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Drag, glamour, filth: gênero e monstruosidade em Rupaul’s Drag Race e Dragula

Drag, Glamour Filth: Gender and Monstrosity In Rupaul’s Drag Race and Dragula

Resumo

A partir de Foucault, o artigo pergunta: “Quem são os monstros de hoje?” e qual o potencial político dessas monstruosidades, principalmente nas suas relações com o gênero e a sexualidade? Parte-se do princípio de que a construção da monstruosidade contemporânea é um “nó em uma rede” (Foucault, 2013a) que compreende regularidades e dispersões com relação aos discursos anteriores sobre a monstruosidade, o gênero e o sexo. Tomamos dois realities shows americanos: RuPaul's Drag Race e Dragula e, a partir de alguns enunciados, propomos uma análise discursiva da forma como as dragqueens tensionam as noções de gênero e de monstruosidade por meio de suas próprias vidas e da construção de suas aparências.

Monstruosidade; Gênero; Drag Queens; Discurso

Abstract

Considering Foucault, this paper asks: today, what is the political potential of those monstrosities, mainly in their relations to gender and sexuality? It is based on the principle that construction of monstrosity todayinvolves regularities and dispersions in relation to previous discourses on monstrosity, gender and sexuality. We consider two U.S. reality shows: RuPaul's Drag Race and Dragula, and based on some statements we propose a discursive analysis of how drag queens challenge notions of gender and monstrosity through their lives and the assemblage of their appearances.

Monstrosity; Gender; Drag Queens; Discourse

Introdução

O trabalho analisa as subjetividades e os discursos que são engendrados e circulados em espaços midiáticos, mais especificamente em reality shows de competição com dragqueens. Não há pouco tempo o reality show RuPaul’s Drag Race tornou-se um fenômeno midiático entre públicos homossexuais e mesmo heterossexuais. O programa norte-americano, já em sua décima segunda temporada 1 1 São 13 temporadas principais e cinco All Stars, cujas participantes são as queens que já competiram em temporadas anteriores. , apesar da afirmação contrária da própria RuPaul, é um dos fenômenos que tornou o dragmainstream no contemporâneo e fez de algumas dragqueens grandes estrelas, celebradas por sua arte, aparência e posicionamento com relação às questões de gênero e sexualidade.

O posicionamento contrário de RuPaul a essa suposta popularização da arte drag, bem dito, tem ares políticos: para ela, as dragqueens nunca serão mainstream, pois a sua própria existência é uma prática de resistência, de subversão e de oposição a um status quo – ou a uma ordem discursiva (Foucault, 2013b) – sobre o gênero e a sexualidade. Em entrevista ao The Guardian, RuPaul afirma: “Drag nunca vai ser mainstream porque quebra a quarta parede e zomba de nossa cultura e identidade: quanto você tem, de onde você é, seu contexto econômico. Drag zomba de tudo isso. É a antítese do mainstream 2 2 Tradução nossa. Disponível em: https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2015/jun/03/rupaul-drag-is-dangerous-we-are-making-fun-of-everything . . Ao que emenda: “A cultura mainstream sempre cooptou a cultura gay e outras subculturas; nosso vernáculo, nossa moda, nossa linguagem. M as adivinha? Nós temos muito mais de onde tudo isso veio. Ainda estamos 10 anos à frente”.

Em outras palavras, por mais popular e massificada que a arte drag se torne, ela traz em sua tessitura histórica e discursiva a oposição às normas, às normalidades do corpo que são estabelecidas e reiteradas em nossas sociedades e, por isso, nunca será mainstream, permanecerá uma prática de outsiders: “ As pessoas nunca vão quebrar suas crenças porque é muito assustador enxergar além do que elas foram ensinadas a ver”.

Ainda assim, como aponta a matéria do The Guardian, a popularidade é inquestionável, pois, se a arte drag sempre foi um tema cult, é nos últimos anos que ela se tem feito preeminente seja na utilização de maquiagens drag por celebridades como Kim Kardashian, seja na difundida utilização do dialeto drag, com termos como “jogar um shade ”, ou os icônicos “ shantay,you stay ” e “ sashay, away ”.

Ainda nesse campo de batalha entre o mainstream – visto do ponto de vista da ordem – e o outsider – este como sendo a resistência, a subversão -, RuPaul faz uma espécie de manifesto no último episódio da sexta temporada do Reality. Na tentativa de explicar ao mundo o que é o drag, a artista afirma:

Drag é underground ... mas também é over the top 3 3 Mantivemos os termos em inglês para preservar o jogo linguístico proposto por RuPaul. Underground (subterrâneo) é um termo utilizado para manifestações artísticas e culturais que não são comuns no dia-a-dia, no cotidiano, que se escondem, marginalizadas; over the top (além, acima do top) refere-se a exagero, excesso e também superação. ; Drag é político... e politicamente incorreto; Drag é camp... e também couture (alta costura); Drag é punk... e mainstream; Drag é risada certa... mas também pode iniciar uma revolução; Drag é nunca ter de pedir desculpas... porque Drag é sobre você ser o que bem entender ser.

O manifesto termina com uma imagem das queens participantes do documentário americano Paris is Burning 4 4 O documentário foi dirigido pela cineasta americana Jennie Livingston e demorou sete anos para ser finalizado, sendo um retrato das salas de baile novaiorquinas dos anos 80. , obra dos anos 90 que se tornou um clássico. O filme é uma das primeiras produções audiovisuais a retratar a realidade das queens americanas, dentre elas garotos gays, mulheres transexuais, em sua maioria negros e latinos, que utilizavam a arte drag como forma de liberdade e os espaços dos bailes e concursos como lugares de sociabilidade. O filme retrata não apenas a parte extravagante e espetacular da arte drag, mas também as agruras vividas por pessoas que se veem obrigadas a lidar com a rejeição, o abandono, a insegurança e a violência por conta de sua sexualidade e identidade de gênero, muitas vezes considerados aberrantes em um contexto histórico e social marcado pela heteronormatividade e pela rejeição do diferente ( Miskolci, 2016 MISKOLCI, Richard. Introdução à teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica, 2016 . ).

Adentrando ainda mais na complexidade dessas questões, é interessante pensarmos como a popularização do reality show abriu portas para a irrupção de outros discursos, não só sobre o drag, mas também sobre a sexualidade e o gênero; discursos cujas materialidades circulam também nos espaços midiáticos.

Um exemplo é o web realityD ragula: thesearch for Américas next drag supermonster. Seguindo um modelo de competição semelhante ao de RuPaul’s Drag Race, o reality, apresentado pelos Irmãos Boulet ( Boulet Brothers ), leva a arte drag aos extremos da monstruosidade. O próprio nome do programa já afirma que a monstruosidade é um ideal almejado pelas dragqueens participantes. Como aponta a música de abertura, a feminilidade (o drag, o glamour) não basta: para ser coroada uma drag super monster são necessárias altas doses de abjeção e de horror (“ filth, horror, Dragula ”, diz a música).

A reflexão que segue se constrói no entrecruzamento entre diversos discursos e formas de subjetivação (Foucault, 2014) que atravessam os corpos das dragqueens e tecem as suas aparências como materialidades (possivelmente) subversivas, que produzem sentidos sobre gênero e sexualidade em nossas sociedades contemporâneas. O trabalho propõe tensionar o conceito de monstruosidade (Foucault, 2013c; Courtine, 2014) – como materializado em Dragula, RuPaul’s Drag Race – em suas relações com outros conceitos, como o de gênero, sexualidade e resistência.

Utilizaremos como ferramenta crítica os escritos foucaultianos sobre discurso, monstruosidade, sexualidade e subjetivação e resistência (Foucault, 2013a, 2013b, 2010, 1979, 1988). Abordaremostambém os escritos de alguns de seus epígonos (Courtine, 2014) sobre a monstruosidade. Os conceitos de gênero e sexualidade serão abordados a partir das discussões propostas, também, por Judith Butler (2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 ., 2018 BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018 . ). Todas essas discussões dar-se-ão a partir de enunciados extraídos de alguns episódios de Dragula e RuPaul’s Drag Race.

Como pergunta norteadora desta pesquisa, junto com Jean Jacque Courtine (2014), buscamos inquirir quem – e como – são os monstros hoje? E como os sentidos sobre essa monstruosidade são construídos, por um lado, nas redes de memórias históricas sobre a monstruosidade, a sexualidade e o gênero. Por outro lado, são movimentados, subvertidos ou corroborados em sua atualização no corpo das dragqueens, criando possíveis locais de resistência.

Para tanto, o trabalho está divido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, abordamos o conceito de monstruosidade em Foucault e seus epígonos e sua relação com o gênero e a sexualidade. Uma segunda seção aborda mais diretamente as noções de gênero e sexualidade. Já uma terceira seção busca, a partir da análise dos dois realities, cruzar essas noções a fim de questionar quem são os monstros contemporâneos e qual a sua importância nos dias atuais.

1. O Monstro: nas prisões, nos hospitais, nos espetáculos

Durante seu curso no Collège de France, em 1975, Michael Foucault explica acerca da criação discursiva dos monstros. Dessa forma, ele afirma que existem três figuras que englobam essa anomalia. São elas: o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora.

Para Foucault, a monstruosidade está diretamente atrelada a nossa compreensão de crime, ou seja, nos causa repudio. Para ele, o monstro na sociedade se define como uma transgressão às leis da natureza e está enraizado em uma noção jurídica, portanto, caminha em um campo jurídico-biológico. Logo, a análise ocorre tanto em cima das leis sociais quanto em cima do corpo dos indivíduos, como fica explicito no trecho a seguir.

O campo do monstro é, portanto, um domínio que podemos dizer “jurídico-biológico”. Por outro lado, nesse espaço, o monstro aparece como um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro. Ele é o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com o proibido ( Foucault, 2010 FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2010 .: 70).

Esse desvio, assim, gera inúmeros discursos que repercutem até hoje. Um deles é o de que basta o monstro existir para que uma lei da natureza seja infringida. Logo, o teórico nos faz questionar até que ponto a monstruosidade está ou não ligada a alguns comportamentos tomados como criminosos. Atrelado a esse questionamento, ele defende que essas três anomalias,as quais ganham destaque no século XIX, carregam, na verdade, uma rejeição histórica e acabam se tornando indivíduos marginalizados e de expressões banais.

É interessante notar que, ainda no século XVIII, essas três divisões de monstros estavam isoladas. Somente depois (no século XIX) elas se “encontraram” e formaram a figura do anormal em nossa sociedade.

O monstro humano, segundo Foucault, diz respeito a uma violação na norma da natureza. Violação essa que é vista como uma transgressão, pois esse monstro é um indivíduo que, segundo os “normais”, possui um corpo anormal, como fica explicito na passagem abaixo.

É o misto de dois sexos: quem é ao mesmo tempo homem e mulher é um monstro. É um misto de vida e de morte: o feto que vem a luz com uma morfologia tal que não pode viver, mas que apesar de todos os pesares consegue sobreviver alguns minutos, ou alguns dias, é um monstro. Enfim, é um misto de formas: quem não tem braços nem pernas, como uma cobra, é um monstro. Transgressão, por conseguinte, dos limites naturais, transgressão das classificações, transgressão do quadro, transgressão da lei como quadro: é disso de fato que se trata, na monstruosidade ( Foucault, 2010 FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2010 .: 79).

O conceito de monstro humano vai além da transgressão do limite natural, esse conceito deve atingir as leis civil e divina. É no ponto de encontro dessas duas leis que se firma a monstruosidade de acordo com o pensamento do teórico, principalmente porque quando a monstruosidade aparece ela questiona o direito.

O direito é obrigado a se interrogar sobre seus próprios fundamentos, ou sobre suas práticas, ou a se calar, ou a renunciar, ou a apelar para outro sistema de referência, ou a inventar uma casuística. No fundo, o monstro é a casuística necessária que a desordem da natureza chama no direito ( Foucault, 2010 FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2010 .: 80).

Para Foucault, portanto, esse monstro é a forma mais extrema de oposição à norma, e é a partir dele que vamos conseguir entender como as pequenas anomalias são taxadas de monstruosidades. É nesse momento que o teórico afirma que o discurso jurídico se apropria do monstro para criar a lei.

Esse quadro muda e começa a tomar proporções maiores quando os três monstros começam a se comunicar, ou seja, quando o monstro humano faz uma conexão com o desviante sexual e acaba por dar origem ao monstro sexual. Com essa mudança, a figura do monstro passa de um domínio político-biológico para um domínio jurídico–político, com isso, a ideia de monstro não está mais somente atrelada a noções de corpo, mas também de comportamento.

Entretanto, corpo e comportamento se entrelaçam no desenvolvimento do conceito de monstruosidade. Se, em princípio, a monstruosidade era vista pelo ponto de vista da natureza - uma aberração natural segundo a qual as pessoas nasciam com membros deformados, partes do corpo em excesso ou faltosas, mistos de animais e seres humanos –, com o monstro moral, a monstruosidade passa a estar assentada em subversões do comportamento normal e da moralidade canônica. Assim, os homens que se vestem de mulher ou vice-e-versa e que, portanto, traem a naturalidade e a normatividade de seus sexos e gêneros, são, também eles, monstros morais.

Essa monstruosidade moral, no entanto, à diferença da monstruosidade natural, pode ser curada, corrigida, punida. Nesses casos a redenção, jurídica mesmo, é a abdicação do vestir-se como o sexo oposto. A abdicação da monstruosidade em nome da normalidade, da adequação do corpo às normas.

A rigor, para os interesses do nosso estudo, faz-se essencial notar como, na arqueogenealogia 5 5 O termo, utilizado por intérpretes dos escritos foucaultianos, refere-se a um olhar que busca pensar seu aparato teórico e metodológico – comumente divido em uma fase arqueológica, uma fase genealógica e uma fase da ética/estética da existência – mais como um conjunto do que como momentos estanques. da monstruosidade proposta por Foucault, há um lugar marcado para como essa monstruosidade é depurada a partir da aparência, das marcas corporais, da modulação visível do corpo dos monstros e anormais. Um dos modos de correção dessa monstruosidade é a própria vigilância com relação à produção dessa aparência monstruosa.

O monstro é monstro, também, porque se faz ver e é visto pelos olhares normalizadores. Em outra vertente, inspirada em Foucault mas que ultrapassa os limites de sua arqueogenealogia da monstruosidade, Courtine (2014) aborda a monstruosidade além daquela produzida pelos discursos médico e jurídico.

O monstro espetacular, aquele que toma o espaço das feiras, dos circos e dos teatros ao ar livre é, ele também, portador de uma monstruosidade construída pelas aparências. A mulher de duas cabeças, ou os homens sem braços e toda uma gama de bizarrices dignas dos Freaks de Tod Browning pavoneavam-se pelas ruas das cidades europeias no afã de transformar seus próprios corpos – e as consequentes pena e curiosidade causadas por eles – em espetáculos públicos, a serem consumidos pelos ávidos cidadãos que tinham nessas terrificantes anomalias a confirmação da normalidade dos corpos.

Até uma espécie de “sanitização da monstruosidade” que, segundo Courtine, começa a ter lugar em meados dos anos 40 do século XX, a exceção constituída pela monstruosidade era a perpetuação da regra. Referindo Foucault, Courtine (2014:123) assevera,

Essa foi, portanto, uma das formas essenciais da formação do “poder de normalização” na virada do século, esta “função estratégica dominante” que Foucault reconhece aos dispositivos: a extensão do domínio da norma fez-se através de um conjunto de dispositivos de exibição do seu contrário, de apresentação da sua imagem invertida.

Ao que emenda:

A exibição do anormal tinha realmente por objeto a propagação de uma norma corporal. O monstro continua uma exceção que confirma uma regra: é a normalização do corpo urbanizado do citadino que o círculo dos estigmatizados desfilando diante do objetivo convida a reconhecer no espelho deformante do anormal (Courtine, 2014:125).

A reconfiguração do monstro, que vai do corpo ao comportamento passando pela espetacularização da própria aparência, nos ajuda a pensar a trama das ordens discursivas entranhadas em nossa sociedade patriarcal, heteronormativa e heterossexista. Como pudemos ver, o próprio conceito de Monstruosidade foi construído, historicamente, para enquadrar aqueles que escapam a essas ordens. Uma monstruosidade que, segundo Gil (2016 GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D’Água, 2016 .: 11), parte de inquietações ontológicas profundas: “Essa atitude é sinal da grande dúvida que assaltou o homem contemporâneo quanto a sua própria humanidade”.

Perceber a forma como esses discursos se constroemnos ajuda a observar as personagens que compõe os dois programas e, a partir delas, analisar as regularidades e dispersões (Foucault, 2013a) com relação às estratégias pelas quais essas personagens atualizam, em seus corpos, o próprio conceito de monstruosidade e, também, o possível potencial subversivo dessa atualização.

Para Foucault (2013b), o que caracteriza uma determinada formação discursiva – ou seja, o conjunto de enunciados que compõe as formas efetivamente realizadas de “falar” sobre um objeto, como os corpos monstruosos – são as regularidades e dispersões desse conjunto de enunciados. Por regularidades compreendemos aquilo que em diferentes estratos históricos (os períodos em que determinados discursos circulam de forma mais preeminente) continua semelhante nas maneiras de enunciar; e dispersões como o que difere cada acontecimento enunciativo dos enunciados anteriores, concomitantes e posteriores.

No caso em que se puder descrever, em um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciado, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos por convenção que se trata de uma formação discursiva (Foucault, 2013a:47)

O que as observações foucaultianas nos ensinam, portanto, é que interrogar os discursos e as práticas monstruosas, ou sobre a monstruosidade, pressupõe também observar como tais discursos e práticas entram em embate, corroboração, confrontação e transformação de uma complexa memória discursiva (Courtine, 2014) sobre esse objeto.

Mas antes de pensarmos na atualização desses discursos no caso específico das dragqueens de RuPaul’s Drag Race e Dragula, é necessário refletir sobre como os conceitos de sexo e gênero interferem nessa equação.

2. Pensar o gênero hoje

Em Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, Joan Scott (1995) SCOTT, Joan. Gênero: um conceito relevante para a análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, pp. 71 - 99 [ https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
https://www.seer.ufrgs.br/educacaoereali...
faz o levantamento das diversas acepções do termo, desde os dicionários até a sua utilização em diversas correntes dos estudos feministas. Nos dicionários, o termo não está diretamente relacionado ao par homem/mulher, mas a partir do seu uso na gramática “o gênero é compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um sistema socialmente consensual de distinções e não uma descrição objetiva de traços inerentes” ( Scott, 1995 SCOTT, Joan. Gênero: um conceito relevante para a análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, pp. 71 - 99 [ https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
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: 72).

Desse modo, pode-se ver o gênero não como uma característica intrínseca aos corpos, seus órgãos sexuais e seus caracteres fenotípicos, a qual seria apenas constatada pelos sujeitos que ocupam o papel de identificar o gênero dos outros – como o médico que diz “É homem” ou “É mulher” após o nascimento de um bebê, no clássico exemplo de Judith Butler. Pelo contrário, a partir da discussão proposta por Scott, o gênero é visto como um sistema classificatório dos fenômenos, ou seja, uma classificação que é ao mesmo tempo externa e posterior baseada num “consenso social” que diferencia o ser homem do ser mulher .

Esse “consenso”, no entanto, está longe de ser uma aceitação ampla e popular. Passa, mesmo, por uma série de discursos e práticas – mais acuradamente denominadas por Foucault (1988) FOUCAULT, Michel. História da sexualidade v.1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988 . de “dispositivo da sexualidade” – que produzem uma normalidade do sexo e do gênero, em oposição a outra série de práticas que devem ser controladas, tratadas, curadas e que, em última instância, são consideradas como aberrantes, abjetas, desviantes, uma vez que vão de encontro à norma.

Um exemplo é o discurso religioso que, no contexto do dispositivo da sexualidade, institui a normalidade dos gêneros masculino e feminino (homem/mulher) e justifica a sujeição do segundo ao primeiro por meio de metáforas como a do nascimento de Eva a partir de uma costela de Adão. Outro exemplo é o da homossexualidade, que, se não coloca os sujeitos homossexuais como um gênero em separado, os institui, segundo Foucault (1988) FOUCAULT, Michel. História da sexualidade v.1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988 ., como uma espécie desviante. Em A Vontade de Saber, Foucault afirma que mais do que calar a sexualidade, o dispositivo da sexualidade prolifera seus discursos. Uma proliferação controlada por uma série de instituições e de práticas que buscam expurgar os perigos do sexo.

De modo geral, como efeito desse dispositivo da sexualidade, deve-se falar sobre o sexo a fim de controlar aquelas práticas que não cabem nos parâmetros considerados normais. Deve-se neutralizar ou normalizar a anormalidade por meio de um constante processo de vigilância dos apetites da carne e de correção da anomalia do adulto perverso. Os desvios sexuais são exemplos desse comportamento anômalo, dessa monstruosidade moral que precisa ser conjurada e corrigida. É na passagem do século XVIII para o XIX, por exemplo, que a sodomia deixa de ser vista como um crime cujo ato pode ser cometido por qualquer sujeito jurídico para dar lugar à homossexualidade e ao homossexual como espécie cuja sexualidade periférica – pervertida – está inscrita em seu caráter e em seu corpo. O homossexual se torna uma personagem:

um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas (...); inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo, já que é um segredo que lhe trai sempre (...) ( Foucault, 1988 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade v.1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988 .: 50).

Tais processos de disciplinarização e controle da sexualidade e dos corpos dos sujeitos se dão por meio do exercício de um poder que não é somente – ou principalmente – coercitivo e punitivo, mas um poder produtivo ( Foucault, 1988 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade v.1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988 . ).Nas palavras de Miskolci, essa forma de poder (2016:11) é constituída por “tecnologias sociais que buscam enquadrar cada um em uma identidade, adequar cada corpo a um único gênero”, instituir uma norma sobre como ser, agir e exercitar a sexualidade. Uma norma que, historicamente, pode ser considerada heteronormativa, pois está baseada na clivagem entre o normal/hétero por um lado e o anormal/homo ou todas as outras categorias que escapam à heterossexualidade.

Ainda para Miskolci (2016 MISKOLCI, Richard. Introdução à teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica, 2016 .: 44), “a heteronormatividade é um regime de visibilidade, ou seja, um modelo social regulador das formas como as pessoas relacionam-se”. Tal regime se tornou “a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero” ( Miskolci, 2016 MISKOLCI, Richard. Introdução à teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica, 2016 .: 46). A rigor, o que se busca é instituir a heterossexualidade e a heteronormatividade como a verdade do sexo e a verdade dos sujeitos, portanto, também uma verdade do gênero. A visibilidade homologada por esses discursos deixa à sombra uma série de outras práticas que escapam a essa ordem, a essa vontade de verdade (Foucault, 2013b): é assim que as pessoas queer são alçadas à categoria de monstros, criminosos, anormais, pervertidos, principalmente quando a sua condição está estampada na aparência. Como aponta o próprio Foucault, quando o segredo se inscreve no rosto e no corpo.

A filósofa americana Judith Butler (2015) BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 . atualiza as propostas foucaultianas para uma discussão mais especifica sobre o par sexo/gênero. A autora faz uma crítica às perspectivas essencialistas e construtivistas do par sexo/gênero. Para a primeira perspectiva, o sexo é natural, estabelecido pelas diferenças biológicas dos sujeitos: nesse sentido, o gênero masculino é determinado pela presença do pênis, enquanto o feminino é determinado pela ausência dele. Já para algumas perspectivas construtivistas - principalmente de um ponto de vista semelhante ao que é criticado por Preciado (2018) PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo, n- 1, 2018 . -, o sexo tem caráter natural enquanto o gênero possui caráter cultural e está diretamente inserido no contexto descrito por Scott e apontado anteriormente.

Para Butler, nem mesmo o sexo deve ser visto como uma categoria estritamente natural. Ele é social e discursivamente construído a partir das práticas de gênero e suas derivações. Dessa forma:

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 .: 27).

O que Butler deixa ver é que mesmo a naturalidade dos sexos masculino e feminino é criada a partir de leis e normas sociais, as quais estabelecem lugares com fronteiras bem demarcadas para o masculino/homem e o feminino/mulher e que, a partir dos lugares específicos desses dois pares, toma a forma de um “aparelho de produção excludente” que não apenas restringe o campo de inteligibilidade dos gêneros e sexos, como também tenta impedir o aparecimento dos seus “lugares subversivos de convergência e de ressignificação” (Butler, 2015:67).

Para Butler, a normalização do sexo e do gênero pode ser vista em termos de performatividade. Como empréstimo das teorias linguísticas do inglês John Austin, Butler aponta que a performatividade esclarece o caráter ativo da linguagem. Mais do que representar um mundo que lhe é externo, a linguagem atua, transforma esse mundo. Um exemplo são os feitiços utilizados no universo mágico de Harry Potter: é ao proferir palavras como Lumus (do latim Lumem, que significa Luz ) ou Expecto Patronum (também do latim, significando desejar ou conjurar um protetor) que se faz a luz na ponta da varinha ou cria-se um corpo energético que protege das forças malignas, tudo bem fisicamente.

Do ponto de vista da performatividade dos gêneros, também ao “proferi-los” de forma binária, estereotipada e estanque, estamos diariamente atualizando a sua existência. Exemplos práticos são os já referidos “É homem”, “É mulher” de quando se descobre o sexo de uma criança; ou então, outras prescrições performativas comuns às nossas culturas como “homem mija em pé e mulher mija sentada” ou mesmo “azul é cor de homem e rosa é cor de mulher”. Segundo Butler, esses atos são performativos na medida em que criam e atualizam diariamente as “verdades” dos sexos e gêneros.

Um ponto interessante a ser acrescentado é que essa performatividade se inscreve nos corpos dos sujeitos. Afirma Butler(2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 .: 235):

Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido que a essência e a identidade, que por outro lado, pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos.

A performatividade dos gêneros, portanto, se inscreve na superfície dos corpos por meio de signos diversos que remetem, por um lado, à tentativa de “manter o gênero em sua estrutura binária” ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 .: 242) ou, por outro, escancaram nessa superfície corporal as vergonhas do homossexual ou as deformidades do monstro.

Entretanto, se a performatividade do gênero aponta para a atualização constante das normas por meio da repetição, Butler, ainda na esteira de Foucault, pergunta-se como dentro mesmo dessa lógica ou ordem discursiva, faz-se possível a subversão, a resistência, a descentração dos gêneros e das sexualidades.

Mesmo que construtos heterossexistas circulem como lugares praticáveis de poder/discurso a partir dos quais se faz o gênero, persiste a pergunta: que possibilidades existem de recirculação? Que possibilidades de gênero repetem e deslocam, por meio da hipérbole da dissonância, da confusão interna e da proliferação, os próprios construtos pelos quais os gêneros são mobilizados? ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 .: 67).

Do ponto de vista do nosso trabalho, refletir sobre as dragqueens de RuPaul’s Drag Race e de Dragula nos permite, justamente, questionar a forma como tais sujeitos, por meio de práticas de “escritas de si” (Foucault, 1995), práticas performativas monstruosas de seus gêneros escancaram essa construtibilidade e naturalização das categorias e questionam a sua estabilidade. Na próxima seção, discutiremos mais detidamente essas questões, cotejando-as com as análises dos realities shows propostos.

3. A Drag... e o Monstro

Nas duas sessões anteriores delineamos como o conceito de monstruosidade, a partir da arqueogenealogia realizada por Foucault e aprofundada por Courtine, apontam para o desenho dos monstros como aqueles que portam em seus comportamentos, mas também – e principalmente, para o contexto debatido em nosso trabalho – em seu próprio corpo as marcas da subversão às normas sociais. Endereçamos, ainda, a constituição dos conceitos de gênero/sexualidade baseados no binômio masculino e feminino. Assim, e em princípio, o gênero (homem/mulher) é visto como uma construção cultural baseada nas determinações biológicas do sexo dos sujeitos. A teoria da performatividade dos gêneros, desenvolvida por Judith Butler, sugere que tanto o gênero quanto a sexualidade – e, portanto, a oposição heternormativa e patriarcal entre o homem e a mulher – não são naturais e tampouco, mesmo que culturais, baseados nas definições biológicas dos sujeitos. Para a autora, o gênero se constrói em ato, na performatização repetitiva que atualiza, constantemente, as regras dos discursos dominantes que buscam naturalizar e normalizar os seus contornos, mas que são, em última análise, uma ficção:

Como em outros dramas sociais rituais, a ação do gênero requer uma performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação... A performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 .: 242).

O corpo é uma das superfícies por excelência nas quais essas normas se inscrevem. Para Butler, os atos performativos são encarnados e é justamente esse ponto que nos permite cruzar a monstruosidade e o gênero, a partir da maneira como esses dois conceitos atravessam e tecem a aparência e os corpos das dragqueens de RuPaul’s Drag Race e Dragula. Mais precisamente, a partir da análise que segue, buscamos inquirir sobre o potencial da aparência das dragqueens de tensionar a monstruosidade e o gênero por meio de performatizações dissonantes e desnaturalizadas, que escancaram o caráter fictício, regulador, normatizador das definições de gênero e sexualidade ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 . ).

Isso porque, para alguns, a montação da dragqueen representa uma exacerbação da feminilidade, uma imitação que pode ser vista como uma homenagem, mas que muitas vezes também é tratada como grotesca.A própria Butler (2015) BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 . assim pondera ao referir a forma como uma parcela da teoria feminista observa esse fenômeno de personificação feminina. Em seu verbete sobre Dragqueens e Dragkings na Blackwell Encyclopedia of Sociology, Rupp e Taylor (2016) RUPP, Leila ; TAYLOR, Verta. Drag Queens and Drag Kings. In: RITZER, George ( ed .). The Blackwell Encyclopedia of Sociology. Nova Jersey, Wiley & Sons, 2016, pp. 1 - 4 [ https://doi.org/10.1002/9781405165518.wbeosd087 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
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propõem um conceito abrangente de dragqueen: “ dragqueens e dragkings são homens, mulheres e pessoas transgêneros que performam feminilidade, masculinidade ou alguma coisa de intermédio” (Rupp, Taylor, 2016:1). Os autores salientam, contudo, o caráter ambivalente da literatura sobre o assunto, variando entre a reiteração e o conservadorismo com relação às normas de gêneros, por um lado, e o potencial desestabilizador e disruptivo, por outro.

A ambivalência teóricareflete a própria complexidade das experiências drag e, portanto, a dificuldade – e o perigo – de conceitualizar essas experiências e performances de forma unívoca. Leia-se, nesse contexto, o próprio caminho traçado por Butler em sua obra. Em Problemas de Gênero a autora aponta as performances drag como uma espécie de exemplo típico da performatividade dos gêneros, uma vez que elas escancaram o gênero como uma construção cujos efeitos são inclusive materiais; em obra posterior, Bodies That Matter (2011), a autora enfatiza a noção da performatividade como citacionalidade. A performatividade do gênero, então, não se confunde com a performance das drags, que escolhem representar um determinado modo de ser feminino durante um show, por exemplo, mas assenta-se em como tais representações só são inteligíveis – performatizam-se – porque referenciam as normas que governam as percepções hegemônicas dos gêneros em nossas sociedades.

Em Imitation and Gender Insubordination, por sua vez, Butler (1991) BUTLER, Judith. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, Diane. Inside/out: lesbian theories gay theories. New York, Routledge, 1991, pp. 13 - 31 . deixa clara a diferenciação entre performance e performatividade ao salientar que “gênero não é uma performance que um sujeito apriorístico escolhe fazer, mas é performativo no sentido de que constitui como seu efeito o próprio sujeito que parece expressar” ( Butler, 1991 BUTLER, Judith. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, Diane. Inside/out: lesbian theories gay theories. New York, Routledge, 1991, pp. 13 - 31 .: 24).

A partir da releitura do conceito de performatividade proposta por Butler (2011) BUTLER, Judith. Boddies that matter. Nova York, Routledge, 2011 ., percebe-se que as performances de gênero estão sempre relacionadas aos universos discursivos e de práticas normalizadoras que informam os gêneros e criam as suas bordas: o abjeto, o anormal como aquilo que é ininteligível. Nesse sentido, Butler parece aproximar-se de DeCerteau ao delinear a agência do próprio sujeito como o potencial de subverter (taticamente) os gêneros de dentro das normas (estratégias) que os regulam.

Também em RuPaul’s Drag Race as performances drag transitam entre o desejo da feminilidade e o ímpeto de brincar com os gêneros, apresentando citações que ora coadunam com as normas e ora as escancaram. Como aponta Brennan (2017) BRENNAN, Niall. Contradictions Between the Subversive and the Mainstream: Drag Cultures and RuPaul’s Drag Race .In: BRENNAN, N. ; GUDELUNAS, D. ( ed .). RuPaul’s Drag Race and the Shifting Visibility of Drag Culture. London, Palgrave MacMillan, 2017, pp. 29 - 44 ., no entanto, essas performances são sempre balizadas por uma ideal de autenticidade que é sutilmente proposto pela produção do programa pela própria mama Ru, bem como pelas lógicas peculiares ao gênero Reality Show. Para o autor, tais nexos produzem modelos do que seria entendido como uma dragqueen autêntica.

Seja nas falas ou nas montações e estilos de drag, essas categorizações ficam candentes: as drags que participam de RuPaul’s Drag Race são, geralmente, pageant queens, fashionqueens ou comedyqueens. Em tradução livre, são ou rainhas de concursos de beleza, rainhas da moda ou rainhas da comédia. As duas primeiras categorias – os salões dos concursos de beleza e o mundo da moda – são, tradicionalmente, espaços relegados ao gênero feminino e as clivagens entre essas categorias se dá, também, por índices de feminilidade: as rainhas da beleza são aquelas de corpo voluptuoso, cabelos montados, maquiagem impecável e um glamour que atualiza a beleza feminina tradicional das Miss Universo ou das Divas do cinema e da música, numa mistura dos modelos de High Brow Female Impersonators e Professional Glamour Queens propostos por Schacht (2002) SCHACHT, Steven P. Four renditions of doing female drag: feminine appearing conceptual variations of a masculine theme. In: GAGNÉ, Patrícia ; TEWKESBURY, Richard ( ed .). Gendered Sexualities : v. 6, Bingley, Emerald Publishing, 2002, pp. 157 - 180 [ https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80007-8 – acesso em: 12 abr. 2020 ].
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6 6 Em um texto baseado nas suas pesquisas etnográficas com dragqueens nos EUA, Schacht (2002) apresenta o que chama quatro interpretações sobre a performance drag: high brow female impersonator; female illusionist; professional glamour queens e professional campqueens. A categorização reflete um cenário acadêmico da passagem dos anos 90 para os 2000 em que a prática das dragqueens era subscrita, principalmente, ao universo dos homens gays que personificavam mulheres e, portanto, deixavam nas bordas as discussões mais modernas sobre pessoas trans ou mesmo heterossexuais e cisgênero fazendo drag (Rupp, Taylor, 2016). Para este estudo, no entanto, o recurso a uma visão mais ou menos datada como a de Schacht é instrutivo ao salientar, justamente o conservadorismo presente na característica hiperfemininizada de categorias como a de high brow ou professional glamour, nas quais as performances geralmente não transbordam a seara dos ideais normativos de mulher: sobre a high brow, por exemplo, Schacht (2002: 165) afirma “ those doing female drag in this setting often presente glamorous (glam), compelling images of traditional (often quite conservative) femininity ”, e, sobre as professional glamour queens, o autor (2002:170) salienta a visão de um dos seus sujeitos tipo, a drag Danielle, para quem “ the Best queens were ones that applied makeup in a notice able but not over done manner, carried themselves with confidence but were still quite feminine in gesture, wore the latest, most expensive looking attire, and overall most live dup to conventional standards of female glamour and beauty found in most women’s fashion magazines. ” .

Imagem 1
: Finalistas da nona temporada de RuPaul’s Drag Race

Já as fashionqueens são as que apresentam inovações na aparência, nos trajes, no jeito de andar e posar. Ou seja, inovam no que é valorizado como vanguarda da alta moda ( high fashion ), além de apresentar um corpo cujas características – magreza, languidez – são semelhantes ao das modelos. Nesses casos, a feminilidade não parecer ser imitada de forma cômica ou paródica, mas a aparência entra em regularidade com uma memória discursiva que recupera os ideais estéticos do corpo e do gênero feminino. Nas imagens abaixo, vemos as finalistas da nona temporada de RuPaul’s Drag Race (transmitida em 2017) em um dos looks utilizados na gravação do episódio final. Da esquerda para a direita, Peppermint e Trinity Taylor são pageant queens, Shea Coulé e Sasha Velour são fashionqueens .

Já na imagem 2, vemos Naomi Smalls, finalista da oitava temporada, em um de seus looks de passarela. A fashionqueen era louvada, no programa, pelo desfilar, pela languidez do corpo e pelas longas pernas que lembram as de top models. Não por acaso o nome da drag, Naomi, faz menção à top model inglesa Naomi Campbell.

Imagem 2
: Naomi Smalls em sua entrada no primeiro episódio da sétima temporada de RPDR

Uma comparação com artistas mulheres cisgênero ajuda a perceber a regularidade discursiva na forma como as aparências são construídas a fim de performatizar o gênero feminino. A feminilidade, em RuPaul’s Drag Race, inclusive, ganhou uma palavra própria. O termo “ fishy ”, popularizado pelo programa, é utilizado pelas queens para se referir àquelas que mais se aproximam do corpo, da aparência e das formas femininas de agir. 7 7 Não sem controvérsia, uma vez que, como aponta Brannon (2017), fish – peixe, em português – é uma comparação misógina utilizada para referir-se ao odor à peixe da genitália feminina. Na imagem 3 vemos, à esquerda, a cantora Diana Ross, famosa pelos cabelos volumosos e indumentárias de paetês coladas ao corpo; e à direita, vemos a modelo britânica Naomi Campbell desfilando com um maiô. As regularidades entre a aparência dessas artistas e das dragqueens das imagens 1 e 2 – especialmente Peppermint e Naomi Smalls – são claras.

Imagem 3
: Diana Ross e Naomi Campbell

O caráter monstruoso das dragqueens apontadas não se faz ver aos olhos, não está escancarado e inscrito aparentemente nos corpos. Nesses casos, mais do que em outros, a monstruosidade se revela na relação estabelecida entre a interioridade do sexo e a exterioridade do gênero ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 . ): a despeito da exterioridade feminina, a interioridade do sexo das dragqueens é “verdadeiramente masculina”. Elas são, como repetem algumas delas em diversos momentos do programa, de forma cômica, homens vestidos de mulheres. A monstruosidade, então, se não está escancarada na anomalia da aparência, é a monstruosidade moral, que se instaura justamente no entrecruzamento dos discursos jurídicos, psiquiátricos e religiosos que estabelecem a subversão aparente da sexualidade e do gênero verdadeiros como desvios da norma (Foucault, 2013c). As drags, por mais normais que tentem parecer, seriam anormais em essência.

Mas já em RuPaul’s Drag Race a monstruosidade toma ares de anomalia e causa comoção, justo por escapar aos moldes de uma performatividade normativa. No segundo episódio da sexta temporada do reality, a concorrente Milk decide usar, na passarela, um look composto por calças pantalonas brancas, um véu transparente branco, maquiagem forte com batom rosa, olhos marcados e, para a surpresa dos jurados, uma barba branca. Logo na entrada da queen é possível ver as caras de espanto dos jurados ao se depararem com a “anomalia”, que também foi criticada pelas outras queens. Milk, em sua explicação do look polêmico, afirma: “Estou entregando uma realidade hermafrodita 8 8 Tradução nossa do original, em inglês: “ I’m serving hermaphrodite reallness ”. ”. Por que será que esse look causou tanta polêmica? Possivelmente porque ele desafia a binariedade dos gêneros e de seus signos corporais e aparentes. Uma anomalia “da natureza” que se instaura pelo desafio às definições pré-discursivas de sexo e de gênero, uma citação performativa da norma que a subverte por meio de um marcador “que não deveria estar ali”, mas que pode estar justo por conta da construtibilidade dos gêneros e da forma como eles são inscritos no corpo. Seguindo Butler (2011) BUTLER, Judith. Boddies that matter. Nova York, Routledge, 2011 ., portanto, o espanto causado pelo corpo monstruoso de Milk assenta-se justamente na impossibilidade de lê-lo dentro do expectável universo da Mulher cuja personificação deve ser almejada. Milk se assemelha mesmo – mais uma regularidade discursiva – com as mulheres barbadas dos circos de horrores. Uma aberração que se pavoneia e se espetaculariza não mais no espaço das praças, mas no espaço das mídias.

Imagem 4
: Milk barbada na runway do segundo episódio da sexta temporada de RPDR

Se em RuPaul’s Drag Race a monstruosidade se desenvolve por vários caminhos – dois dos quais foram apontados aqui – a partir da forma como sexo e gênero são performatizados pelas dragqueens ; em Dragula, essas performances monstruosas parecem atingir o limite.No reality show, performar a feminilidade não é o bastante.

A própria monstruosidade é deslocada do espaço de marginalidade e colocada no centro dos debates, a fim de “mijar na heteronormatividade” e apontar o “futuro da política queer9 9 Informações retiradas de matéria publicada pela Vice [ https://www.vice.com/en_us/article/vbyjm3/dragula-is-loud-weird-and-pisses-on-heteronormativity – acesso em: 11 mar. 2021]. . Em uma competição em que as drags são bruxas, zumbis, fantasmas, monstros que devoram cérebros e bebem sangue. Monstros sem gêneros definidos, que ostentam roupas, saltos, cabelos femininos aliados a barbas volumosas, sovacos cabeludos e pelos corporais em abundância. A estranheza, o horror e a monstruosidade parecem, mesmo, fazer parte da forma como as drags – não mais queens, mas monsters, dizem as apresentadoras do reality – escrevem os seus próprios corpos.

A ideia de escrita do próprio corpo é inspirada nas formulações foucaultianas sobre as práticas de cuidado de si entre os gregos antigos. Dentre essas práticas, denominadas técnicas de si e as quais “permitem aos indivíduos realizar, por eles mesmo, um certo número de operações em seu corpo, em sua alma, em seus pensamentos, em suas condutas, de modo a produzir neles uma transformação (...)” (Foucault, 2012:94), o filósofo posiciona as práticas de escrita de si, escrita da própria subjetividade.

Em outro ensaio, a Escrita de Si, publicado em 1983, Foucault aventa ao menos duas possibilidades por meio das quais essas técnicas são empregadas: os hupomnemata e as correspondências. Dentre essas práticas, as correspondências eram formas pelas quais os sujeitos relatavam-se a si mesmos, tornavam-se presentes, doavam-se a um outro. Nesse caso, o próprio sujeito se mostra, se escreve, se constrói em vista do outro.

Escrever é, portanto, “se mostrar”, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela missiva que ele recebe, se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que é dito sobre si mesmo. A carta prepara de certa forma um face a face ( Foucault, 2012 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2012 .: 152).

As técnicas de escrita de si são formas discursivas pelas quais os sujeitos tornam visíveis sua própria existência, fazem-se visíveis para o outro, mas não sem levar em consideração a série de discursos – exteriores – por meio das quais as próprias subjetividades são engendradas ( Fernandes, 2012 FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e Sujeito em Michel Foucault. São Paulo, Intermeios, 2012 . ). A relação com a exterioridade e com o outro é, então, central no desenho que Foucault faz da ascese greco-romana e a remissão à essas técnicas não “expressa nenhuma convocação a um retorno metafísico ao estilo de vida antigo, mas uma possibilidade estratégica de interpelação dos atuais modos de subjetivação” ( Aquino, 2011 AQUINO, Julio Groppa. A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educ. Pesqui ., v. 37, n. 3, São Paulo, , Dec. 2011, pp. 641 - 656 [ https://doi.org/10.1590/S1517-97022011000300013 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
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: 644). Ortega (1999) ORTEGA, Francisco. Amizade e Estética da Existência em Foucault. São Paulo, Graal, 1999 ., em seu trabalho sobre a amizade e a estética da existência na obra foucaultiana, endereça a forma como as ideias contidas nessa fase do pensamento do filósofo francês podem atravessar a história – passando, por exemplo, pelo renascimento e pelo dandismo – e chegar à atualidade por meio de leituras que asseveram o caráter de resistência e de criatividade do cuidado de si, seja em práticas como o sadomasoquismo seja nas relações de amizade homossexuais.

O que aprendemos com o Foucault da estética da existência, então, é que as técnicas de si não estão necessariamente fora das ordens discursivas e dos poderes normalizadores; mas que elas podem ser pensadas como meios pelos quais o sujeito exerce a sua liberdade individual e pratica atos de resistência a partir de suas relações com a exterioridade e com o outro. Para Foucault, “lá onde há poder, há resistência” (Foucault, 1988:105), a qual deve ser tão produtiva e criativa quanto o poder.

A partir de Dragula, a performatividade da monstruosidade pode ser lida como um ato de escrita de si e resistência que subverte o lugar assujeitado, relegado aos monstros hermafroditas, homossexuais, anômalos. Referindo Aquino (2011 AQUINO, Julio Groppa. A escrita como modo de vida: conexões e desdobramentos educacionais. Educ. Pesqui ., v. 37, n. 3, São Paulo, , Dec. 2011, pp. 641 - 656 [ https://doi.org/10.1590/S1517-97022011000300013 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
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: 646), pode-se dizer que “estamos diante de práticas de si, nas quais o que está em pauta é um trabalho rigoroso de autodomínio e de autofortalecimento por meio dos processos de fabricação de um si por e para si mesmo”, ainda que a finalidade dessa fabricação dos sujeitos seja a sua relação com o outro e com o mundo.

No posicionamento de Meatball, uma das participantes do reality, em entrevista à revista Vice, podemos entrever que a performatização monstruosa é uma escrita de sí que tem, como instância final, as relações agonísticas com o outro:

A cultura queer sempre foi vista de cima e como inferior, mas nossa cultura está mais forte e mais visível do que nunca (...) Andar pelas ruas usando um vestido que deixa meu peito peludo a mostra é uma forma de protesto. Permanecer visível e dizer “nós não vamos a lugar nenhum” é uma forma de protesto. 10 10 Tradução nossa [ https://www.vice.com/en_us/article/vbyjm3/dragula-is-loud-weird-and-pisses-on-heteronormativity – acesso em: 12 mar. 2021].

Outra participante, Vander Von Odd, vencedora da primeira temporada de Dragula, complementa:

Dragula mudou o panorama do entretenimento queer simplesmente por ser uma plataforma onde o estranho, o inusual e aqueles que frequentemente não tem voz são colocados no centro das atenções. O programa diz aos estranhos e outsiders do mundo que eles são vistos e que tem valor, e que há uma família de aberrações esperando por eles.

As performances monstruosas em Dragula, acreditamos, podem ser lidas como forma de escancarar e subverter o próprio lugar fronteiriço, marginal, criminoso a que tais subjetividades são diuturnamente relegadas. Se, como aponta Butler (2011) BUTLER, Judith. Boddies that matter. Nova York, Routledge, 2011 ., a abjeção é o lugar obscuro, ilegível, invisível que limita o espaço bem delimitado da norma, ao escreverem suas próprias aparências como explícita e extravagantemente monstruosas, as performances das monsters de Dragula parecem exigir a visibilidade, tornarem-se conhecidas e reconhecidas pela exaltação do abjeto e não mais serem o resultado fantasmático de uma objetificação que relega ao ostracismo uma parte considerável da sociedade.

Imagem 5
: Ursula Major, dragmonster participante da primeira temporada de Dragula

Imagem 6
: Participantes das duas primeiras temporadas de Dragula

Se, como aponta Gil (2016) GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D’Água, 2016 ., a produção das monstruosidades é resultado da dúvida que assola os seres humanos com relação à sua própria humanidade – humanidade que, segundo Halberstam (1995) HALBERSTAM, Judith. Skin Show: Gothic Horror and the technologie of monsters. Durhan, Duke University Press, 1995 . é muito claramente masculina, branca, heterossexual e burguesa –, as performatividades monstruosas de dragqueens assinalam que essa humanidade é muito mais limitante do que bem delimitada.

Acreditamos que aí reside o potencial político dessas performatividades monstruosas.O papel das mídias nesse processo não é pequeno, seja a fim de perpetuar os discursos dominantes, seja ao abrir espaços para a visibilidade dos desvios e da abjeção.

A televisão e o cinema, assim, são espaços de circulação e visibilidade dessas performances de gênero monstruosas.Nessas plataformas, de alguma forma, esses seres abjetos conseguem inserção. O cinema hollywoodiano, por exemplo, produziu muitos filmes que trouxeram a noção de transgressão pela monstruosidade, como foi o caso de The Rocky Horror Picture Show (1975) e Freaks (1932). Seguindo Butler (2018) BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018 ., o papel das mídias na visibilidade ou na invisibilidade dessas performatividades desviantes ou monstruosas é essencial, visto que elas podem ou apagar ou evidenciar esses corpos monstruosos muito além de suas fronteiras espaciais e temporais, por meio da forma como constroem seus enquadramentos. Nesse processo, se os próprios corpos, ao se posicionarem e se performatizarem por meio da aparência, constituem ações políticas ( Butler, 2015 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015 . ), as mídias são locais em que esses posicionamentos são expandidos. A autora questiona:

O que significa, então, aparecer na política contemporânea? E podemos considerar essa questão de alguma forma sem recorrer à mídia? Quando fazemos uma consideração sobre o que é aparecer, concluímos que aparecemos para alguém e que o nosso aparecimento tem de ser registrado pelos sentidos, não apenas os nosso, mas os de alguém mais. Se aparecemos, devemos ser vistos, o que significa que nosso corpo deve ser enxergado, o seu som vocalizado deve ser ouvido: o corpo deve entrar no campo visual e audível ( Butler, 2018 BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018 .: 95).

Não seria, justamente, a monstruosidade que torna esses corpos drag visíveis e faz deles um manifesto sobre a construtividade dos gêneros? Nesses dois programas distintos, as personagens produzem, por meio da escrita de seus corpos e aparências monstruosos, discursos fortíssimos. São corpos políticos que questionam, indagam e se posicionam num campo de batalhas ( Foucault, 1979 FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 126 - 136 . ), a fim de viver, da forma mais livre possível, suas artes, sua sexualidade, seus gêneros, mesmo que fora dos padrões culturais de inteligibilidade.

Considerações finais

Com este trabalho, pretendemos iniciar um esforço crítico de refletir sobre as relações entre a monstruosidade e o gênero no contemporâneo, principalmente a partir das materializações discursivas e corporais desses conceitos em alguns sujeitos que vem ganhando cada vez mais visibilidade: as dragqueens .

Tomando como base e ponto de partida os reality shows RuPaul’s Drag Race e Dragula: the search for the next drag supermonster, procuramos abordar como a monstruosidade e o gênero são atualizados e performatizados pelas dragqueens desses programas por meio dos sentidos inscritos em seus corpos e aparências. Os conceitos de regularidades e dispersões discursivas nos auxiliaram a perceber como essas personagens acionam os discursos históricos sobre a monstruosidade e o gênero, seja a fim de corroborar esses discursos, seja a fim de resistir e tensionar as suas supostas verdades.

Reiteramos que as reflexões e analises não são exaustivas. São, mesmo, fragmentos que, nas breves tessituras que propõem, produzem mais questionamentos e apontam possíveis caminhos de análise. Por exemplo, em 18 temporadas de RuPaul’s Drag Race e três de Dragula, apenas na segunda temporada do reality monstruoso uma das drags concorrentes não é gay, mas heterossexual, e apenas na terceira temporada é que competem os primeiros dragkings e bioqueens. Além disso, um número considerável de concorrentes não é de homens personificando mulheres, mas de transexuais. Também o mundo da “abjeção” é comum entre esses sujeitos: as drogas, a pornografia e outras práticas desviantes nos fazem questionar sobre a construção desses “monstros morais”, cuja monstruosidade, mais do que situada no corpo, é comportamental. Todas essas questões merecem ser pensadas quando se decide refletir sobre a relação entre gênero e monstruosidade no contemporâneo.

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  • SCHACHT, Steven P. Four renditions of doing female drag: feminine appearing conceptual variations of a masculine theme. In: GAGNÉ, Patrícia ; TEWKESBURY, Richard ( ed .). Gendered Sexualities : v. 6, Bingley, Emerald Publishing, 2002, pp. 157 - 180 [ https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80007-8 – acesso em: 12 abr. 2020 ].
    » https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80007-8
  • SCOTT, Joan. Gênero: um conceito relevante para a análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, pp. 71 - 99 [ https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 - acesso em: 12 abr. 2020 ].
    » https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
  • 1
    São 13 temporadas principais e cinco All Stars, cujas participantes são as queens que já competiram em temporadas anteriores.
  • 2
  • 3
    Mantivemos os termos em inglês para preservar o jogo linguístico proposto por RuPaul. Underground (subterrâneo) é um termo utilizado para manifestações artísticas e culturais que não são comuns no dia-a-dia, no cotidiano, que se escondem, marginalizadas; over the top (além, acima do top) refere-se a exagero, excesso e também superação.
  • 4
    O documentário foi dirigido pela cineasta americana Jennie Livingston e demorou sete anos para ser finalizado, sendo um retrato das salas de baile novaiorquinas dos anos 80.
  • 5
    O termo, utilizado por intérpretes dos escritos foucaultianos, refere-se a um olhar que busca pensar seu aparato teórico e metodológico – comumente divido em uma fase arqueológica, uma fase genealógica e uma fase da ética/estética da existência – mais como um conjunto do que como momentos estanques.
  • 6
    Em um texto baseado nas suas pesquisas etnográficas com dragqueens nos EUA, Schacht (2002) SCHACHT, Steven P. Four renditions of doing female drag: feminine appearing conceptual variations of a masculine theme. In: GAGNÉ, Patrícia ; TEWKESBURY, Richard ( ed .). Gendered Sexualities : v. 6, Bingley, Emerald Publishing, 2002, pp. 157 - 180 [ https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80007-8 – acesso em: 12 abr. 2020 ].
    https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80...
    apresenta o que chama quatro interpretações sobre a performance drag: high brow female impersonator; female illusionist; professional glamour queens e professional campqueens. A categorização reflete um cenário acadêmico da passagem dos anos 90 para os 2000 em que a prática das dragqueens era subscrita, principalmente, ao universo dos homens gays que personificavam mulheres e, portanto, deixavam nas bordas as discussões mais modernas sobre pessoas trans ou mesmo heterossexuais e cisgênero fazendo drag (Rupp, Taylor, 2016). Para este estudo, no entanto, o recurso a uma visão mais ou menos datada como a de Schacht é instrutivo ao salientar, justamente o conservadorismo presente na característica hiperfemininizada de categorias como a de high brow ou professional glamour, nas quais as performances geralmente não transbordam a seara dos ideais normativos de mulher: sobre a high brow, por exemplo, Schacht (2002 SCHACHT, Steven P. Four renditions of doing female drag: feminine appearing conceptual variations of a masculine theme. In: GAGNÉ, Patrícia ; TEWKESBURY, Richard ( ed .). Gendered Sexualities : v. 6, Bingley, Emerald Publishing, 2002, pp. 157 - 180 [ https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80007-8 – acesso em: 12 abr. 2020 ].
    https://doi.org/10.1016/S1529-2126(02)80...
    : 165) afirma “ those doing female drag in this setting often presente glamorous (glam), compelling images of traditional (often quite conservative) femininity ”, e, sobre as professional glamour queens, o autor (2002:170) salienta a visão de um dos seus sujeitos tipo, a drag Danielle, para quem “ the Best queens were ones that applied makeup in a notice able but not over done manner, carried themselves with confidence but were still quite feminine in gesture, wore the latest, most expensive looking attire, and overall most live dup to conventional standards of female glamour and beauty found in most women’s fashion magazines.
  • 7
    Não sem controvérsia, uma vez que, como aponta Brannon (2017), fish – peixe, em português – é uma comparação misógina utilizada para referir-se ao odor à peixe da genitália feminina.
  • 8
    Tradução nossa do original, em inglês: “ I’m serving hermaphrodite reallness ”.
  • 9
    Informações retiradas de matéria publicada pela Vice [ https://www.vice.com/en_us/article/vbyjm3/dragula-is-loud-weird-and-pisses-on-heteronormativity – acesso em: 11 mar. 2021].
  • 10

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2018
  • Aceito
    31 Jul 2020
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