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Mulher negra, professora e historiadora: a atuação de Maria Eremita de Souza no Serro/MG, 1913 a 2003

Black Woman, Teacher and Historian: The Work of Maria Eremita de Souza (1913-2003) in Serro, MG, 1913 to 2003

Resumo

Proponho escrever uma breve biografia de Maria Eremita de Souza, nascida no Serro/MG e falecida em 2003. Demonstro como sua trajetória existencial de mulher negra, professora e historiadora revela uma constante resistência aos padrões culturais provincianos, patriarcais, religiosos, sexistas, raciais e profissionais da conservadora cidade do Serro no século XX. Recriamos a partir de seus arquivos pessoais alguns dados biográficos e apresentamos uma discussão pari passu com algumas noções do movimento feminista contemporâneo, em especial a noção de “lugar de fala” interseccionada aos estudos sobre as “dinâmicas de mestiçagens” do Brasil colonial.

Feminismo Contemporâneo; Dinâmicas da Mestiçagem; Patriarcalismo; Educação Emancipatória; Lugar de Fala

Abstract

We propose to write a brief biography of Maria Eremita de Souza, who was born in Serro, MG in 1913 and died in 2003. We demonstrate how her existential trajectory as a Black woman, teacher and historian reveals a Constant resistance to provincial, patriarchal, religious, sexist, racial, cultural and professional standards of the conservative city of Serro in the twentieth century. Using her personal archives, were created some of her biographical data and present a pari passu discussion using some notions of the contemporary feminist movement, especially that of “place of speech” intersectioned with studies on the “dynamics of miscegenation” in colonial Brazil.

Contemporary Feminism; Dynamics of Miscegenation; Patriarchy; Emancipatory Education; Place of Speech

A origem

Lembrar uma Chica da Silva no Tijuco, uma Deolinda Mariz em Minas Novas, uma Jacinta de Siqueira na Vila do Príncipe. E não paramos aí no passado remoto; quem desta geração não se recorda ou não ouviu falar na Mãe Lucinda, a parteira das parteiras, cujas mãos de ébano receberam tanto crianças brancas como negras; de Sá Páscoa, mais distante, que deixou o nome em um dos morros da cidade; de Siá Maria dos Meninos, a eterna ama de leite; das mães pretas das casas grandes, das quituteiras e das fiéis empregadas? A todas elas que viveram no passado, a Quitéria Mina, Joana Moçambique, Pulquéria Cabinda ou Vitória Conga(Maria Eremita de Souza, Aconteceu no Serro, 1999).

Em 1702, alguns bandeirantes paulistas provisionados pela Coroa portuguesa passaram por Sabará e fizeram a descoberta de ouro nas minas do Serro do Frio. Em rápido processo de colonização, com a chegada de aventureiros do ouro vindos de várias partes da colônia brasileira e da América Latina, o governo local das minas foi aumentando o controle sobre os descobertos. Em 1714, a metrópole portuguesa achou por bem arregimentar a colonização e o controle do ouro criando a Vila do Príncipe com os símbolos do poder patriarcal, branco e europeu em solo brasileiro: o Senado da Câmara com seus homens bons, proprietários de lavras, sesmarias e escravos; o pelourinho, para castigos aos criminosos e anúncio dos bandos, decretos e leis da Coroa portuguesa e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, para a catequização da população e o exercício do padroado, esquema de doutrinação católica vinculada ao domínio português. A política da cruz e da espada estava consolidada. Nesse contexto, as mulheres foram fundamentais para o surgimento de uma sociedade inédita na história da humanidade:

Pretas, crioulas, índias, mamelucas, mulatas, pardas, cabras, enfim, mulheres não brancas de todas as “qualidades” e “condições” não apenas povoaram vilas e arraiais mineiros setecentistas, mas foram mais além. Elas se transformaram, naquele contexto dinâmico, móbil, escravista, mestiço e conectado com regiões de todo mundo, em personagens ativas, legítimos agentes históricos, coconstrutores daquele mundo, em todas as dimensões dele (Paiva, 2012PAIVA, Eduardo França. Mulheres de diversas “qualidades” e seus testamentos na colonial, escravista e mestiça Capitania das Minas Gerais. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo, Selo Negro, 2012, pp.11-23.:22).

No dia 06 de março de 1838, a Lei Provincial nº 93 elevou a antiga Vila do Príncipe à cidade do Serro. A cidade do Serro foi responsável pela colonização do Norte de Minas. Em 13 de maio de 1888, com a publicação da Lei Áurea, a nova organização capitalista local e brasileira iniciada na segunda metade no século XIX se consolidou com o emprego da mão-de-obra livre e estrangeira e o total abandono dos egressos da escravidão1 1 Seguindo as recomendações de Grada Kilomba acreditamos seja fundamental pontuar que as palavras recebam novo tratamento em sua inserção naturalizada do universo cultural herdado do Brasil colônia, em que sem estranhamento, posicionamos corpos femininos em situação degradante e degradada. Assim, “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘Outra/o’ subordinado e exótico” (Kilomba, 2019:30); por isso, mesmo que usemos as palavras comuns ao universo cultural colonial brasileiro ou da Ibero-América acreditamos que essas noções e conceitos necessitam reposicionar as mulheres como corpos com histórias próprias, o que fazemos no sentido de “inventar a nós mesmos de (modo) novo” (Kilomba, 2019:28). Não podemos negar o passado da opressão colonial, mas devemos reposicionar as histórias dessas mulheres como resistência, inconformação, superação, acordos afetivos e familiares, novas formas de dizer de um mundo outro, com corpos violados, mas resistentes e lutadores. A luta é a marca de quem foi oprimida, não a escravidão, por exemplo. em seu projeto econômico. Com isso, aprofundou-se a questão racial do branqueamento da população negra (Carneiro, 2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, Selo Negro, 2011.; Nascimento, 2017NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2.ed. São Paulo, Perspectiva, 2017.). A educação formal não incluiu os egressos da escravidão. Dessa forma, com a publicação da lei de abolição Brasil, foram libertados cerca de 700 mil escravos, “num país que vinte anos antes tivera 1 milhão e meio de escravos, sobre uma população total de cerca de 10 milhões” (Santos, 2015SANTOS, Joel Rufino dos. Saber do negro. Rio de Janeiro, Pallas, 2015.:150) o que leva ao argumento de que a essa Lei Áurea “causou a marginalização do negro, transformado de escravo, com lugar definido no sistema produtivo, em pária social” (Santos, 2015SANTOS, Joel Rufino dos. Saber do negro. Rio de Janeiro, Pallas, 2015.:150, grifo do autor) mas na verdade, “as transformações da economia brasileira o haviam atirado fora do barco muito antes” (Santos, 2015SANTOS, Joel Rufino dos. Saber do negro. Rio de Janeiro, Pallas, 2015.:150). Como afirma Santana (2015SANTANA, Bianca. Quando me descobri negra. São Paulo, SESI-SP Editora, 2015.:15), “o branqueamento apaga as glórias dos negros, a memória dos líderes que poderiam sugerir caminhos diferentes daquele da humilhação cotidiana, especialmente para os pobres”.

A cidade do Serro tornou-se um grande território de egressos da escravidão analfabetos, pobres e sem teto, em sua maioria. Uma realidade de marginalização, ou seja, de pauperização (Santos, 2015SANTOS, Joel Rufino dos. Saber do negro. Rio de Janeiro, Pallas, 2015.:152). Os poucos casos de superação desta realidade sócio-econômica-racial foram os egressos da escravização africana que aprenderam suas profissões através do ensino espontâneo, se organizaram em comunidades quilombolas autóctones ou fizeram refinados acordos dentro das dinâmicas de mestiçagem, conseguindo propriedades rurais ou urbanas e certa liberdade de ação social. Assim,

No final do século XIX, momento de crise das formas tradicionais de domínio social, a esfera de trabalho constituídas pelos ‘criados de servir’ passou por significativas transformações. Em decorrência do declínio e do fim da escravidão e do desenvolvimento do processo histórico de passagem do trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado, as relações tecidas no âmbito doméstico sofreram mudanças na forma dos contratos e nas condições de tratamento e de controle dos trabalhadores (Souza, 2012SOUZA, Flávia Fernandes. Escravas do lar: as mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo, Selo Negro, 2012, pp.244-260.:257).

É desse contexto de redimensionamento do trabalho doméstico, no interior da nova ordem das dinâmicas de mestiçagem que surge a figura da mãe de Maria Eremita de Souza, chamada Donatila Augusta de Souza. Uma mulher herdeira da função doméstica dos criados de servir. A mãe de Maria Eremita de Souza se insere na transição de uma nova ordem social serrana e brasileira para as mulheres negras egressas da escravidão africana.

A educação vem do berço?

Maria Eremita de Souza nasceu na madrugada de um sábado, dia 30 de agosto de 1913. Nesse dia, a cidade do Serro ficou sabendo que sua mãe Donatila Augusta de Souza havia dado à luz à sua única filha, de pai desconhecido. O parto foi realizado no hospital da cidade, a Casa de Caridade Santa Teresa, dirigida pelas Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, que também dirigiam o Colégio Nossa Senhora da Conceição. Desde o início de sua história, sua filha recebeu a proteção das irmãs vicentinas e do capelão do hospital, o padre João Moreira de Carvalho.

As mães solteiras no início do século XX eram normalmente expulsas de casa na religiosa e conservadora cidade do Serro. Se não eram expulsas, tornavam-se reclusas e envergonhadas para sempre (Fukui, 2002FUKUI, Lia. Segredos de família. São Paulo, Annablume, Nemge/USP, FAPESP, 2002.). Eram mulheres que, comumente, tornavam-se abandonadas por suas famílias, mesmo estando dentro de uma casa. Era uma espécie de ritual moralista severo. As mães solteiras eram consideradas ultrajantes para a família, por terem sujado o nome dos pais na sociedade. Isso não aconteceu com Dona, apelido de Donatila. A mãe de Maria Eremita não foi expulsa de casa. Não recebeu a vergonha da família. Antes, sua maternidade confirmou que os egressos da escravidão tinham uma outra forma de lidar com o corpo, com os filhos, com a sexualidade2 2 Nesse sentido, a pedagogia moralizadora da expulsão e repulsa à maternidade solteira de Dona é um exemplo claro de resistência feminina das egressas da escravidão nos primeiros anos do século XX. Esses saberes autorizados sobre o próprio corpo não foram seguidos por Dona e Maria Eremita, antes, criaram em torno de si assimetrias e novas hierarquias, assumindo uma com a outra cumplicidade para resistir ao racismo e sexismo serranos, permanências histórico-culturais que insistiam em pautar seus corpos, suas personalidades e seus desejos. . De fato, “as mulheres eram conhecidas por sua força e poder espiritual.Elaboraram formas de enfrentamento, contrariando a ideia de que aceitavam a dominação com passividade” sendo que “uma das bases de poder verificava-se na luta pela manutenção da família negra, quando as mulheres agiam na proteção da integridade física e psicológica de seus filhos e companheiros” e mesmo “de toda a comunidade da qual faziam parte” (Paixão; Gomes, 2012PAIXÃO, Marcelo; GOMES, Flávio. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo, Selo Negro, 2012, pp.297-393.:298).

Dessa forma, herdeira da ancestralidade negra da diáspora, Dona não era uma mulher de se entregar ao destino do abandono3 3 Segundo Mohanty (1988:4, tradução nossa), a categoria “mulher” e “mulheres” precisa ser problematizada “em relação ao cotexto de análise”, pois não se trata de um grupo já contituído e com certa coerência interna, com interesses hegemônicos, com a construção de uma identidade comum. Antes, ser mulher num determinado contexto, depende de sua classe social, sua localização geográfica, suas relações pessoas com a questão racial, sua sexualidade e gênro, bem como certa noção de patriarcado “que possa ser aplicada forma universal e todas as culturas”. No nosso estudo, tentamos evidenciar esses conflitos do contexto de análise através de um olhar atual sobre o papel social da mulher no mundo atual e na sociedade serrana em particular, a partir das novas formas de organização do trabalho e suas representações sociais. Assim, Mohanty (1988:4, tradução nossa) destaca que a universalização da categoria “mulher” precisa ser problematizada uma vez que “essa mulher comum do terceiro mundo leva uma vida essencialmente interrompida devido ao seu sexo feminino (leia-se sexualmente restrito) e pertença ao terceiro mundo (leia-se ignorante, pobre, sem instrução, ligada à tradição, doméstica, restrita à família, vítima, etc.). Sugiro que isso contrasta com a auto-representação (implícita) da mulher ocidental como educada, moderna, no controle de seu corpo e de sua sexualidade e com a liberdade de tomar suas próprias decisões”. Ver Sousa (2009). . De personalidade forte, trabalhava duro com sua arte culinária, habilidade herdada das mulheres de sua família. Mulher negra, de antepassados egressos da escravidão, era respeitada no Serro por sua habilidade de cozinheira, de quitandeira, de salgadeira. Na família de Dona não era costume abandonar as mães solteiras à própria sorte. Aos africanos escravizados no Serro desde o século XVIII era comum o desconhecimento de suas origens. Elas eram comumente apagadas pelos mercadores de escravos a fim de lhes retirar a identidade do lugar, da família, de pertencimento a um povo. De acordo com Nascimento (2017NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2.ed. São Paulo, Perspectiva, 2017.:123), “não é exagero afirmar-se que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas em verdadeiro estado de sítio”. Dona e seus familiares não queriam passar por essa dor nem legá-la à Maria Eremita de Souza.

O abandono das mães solteiras era comum para as famílias que queriam manter sua autoridade moral, manter a sua tradição de respeito às tradições do casamento civil e religioso. Era um costume dos descendentes de portugueses. Dona não se permitiu ao ritual moralista do abandono. Fez-se forte, levantou a cabeça, colocou a filha no colo e continuou a trabalhar para sustentar a si mesma e à sua filha. Não precisou do pai, provavelmente um homem casado, para o sustento de sua família. Nisso surgiu uma cumplicidade entre mãe e filha que marcou a história dessas duas mulheres negras. Hoje, quando se fala de Dona e Maria Eremita com quem as conheceu, fala-se de trabalho, de superação, de duas mulheres que andaram juntas durante toda a vida. A memória que restou das duas mulheres negras é a da dignidade. Não por acaso, Maria Eremita cuidou de sua mãe até o último instante de sua vida. O que poderia tê-las afastado, uniu-as numa parceria e belíssima cumplicidade.

Dona queria dar à filha o nome de Maria Rosa Augusta de Souza. Era costume serrano dar o nome dos filhos baseando-se no calendário litúrgico da Igreja. A partir da folhinha Mariana ou do calendário do Sagrado Coração de Jesus, batizavam-se os filhos com o nome do santo ou santa do dia. O dia 30 de agosto era dia de Santa Rosa de Lima. Por isso, na pia batismal, no dia 20 de setembro, a menina de Dona havia recebido outro nome, diverso da certidão de nascimento. Santa Rosa de Lima é padroeira da América Latina e foi praticante de um catolicismo popular típico dos povos ibéricos colonizados. Contudo, ao ser registrada no cartório de Sebastião Augusto de Queiróz, recebeu o nome de Maria Eremita de Souza. Eremita quer dizer de alguém que, por penitência, vive em lugar deserto, isolado, que foge ao convívio social, tornando-se solitário. Quem teria sugerido o nome? Quais os motivos? Seria uma forma de punição à filha da mãe solteira? De padroeira da América Latina para uma penitente isolada da sociedade, alguém parece ter interferido no nome da menina de Dona. No primeiro nome, escolhido pela mãe, uma grande distinção social ligada a uma mulher determinada, padroeira. No segundo nome, uma tentativa de penitência social pela gravidez sem casamento. A mudança do nome parece indicar que alguém queria colocar a menina e a mãe em seu lugar de origem social fora dos padrões da moral serrana. Dona aceitou para evitar problemas. O bom senso é uma forma de resistência cultural. Mas contou para sua filha um dia. Uma lição de como conviver numa sociedade demarcada pelo moralismo patriarcal.

O que Maria Eremita de Souza aprendeu sobre o Serro antigo foi pela boca de Dona. Não apenas relatos sobre as casas antigas e seus proprietários, casos sobre as instituições da antiga Vila do Príncipe, sobre as mestras e os mestres das escolas. Para além da memória da cidade do Serro, Dona ensinou para sua filha a tradição oral do ponto de vista dos assujeitados no processo de construção da memória do lugar (Oliveira, 2006OLIVEIRA, Eliana de. Mulher negra professora universitária: trajetória, conflitos e identidade. Brasília, Liber Livro Editora, 2006.). Dona ensinou as cantigas de roda das meninas, as tradições das festas religiosas que se perderam com o tempo, a memória sobre seus antepassados negros e negras e os homens e mulheres que haviam vivido na antiga Vila do Príncipe, desde a época das minas de ouro. Dona instruiu sua filha para viver num mundo dominado por homens, marcado pelo controle social das famílias ilustres da cidade, determinado pela moral cristã.

Desde cedo Maria Eremita aprendeu como se relacionar com o mundo e seus rituais de poder. Sem sobrenome importante, sem o apoio financeiro de um pai, de origem humilde e de família egressa da escravidão dos séculos XVIII e XIX, aprendeu com sua mãe a arte de sobreviver numa sociedade conservadora e católica. Aprendeu a lição do bom senso com sua mãe: jamais deixar de fazer o que quisesse, desde que para isso precisasse negociar seu espaço e seu lugar de fala. Segundo Ribeiro (2017)RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 2017., o lugar de fala4 4 Segundo Spivak (2010), é necessário pensar sobre a condição subalterna da mulher em determinadas situaçõessociais. Por isso, a mulher conquista seu lugar de fala à medida que percebe sua condição social, cultural, econômica e política. Nesse sentido, seguindo o binômio condição e lugar de fala, acreditamos que enquanto narrador da biografia de Maria Eremita de Souza oferecemos um certo espaço para que sua voz seja escutada, não como autobiografia, mas como uma reflexão sobre seu lugar de fala conquistado pari passu à compreensão da sua condição familiar de filha de mãe solteira numa sociedade conservadora, de religiosidade católica moralista, de um consolidado patriarcado herdado do passado colonial escravista e machista, bem como as formas de conquistar seu lugar de fala, ou seja, através da educação. Assim, conquistar o lugar de fala é um exercício de autonomia que pode se dar em vida através de ações, ou no nosso caso, nos apropriando dessa noção para dizer que tanto Dona quanto Maria Eremita conquistaram naquela condição certa autonomia para poderem ser quem elas foram agir como agiram, determinando suas existências naquele contexto. Nesse sentido, segundo Haraway (1995:16), pensar o lugar de fala, para além de recontar o passado de algumas mulheres serranas – em especial Maria Eremita e as mulheres em sua vida –, proposta do nosso estudo, é valer-se “do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro”. é constituído pelo lugar ocupado socialmente, proporcionando “experiências distintas e outras perspectivas” (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 2017.:69) bem como a partir dele é possível “uma multiplicidade de vozes” (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 2017.:70) quebrando “o discurso autorizado e único, que se pretende universal” (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 2017.:70). Por isso, a inteligência para lidar com o conservadorismo serrano em todos os seus matizes foi ensinado por Dona desde o peito materno. O leite de Dona alimentou Maria Eremita de ancestralidade. O leite de Dona alimentou Maria Eremita de dignidade. O leite de uma mulher negra, solteira e trabalhadora alimentou sua filha do orgulho de ser quem era, de saber de onde veio e deu força para sua filha resistir aos processos de determinismos sociais típicos de uma sociedade patriarcal, católica e racista. A origem social de uma menina negra de mãe solteira poderia ser um problema a ser enfrentado. E isso aconteceu desde seu nascimento. A sabedoria de Dona passou para a vida de Maria Eremita de Souza através de exemplos práticos.

Por ser uma mãe solteira, Dona foi obrigada a se afastar da comunhão, sacramento da Igreja Católica. Ligada à Igreja dos festejos populares, Dona sentiu na pele o que era passar vergonha por não fazer o que todas as mulheres honestas deveriam fazer (Papali, 2009PAPALI, Maria Aparecida C. R. A legislação de 1890, mães solteiras pobres e o trabalho infantil. Projeto História, n. 39, São Paulo, jul/dez. 2009, p.209-216 [https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/5842/4193 - acesso: 31 mar. 2021].
https://revistas.pucsp.br/index.php/revp...
). Contudo, diante da impossibilidade de não mais comungar na Igreja por ser mãe solteira, por não ter recebido o sacramento do casamento com as bênçãos de Deus e do padre, Dona passou para sua filha durante toda a vida a devoção religiosa popular. Levou Maria Eremita para o catecismo da Igreja. Dona sabia que uma das formas de resistência dos escravos e escravas e dos egressos da escravidão eram as festas populares religiosas em que se podia quebrar as regras da convivência social.

Por isso, metaforicamente, podemos afirmar que Maria Eremita redimiu sua mãe afastada da comunhão em todas as vezes que comungou a hóstia consagrada negada à sua mãe, demonstrando que a resistência silenciosa ao moralismo serrano era uma rotina das mães solteiras dos egressos da escravidão. Dona tinha razões de sobra para ter grande orgulho de sua filha pois era inteligente como seus antepassados, era forte como seus antepassados e estava preparada para assumir o lugar que quisesse na vida pois tinha a alma livre. Dona criou Maria Eremita para ser quem ela quisesse e lhe deu raízes fortes, profundas e ancestrais para poder resistir com dignidade aos processos de marginalização que passaria na vida. No colo de Dona aprendeu Maria Eremita o que era o mundo e como sobreviver a ele. Com apurado bom senso soube não se curvar à opressão. A menina de rara inteligência cresceu na companhia da mãe e com ela aprendeu a ser uma mulher negra serrana que contou como poucos a história do seu lugar através de seus textos, de suas palestras, de suas entrevistas, de seus cadernos de pesquisa.

Donatila era pau para toda obra. Muito ligada às Irmãs Vicentinas e ao padre João Moreira da Silva, empregou-se por conta das indicações do padre e das freiras fora do Serro por duas vezes. Uma para Belo Horizonte, outra para o Rio de Janeiro. Com isso, a menina Maria Eremita teve uma vida escolar atípica. Aprendeu a ler sozinha. Frequentou durante poucos meses as aulas de catecismo e alfabetização de Siá Rogéria. Fez sua primeira comunhão na Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Por volta de 1920 foi matriculada na única escola da cidade, o Grupo Escolar Dr. João Pinheiro, cursando o 1º e 2º anos. As aulas eram no enorme prédio onde hoje funciona ainda funcionam a Prefeitura Municipal e a Câmara dos Vereadores.

Na época, a sua primeira mestra foi Virgínia Advíncula dos Reis, antiga professora de uma escola isolada ou particular e uma das primeiras mestras do Grupo Escolar Dr. João Pinheiro, instalado no Serro em 1907. Diz-se que a mestra Virgínia foi uma das primeiras normalistas do Brasil, formada pela Escola Normal de Diamantina (Pires, 2015). Dona Virgínia era a mãe do advogado Luiz Advíncula Reis, idealizador de um Instituto Histórico e Geográfico do Serro, na década de 1970, que nunca saiu do papel, mas que teria como presidente Maria Eremita de Souza.

Ao iniciar o 3º ano do primário Maria Eremita mudou-se com sua mãe Dona para Belo Horizonte a convite de Dona Rita de Salles Coelho, sendo matriculada no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Não concluiu aí o Curso Primário, terminando a 4ª série no Grupo Escolar Dr. João Pinheiro, com a professora Verediana Sales (Arquivo pessoal Maria Eremita de Souza, caderno 29:s.p.) quando retornou ao Serro. Ao que tudo indica, passou alguns anos no Rio de Janeiro com sua mãe. O monsenhor João Moreira arrumou um emprego para Dona, bastante rendoso, na capital do Brasil. Maria Eremita foi matriculada no Colégio do Barão Ramiz Galvão, no bairro de São Cristóvão. Ficou por pouco tempo ali. Foi matriculada no Colégio da Providência, no bairro Laranjeiras. Frequentou aulas de português, francês, aritmética, datilografia e bordado. Recebeu seu diploma de datilógrafa na Escola Royal, na Ria da Carioca. O emprego de Donatila devia ser de cozinheira das Irmãs Vicentinas pois Maria Eremita tinha trânsito livre pelo colégio chegando a ser sacristã e auxiliar da Irmã Rosa na confecção de hóstias. É provável que Dona e Maria Eremita morassem no colégio. Fato é que aos doze anos Maria Eremita teve sua primeira experiência como professora. Era monitora da 1ª série do Colégio Providência. Corria o ano de 1925. Desde cedo ocupou um lugar infantil de conflito em relação à sua origem social e racial (Santana, 2011SANTANA, Patrícia. Professoras negras: trajetórias e travessias. 2.ed. Belo Horizonte,Mazza Edições, 2011.).

As viagens da menina com sua mãe para fora do Serro acabaram. Dona e Maria Eremita voltaram à cidade natal sob a proteção da freira Maria Carvalho e do padre monsenhor Moreira. Foi matriculada no Colégio Nossa Senhora da Conceição onde terminou o curso de normalista. Começou a trabalhar desde muito cedo com a educação. No mesmo Colégio, pouco tempo depois de receber o diploma de normalista, passou a preparar jovens para o Exame de Admissão para ingresso na primeira série do Curso Normal. Recém-formada passou por um grande teste de sua liderança. O colégio estava em ruínas. Sem dinheiro e com o desmoronamento de grande parte de seu telhado, o velho prédio inaugurado em 1904, bem próximo à Casa de Caridade Santa Tereza, foi interditado. As irmãs da caridade foram recolhidas à Casa Central em Belo Horizonte, ficando apenas a Irmã Carvalho como diretora da Santa Casa e do colégio fracassado em sua matrícula pela falta de alunas internas. O internato era a principal fonte de renda do colégio. Nesse tempo,

Correu então o boato de que a equiparação do Colégio seria passada para outro estabelecimento de Guanhães. Era preciso que o povo reagisse e houve representação como a do diretor monsenhor Moreira e a participação da mocidade serrana e o então vigário Padre Gregório Alves que paroquiou de 1934 a 1940, convocou uma reunião com as ex-alunas do Colégio, a fim de providenciar algo que evitasse a perda de tão útil instituição. Um grupo de ex-alunas prontificou-se em dar a sua colaboração. Entre elas elegendo-se como líder (Arquivo pessoal Maria Eremita de Souza, caderno 29:s.p.).

A história do Colégio Nossa Senhora da Conceição estava profundamente ligada ao espírito moralizador da Igreja no Serro. Era um símbolo de moralidade pedagógica, de bons costumes da tradicional família mineira, de uma obra com finalidade social e cristã que era a educação da juventude. Maria Eremita, jovem, engajada na reconstrução do Colégio empreendeu a retomada da vitalidade financeira e pedagógica do estabelecimento. Foi uma prova de fogo. De fato, a jovem normalista acreditava na educação de excelência praticada na instituição. Não questionava a forma moralizadora da pedagogia das irmãs vicentinas. Entrou de corpo e alma na dinâmica da educação de moralidade pedagógica. Soube ingressar nos espaços de poder e decisão com muita habilidade, com grande desenvoltura. Ingressou na defesa daquele modelo e se tornou além de professora, secretária do estabelecimento.

O papel da secretária do Colégio era uma espécie de direção mais popular, mais atenta às necessidades regionais e locais, uma direção que sabia ouvir as demandas com paciência. Com Maria Eremita as pessoas podiam falar o que quisessem e também assumir realmente suas dificuldades financeiras de manter as filhas no Colégio. A liderança da jovem professora saiu vencedora uma vez que alguns anos depois o prédio novo do Colégio começou a ser erguido, em grande loteamento no bairro do Leiteiro, ao lado da Igreja de Santa Rita. O prédio do Colégio tornou-se a maior escola da cidade. Todo o investimento das irmãs vicentinas e do monsenhor Moreira em Maria Eremita tinha dada um resultado prático: a instituição manteve-se no Serro e acabou se tornando uma referência para a educação regional, com internato e externato de jovens meninas.

A fama de excelente secretária, de competente administradora, de mulher empreendedora atravessou os muros do colégio. O presidente da Câmara convidou a jovem normalista Maria Eremita para assumir o cargo de secretária. Administrar uma Câmara significava dar conta dos papéis oficiais em seu trânsito burocrático, dos livros de atas e registros com as mais diversas finalidades. A Câmara exigiu da jovem normalista capacidade de organização e disciplina de trabalho. Enquanto isso, sua mãe Dona cuidava de administrar as atividades culinárias, o forno da quitanda, os salgados.

Assumiu o cargo de professora do 4º ano das Classes Anexas do Colégio Nossa Senhora da Conceição como professora de português. Exerceu várias atividades paralelas para receber um salário digno para sobreviver. O excesso de trabalho é confirmado na sua dupla jornada como professora e secretária das firmas de Laerte Lopes de Vasconcelos. Maria Eremita era a mulher de confiança do comerciante serrano. Era escriturária, responsável pela escrita da correspondência do Banco Comércio e Indústria de Minas Gerais. Conta-se até hoje que Maria Eremita foi a primeira mulher a trabalhar no comércio serrano, até então atividade exclusiva de homens.

Maria Eremita foi nomeada professora do Grupo Escolar Dr. João Pinheiro e como professora requereu e fez exames vestibulares para a Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico (Antipoff, 1996ANTIPOFF, Daniel I. Helena Antipoff: sua vida, sua obra. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Itatiaia, 1996.). Criada em 13 de março de 1929 na capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, a Escola de Aperfeiçoamento foi uma das realizações da reforma Francisco Campos. Funcionou até 1946. O objetivo era claro: formar professoras das escolas primárias públicas do Estado de Minas Gerais. O Ensino Superior para as professoras das escolas primárias foi visto por Maria Eremita como uma oportunidade de ampliar seus conhecimentos e sua autoridade na educação serrana. Maria Eremita tornou-se a primeira professora serrana a ter um curso superior. De fato, a Escola de Aperfeiçoamento foi a propulsora de uma grande reforma no ensino primário, colocando em evidência o ensino da Psicologia da Educação no Brasil (Campos; Quintas, 2007CAMPOS, R. H. F.; QUINTAS, G. A. Mosaico. O ensino de Psicologia para educadores em Minas Gerais: a experiência de Helena Antipoff [1930-1987]. Estudos em Psicologia,v. I, n. 1, 2007, pp.61-76.).

Por volta 1947, Maria Eremita aos 34 anos de idade, concluiu seu curso de Administração Escolar. Mais uma vez esteve no contexto de mudanças escolares. A Escola de Aperfeiçoamento tinha se tornado Escola de Administração Escolar. De fato, sabe-se que durante seus dezessete anos de existência a Escola de Aperfeiçoamento funcionou em três endereços. Iniciando suas atividades na Avenida Paraopeba, atualmente denominada Avenida Augusto de Lima, passou, em seguida, a funcionar em outra localidade da mesma avenida, no atual prédio do Minascentro. Por fim, mudou-se para Rua Pernambuco, número 47, onde hoje se encontra o prédio do Instituto de Educação de Minas Gerais. A instituição encerrou suas atividades em 28 de janeiro de 1946 após a promulgação da Lei Orgânica do Ensino Normal, Decreto-lei 8.530, e do Decreto 166. Maria Eremita retornou ao Serro com o título de orientadora técnica educacional. Neste cargo fez outros cursos de extensão no PABAE e na Fazenda do Rosário. Como orientadora exerceu outras funções no magistério. Foi designada para aplicação de provas para classificação de normalista em Guanhães, Rio Preto, Pitangui, fiscal do Colégio Nossa Senhora da Conceição (Arquivo Maria Eremita De Souza, Caderno 29:s.p.).

Entre os muitos encontros que Maria Eremita realizou durante seu curso superior em Belo Horizonte um deles foi fundamental para sua carreira na educação serrana. Trata-se da enorme influência pedagógica, metodológica e profissional que sofreu de sua professora, a pedagoga Helena Antipoff, na cidade de Belo Horizonte. A pedagoga russa tinha sido contratada pelo governo de Minas Gerais para modernizar a educação, em especial, implantar um modelo baseado no escolanovismo nos lugares mais distantes da capital mineira. Por isso, a vinda de Antipoff para a Escola de Aperfeiçoamento nos anos 1930 tinha como objetivo “atuar, como fonte inovadora, na educação pública do Estado, de forma a inserir Minas Gerais na interlocução das discussões e das propostas pedagógicas levantadas, então, naquele momento histórico” (Souza, 2002SOUZA, Maria Cleonice Mendes de. A contemporaneidade de Helena Antipoff na fala dos meninos e meninas do sertão. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Minas Gerais Montes Claros, 2002 [http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/FAEC-85CHCZ/disserta__o_cleo_final.pdf?sequence=1 – acesso em 28 maio 2018].
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:28). Para Maria Eremita, a pedagoga Helena Antipoff foi “a pioneira da educação rural” (Souza, 1999SOUZA, Maria Eremita de. Aconteceu no Serro. Belo Horizonte, BDMG Cultural, 1999.:286). Em seu livro Aconteceu no Serro (1999:286-287) Dona Maria Eremita reconheceu a importância da pedagoga russa em sua vida profissional:

Com data de 25 de agosto de 1950, recebi um honroso convite da ilustre educadora. Comunicava-me que “provavelmente a Secretaria da Educação vai iniciar o funcionamento do Curso Normal Regional no município de Diamantina (Conselheiro Mata) no próximo mês de setembro. Será a primeira diretora Dona Lidimanha Augusta Maia e Dona Maria José Dutra será outra auxiliar mui competente. Precisamos de uma terceira professora técnica. Pensei que a senhora pudesse ser, sendo dada à senhora a escolha de uma matéria globalizada”. Aceitei o convite com grande euforia e entusiasmo por me ser dado o privilégio de colaborar modestamente com tão ilustre mestra, dona Helena Antipoff, ao lado de ‘professoras experimentadas e excelentes criaturas, conhecedoras do meio rural’, como disse a Mestra. A 30 de setembro de 1950, na gestão do então governador do estado de Minas Gerais, o eminente Dr. Milton Campos, eis-nos a postos na instalação da Escola Normal Regional “Dom Joaquim Silvério de Sousa”, nome sugerido no ato da instalação pelo finado padre Guabiroba, por ter sido o prédio de Conselheiro Mata sede onde os seminaristas de Diamantina passavam as férias. Junto à Escola Normal foi também instalado, por inspiração de D. Helena, o Curso de Treinamento para professores rurais, a exemplo daquele realizado na Fazenda do Rosário. Fui a coordenadora do segundo curso.

Maria Eremita de Souza era reconhecida por sua polidez e inata capacidade para o diálogo a fim de fazer predominar seu ponto de vista. Articuladora nata, mulher de extremada capacidade política, assumiu como orientadora educacional uma posição profissional que contava com a nomeação direta da pedagoga Helena Antipoff. Para se ter uma ideia do prestígio da educação em Diamantina, durante sua gestão como coordenadora do Curso de Treinamento, suas alunas tiveram como paraninfo o então governador do estado, Juscelino Kubitscheck (Arquivo pessoal de Maria Eremita de Souza, caderno 29:s.p.).

Sua carreira de orientadora educacional contemplava inúmeras viagens pelo norte de Minas Gerais. Conheceu como ninguém a realidade das mais diversas comunidades escolares dessas cidades, distritos e da zona rural. Por isso, devido ao acúmulo de importantes funções administrativas na educação regional, não tardou a assumir por nomeação a direção do tradicional Grupo Escolar Dr. João Pinheiro continuando, entretanto, em Conselheiro Mata. Voltando definitivamente ao Serro, foi escolhida e convocada por Dona Helena Antipoff para com outras diretoras de sua confiança fazer o primeiro curso de diretoras no então recém-criado Instituto Superior de Educação Rural (ISER) hoje absorvido pelo complexo educacional da Fundação Helena Antipoff, em Ibirité. Continuando diretora, foi ainda professora de Estatística do Colégio Nossa Senhora da Conceição.

O auge da carreira de Maria Eremita de Souza na educação foi a designação para assumir a Inspetoria Seccional com sede em Diamantina. De fato, com a inspeção regional, Maria Eremita consolidou sua autoridade na educação. Há que se lembrar que uma inspetora na década de 1970 era considerada extremamente influente pois nessa função determinava-se a abertura e o fechamento das escolas, a aceitação ou não dos requerimentos dos professores e demais funcionários da rede estadual e além disso fazia-se a inspeção nas escolas municipais públicas e privadas. Era uma relação de amor ou ódio.

Maria Eremita estava preparada para o exercício dessa função. A coordenação de grupos como líder nata desde seus dezoito anos para a reconstrução do Colégio Nossa Senhora da Conceição; a compreensão do funcionamento burocrático da máquina estatal; a capacidade de argumentar advinda da prática pedagógica em sala de aula; o bom contato com os donos do poder local e estadual; tudo isso auxiliou na bem-sucedida carreira de inspetora regional. Assim, teve sob sua inspeção todas as escolas dos municípios de Diamantina, do Serro, de Conceição do Mato Dentro, com todos os distritos daqueles municípios hoje outros tantos municípios. No cargo de inspetora realizou diversas diligências na maioria das vezes com resultados satisfatórios. Empenhou-se na criação do Jardim de Infância no Serro até hoje funcionando com a denominação de Escola Estadual Infantil Irmã Carvalho. Assim, aprimorou-se ainda mais na sua função quando realizou o Curso de Pedagogia na Faculdade de Belo Horizonte (Arquivo pessoal Maria Eremita de Souza,caderno 29:sp.).

Portanto, Maria Eremita de Souza não foi apenas uma professora que deu certo. Foi mais que isso. Estamos falando de uma professora negra que comprovou sua competência numa cidade marcada historicamente pela discriminação racial. A história de sucesso de Maria Eremita pela educação recebida desde a infância por insistência da sua mãe Donatila, que a matriculava nos colégios onde trabalhava de cozinheira, mostra que as dinâmicas de mestiçagens continuaram a ser pactuadas na cidade do Serro. A abolição da escravidão formal em 13 de maio de 1888 não extinguiu as marcas do racismo nos egressos da escravidão. Trata-se de entender que uma mulher negra, filha de mãe solteira teria, sem a educação formal, um horizonte muito limitado de crescimento profissional. É que as dinâmicas de mestiçagem (Paiva, 2013PAIVA, Eduardo França. Escravidão, dinâmicas de mestiçagens e o léxico ibero-americano. Perspectivas –Portuguese Journal of Political Science and International Relations, n. 10, junho de 2013,pp.11-26.:14) são formadas pelo “conjunto de forças e de operações das quais resultaram os produtos mestiços, incluídos os humanos”, ou seja, Maria Eremita de Souza foi uma professora negra serrana que tinha como passado uma tradição de desvalorização de sua origem racial e, por conseguinte, social. Filha de uma mulher negra, filha de mãe solteira numa sociedade herdeira das dinâmicas de mestiçagem, marcada pelo conservadorismo, criou em torno de si uma nova representação de autoridade, de poder e de mobilidade social. Maria Eremita desconcertou, dessa forma, as dinâmicas de mestiçagem em seu viés negativo. Criou outras formas de representação de si mesma, outros “lexicais” dentro das dinâmicas de mestiçagem que “nomearam, definiram, valoraram e atribuíram significados a essas dimensões e a esses produtos” (Paiva, 2013PAIVA, Eduardo França. Escravidão, dinâmicas de mestiçagens e o léxico ibero-americano. Perspectivas –Portuguese Journal of Political Science and International Relations, n. 10, junho de 2013,pp.11-26.:14). Dentro desse universo serrano das dinâmicas de mestiçagem, marcadamente racista, conservador, de exclusão social e sexista, Maria Eremita de Souza ocupou seu lugar de fala, ou seja, ela conseguiu com sua ação social “desestabilizar e criar fissuras e tensionamentos a fim de fazer emergir não somente contra discursos” conseguindo “desestabilizar a norma” com sua inserção social na sociedade serrana criando “possibilidades de existências para além das impostas pelo regime discursivo dominante” (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 2017.:89-90).

O lugar de fala conquistado

A educação, de um modo geral, deveria ser o campo por excelência

a construir entradas e saídas nas fronteiras que nos separam

(Nilma Lino Gomes).

Estamos agora no ano de 1970. No dia 15 de novembro, domingo, o Congresso Nacional brasileiro foi renovado por eleições diretas. Foram eleitos 356 membros, ou seja, dois terços do Senado Federal e todos os assentos da Câmara dos Deputados. Esta foi a segunda eleição legislativa realizada pelo Regime militar de 1964 e a única eleição ocorrida no governo de Emílio Garrastazu Médici. No Serro, a primeira mulher negra foi eleita para vereadora. Maria Eremita de Souza ganhou os votos necessários para se tornar a primeira mulher negra a ingressar no legislativo municipal.

Isso é um fato memorável. As minas do Serro do Frio foram descobertas pelos bandeirantes em 1702. Em 1714, por causa de guerras civis pelo comando das lavras do ouro, o governo português elevou o povoado serrano à Vila do Príncipe, constituindo o seu primeiro Senado da Câmara. Foram eleitos entre os homens bons do lugar – donos de lavras, de escravos, brancos, dos privilégios reais – os primeiros vereadores. A elite patriarcal e branca governou a Vila do Príncipe através do Senado da Câmara até 1828 quando “veio a lei de 1º de outubro de 1828 e com ela acabou-se o nosso secular Senado da Câmara, instituindo-se em seu lugar as Câmaras Municipais, eleitas por voto popular” (Silva, 1928SILVA, Dario Augusto Ferreira da. Memória sobre o Serro antigo.Serro, Typographia Serrana, 1928.:174). Com a criação das Câmaras Municipais o sistema eleitoral manteve-se praticamente inalterado. Os homens bons continuavam no comando. O Brasil já era um país independente, mas escravocrata. Em 1889, com a proclamação da república mais uma vez mudanças superficiais na política serrana. Quem mandava, continuava mandando. Com o fim da escravidão talvez tenha sido eleito algum vereador negro. Pouco se sabe sobre isso. A ditadura militar brasileira iniciada em 1964 talvez não tenha percebido a irreverente posse da primeira mulher negra na Câmara Municipal.

Maria Eremita de Souza foi a primeira mulher negra a pisar na Câmara Municipal eleita pelo voto popular. Não bastasse ter sido eleita pelo voto popular recebeu 10 votos para tornar-se presidente da mesma Câmara no mandato 1971-1972, em escrutínio secreto no dia da posse dos vereadores. Tratava-se de uma eleição interna da Câmara Municipal com indicação por unanimidade. Durante dois anos Maria Eremita foi a chefe do legislativo serrano. Foram necessários 257 anos de história política legislativa no Serro para que uma mulher negra ocupasse o posto de vereadora. Não era apenas uma vereadora: era a presidente da Câmara Municipal (Arquivo Da Câmara Municipal, Livro para termo de posse, 1971:1-2). Maria Eremita de Souza fechou o antigo livro de posse de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores e abriu um novo, abrindo-o de próprio punho em 26 de janeiro de 1971. A metáfora desse gesto é demais significativa para não ser comentado: ela abriu um novo livro, com sua própria mão, com sua própria letra, demonstrando que algo profundamente novo acontecia. O novo livro é uma espécie de comemoração secreta da vereadora Maria Eremita: em silêncio, no comedido espaço de poder que lhe foi autorizado pelo voto popular ela escrevia uma nova história. Apenas para si mesma? Nada disso: no novo livro havia o registro de algo novo que emergia como superação de tantas histórias de lutas ancestrais, era cada linha permeada de tanta rebeldia com ecos dos quilombos arrasados, de tanta resistência cultural nutrido com as festas populares e um tanto de orgulho de sua mãe Donatila, que a viu assumir um posto de liderança jamais imaginado pela cozinheira das irmãs vicentinas. Esta data é comemorada na cidade do Serro? Infelizmente, não.

Logo após sua saída da presidência da Câmara Municipal após o mandato de dois anos, fundou a Casa de Cultura do Serro. Nesse espaço criado em 1973 durante o mandato de Marcílio Nunes (1973-1977), Maria Eremita de Souza consolidou definitivamente seu lugar de fala como historiadora serrana. Aos sessenta anos, estava na plenitude de sua pesquisa histórica, com uma habilidade desenvolvida durante anos a fio de ouvir os mais velhos da comunidade, de escrever sobre os documentos dos fóruns, dos cartórios, do arquivo da Câmara, de elaborar pesquisas sobre as festas populares. Maria Eremita tornou-se, assim, a historiadora que sabia contar o passado colocando explicações claras sobre os fatos nebulosos da comunidade serrana. A filha de Donatila acabou por assumir o papel de uma griotte contemporânea, acadêmica, cultuadora das tradições populares. As histórias de Maria Eremita foram escritas, reescritas, contadas, recontadas. Foram encenadas em peças de teatro escritas por ela como Quelé, o palhacinho do comendador (Souza, 1999SOUZA, Maria Eremita de. Aconteceu no Serro. Belo Horizonte, BDMG Cultural, 1999.) e Era uma vez, em 1779. Esta última foi encenada pelo Grupo MARTE – Movimento de Arte Teatral por ocasião do aniversário do Serro, no dia 29 de janeiro de 1987, no adro da Igreja do Carmo (Briskievicz, 2017BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da crônica e suas anotações. Porto Alegre, Simplíssimo, 2017 [E-book].). Maria Eremita denunciava explicitamente a situação dos africanos escravizados submetidos aos castigos físicos pela tia do inconfidente Padre Rolim, a icônica Maria do Ouro Fino. Ela escrevia sobre a abolição da escravidão no seu centenário do seu jeito, ainda hesitando entre a crítica social e a afirmação da relação escravista entre vítima e algoz. Colocava a cidade para visualizar o passado através do teatro. Dessa forma, interferiu profundamente na visão dos serranos sobre si mesmos, sobre o seu passado e sobre a sua condição social. Nesse sentido entende-se o que questiona Ramos (2017RAMOS, Lázaro. Na minha pele. Rio de Janeiro, Objetiva, 2017.:78):

fica então a pergunta: se não existirem referencias da cultura negra, ou se todas elas forem negativas ou por demais insignificantes, isso não implicará diretamente na nossa capacidade de sonhar, de nos sentirmos possíveis, de nos identificarmos com alguém?

A conquista do seu lugar de fala foi além do papel de griotte acadêmica. Nos anos 1980 escreveu dezenas de textos para o jornal A Sentinela. Era um “órgão oficial do município, impresso no mandato do prefeito José Monteiro da Cunha Magalhães, iniciou-se em agosto de 1987” (Briskievicz, 2002BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da tipografia e seus periódicos. Serro, Tipographia Serrana, 2002.:100). Foi criado pela Lei n.º 556, de 21 de dezembro de 1984:

Art. 1º - fica criado o órgão oficial do município com o título de “A Sentinela” que será publicado mensalmente.

Parágrafo único - A Sentinela será publicada em oficinas particulares enquanto os recursos municipais não permitirem a aquisição de um prelo próprio.

Art. 2º - os cargos de diretor-redator, editor, gerente e auxiliares serão exercidos por funcionários da própria Prefeitura, designados pelo Senhor Prefeito Municipal.

Art. 3º - fica o Prefeito Municipal autorizado a tomar todas as providências para a publicação do jornal bem como as providências jurídicas, orçamentárias e contábeis necessárias (Briskievicz, 2002BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da tipografia e seus periódicos. Serro, Tipographia Serrana, 2002.:100).

A redação sobre a história serrana ficou por conta da Casa de Cultura do Serro, ou seja, a presidente da instituição Maria Eremita de Souza teve a oportunidade de espalhar suas histórias em um jornal que circulou pela cidade, influenciando diretamente com suas narrativas a forma de entendimento sobre o passado serrano.

Na década de 1980, a cidade do Serro passou pela reforma de suas igrejas. Foi a década em que muitos prédios públicos foram reformados como o Ginásio Ministro Edmundo Lins e o prédio da Prefeitura e Câmara Municipal. Era fundamental recontar as histórias da cidade, as histórias do passado. Maria Eremita não se contentou em escrever sobre a história das elites serranas. Esse é um ponto controverso em sua biografia pois necessitava manter seus canais de diálogo com os donos do poder, mas ao mesmo tempo expressou forte desejo de rever a história dos negros e negras na cidade.

É assim que podemos entender o belíssimo texto sobre O negro na sociedade serrana: sua atuação e posição social na história. Resultado de sua pesquisa para uma palestra sobre os cem anos da Lei Áurea, o texto foi publicado no seu único livro Aconteceu no Serro (1999) com o título deOs negros no Serro. Mostrando profundo conhecimento dos documentos serranos do século XVIII e XVIII, esclarece sobre o papel da escravidão na história de Minas Gerais. Numa época em que os estudos sobre a escravidão começavam a se popularizar no Brasil (Paiva, 2012PAIVA, Eduardo França. Mulheres de diversas “qualidades” e seus testamentos na colonial, escravista e mestiça Capitania das Minas Gerais. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (org.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo, Selo Negro, 2012, pp.11-23.) mostrando um universo novo de possibilidades de compreensão deste fenômeno social, Maria Eremita lançou mão de uma análise de fontes primárias. A partir da leitura atenta dos historiadores serranos, em especial Dario Augusto Ferreira da Silva com seu livro Memória sobre o Serro antigo, de 1928 e de seu autor predileto, o alferes Antônio Luiz Pinto, tio do ex-governador mineiro João Pinheiro da Silva, que não publicou livro, mas escreveu importantes contribuições históricas para a Revista do Arquivo Público Mineiro no final do século XIX e início do século XX (Pinto, 1914; Pinto, 1902PINTO, Antônio Luiz. Memórias municipaes. Revista do Arquivo Público Mineiro, n. VII, Belo Horizonte, 1902, pp.939-940.), além de ter sido redator do jornal O Serro (Briskievicz, 2017BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da crônica e suas anotações. Porto Alegre, Simplíssimo, 2017 [E-book].).

Em relação à pesquisa histórica o método de produção do conhecimento em relação ao passado serrano, mineiro e brasileiro foi bastante peculiar. Proprietária de uma extensa biblioteca, leitora de jornais, de revistas, escrevia suas anotações nos cadernos. Os cadernos de pesquisa de Maria Eremita de Souza tornaram-se uma lenda na cidade do Serro. Quando perguntada sobre um tema, uma pessoa, um fato ela dizia que ia consultar suas anotações e que o interessado voltasse dentro de alguns dias. Os lendários cadernos ficaram na sua casa após seu falecimento. Foram digitalizados 220 cadernos, com as mais diversas capas. O primeiro caderno escrito de próprio punho é datado do 24 de abril de 1964. O último tem data de 16 de março de 2001. Na década de 1960 constam 60 cadernos; na década de 1970, 59; na década de 1980, 101; na década de 1990, 44; na década de 2000, apenas 1. O que ela tanto escrevia nos seus cadernos? De tudo, literalmente. Transcrição de documentos dos arquivos do Arquivo Público Mineiro, do Arquivo de Câmara do IPHAN-Serro, do arquivo da Câmara Municipal, do arquivo do Fórum; de jornais serranos, mineiros, brasileiros; receitas culinárias; diários de suas atividades educacionais, de seus encontros, de suas viagens a Belo Horizonte, Diamantina, Brasília, Portugal, dos fatos mais corriqueiros como, por exemplo, a medição horária do florescer de uma orquídea em seu jardim. São anotações sobrepostas, recopiadas. Tentativas de fazer índices, de criar uma continuidade. Uma forma de registro histórico caótico, mas com o qual ela criava seu mundo de informações. O arquivo ainda está em processo de indexação.

Com tantas anotações, com tantas informações, não é difícil de entender como Maria Eremita se tornou pioneira na compreensão mais refinada dos mecanismos da escravidão dos africanos no Serro. Nesse sentido, ao escrever sobre a escravidão contava para as novas gerações a história de seus ancestrais. Dessa forma podemos entender a participação decisiva de Maria Eremita na popularização da festa do Rosário no Serro. Ao estudar a festa iniciada em 1717 com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em suas manifestações populares – a dança, a música e a fala dos caboclos, dos catopés e dos marujos – reintroduziu certos rituais até então esquecidos. Assim, fez retornar a embaixada, uma forma de recontar a lenda de Nossa Senhora do Rosário, encenada antes da missa campal no largo do Rosário, em julho. Da mesma forma introduziu uma figura feminina que se tornou muito importante para a memória oral dos cantos da festa: a Rainha Zinga. Os estudos sobre a dinâmica da festa do Rosário foram importantes num contexto de perda da identidade da comunidade em relação ao como fazer passo a passo seus festejos. Dessa forma, Maria Eremita quando secretária da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário ajudou na perpetuação da memória oral dos egressos da escravidão africana no Serro. Junte-se a isso que sua mãe Donatila era devota da Senhora do Rosário e foi rainha da festa, tendo por conta disso, direito ao sepultamento no adro da Igreja do Rosário. A filha não apenas seguiu os costumes da sua mãe, mas teve papel fundamental para a manutenção da tradição da mesma.

O contato com a devoção familiar cristã de forte matriz popular fez com que Maria Eremita participasse ativamente das irmandades, das missões, das pastorais paroquiais e tantas outras manifestações de sua fé na Paróquia Nossa Senhora da Conceição. De fato,

Ela foi uma das serranas mais atuantes da nossa sociedade e da nossa Igreja local (...). Sabia unir fé e vida. Na Paróquia, distinguiu-se como catequista de adultos, sendo dirigente de Círculos Bíblicos nas casas de famílias, como ministra extraordinária da comunhão eucarística e como priora da Ordem Terceira do Carmo por mais de 10 (dez) anos. D. Maria Eremita era muito amiga dos padres (...). Por ser ela uma pessoa muito culta e bondosa, era muito respeitada e admirada por todos. Sua lembrança está sempre presente no coração do povo serrano pelo muito que ela fez à nossa sociedade e à nossa comunidade paroquial (Mesquita; Seabra, 2013:97-98).

Maria Eremita foi secretária da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Priora da Ordem Terceira do Carmo. Catequista das crianças. Amiga dos padres da paróquia, mantendo a tradição de sua mãe Donatila. Na vida leiga no interior da comunidade cristã serrana Maria Eremita exerceu uma autoridade absoluta (Souza, 2003SOUZA, Maria Eremita de. Bicentenário da Matriz do Serro. Revista de História do Serro, Serro, n. 03, 14 mar. 2003, pp.79-80.). De seu jeito, da sua forma, à sua maneira compartilhou com os padres sua autoridade comunitária. Envolvida nas mais diversas programações religiosas, convidada de honra para engrossar a fileira das autoridades locais, disposta a dar sua contribuição como presença ou como fala experiente aos mais jovens, ela se tornou influente onde quer que estivesse. De rara competência para a liderança dos movimentos sociais, assumiu na paróquia serrana a secretaria da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Entre atas e reuniões acabou por resgatar ou inventar a figura da Rainha Zinga na Festa do Rosário. Amiga dos padres e bispos, conhecida dos missionários que passaram pela cidade no século XX, aliada das vicentinas, reconhecida como liderança leiga na paróquia, assumiu o posto de priora da Ordem Terceira do Carmo. Conhecedora das festas e de suas histórias, esteve presente na luta constante para a preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade, a primeira do Brasil a receber o tombamento pelo Patrimônio Nacional em 1938.

Maria Eremita de Souza faleceu no dia 10 de julho de 2003. Foi sepultada no adro da Igreja do Rosário dos Homens Pretos no mesmo mausoléu de sua mãe, Donatila. Sua mãe conquistou o direito ao sepultamento no adro da Igreja por ter sido festeira, ou seja, foi rainha do Rosário. Nada mais adequado para duas mulheres negras de inquestionável nobreza.

Conclusão

A biografia de Maria Eremita de Souza possui elementos fundamentais que permitiram analisar como o indivíduo é perpassado pelos valores sociais e que, em algum momento, há uma decisão de não mais continuar com aqueles padrões de opressão herdados do passado, naturalizados com o passar do tempo das sociedades mais conservadores. Nesse sentido, vale a recomendação de Kofes (1994KOFES, Suely. Experiências sociais, interpretações individuais: histórias de vida, suas possibilidades e limites. cadernos pagu (3), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1994, pp.117-141 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1725 - acesso em: 31 mar. 2021].
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
:140) quando explica que “as histórias de vida continuam sendo instrumentos fundamentais para a compreensão e análise de relações sociais, de processos culturais e do jogo sempre combinado entre atores individuais e experiências sociais, entre objetividade e subjetividade”.

Maria Eremita de Souza, mulher negra, professora e historiadora viveu suas experiências de resistência racial, cultural e de gênero na cidade do Serro, no norte de Minas Gerais situada na condição de egressa da escravidão brasileira. A situação desta mulher negra na sociedade brasileira, mineira e serrana através da educação e da história foi a de absoluta resistência aos padrões convencionais herdados das dinâmicas de mestiçagem das antigas vilas do ouro coloniais. Padrões estes que passaram de geração em geração e que pretendiam manter e inferiorizar os egressos da escravidão. A forma de lidar com sua situação social, racial e de gênero nos permite afirmar que afrontou os padrões vigentes com extremado bom senso, alcançando por sua capacidade de leitura dos contextos sociais, seu lugar de fala.

Anexo

Figura 1
: Maria Eremita de Souza [à direita], c. 1940

Figura 2
: Maria Eremita de Souza, c. 1960

Referências bibliográficas

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  • ARQUIVO da Câmara Municipal. Livro para termo de posse. Serro, 1971.
  • ARQUIVO Pessoal Maria Eremita de Souza. Caderno 29 00-00-1975 Sem capa.
  • BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da crônica e suas anotações. Porto Alegre, Simplíssimo, 2017 [E-book].
  • BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da tipografia e seus periódicos. Serro, Tipographia Serrana, 2002.
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  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.
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    Seguindo as recomendações de Grada Kilomba acreditamos seja fundamental pontuar que as palavras recebam novo tratamento em sua inserção naturalizada do universo cultural herdado do Brasil colônia, em que sem estranhamento, posicionamos corpos femininos em situação degradante e degradada. Assim, “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘Outra/o’ subordinado e exótico” (Kilomba, 2019:30); por isso, mesmo que usemos as palavras comuns ao universo cultural colonial brasileiro ou da Ibero-América acreditamos que essas noções e conceitos necessitam reposicionar as mulheres como corpos com histórias próprias, o que fazemos no sentido de “inventar a nós mesmos de (modo) novo” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.:28). Não podemos negar o passado da opressão colonial, mas devemos reposicionar as histórias dessas mulheres como resistência, inconformação, superação, acordos afetivos e familiares, novas formas de dizer de um mundo outro, com corpos violados, mas resistentes e lutadores. A luta é a marca de quem foi oprimida, não a escravidão, por exemplo.
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    Nesse sentido, a pedagogia moralizadora da expulsão e repulsa à maternidade solteira de Dona é um exemplo claro de resistência feminina das egressas da escravidão nos primeiros anos do século XX. Esses saberes autorizados sobre o próprio corpo não foram seguidos por Dona e Maria Eremita, antes, criaram em torno de si assimetrias e novas hierarquias, assumindo uma com a outra cumplicidade para resistir ao racismo e sexismo serranos, permanências histórico-culturais que insistiam em pautar seus corpos, suas personalidades e seus desejos.
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    Segundo Mohanty (1988:4, tradução nossa), a categoria “mulher” e “mulheres” precisa ser problematizada “em relação ao cotexto de análise”, pois não se trata de um grupo já contituído e com certa coerência interna, com interesses hegemônicos, com a construção de uma identidade comum. Antes, ser mulher num determinado contexto, depende de sua classe social, sua localização geográfica, suas relações pessoas com a questão racial, sua sexualidade e gênro, bem como certa noção de patriarcado “que possa ser aplicada forma universal e todas as culturas”. No nosso estudo, tentamos evidenciar esses conflitos do contexto de análise através de um olhar atual sobre o papel social da mulher no mundo atual e na sociedade serrana em particular, a partir das novas formas de organização do trabalho e suas representações sociais. Assim, Mohanty (1988:4, tradução nossa) destaca que a universalização da categoria “mulher” precisa ser problematizada uma vez que “essa mulher comum do terceiro mundo leva uma vida essencialmente interrompida devido ao seu sexo feminino (leia-se sexualmente restrito) e pertença ao terceiro mundo (leia-se ignorante, pobre, sem instrução, ligada à tradição, doméstica, restrita à família, vítima, etc.). Sugiro que isso contrasta com a auto-representação (implícita) da mulher ocidental como educada, moderna, no controle de seu corpo e de sua sexualidade e com a liberdade de tomar suas próprias decisões”. Ver Sousa (2009)SOUSA, Boaventura de Santos. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SOUSA, Boaventura de Santos; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra, Edições Almedina, 2009, pp.23-71..
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    Segundo Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010., é necessário pensar sobre a condição subalterna da mulher em determinadas situaçõessociais. Por isso, a mulher conquista seu lugar de fala à medida que percebe sua condição social, cultural, econômica e política. Nesse sentido, seguindo o binômio condição e lugar de fala, acreditamos que enquanto narrador da biografia de Maria Eremita de Souza oferecemos um certo espaço para que sua voz seja escutada, não como autobiografia, mas como uma reflexão sobre seu lugar de fala conquistado pari passu à compreensão da sua condição familiar de filha de mãe solteira numa sociedade conservadora, de religiosidade católica moralista, de um consolidado patriarcado herdado do passado colonial escravista e machista, bem como as formas de conquistar seu lugar de fala, ou seja, através da educação. Assim, conquistar o lugar de fala é um exercício de autonomia que pode se dar em vida através de ações, ou no nosso caso, nos apropriando dessa noção para dizer que tanto Dona quanto Maria Eremita conquistaram naquela condição certa autonomia para poderem ser quem elas foram agir como agiram, determinando suas existências naquele contexto. Nesse sentido, segundo Haraway (1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 - acesso em: 31 mar. 2021].
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    :16), pensar o lugar de fala, para além de recontar o passado de algumas mulheres serranas – em especial Maria Eremita e as mulheres em sua vida –, proposta do nosso estudo, é valer-se “do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2018
  • Aceito
    27 Jul 2020
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