GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. avaliou que o teatro de revista foi uma das formas encontradas pelos produtores e artistas de teatro no início do século XX para popularizar esse tipo de entretenimento e, por consequência, concorrer pelo público cada vez mais interessado nas projeções cinematográficas.
  • 26
    Chalhoub (2012)CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. argumentou que a renda destinada ao lazer por parte das classes populares era escassa, em razão dos gastos com subsistência e moradia, o que as impelia a divertimentos baratos, como bares, feiras, festejos religiosos populares e cafés-concertos.
  • 27
    Ao contrário dos EUA, onde havia leis que impunham uma divisão racial ao público cinematográfico, não houve no Brasil nenhuma legislação neste sentido.
  • 28
    De acordo com a documentação reproduzida pelo autor (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.: 219-222), o casal residia na rua do Santana, região próxima à estação Central do Brasil, área de moradia das classes populares.
  • 29
    No artigo Gente séria não! Um patrão e um empregado grosseiros, publicado na página 2 da edição de 16.6.1913 do jornal O Paiz, narra-se a queixa de uma patroa ao delegado contra o exibidor Giácomo Staffa por ter barrado sua empregada de sentar na primeira classe.
  • 30
    O Imparcial, Rio de Janeiro, 22.11.1913: 8
  • 31
    Revista da Semana, Rio de Janeiro, 2.2.1908: 10.
  • 32
    O Paiz, Rio de Janeiro, 9.10.1913: 3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2018
  • Aceito
    10 Abr 2019
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