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O duplo fazer dos corpos: envelhecimento, adoecimento e cuidado na vida cotidiana de uma família* * Entre os anos de 2018 e 2019, debati o trabalho em diversas ocasiões no Brasil, Portugal, Inglaterra e Holanda. Assim, agradeço as questões e os comentários de Álvaro Molina e Felipe Szabzon; Graham Willis, Pedro Loureiro, Rachell Sánchez-Rivera, Martijn Oosterbaan, Yvon van der Pijl, Sara Koenders, Maria Manuel Quintela, Marta Maia, Regina Facchini, Carolina Branco de Castro Ferreira, Silvia Aguião, Patrícia Birman, Carly Machado, Adriana Fernandes, Mariana Ferreira e os integrantes do grupo de pesquisa Distúrbio (UERJ/UFRRJ), Maria Hermínia Tavares de Almeida e todos os integrantes do IPP/CEBRAP. Agradeço também à FAPESP pelo financiamento que permitiu este trabalho. Processo: 2018/15928-2.

Resumo

Em dezembro de 2018, fazia 5 anos que Leonor cuidava sozinha de sua mãe idosa, cega, surda, sem dentes, com câncer em um dos rins e doença de Alzheimer avançada. O envelhecimento de Dona Carmem foi incorporado à vida cotidiana, ao corpo e à mente de sua filha e cuidadora Leonor, que desenvolveu prolapso genital, tendinite e depressão em decorrência do trabalho do cuidado somado ao trabalho doméstico. Neste texto, eu apresento como a relação de cuidado entre mãe e filha, idoso e cuidador, se sobrepõem na vida cotidiana e produzem potência e vulnerabilidade. Ao descrever a vida dessas mulheres, eu mostro o processo de coprodução de corpos por meio do duplo envelhecimento e adoecimento em conexão com um conjunto heterogêneo de doenças que se acumulam com o passar dos anos. Ao mesmo tempo, analiso a coprodução de corpos na relação com processos sociais e temporalidades mais amplas.

Cuidado; Cotidiano; Família; Trabalho Doméstico; Envelhecimento

Abstract

December 2018 marked 5 years that Leonor had been taking care of her elderly, blind, deaf, toothless mother, who also had cancer in one of her kidneys and advanced Alzheimer’s. Dona Carmen’s aging was absorbed to the daily life, body and mind of her daughter and caregiver Leonor, who developed a genital prolapse, tendinitis and depression due to the work of care combined with domestic work. In this text I present how the relationship of care between mother and daughter, elderly woman, and caregiver, overlap in daily life and produce strength and vulnerability. By describing the life of these women, I show the process of co-production of bodies through the duality of aging and illness in connection with a heterogeneous set of illnesses that accumulate with the passage of years. I also analyze the co-production of bodies in relation to broader social processes and temporalities.

Care; Daily Life; Family; Domestic Work; Aging

Introdução

Em dezembro de 2018, Leonor completou cinco anos como a única responsável pelos cuidados com sua mãe idosa e doente. Quando Dona Carmem chegou à casa de sua filha, em 2013 e com 80 anos, ela havia sido diagnosticada com anemia profunda, decorrente dos maus-tratos que recebeu de seu filho mais novo e, até aquele momento, seu cuidador. Além da anemia, Dona Carmem apresentava cataratas avançadas, surdez parcial, ausência de todos os dentes, câncer na gengiva, doença de Alzheimer em progressão, diabetes e hipertensão. Nesses anos, o envelhecimento de Dona Carmem foi absorvido e incorporado à vida cotidiana, ao corpo e à mente de sua filha e cuidadora Leonor, que, por sua vez, também envelhecia. Devido à sobrecarga de trabalho, consequência das atividades do cuidar sobrepostas às tarefas domésticas, Leonor desenvolveu tendinite nos braços, prolapso genital e depressão1 1 Os termos em itálico são aqueles utilizados por Leonor ou termos em língua estrangeira. Os termos entre aspas são citações de textos, esses acompanhados de referência bibliográfica. Sobre a palavra específica, Leonor utilizava o termo depressão para explicar seu estado emocional, embora ela não tenha recebido um diagnóstico médico. . Menos do que discutir o cuidado a partir de categorias abstratas, desenvolverei neste texto a experiência de Leonor no cuidado com a mãe, pensando o cuidado de idosos como um problema concreto a ser enfrentado no cotidiano dessa família (Mol; Moser; Pols, 2010; Han, 2012HAN, Clara. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press, 2012.; Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. Matters of care : speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press, 2017.).

Eu iniciei o trabalho de campo na ocupação de moradia popular onde vive Leonor no ano de 2010. Em 2013, ano em que a filha buscou sua mãe para morar consigo, eu já frequentava a casa de Leonor, havia me tornado sua amiga e, principalmente, testemunha das situações que ela vivia2 2 Em 2010, eu iniciei o trabalho como bolsista de Apoio Técnico (CNPq) da pesquisa “Territórios, fronteiras e processos identitários: as comunidades e seus direitos” (2009-2014, CNPq) coordenado pela Dra. Patrícia Birman (UERJ). De 2013 a 2015 e de 2016 a 2018, eu realizei visitas constantes à Leonor com o objetivo de acompanhar sua vida cotidiana. Os processos que permitiram que eu entrasse na casa de Leonor e me tornasse sua amiga e testemunha foram descritos em Pierobon (2018). As metodologias de pesquisa utilizadas para este artigo foram o trabalho de campo, entrevistas gravadas, conversas realizadas pelo telefone celular e troca de mensagens pelo aplicativo WhatsApp. . Assim, eu pude acompanhar as transformações imediatas que a chegada de Dona Carmem instaurou na vida da filha, os efeitos decorrentes da relação de cuidado e como os desgastes produzidos ao longo do tempo foram inscritos nos corpos e mentes dessas mulheres. Ao olhar para estas questões, foi Kathleen Woodward (2012)WOODWARD, Kathleen. A public secret: assisted living, caregivers, globalization. International Journal of Ageing and Later Life, 7(2), 2012, pp.17-51 [doi.org/10.3384/ijal.1652-8670.1272a2 - acesso em: 10 set. 2019].
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quem me alertou sobre o “escandaloso segredo público da vida cotidiana” (2012:23) que é a relação entre os idosos e seus cuidadores. Crítica às pesquisas sobre envelhecimento que isolam os idosos fragilizados daqueles que exercem o cuidado, a autora nos convida a não repetirmos o erro de ignorar a experiência dos cuidadores. Enquanto Woodward articula classe, raça, gênero, geração e imigração internacional para analisar as relações de trabalho entre idosos brancos (norte-americanos ou israelenses) que contratam cuidadoras não brancas (da Jamaica ou Filipinas), eu proponho discutir a complexidade das relações de cuidado em uma família de baixa renda na qual se sobrepõem as obrigações da filha com sua mãe, da cuidadora com o idoso doente, bem como do trabalho doméstico e do remunerado informal com as atividades do cuidado. Com outras palavras, o que discutirei são os efeitos que a relação de cuidado impõe à vida do cuidador, que se agrava quando ela é também uma relação de família.

Diferentemente das pesquisas que trabalharam as relações de cuidado no interior das famílias de baixa renda a partir do abandono dos idosos e/ou doentes mentais por seus familiares (Biehl, 2005BIEHL, João. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley, University of California Press, 2005.; Povinelli, 2011POVINELLI, Elizabeth. Economies of Abandonment: social belonging and endurance in late liberalism. Durham; London, Duke University Press, 2011.), ou das pesquisas que discutem as redes de solidariedades e compartilhamento do cuidado em meio à precariedade (Livingston, 2006; Fernandes, 2017FERNANDES, Camila. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2017.; Fonseca; Fietz, 2018FONSECA, Cláudia; FIETZ, Helena. Collectives of care in the relations surrounding people with "head troubles": family community and gender in a working-class neighbourhood of southern Brazil. Sociologia e Antropologia, 8(1), 2018, pp.223-243 [doi.org/10.1590/2238-38752017v818 - acesso em: 15 set. 2019].
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), o que trago é o processo que fez com que Leonor se tornasse a única responsável, dentre quatro irmãos, pelo cuidado com a mãe, bem como os efeitos dessa responsabilidade em sua vida diária. Se tornar a única responsável não significa que Leonor tenha sido abandonada por seus familiares ou que inexistam solidariedades entre membros de sua família ou amigos. Ao contrário, abandono e solidariedade coexistem e podem ser pensados em situações específicas. Contudo, quando afirmo que Leonor se tornou a única responsável por sua mãe idosa e doente, o que tenho em mente são os “atos de cuidado” (Kleinman, 2015KLEINMAN, Arthur. Care: in search of a health agenda. The Lancet, 386, 2015, pp.240-241 [doi.org/10.1016/S0140-6736(15)61271-5 - acesso em: 17 out. 2019].
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), como os atos físicos de dar banho, alimentar, fazer dormir, controlar medicamentos, pentear o cabelo, ajudar a levantar, atividades essas feitas exclusivamente por Leonor nos 5 anos de que trata este texto. Trabalhar essa relação específica de cuidado nos permitirá ver como potência e vulnerabilidade são coproduzias nesse processo.

Ao acompanhar o dia a dia de Leonor no cuidado com sua mãe, outros temas apareceram como importantes e complexificam essa relação. Como Veena Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a. apontou, a história das doenças e dos doentes se entrelaçam às histórias das relações de família. Ao mesmo tempo, essas histórias nos falam dos rastros deixados pelas instituições e políticas de saúde ao longo dos anos. Longe de apresentar as experiências do cuidado por meio de uma narrativa linear, trabalharei as diferentes temporalidades que fazem parte do presente de Leonor e estão “embebidas” (Das, 2007) na relação de cuidado. A partir da ideia de “duress3 3 Ann Laura Stoler (2016) desenvolve a ideia de Duress para pensar sobre como a história colonial continua coagindo o presente, atuando e impactando as relações. Com as palavras da autora: “duress, then, is neither a thing nor an organizing principle so much as a relation to a condition, a pressure exerted, a troubled condition borne in the body, a force exercised on muscles and mind. It may bear no immediately visible sign or, alternatively, it may manifest in a weakened constitution and attenuated capacity to bear its weight. Duress is tethered to time but rarely in any predictable way. It may be a response to relentless force, to the quickened pacing of pressure, to intensified or arbitrary inflictions that reduce expectations and stamina. Duress rarely calls out its name. Often it is a mute condition of constraint. Legally it does something else. To claim to be “under duress” in a court of law does not absolve one of a crime or exonerate the fact of one. On the contrary, it admits a culpability —a condition induced by illegitimate pressure. But it is productive, too, of a diminished, burned-out will not to succumb, when one is stripped of the wherewithal to have acted differently or better” (Stoler, 2016:7). ” (Stoler, 2016), discutirei as formas com que as políticas e instituições de saúde se inscreveram ao longo dos anos nos corpos e mentes de Dona Carmem e Leonor e como essas inscrições importam quando analisamos as práticas cotidianas do cuidado no presente. Seguindo esse raciocínio, os corpos dessas mulheres serão trabalhados como “corpos políticos” (Protevi, 2009PROTEVI, John. Political affect: conecting the social and the somatic. Minneapolis; London, University of Minnesota Press, 2009.), a saber, corpos que têm história, corpos cuja experiência está ancorada em modulações específicas e são formados nos encontros com as políticas e instituições. São nesses encontros entre corpos, família, políticas e instituições que a dicotomia entre público e privado desvanece (Han, 2012HAN, Clara. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press, 2012.; Das, 2015aDAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a.).

Como introduzi acima, as histórias das doenças e doentes nos falam também das histórias de família. Estas, por sua vez, estão emaranhadas às relações de cuidado e frequentemente são trazidas do passado para o presente. As histórias de família de Leonor foram conturbadas e, em muitos momentos, nos falam de traições (Pierobon, 2021PIEROBON, Camila. Family betrayals: the textures of kinship. Sociologia & Antropologia, 2021, 11(3), pp.869-890 [doi.org/10.1590/2238-38752021v1136 - acesso em: 14 fev. 2022].
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). Contudo, as experiências passadas de traições familiares, como trabalhou Veena Das (2007), constituem as relações na vida cotidiana. Para trabalhar as formas com que as mulheres refizeram suas vidas após a experiência da Partição (1947), a autora nos convida a olhar para como essas traições foram incorporadas à vida diária. Nos trabalhos mais recentes, em que a autora analisa os processos de adoecimento no interior das famílias de baixa renda na periferia de Nova Déli, Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a. discute como certos eventos não são absorvidos e tornam o cotidiano insuportável. Muitas das violências vividas por Leonor no interior de sua família foram incorporadas à sua vida diária. Outras, porém, a perturbam. É um desses eventos que não foram absorvidos e continuam incomodando, ou, nas palavras de Janet Carsten (2007)CARSTEN, Janet. Ghosts of memories: esssays on remembrance and relatedness. Malden, Blackwell Publishing, 2007., é um desses “fantasmas da memória”, que atordoam suas relações, o que trabalharei abaixo, mostrando como se entrelaçam às dinâmicas do cuidado.

Antes de prosseguir, ressalto que o cuidado de idosos no Brasil não é tratado como questão de saúde pública, mas como um problema doméstico4 4 Para uma discussão sobre como o cuidado foi historicamente invisibilizado e tratado como problema doméstico, ver Laugier (2011, 2015). Para uma análise sobre como o cuidado foi por muito tempo um assunto de pouco interesse intelectual, ver Moll, Moser & Pols (2010). Sobre as diferenças em torno do cuidado em países que passaram por experiências de Wellfare State e países onde o cuidado é tratado como questão doméstica, ver Fonseca e Fietz (2018). . Como escreveram Helena Hirata e Guita Debert (2016), as questões em torno do cuidado urgem serem discutidas publicamente e tratadas como questão política. Sabemos que a população brasileira vem envelhecendo rapidamente e, segundo o IBGE (2010), triplicará até 2050 e chegará a 66,5 milhões de pessoas. A última Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2013IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasília, 2013 [ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf - acesso em: 10 jan. 2020].
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) nos mostra que mais de 80% dos idosos que precisam de cuidados recebem essa “ajuda” exclusivamente dos membros de suas famílias5 5 Para uma análise detalhada dos dados sobre o cuidado de idosos levantados pela Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2013), ver Lima Costa, et. al. (2017). O termo “ajuda” é utilizado na Pesquisa Nacional de Saúde. . Embora a pesquisa não trate da variável de gênero, não é difícil imaginar que são majoritariamente mulheres aquelas que cuidam dos familiares idosos. Apoiada nos autores acima citados, penso que sabemos pouco sobre como as populações de baixa renda estão envelhecendo, adoecendo e sendo cuidadas em suas práticas cotidianas. Dito isso, afirmo que sabemos menos ainda sobre como o cuidado afeta concretamente a vida dos cuidadores, em especial daqueles que são membros da própria família. Assim, este texto é uma tentativa de pensar sobre o que significa fazer a vida em suas formas mais íntimas sem desconectá-las da dimensão pública. Para que consigamos ampliar as discussões em torno do cuidado na vida diária, Woodward (2012)WOODWARD, Kathleen. A public secret: assisted living, caregivers, globalization. International Journal of Ageing and Later Life, 7(2), 2012, pp.17-51 [doi.org/10.3384/ijal.1652-8670.1272a2 - acesso em: 10 set. 2019].
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defende que contemos cada vez mais histórias biográficas dos idosos e de seus cuidadores e que essas histórias sejam extraídas da experiência concreta cotidiana. É seguindo a provocação de Woodward, portanto, que descrevo a experiência de Leonor no cuidado com sua mãe, na tentativa de trazer para o domínio público questões que insistem em ser naturalizadas como privadas.

Duress

No ano de 2013, Leonor levou sua mãe para morar consigo na ocupação popular onde reside, localizada no centro antigo da cidade do Rio de Janeiro. Assim que Dona Carmem chegou, as primeiras características que me saltaram aos olhos foram as limitações físicas e cognitivas, efeitos do avanço da doença de Alzheimer que é indissociável do seu processo de envelhecimento. Se, para mim, essas limitações pareciam complicar o dia a dia de Leonor, ela própria, aos poucos, revelava-me os problemas concretos que precisava enfrentar: as frases incompreensíveis de Dona Carmem, as evocações corriqueiras dos pais mortos, os pedidos ininterruptos para voltar à sua casa, a insônia que lentamente se tornava usual, as tentativas da mãe de se masturbar, as vezes em que a Dona Carmem não reconhecia a filha e invertia os papéis. Havia também a dificuldade de locomoção, o avanço das incontinências urinária e fecal, a surdez parcial, o progresso da catarata, a ausência de dentes, o câncer na gengiva, a hipertensão, a anemia, a diabetes... Leonor não convivia com sua mãe há alguns anos devido aos conflitos entre ela e Cleber, o irmão responsável por cuidar de Dona Carmem até ela ir para sua casa. Por isso, Leonor sabia pouco de como o envelhecimento e a doença senil haviam comprometido o corpo e mente de sua mãe. Dia após dia, ela precisou conhecer as características de Dona Carmem, que foram sendo incorporadas à sua vida diária, umas mais que outras. Ocorre que envelhecimento e Alzheimer são processos contínuos e cada pequena mudança no corpo da mãe e do seu próprio exigia que Leonor se habituasse à novidade.

Ao acompanhar o cotidiano de Leonor no decorrer dos anos, eu fui percebendo que as dinâmicas do cuidado se complexificam quando combinamos o envelhecimento e a doença senil com os efeitos de outros adoecimentos. A ausência de dentes e a cegueira eram duas das características presentes no corpo de Dona Carmem que deixavam o cotidiano de Leonor ainda mais difícil. Curiosa sobre os processos que fizeram com que Dona Carmem perdesse todos os dentes e ficasse cega, eu pedi que Leonor me contasse o que ela sabia desses percursos, visto que Dona Carmem não tinha condições inteligíveis para narrar essas histórias6 6 Veena Das (2015a) nos fala para prestar atenção nos enunciados de pessoas classificadas como “loucas” ou “incapazes”. Eu tentei fazer esse exercício com Dona Carmem e, em trabalhos futuros, pretendo adentrar esse problema. Contudo, era impossível para Dona Carmem me narrar seus processos de adoecimento de forma que eu pudesse compreendê-los. . A partir do que a filha me mostrou ser um problema, eu apresento abaixo como certas doenças foram, ano após ano, produzindo o corpo de Dona Carmem, e como o acúmulo dessas doenças nesse corpo específico produziu efeitos concretos no presente daquela que se tornou responsável pelo cuidado. Analisar as marcas presentes nos corpos das pessoas a partir das histórias das doenças que ocorreram em diferentes fases da vida nos permite perceber como as políticas de saúde do país e suas (des)continuidades se fazem presentes nos corpos, ao mesmo tempo que se tornam heranças para gerações posteriores. É nesse sentido que os corpos aqui tratados são pensados como “políticos” (Protevi, 2009PROTEVI, John. Political affect: conecting the social and the somatic. Minneapolis; London, University of Minnesota Press, 2009.).

Vamos ao corpo de Dona Carmem. Dona Carmem perdeu os dentes e a capacidade de usar dentaduras em um processo que teve início no final dos anos 70. Entre os 45 e 50 anos de idade, Dona Carmem teve periodontite e em pouco tempo perdeu todos os dentes da boca. Sem acesso ao implante dentário, Dona Carmem usou dentaduras por mais de 20 anos, cujo efeito foi a atrofia da gengiva que, por sua vez, dificultava o uso das dentaduras. As dentaduras foram descartadas em 2014, quando ela desenvolveu câncer no que restava da gengiva. Foi necessário tratamento radioterápico, o que queimou parte de sua boca, língua, esôfago, além das gengivas, e as dentaduras machucavam o local afetado. Com o fim do tratamento radioterápico, feito pelo Sistema Único de Saúde (doravante SUS), Leonor buscou o implante de dentes pelo mesmo sistema, dessa vez sem sucesso. Desde então, Dona Carmem não usa dentaduras. Ela é uma dentre as 16 milhões de pessoas que não tem nenhum dente no país e está entre os 77,7% daqueles que, sem dentes, não utilizam prótese dentária (IBGE, 2013IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasília, 2013 [ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf - acesso em: 10 jan. 2020].
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). Segundo o relatório da Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2013IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasília, 2013 [ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf - acesso em: 10 jan. 2020].
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), o grupo mais afetado pela ausência de dentes são as mulheres idosas.

A periodontite é uma infeção bacteriana que afeta as gengivas. Os níveis moderado e grave da doença atingem 6,3% dos adultos brasileiros, e a população pobre, negra e masculina é a mais afetada (PNSB, 2012). Embora eu esteja preocupada com a história da periodontite no corpo de Dona Carmem e com os efeitos concretos que a ausência dos dentes provocou na vida diária de Leonor, eu trouxe os dados estatísticos para mostrar que esse problema afeta milhões de pessoas no Brasil, não sendo, portanto, apenas um problema doméstico. Ao contrário, a ausência de dentes é um problema de saúde pública que afeta as pessoas diferencialmente por sua classe, raça e gênero. A periodontite é uma infecção considerada de fácil tratamento, mesmo quando incidida. A perda dos dentes poderia ter sido evitada se Dona Carmem tivesse recebido acompanhamento odontológico e instruções básicas de higiene bucal ao longo de sua vida.

O argumento que defendo é que a perda dos dentes por periodontite pode ser analisada como uma duress (Stoler, 2016) das políticas de saúde inscrita no corpo de Dona Carmem. A partir das reflexões de Stoler (2016), penso que perda de dentes causada por uma infecção bacteriana considerada de fácil tratamento pode ser lida como um efeito das políticas públicas existentes na época que impediram que ela tivesse o acompanhamento de um dentista. Dona Carmem desenvolveu periodontite no final dos anos 70. Naqueles anos, o governo ditatorial enfrentava uma grave crise financeira (1974-79), e as políticas públicas de saúde, que já eram escassas, foram ainda mais contingenciadas (Vianna e Paim, 2016VIANNA, Maria Isabel; PAIM, Joenilson. Estado e atenção à saúde bucal no Brasil no período pré-constituinte. In: CHAVES, S. Política de saúde bucal no Brasil: teoria e prática. Salvador, EDUFBA, 2016, pp.79-116.). Famílias como a de Dona Carmem – que viviam do trabalho informal e não contribuíam com a Previdência Social – foram profundamente atingidas, pois eram consideradas indigentes frente ao estado brasileiro e, portanto, não tinham acesso às instituições públicas de saúde (Ponte e Nascimento, 2010PONTE, Carlos; NASCIMENTO, Dilene. Os anos de chumbo: a saúde sob a ditadura. In: REIS,J. R.; VELASQUES, M. Cantos, contos e imagens: puxando mais uns fios nessa história. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2010, pp.181-218.). Ao contrário das pesquisas que analisam as políticas de saúde no período da ditadura militar a partir de sua falta, proponho que refaçamos a pergunta elaborada por Edson Telles e Vladmir Safatle: “O que resta da Ditadura?” (2010), olhando para como as políticas de saúde destinada às populações pobres foram postas em prática naquele período, como elas foram produtivas na formação de corpos e como se tornaram uma herança que continua operando nos processos de fazer família no presente (Stoler, 2016; Han, 2012HAN, Clara. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press, 2012.).

Passemos agora para outra das características do corpo de Dona Carmem que Leonor destacou como um complicador na sua vida cotidiana: a cegueira, por sua vez provocada pela catarata. Os primeiros sintomas da catarata apareceram nos olhos de Dona Carmem em meados dos anos de 1990. A ditadura militar havia acabado e, com a redemocratização, houve a criação do SUS e a aprovação da Lei Organiza de Saúde, que propunha a saúde como um direito universal e gratuito. Ao mesmo tempo, os anos 90 foram marcados por uma descentralização dos serviços públicos de saúde do nível federal para os níveis estaduais e municipais na tensão com o estímulo à individualização dos tratamentos de saúde a partir da iniciativa privada (Biehl, 2005BIEHL, João. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley, University of California Press, 2005.; Levcovitz et.al, 2001). Na prática, houve cortes nos investimentos em saúde pública e essa nova configuração dificultou que as famílias acessassem o sistema público, mesmo aquelas que outrora eram atendidas pelas instituições de saúde. Muitas famílias passaram a alocar os seus próprios recursos, já escassos e sobrecarregados, no tratamento dos seus doentes (Biehl, 2005BIEHL, João. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley, University of California Press, 2005.). Foi durante essas mudanças políticas que Dona Carmem passava da fase adulta para a velhice, e Leonor se tornava uma mulher adulta. Foi nesse momento específico que Dona Carmem começou a desenvolver catarata e não pôde acessar os sistemas público ou privado de saúde. Mas, nesse caso específico, essa duress das políticas de estado está entrelaçada às relações de família (Biehl, 2005BIEHL, João. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley, University of California Press, 2005.; Das, 2015aDAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a.).

Em meados dos anos 90, o marido de Dona Carmem havia morrido e ela dividia a casa na Zona Oeste do Rio de Janeiro com seu filho mais novo, Cleber. Sem dinheiro para pagar uma cirurgia privada e sem acessar as instituições públicas de saúde, ela foi gradualmente perdendo a visão. Sua filha mais velha sugeriu que ela se mudasse para São Paulo, pois ela teria contatos com agentes da prefeitura que facilitariam o acesso à cirurgia na cidade. Dona Carmem foi. Em São Paulo, ela viveu com seu neto, visto que ele tinha melhores condições de trabalho e poderia guardar a aposentadoria da avó para que ela fizesse a cirurgia pelo sistema privado. Ocorre que o neto usurpou seu dinheiro, além de ter sido acusado inúmeras vezes de maus-tratos. Sem a cirurgia pelo sistema público ou privado, Dona Carmem voltou a morar com Cleber no Rio de Janeiro, sofrendo agressões físicas e outros maus-tratos, motivos que fizeram com que Leonor levasse a mãe para morar consigo. Assim que Dona Carmem chegou na casa da filha, em 2013, esta acionou a Clínica da Família7 7 As Clínicas da Família são as unidades públicas de saúde gerenciadas pelos municípios, que fazem o acompanhamento básico de saúde da população com foco em atenção primária. mais próxima e iniciou o processo burocrático para a cirurgia de cataratas pelo SUS. Após os exames, foi constatado o estágio avançado da catarata nos olhos de Dona Carmem, o que tornava baixa a probabilidade de sucesso da cirurgia. Esse fator foi determinante para que Dona Carmem não entrasse na fila para a cirurgia pelo SUS. Ano após ano, a catarata nos olhos de Dona Carmem avançava, até que ela se tornou cega.

Catarata torna opaco o cristalino do olho e vai gradativamente cegando a pessoa. Para trata-la, é necessária uma cirurgia que, segundo o site do Ministério da Saúde, é simples, e as taxas de sucesso no país são de 90%. Os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2013IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasília, 2013 [ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf - acesso em: 10 jan. 2020].
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) mostram que 31,9% das mulheres idosas têm cataratas, sendo o grupo mais vulnerável. Segundo o relatório produzido pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (2015), em 2015 o número de pessoas cegas por cataratas no país era de 350 mil pessoas. Não há dados sobre as classes sociais mais afetadas pela cegueira por cataratas, mas pode-se inferir que são as populações pobres aquelas que não conseguem fazer a cirurgia curativa de um problema comum no processo de envelhecimento e considerado de fácil resolução, e, por isso, são acabam ficando cegas. Como no Brasil há uma associação direta entre classes sociais e raça, é possível imaginar que a população negra é a que mais sofre com a cegueira decorrente da catarata.

Ao cruzar a cataratas e a periodontite com a impossibilidade de tratamento dessas doenças em um mesmo corpo, vemos como as políticas de saúde têm durações que se sobrepõem e se presentificam nos corpos das pessoas (Stoler, 2016; Han, 2012HAN, Clara. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press, 2012.). O fato de Dona Carmem não receber tratamento adequado, no início do processo da catarata, pelo sistema público – que dava seus primeiros passos com a redemocratização – impediu que a cirurgia fosse realizada, mesmo com a expansão ocorrida no SUS nos anos 2000. A periodontite e o atrofiamento da gengiva são efeitos das políticas de saúde no período da ditadura militar que continuam a atuar no presente de Dona Carmem. Por outro lado, o tratamento do câncer na boca, feito integralmente pelo SUS em 2014, e a impossibilidade de conseguir uma cirurgia para implantes dentários pelo mesmo sistema nos mostram a ambivalência desse serviço público na produção da vida e de vulnerabilidades: curou-se o câncer na boca de Dona Carmem, mas isso a deixou sem dentes. Por essa perspectiva, os adoecimentos são revelados como profundamente sociais e políticos. Ao nos atentarmos para as temporalidades das políticas de saúde, para as formas como diversas políticas se inscrevem em um mesmo corpo e também para as heranças que ficam para as gerações posteriores, podemos entender melhor como as políticas de saúde hoje produzem uma duress que projeta futuros. Antes de prosseguir, destaco que 75% dos idoso brasileiros acessam exclusivamente o SUS para o tratamento e acompanhamento de suas doenças8 8 Site consultado: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/44451-estudo-aponta-que-75-dos-idosos-usam-apenas-o-sus - acesso em: 10 jan. 2020. .

Herança

Gostaria de retomar a ideia de que as políticas de saúde do país e de suas (des)continuidades se fazem presentes nos corpos das pessoas ao mesmo tempo que se tornam heranças para gerações posteriores. Em outras palavras, o que discutirei nesta parte do trabalho é como o passado continua construindo um presente e um futuro para além do tempo de uma vida humana (Han, 2015HAN, Clara. Echoes of a death: violence, endurance, and the experiences of loss. In: DAS, Veena; HAN, Clara. Living and dying in the contemporary world: a compendium. Oakland, Universitu of California Press, 2015, pp.493-509.). A partir da ideia de Ann Laura Stoler (2016:7) de que a duress não é algo facilmente visível e identificável, mas é uma “condição turbulenta suportada pelo corpo”, “uma força exercida sobre os músculos e a mente”, eu apresento como as características produzidas ao longo dos anos no corpo de Dona Carmem estão fazendo corpo e mente da filha Leonor. A transformação da quase cegueira para cegueira completa será o mote para apresentar essas questões, visto que fazia parte do cotidiano de Leonor e exigiu cuidados específicos em diferentes momentos. Contudo, quando descrevo os “atos de cuidado” (Kleinman, 2015KLEINMAN, Arthur. Care: in search of a health agenda. The Lancet, 386, 2015, pp.240-241 [doi.org/10.1016/S0140-6736(15)61271-5 - acesso em: 17 out. 2019].
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), é impossível isolar o avanço da catarata dos outros processos que fazem o corpo de Dona Carmem, em especial a progressão da doença de Alzheimer e seus efeitos.

Nem tudo está na linguagem verbal afirmam Mol, Moser & Pols (2010). Para as autoras, ao se enfatizar apenas o verbal, nós perdemos um grande componente não verbal presente nas práticas diárias de cuidado (2010:10). Seguindo esse raciocínio, descrevo duas cenas etnográficas que testemunhei e que revelam uma das funções da filha no cuidado com a mãe: a de levá-la ao banheiro. A primeira cena aconteceu em 2014, quando Dona Carmem, embora quase cega, ainda conseguia se orientar pela casa por meio de luzes e sombras. Já a segunda cena aconteceu em 2016, quando ela estava completamente cega. Embora, à primeira vista, o “ato de cuidado” seja o mesmo, “levar a mãe ao banheiro”, o que tento tornar evidente é como a miudeza da quase cegueira para a cegueira completa transformou o dia a dia de Leonor, infiltrou-se em seus músculos e, como veremos abaixo, em sua mente. Vamos às cenas.

Mesmo com o avanço da doença de Alzheimer, Dona Carmem se recusava a urinar e a defecar nas fraldas geriátricas. Por segurar o xixi e o cocô, quando Leonor a vestia com as fraldas, decorriam outros problemas como infecção urinária. Por isso, Leonor fazia questão de levar sua mãe ao vaso sanitário, ato que está ancorado à sua “ética de cuidado” (Laugier, 2015LAUGIER, Sandra. The ethics of care as a politics of the ordinary. New Literary History, 2015, pp. 217-240 [doi.org/10.1353/nlh.2015.0016 - acesso em: 13 set. 2019].
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) que diz: ir ao banheiro é um dos poucos prazeres que minha mãe tem na vida. Evitar as fraldas e levar a mãe ao banheiro se tece aos custos das fraldas geriátricas para um orçamento doméstico de um salário mínimo mensal9 9 Em dezembro de 2013, o salário mensal era de 678,00 reais ou aproximadamente 291,00 dólares. Em dezembro de 2018, o salário mínimo era de 954,00 reais ou aproximadamente 243,00 dólares. Sites consultados: http://www.idealsoftwares.com.br/indices/dolar2018.html, http://www.idealsoftwares.com.br/indices/dolar2013.html e http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo.htm - acesso em: 10 jan. 2020. . Embora quase cega em 2014, Dona Carmem conseguia se orientar pela casa por meio das luzes e sombras. Naquele momento, os músculos de suas pernas e braços tinham força suficiente para sustentá-la. Dessa maneira, quando ela queria ir ao banheiro, Dona Carmem se levantava de onde estivesse, se orientava pela luz sempre acessa do banheiro e caminhava se escorando na mesa, sofá ou cadeira. Naquele ano, “levar a mãe ao banheiro” significava auxiliá-la a sentar-se corretamente no vaso sanitário, limpá-la, ajudá-la a se levantar e a lavar suas mãos. Dona Carmem, então, caminhava de volta para o lugar onde estava, mas Leonor sempre ficava atenta caso precisasse socorrê-la quando ela perdia o equilíbrio.

Em 2016, Dona Carmem estava cega, os efeitos da doença de Alzheimer avançavam e a força em sua musculatura das pernas e braços diminuía. Cega, sem forças e com menor capacidade cognitiva, a mínima autonomia de levantar-se e caminhar até o banheiro foi interrompida. Para que Dona Carmem pudesse usar o banheiro, Leonor tentou levá-la à cadeira higiênica. Contudo, a cadeira era velha demais, as rodas não funcionavam e manobrá-la em uma casa pequena era difícil. A melhor alternativa encontrada por ela foi a de servir como apoio para sua mãe durante o percurso até o banheiro, mesmo que a maior parte da força fosse exercida pela própria Leonor. Na sequência, a filha levava a mãe de volta à cama ou ao sofá. Por vezes, Dona Carmem era literalmente carregada por Leonor. Dia após dia, ano após ano, o trabalho de levar a mãe ao banheiro produzia desgastes no corpo da filha, que também envelhecia. Essa era uma dentre as dezenas de funções que tinha como cuidadora. O acumulo de trabalho fez com que Leonor lentamente desenvolvesse tendinite nos braços e prolapso genital.

Gostaria de refletir sobre a rotina de Leonor de levar sua mãe ao banheiro todos os dias, trazendo o paradoxo sobre o cotidiano desenvolvido por Veena Das (2015bDAS, Veena. What does ordinary ethics look like? In: LAMBECK, M. et alii. Four lectures on ethics: anthropological perspectives. Chicago, HAU Books, 2015b, pp.53-125.; 2020DAS, Veena. Textures of the Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein. New York, Fordham University Press, 2020.). Para a autora, nós pesquisadores não podemos supor que a vida ordinária seja algo simples e que sua obviedade esteja garantida. Ao contrário, é exatamente o hábito, a rotina e a repetição aquilo que garante a vida. O trabalho de fazer a vida todos os dias exige a repetição do cozinhar, do limpar, do pentear o cabelo, do levar ao banheiro... Para além da repetição, o cotidiano para Veena Das é o lugar da dúvida, do ceticismo, da incerteza, mas também o lugar onde decisões éticas são tomadas diariamente. Acrescento que o paradoxo da vida cotidiana é que a vida se faz justamente na rotina, no hábito e na repetição, ao mesmo tempo que lentamente se acumulam e modificam os corpos e mentes. Nesse sentido, a vida cotidiana é hábito e rotina, mas, sincronicamente, é o novo se fazendo nesses pequenos atos. A opacidade no cristalino que dia após dia avançava nos olhos de Dona Carmem produzia microdesgastes nos músculos de Leonor. Fazer a vida todos os dias, em práticas como levar a mãe ao banheiro, mesmo que isso não seja algo que se destaque no cotidiano, é o lugar de potencialidade da vida, mas também da produção de vulnerabilidades.

Por meio dessa mudança aparentemente pequena no corpo de Dona Carmem, vemos como as políticas de saúde têm uma duração, se tornam heranças para as gerações posteriores e continuam atuando na formação de corpos para além de uma vida humana. Carregar a mãe até o banheiro não nos mostra apenas que os mundos domésticos são refeitos sobre pressões econômicas (Biehl, 2005BIEHL, João. Vita: life in a zone of social abandonment. Berkeley, University of California Press, 2005.; Han, 2012HAN, Clara. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley, University of California Press, 2012.), mas que os corpos de idosos e cuidadores se transformam em conexão com a duress das políticas de saúde que outrora existiram. Aqui retomo Hirata e Debert (2016)HIRATA, Helena; DEBERT, Guita. Apresentação: Dossiê Gênero e Cuidado. cadernos pagu (46), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, pp.7-15 [doi.org/10.1590/18094449201600460007 - acesso em: 20 out. 2019].
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quando as autoras afirmam que o cuidado de idosos no Brasil é tratado como um problema doméstico. É, portanto, para as famílias que se entrega o cuidado daqueles que tiveram os corpos debilitados de forma irreversível por doenças de fácil tratamento. A naturalização da família como o lugar do cuidado dos seus idosos delega uma herança perversa que atinge com maior potência as famílias de baixa renda e em especial as mulheres10 10 Agradeço a Regina Facchini pelos comentários sobre o texto e por me chamar a atenção a esse processo. . O cuidado como atividade exercida exclusivamente pela família se torna ainda mais árduo quando o sobrepomos ao trabalho doméstico.

Responsabilidade

Nesta parte do artigo, reflito sobre a responsabilização das mulheres no cuidado com os idosos de suas famílias, sem que esqueçamos que foram essas mesmas mulheres as responsáveis pelo cuidado com os filhos e, muitas vezes, com os netos11 11 Devido ao espaço e à questão proposta neste artigo, eu não tenho como desenvolver a relação de cuidado de Leonor com seus filhos e netos. Contudo, as relações familiares de Leonor, que incluem o cuidado com seus filhos e netos, aparecem em diferentes capítulos de minha tese (Pierobon, 2018). Para uma discussão sobre o cuidado de crianças nas classes populares, ver o trabalho de Fernandes (2017). . Segundo a filósofa francesa Sandra Laugier (2011LAUGIER, Sandra. Le care comme critique et comme féminisme. Travail, genre et société, 26(2), 2011, pp.183-188 [doi.org/10.3917/tgs.026.0183 - acesso em: 15 set. 2019].
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; 2015), o cuidado foi definido, aceito e naturalizado como um valor moral definido como “feminino”. A divisão moral do trabalho historicamente desqualificou e invisibilizou os diversos trabalhos domésticos, retirando sua importância moral e política (McClintock, 2010MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2010.; Mol; Moser; Pols, 2010; Laugier 2015LAUGIER, Sandra. The ethics of care as a politics of the ordinary. New Literary History, 2015, pp. 217-240 [doi.org/10.1353/nlh.2015.0016 - acesso em: 13 set. 2019].
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; Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. Matters of care : speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press, 2017.). O trabalho de cuidar é uma das responsabilidades atribuídas à vida doméstica, que recai com maior peso sobre as mulheres, as quais, por sua vez, precisam lidar com essa responsabilização. Como escreveu Veena Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a., não devemos naturalizar a responsabilidade que uma pessoa assume em relação à outra. Ao contrário, o esforço está justamente em perceber como as histórias e subjetividades individuais se conectam com a lógica social mais ampla que insiste em responsabilizar as mulheres pelo cuidado.

Na primeira parte do artigo, eu mostrei rapidamente alguns dos trânsitos de Dona Carmem entre as casas de seus filhos e netos até ela se fixar na casa de Leonor. Ao recuperarmos os motivos que levaram a essas mudanças de endereço, vemos a ambivalência entre cuidado e maus tratos, dedicação e negligência, carinho e abandono. Acompanhar esses trânsitos significa desnaturalizar a figura de Leonor como cuidadora para entendermos os processos que fizeram com que ela se tornasse a única responsável por sua mãe idosa e doente. Contudo, na vida diária há outras formas de se auto-responsabilizar pelo cuidado com o outro, e são algumas dessas práticas emaranhadas ao trabalho doméstico o que apresento abaixo.

Quando Dona Carmem chegou à casa de Leonor, além de todas as doenças que apresentei no início do texto, ela tinha piolhos nos cabelos e dores nas costelas, o que fez Leonor suspeitar que ela tivesse sofrido agressões físicas de Cleber. Eram, portanto, enormes os problemas de saúde e grave a doença que Leonor decidiu enfrentar para prolongar a vida da mãe com a melhor qualidade e o menor sofrimento possível. Por meio de suas redes familiares e de amizade, ela conseguiu as cadeiras de rodas e higiênica; levou Dona Carmem inúmeras vezes em clínicas médicas e hospitais públicos; brigou com agentes do estado para iniciar os processos para a radioterapia, para a cirurgia de catarata, para o implante dentário. Sem se conformar com as negativas de acesso a alguns serviços de saúde, Leonor recorreu às defensorias públicas e ouvidorias de hospitais. Embora na maior parte do tempo ela estivesse sozinha, havia uma pequena rede de solidariedade, na qual me incluo, que foi importante para que Leonor tivesse sucesso em algumas dessas ações. Mesmo Dona Carmem contava com a solidariedade de suas amigas da época, as quais conhecera na igreja evangélica que frequentava. Essas mulheres, sempre que possível, levavam fraldas geriátricas para a amiga doente, e Leonor as reservava para vestir em sua mãe no momento de dormir ou de sair de casa.

No cotidiano, eu pude acompanhar a dieta minuciosamente preparada por Leonor para enfrentar a anemia, diabetes, hipertensão... A escolha por frutas, legumes, grãos, produtos de origem animal, bem como suas combinações para cada situação especifica, eram sempre pensadas a partir de saberes que Leonor adquiriu ao longo da vida, mas também por meio de pesquisas na internet, conversas com médicos e trocas de experiências com outras pessoas na mesma situação. Com o passar dos anos, Leonor adquiriu uma expertise sobre medicamentos, alimentos e também sobre quais eram os melhores hospitais, médicos e enfermeiros da sua região. Suas escolhas eram profundamente morais – ela sempre servia à sua mãe bons alimentos, assim como escolhia para ela bons médicos e bons hospitais, com o objetivo de lhe fazer bem.

Para que Dona Carmem pudesse comer sem mastigar, Leonor cozinhava os alimentos e depois os batia no liquidificador para que ficassem pastosos. Por exemplo, Leonor cozinhava e depois batia a carne refogada, na sequência, as cenouras com lentilhas, depois o arroz, a batata baroa, tudo separadamente. Durante cinco anos, todos os dias e em todas as refeições Leonor repetia o mesmo procedimento. A ação de bater os alimentos no liquidificador era uma função do cuidado que se somava à atividade do trabalho doméstico de cozinhar. Por meio desse pequeno “ato de cuidado” (Kleinman, 2015KLEINMAN, Arthur. Care: in search of a health agenda. The Lancet, 386, 2015, pp.240-241 [doi.org/10.1016/S0140-6736(15)61271-5 - acesso em: 17 out. 2019].
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), nós vemos como trabalho doméstico e cuidado se coadunam e se acumulam na vida cotidiana. Contudo, Leonor não seguia os mesmos procedimentos para si mesma, por um lado porque ela tinha dentes e podia mastigar os alimentos. Devido aos parcos recursos, alguns alimentos eram consumidos exclusivamente por Dona Carmem, como, por exemplo, o salmão, o ginsen, a chia, o kiwi. Na sua ética da responsabilidade, Leonor produziu uma hierarquização de corpos no qual o corpo da mãe tinha prioridades para receber certos alimentos e, com eles, propriedades nutritivas.

As dinâmicas do cuidado fizeram com que Leonor dedicasse sua vida a essa função. Alimentar a mãe de três a quatro vezes por dia, levá-la ao banheiro inúmeras vezes, dar banho, colocá-la para dormir, conseguir consultas médicas e medicamentos: todas essas atividades foram incorporadas à sua vida diária e se sobrepunham às tarefas domésticas, que incluíam ir ao supermercado, cozinhar, limpar a casa, cuidar dos netos, cuidar da cachorra... Gostaria de ressaltar que todas essas atividades eram feitas no quarto andar de um prédio sem elevadores. Isso significa que a cada vez que Leonor saía de sua casa, ela precisava descer e subir quatro lances de escadas a pé, muitas vezes carregando mercadorias em seus braços. Em sua casa, o abastecimento de água potável era precário; como consequência, buscar galões com cinco ou dez litros de água era também um de seus trabalhos para tornar viável a sua vida doméstica.

Se, gradativamente, a presença de Dona Carmem fez com que Leonor incorporasse as limitações do corpo da mãe e produzisse novas dinâmicas domésticas, isso significa que outras atividades feitas por Leonor foram sendo pouco a pouco abandonadas. Ela deixou o trabalho remunerado de cuidadora de idosos em casas de família de classe média, tão comum entre as mulheres de baixa renda. Ela também abandonou o trabalho de diarista, parou de vender tapiocas pelas ruas da região, deixou de distribuir panfletos para sindicatos e partidos políticos. Sua principal fonte de renda passou a ser o Benefício Assistencial ao Idoso12 12 O Benefício Assistencial ao Idoso é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com mais de 65 anos cuja renda familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo [https://www.inss.gov.br/beneficios/beneficio-assistencia-a-pessoa-com-deficiencia-bpc/beneficio-assistencial-ao-idoso/ - acesso em: 10 jan. 2020. de Dona Carmem, de um salário mínimo, que será cortado assim que ela falecer. Para lhe render algum dinheiro extra, porém sempre instável, Leonor passou a fazer e vender roupas de crochê, refeições na porta de sua casa e, por vezes, a cuidar dos filhos de outras mulheres que moravam ou trabalhavam na região. Ambas passaram a viver intensamente no interior da casa, local onde Leonor exercia o trabalho doméstico, o trabalho do cuidado e o trabalho remunerado informal. Ao vislumbrar seu futuro, Leonor pretende conseguir o Benefício Assistencial ao Idoso quando atingir 65 anos, em 2023, benefício que está em risco diante das recentes mudanças nas políticas do país.

Entretanto, não foram só as atividades remuneradas que Leonor foi abandonando. Com o passar dos meses, eu fui pouco a pouco vendo Leonor abrir mão das atividades de lazer e daquelas que melhoravam sua qualidade de vida e o bem-estar de seu corpo: ela parou as aulas de natação que fazia em um projeto social próximo à sua casa; interrompeu as caminhadas nos parques com suas amigas; cessou suas idas aos restaurantes e bares da região; deixou de visitar amigas que viviam em bairros mais distantes. A partir de sua nova condição, Leonor passou a olhar o seu cotidiano como uma forma de confinamento: eu vivo confinada. Embora Leonor não aceitasse essa condição e fizesse todos os esforços para conseguir manter atividades fora de sua casa, a responsabilidade pelo cuidado com sua mãe impediu a continuidade de muitas de suas ações.

Observar o cotidiano de Leonor me fez pensar nos regimes de trabalho daquele que cuida de uma pessoa com a doença de Alzheimer avançada, mas também cega e sem dentes, além de padecente de outros adoecimentos. O que quero dizer é que a pessoa portadora da doença de Alzheimer é incapaz de efetuar tarefas sozinha, mesmo cuidados pessoais simples, como lavar o rosto ao acordar, e, dessa forma, sobre o cuidador recaem todos os afazeres, responsabilidades e obrigações por aquela pessoa doente; isso se complica ainda mais quando o cuidador é membro da família, é a única pessoa encarregada pelo cuidado, é também idosa e de baixa renda. Nesse sentido, o cuidado de uma casa na vida cotidiana se coaduna com o cuidado da pessoa doente e também com o trabalho remunerado informal. Essas condições fazem com que o cuidador esteja ininterruptamente em atividade, muitas vezes tendo que trabalhar madrugadas adentro, sem conseguir descansar ou ao menos dividir qualquer tarefa.

Antes de prosseguir, gostaria de ressaltar que para Leonor era impensável internar Dona Carmem em um asilo. Se, por um lado, ela ouvia rumores de maus-tratos no interior de instituições asilares, por outro, Leonor viveu concretamente situações difíceis nas instituições públicas de saúde13 13 Refiro-me ao 5º Capítulo de minha tese de doutorado (Pierobon, 2018), intitulado: “Instituições de Saúde: precariedade e conflitos cotidianos”. Nele, eu descrevo as internações de Dona Carmem nos hospitais e as relações de cuidado entre ela e sua filha Leonor. . A partir dessas experiências, ela entendia que Dona Carmem não receberia o cuidado concebido como o ideal para sua mãe. Ao mesmo tempo, Leonor compreendia o asilo como o lugar onde as famílias abandonam seus idosos. Assim, Leonor construiu a auto-responsabilização pelo cuidado com a mãe na aversão ao abandono que, no seu caso, inclui a acusação de que seus irmãos abandonaram Dona Carmem. Se os filhos abandonaram a própria mãe, Leonor cumpriria essa função; em suas palavras: jamais abandonarei minha mãe, minha família. Como descrevi acima, 80% dos idosos são cuidados por membros de suas próprias famílias. O que fica claro é o peso que as atividades do cuidado impõem à vida das mulheres.

Memória

A história das doenças e dos doentes nos falam das histórias de família. Gostaria de recuperar essa formulação de Veena Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a. para trazer outro importante elemento presente nas práticas de cuidado exercida por Leonor: as memórias de dor presentes nas relações entre os membros de sua família. Se, a partir da ideia de duress (Stoler, 2016), eu trabalhei a forma com que as diferentes políticas de saúde atuam na produção de corpos e permanecem como herança para gerações posteriores, aqui são as relações passadas de família e sua composição do presente o que quero destacar. Apoiada em Veena Das (2007DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent to the ordinary. Los Angeles, University of California Press, 2007., 2015aDAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a.), discuto como as experiências de dor estão embebidas na vida cotidiana e são revividas através de pequenos detalhes. A pergunta que guia minhas inquietações é: que texturas do tempo se fazem presentes nas relações de cuidado?

Para trabalhar essa questão, trago uma situação específica que ocorreu no ano de 2017, quando completava quatro anos que Leonor cuidava sozinha de sua mãe. A sobreposição da relação mãe-filha, idoso-cuidador, se somava ao trabalho doméstico e ao trabalho remunerado informal, se acumulava e produzia desgastes no corpo e mente de Leonor. Com o passar dos anos, a progressão da doença de Alzheimer fez com que Dona Carmem desenvolvesse insônias e alucinações. Nesse ano de 2017, as insônias e alucinações já haviam se tornado rotina na vida de Leonor. Contudo, ainda com Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a., nem tudo é absorvido na vida diária, e é exatamente o encontro do cansaço, das insônias, alucinações e das memórias de dor o que desenvolvo nesta parte do trabalho. Em um momento de desespero, Leonor me ligou buscando ajuda. A história que descrevo abaixo foi, portanto, narrada à distância, via telefone celular.

Fazia dois dias e duas noites que Dona Carmem estava acordada, com alucinações e sem dormir. Devido à forma como a mãe estava, Leonor também não dormia. As noites que ambas passavam em claro Leonor classificava como noites de terror. Nessa noite, após se debater, Dona Carmem prendeu a cabeça entre as grades que cercavam sua cama, estrategicamente colocadas para que ela não caísse, e ficou enroscada pelo pescoço. Leonor fotografou a mãe nessa situação e me enviou a fotografia via WhatsApp. Dona Carmem gritava insistentemente que estava presa, que estava machucando e que ela iria morrer. Leonor tentava se aproximar da mãe para tirar sua cabeça presa nas grades, mas, com alucinações e sem reconhecer a filha, Dona Carmem gritava por socorro, clamava pela polícia e dizia que Leonor queria matá-la, esfaqueá-la, sufocá-la... Quando a filha encostava nela, Dona Carmem gritava ainda mais, beliscava-a e batia em Leonor ao mesmo tempo que se debatia na cama, se machucando ainda mais. Segundo Leonor, sua mãe ficava aprontando a noite toda, e ninguém dormia. Ela só conseguia se aproximar da mãe quando ela se acalmava e pedia para comer.

Leonor não podia sair de casa, deixando sua mãe presa entre as grades. Assim, fazia horas que Leonor repetia para a Dona Carmem se acalmar, dizia que ela precisaria buscar comida, que não havia mais comida para Dona Carmem, que, idosa e sem dentes, precisava de comidas saudáveis e batidinhas. Leonor insistia: mãe, eu tenho dentes, posso comer qualquer coisa, a senhora não. Me ajuda pra eu poder cuidar da senhora. Dona Carmem respondia gritando: vai no mercado, vai no mercado, mas se recusava a deixar a filha se aproximar para desenroscar sua cabeça das grades. Foi neste exato momento que Leonor me ligou. Ela aproximou o aparelho celular à Dona Carmem para que eu pudesse ouvir os gritos. Em sua concepção, sua mãe estava definhando e levando ela junto.

Durante a alucinação, Dona Carmem começou a chamar por sua filha mais velha, Laura. Dona Carmem gritava que não queria a gorda cuidando dela e que queria Laura. Era Laura, Laura, Laura, o tempo todo. Quanto mais sua mãe chamava por Laura, mais Leonor achava complicado e mais ela ficava irritada. Cansada, irritada e sem dormir, Leonor falava besteiras para sua mãe: é a Laura que você quer, a sua filha que comeu o seu marido? Quando adolescente, Laura foi violada pelo pai durante anos. Na interpretação de Leonor, primeiro era uma violência, depois ela foi gostando dessas safadezas. Laura chegou a ter um filho da relação com o pai, que morou com diversas mulheres da família, inclusive com Leonor. O garoto foi assassinado aos 15 anos quando descia do ônibus. Por telefone, Leonor me contou que na época em que seu pai mantinha relações sexuais com Laura, ele a ameaçava dizendo que a próxima seria ela. Por isso, desde pequena, Leonor aprendeu a dormir com uma faca em baixo do travesseiro. Para complicar ainda mais a situação, Laura havia sido amante do marido de Leonor quando ela estava grávida do seu primeiro filho. Leonor se separou do marido e Laura o namorou por alguns anos, até que se separou também. Quando Dona Carmem chamava por Laura insistentemente, essas lembranças vinham à mente de Leonor. Ela me disse saber que sua mãe não tinha culpa de estar com a cabeça presa e de chamar por Laura, que ela estava em um momento de alucinação, mas essas lembranças eram muito fortes e às vezes ela soltava essas besteiras.

Ventre

Lembro como as mulheres nos levavam, crianças, com elas para o banho. E todas as mulheres, inclusive minha mãe, tinham o ventre caído (isso nós já entendíamos), e elas o amarravam com panos. Eu vi isso. Ventre caído se devia ao trabalho pesado.

Svetlana Aleksiévitch,

Vozes de Tchernóbil (2016:57)

Ao acompanhar o cotidiano de Leonor durante 5 anos, eu testemunhei seu processo de envelhecimento e adoecimento e, como processos, envelhecimento e adoecimento devem ser entendidos como sociais e políticos ao longo do tempo. Nesta última parte do artigo, quero aprofundar a discussão sobre os efeitos que a relação de cuidado produziu no corpo e mente de Leonor. Reforço apenas que, embora o foco esteja na relação de cuidado da filha com a mãe, ela não está dissociada das condições de pobreza e precariedade, da auto-responsabilização pelo cuidado, das memórias de dor presentes nas histórias da família, das políticas de saúde que atuaram na vulnerabilização dos corpos. Ao contrário, para entendermos a formação do corpo e mente de Leonor, é preciso analisar as várias dimensões da vida que atuam nesta produção. Todavia, fecho o texto trazendo a circularidade da produção do corpo vulnerável entre as mulheres de baixa renda ou, em outras palavras, pensando como a produção de vulnerabilidades se torna uma herança para gerações posteriores. Se acima eu apresentei o cuidado na ambivalência entre potência e vulnerabilidade, o que mostro agora é como essa potência pode ser também devastadora.

Voltamos ao ano de 2017. Além do avanço da doença de Alzheimer, alucinações e insônia, Leonor tinha que lidar com os efeitos de uma queda de Dona Carmem ocorrida no ano anterior, quando ela quebrou o fêmur. Como consequência da queda, da doença de Alzheimer e do processo de envelhecimento, Dona Carmem tinha cada vez mais dificuldades de locomoção. Seja em casa, seja nos hospitais, o efeito dessa limitação sobrecarregou ainda mais o trabalho doméstico e do cuidado. Sem conseguir apoiar a perna no chão, Leonor passou a carregar Dona Carmem da cama para a cadeira, da cadeira para o sofá, do sofá para a cadeira higiênica e assim sucessivamente. Essas atividades, dia após dia, desgastavam o corpo e mente já cansados de Leonor.

Dona Carmem estava com pneumonia. A infecção se agravou, e Leonor precisou internar a mãe no hospital. Passados alguns anos, Leonor mantinha sua ética de responsabilidade que diz: ir ao banheiro é um dos poucos prazeres que minha mãe tem na vida. Por isso, Leonor fazia questão de levar sua mãe ao banheiro, mesmo sem a ajuda dos enfermeiros do hospital, pois eles entendiam que Dona Carmem deveria defecar e urinar na fralda geriátrica. Para levar a mãe ao banheiro com a perna debilitada, Leonor a carregava da cama para a cadeira higiênica, empurrava-a até o banheiro, trazia-a de volta e colocava Dona Carmem na cama. Ocorre que Leonor não apenas levava sua mãe ao banheiro quantas vezes fosse necessário, mas passava vinte e quatro horas por dia no hospital cuidando da mãe – porque eram poucos os enfermeiros, porque eles não cuidariam dela da mesma forma que Leonor, porque seus irmãos eram ausentes, porque a filha não queria que a mãe se sentisse sozinha.

Por vezes, eu fui visitar Dona Carmem e Leonor no hospital; em outras, eu substituí Leonor por algumas horas para que ela pudesse descansar. Ocorre que no décimo dia dessa dinâmica no interior do hospital, no momento em que Leonor carregava Dona Carmem da cama para a cadeira higiênica, sua musculatura da vagina se rompeu e a sua bexiga urinária desceu pelo canal vaginal, saindo para fora da vagina. O nome biomédico do problema é prolapso genital e consiste no enfraquecimento dos músculos e dos ligamentos que formam o assoalho pélvico. No site do médico Dráuzio Varella14 14 Página consultada: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/prolapso-genital/ - acesso em: 10 jan. 2020. , ele explica que quando os músculos do assoalho pélvico ficam enfraquecidos, a sustentação da bexiga urinária, mas também de órgãos como a uretra, o útero, o intestino, o reto, entre outros, ficam comprometidos e podem adentrar a abertura vaginal. No caso de Leonor, era a bexiga o órgão que tinha caído para dentro da vagina; sendo esse o quadro, recebe a doença o nome de cistocele. Dentre as consequências da bexiga caída, está a incontinência urinária, característica também presente no corpo de Dona Carmem.

Após esse episódio no hospital, Leonor marcou uma consulta ginecológica na Clínica da Família próxima à sua casa. Lá, ela foi diagnosticada com prolapso genital e seu caso era cirúrgico. Quando o médico explicou que Leonor ficaria três dias internadas e precisaria de seis semanas de repouso, ela decidiu não dar encaminhamento aos procedimentos burocráticos para a cirurgia. O argumento mobilizado por Leonor foi o de que ela cuidava sozinha de sua mãe, morava no quarto andar de um prédio sem elevadores, não poderia ficar seis semanas sem ir ao supermercado e não podia contar com ninguém durante todo o período de recuperação. O médico entendeu a situação de Leonor, mas recomendou que, caso ela tivesse muitas dores, que ela voltasse à Clínica da Família, o que Leonor não fez.

Por cuidar sozinha de sua mãe, Leonor preferiu não dar andamento aos processos burocráticos que levariam à cirurgia. Dia após dia, o prolapso genital passou a fazer parte da sua vida diária: toda vez que sua bexiga urinária adentrava o canal vaginal, Leonor empurrava a bexiga para dentro com a mão, tentava encaixá-la no local que ela considerava correto e ficava o maior tempo possível em repouso. No mesmo ano, Leonor foi diagnosticada com glaucoma, mas ela não teve condições financeiras para prosseguir com o tratamento e, por isso, ela vem lentamente perdendo a visão. Leonor também precisava de fisioterapias para o braço devido à tendinite decorrente do trabalho doméstico exaustivo. Em 2018, Leonor sofreu um acidente doméstico e bateu com a cabeça no chão. Ela decidiu não ir ao médico com medo de ser internada e deixar Dona Carmem sozinha. Hoje, ela tem diabetes e, como Dona Carmem, perdeu parte dos dentes também por periodontite, mas, pelo SUS, ela conseguiu as próteses dentarias.

As insônias e alucinações progressivas de Dona Carmem afetaram profundamente a mente de Leonor. Exausta, por vezes passando quatro ou cinco dias sem dormir, Leonor começou a sentir vontade de morrer para poder descansar. Como grande parte das populações de baixa renda que vivem na cidade do Rio de Janeiro, sua casa se localizava em um território em constante confronto armado. Em meio a frequentes tiroteios, Leonor passou a se colocar em perigo. Algumas vezes, ao invés de se proteger, Leonor deixava seu corpo em meio aos tiroteios: ela ficava sentada na calçada da rua aguardando o conflito armado acabar. Em um momento de desespero e extremo cansaço, Leonor me disse as seguintes palavras: eu queria que uma dessas balas me encontrasse para que eu pudesse descansar. Metafórica ou não, essa ideação suicida durou alguns meses, depois se enfraqueceu. Leonor, então, buscou ajuda e, por meio de suas redes, que, nesse caso específico, me incluem, conseguimos que Dona Carmem fosse atendida por um psiquiatra. Este, por sua vez, recomendou o uso de remédios alopáticos, que ajudaram a controlar as insônias e alucinações de Dona Carmem. Voltar a dormir foi um alívio na vida cotidiana de Leonor.

Para finalizar, gostaria de pensar na relação entre potência, vulnerabilidade e devastação, mas também nas possibilidades de refazer a vida, nos termos de Veena Das (2007)DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent to the ordinary. Los Angeles, University of California Press, 2007.. Nesse momento específico da vida de Leonor, vemos como a pressão pela vida da mãe e o cansaço acumulado ao longo dos anos fizeram com que seu corpo adoecesse, por um lado, e que seus pensamentos trouxessem a morte como a única saída para o descanso. A potencialidade de fazer a vida do outro foi, ao mesmo tempo, produzindo uma devastação na qual Leonor chegou a um limite físico e mental. Potência, vulnerabilidade e devastação nos mostram o tecido complexo das relações de cuidado, no qual estão emaranhadas as relações de família, as memórias de dor e os desgastes decorrentes do trabalho do cuidado ao longo dos anos. Inspirada em Clara Han (2015)HAN, Clara. Echoes of a death: violence, endurance, and the experiences of loss. In: DAS, Veena; HAN, Clara. Living and dying in the contemporary world: a compendium. Oakland, Universitu of California Press, 2015, pp.493-509., que analisou como a experiência do assassinato se infiltrou na vida cotidiana de uma família na periferia de Santiago, penso que a relação de cuidado nos mostra a delicada tarefa de ser responsável pela vida do outro e de descobrir a finitude em circunstâncias difíceis. Assim, trabalhar a relação de cuidado de idosos é entender que vida e morte estão emaranhadas uma à outra (Han, 2015HAN, Clara. Echoes of a death: violence, endurance, and the experiences of loss. In: DAS, Veena; HAN, Clara. Living and dying in the contemporary world: a compendium. Oakland, Universitu of California Press, 2015, pp.493-509.).

Desfecho

O cuidado de um idoso na vida cotidiana não é uma tarefa simples, tampouco é uma responsabilidade cujo fim chega rapidamente. Ao contrário, cuidar de uma pessoa idosa pode durar anos a fio, e é algo que se faz ainda mais complexo quando a relação de cuidado é também uma relação de família. Assim, pensar o cuidado na vida cotidiana significa entender como se sobrepõem as relações idoso-cuidador, mãe-filha e também o trabalho de cuidar, o trabalho doméstico e o remunerado. Ao mesmo tempo, cuidar de um idoso não é uma tarefa estática, que se repete da mesma forma todos os dias. Com o passar dos anos, corpos e mentes se transformam, e cada mudança acaba sendo incorporada à rotina da vida diária. Os efeitos que as relações de cuidado produziram nos corpos e mentes de idoso/mãe e cuidador/filha ao longo do tempo foram o que despertou meu interesse de análise e, portanto, o que quis descrever neste artigo.

Ao observar as relações de cuidado na vida cotidiana, eu fui percebendo a importância de analisar as marcas presentes nos corpos de quem cuida e daquele que recebe o cuidado, bem como as implicações dessas marcas nas práticas de cuidado. Mas, para pensar essas marcas, eu optei por trazer as histórias específicas da cegueira decorrente das cataratas e da perda de dentes, consequências da periodontite no corpo de Dona Carmem, e também do surgimento da tendinite e do prolapso genital no corpo de Leonor. Apresentar essas histórias me permitiu ver como os corpos são produzidos em relação entre si. Entretanto, a relação que estou propondo pensar não se resume à relação entre mãe e filha, mas inclui a duress (Stoler, 2016) das políticas e instituições de saúde existentes na época em que esses adoecimentos ocorreram, bem como suas condições socioeconômicas e as relações de família. Assim, a relação que apresento aqui é uma relação que não fica presa no plano doméstico, mas inclui os acertos e as falhas que cometem os sistemas de saúde, os conflitos internos às relações de família, bem como as condições de precariedade.

Uma terceira questão que me parece importante destacar é como diversos adoecimentos estão presentes em um mesmo corpo e importam para pensarmos as práticas de cuidado na vida cotidiana. Explico-me melhor. Nos trabalhos que li e que tratam do cuidado de idosos com Alzheimer, por exemplo, raros eram os textos que combinavam a doença de Alzheimer com outros adoecimentos como diabetes ou hipertensão15 15 Destaco o delicado trabalho de Cintia Engel (2020) que analisa a doença de Alzheimer e outras demências em associação com diferentes processos de adoecimento. Por meio do conceito de “interações medicamentosas”, a autora nos apresenta a quantidade e complexidade do manejo de medicamentos em pessoas com demência e a rotina dos familiares para administrar o cotidiano. . Contudo, por ter acompanhado o cotidiano de Leonor no cuidado com a mãe, muitas vezes eram os outros adoecimentos o que mais pesava na vida diária. Por isso, ao trazer o trabalho de cuidar de uma pessoa idosa e com diversas doenças em um mesmo corpo, eu quis apresentar a importância de analisar a complexidade dos corpos para desnaturalizarmos os processos de adoecimento e envelhecimento.

Para finalizar, gostaria de aproximar a proposta de duress de Anne Stoler (2016) com a de cotidiano de Veena Das (2015b)DAS, Veena. What does ordinary ethics look like? In: LAMBECK, M. et alii. Four lectures on ethics: anthropological perspectives. Chicago, HAU Books, 2015b, pp.53-125.. Penso que ao observarmos o cotidiano em seus minúsculos detalhes, podemos perceber como essa duress se faz no dia a dia, exerce pressões concretas sobre músculo e mente, cujos efeitos podem ser, literalmente, viscerais. Analisar as duress que fazem a vida cotidiana nos permite trabalhar a inseparabilidade do público e do privado na conformação da vida. Observar a permanência dos processos na vida cotidiana nos permite observar como passado e presente estão emaranhados em diferentes escalas. Para isso, uma antropologia que invista no cotidiano ordinário nos abre para as complexas temporalidades que fazem a vida no presente.

AGRADECIMENTOS

Entre os anos de 2018 e 2019, debati o trabalho em diversas ocasiões no Brasil, Portugal, Inglaterra e Holanda. Assim, agradeço as questões e os comentários de Álvaro Molina e Felipe Szabzon; Graham Willis, Pedro Loureiro, Rachell Sánchez-Rivera, Martijn Oosterbaan, Yvon van der Pijl, Sara Koenders, Maria Manuel Quintela, Marta Maia, Regina Facchini, Carolina Branco de Castro Ferreira, Silvia Aguião, Patrícia Birman, Carly Machado, Adriana Fernandes, Mariana Ferreira e os integrantes do grupo de pesquisa Distúrbio (UERJ/UFRRJ), Maria Hermínia Tavares de Almeida e todos os integrantes do IPP/CEBRAP. Agradeço também à FAPESP pelo financiamento que permitiu este trabalho. Processo: 2018/15928-2.

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    » https://doi.org/10.3384/ijal.1652-8670.1272a2
  • *
    Entre os anos de 2018 e 2019, debati o trabalho em diversas ocasiões no Brasil, Portugal, Inglaterra e Holanda. Assim, agradeço as questões e os comentários de Álvaro Molina e Felipe Szabzon; Graham Willis, Pedro Loureiro, Rachell Sánchez-Rivera, Martijn Oosterbaan, Yvon van der Pijl, Sara Koenders, Maria Manuel Quintela, Marta Maia, Regina Facchini, Carolina Branco de Castro Ferreira, Silvia Aguião, Patrícia Birman, Carly Machado, Adriana Fernandes, Mariana Ferreira e os integrantes do grupo de pesquisa Distúrbio (UERJ/UFRRJ), Maria Hermínia Tavares de Almeida e todos os integrantes do IPP/CEBRAP. Agradeço também à FAPESP pelo financiamento que permitiu este trabalho. Processo: 2018/15928-2.
  • 1
    Os termos em itálico são aqueles utilizados por Leonor ou termos em língua estrangeira. Os termos entre aspas são citações de textos, esses acompanhados de referência bibliográfica. Sobre a palavra específica, Leonor utilizava o termo depressão para explicar seu estado emocional, embora ela não tenha recebido um diagnóstico médico.
  • 2
    Em 2010, eu iniciei o trabalho como bolsista de Apoio Técnico (CNPq) da pesquisa “Territórios, fronteiras e processos identitários: as comunidades e seus direitos” (2009-2014, CNPq) coordenado pela Dra. Patrícia Birman (UERJ). De 2013 a 2015 e de 2016 a 2018, eu realizei visitas constantes à Leonor com o objetivo de acompanhar sua vida cotidiana. Os processos que permitiram que eu entrasse na casa de Leonor e me tornasse sua amiga e testemunha foram descritos em Pierobon (2018)PIEROBON, Camila. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro, 2018.. As metodologias de pesquisa utilizadas para este artigo foram o trabalho de campo, entrevistas gravadas, conversas realizadas pelo telefone celular e troca de mensagens pelo aplicativo WhatsApp.
  • 3
    Ann Laura Stoler (2016) desenvolve a ideia de Duress para pensar sobre como a história colonial continua coagindo o presente, atuando e impactando as relações. Com as palavras da autora: “duress, then, is neither a thing nor an organizing principle so much as a relation to a condition, a pressure exerted, a troubled condition borne in the body, a force exercised on muscles and mind. It may bear no immediately visible sign or, alternatively, it may manifest in a weakened constitution and attenuated capacity to bear its weight. Duress is tethered to time but rarely in any predictable way. It may be a response to relentless force, to the quickened pacing of pressure, to intensified or arbitrary inflictions that reduce expectations and stamina. Duress rarely calls out its name. Often it is a mute condition of constraint. Legally it does something else. To claim to be “under duress” in a court of law does not absolve one of a crime or exonerate the fact of one. On the contrary, it admits a culpability —a condition induced by illegitimate pressure. But it is productive, too, of a diminished, burned-out will not to succumb, when one is stripped of the wherewithal to have acted differently or better” (Stoler, 2016:7).
  • 4
    Para uma discussão sobre como o cuidado foi historicamente invisibilizado e tratado como problema doméstico, ver Laugier (2011LAUGIER, Sandra. Le care comme critique et comme féminisme. Travail, genre et société, 26(2), 2011, pp.183-188 [doi.org/10.3917/tgs.026.0183 - acesso em: 15 set. 2019].
    https://doi.org/10.3917/tgs.026.0183...
    , 2015LAUGIER, Sandra. The ethics of care as a politics of the ordinary. New Literary History, 2015, pp. 217-240 [doi.org/10.1353/nlh.2015.0016 - acesso em: 13 set. 2019].
    https://doi.org/10.1353/nlh.2015.0016...
    ). Para uma análise sobre como o cuidado foi por muito tempo um assunto de pouco interesse intelectual, ver Moll, Moser & Pols (2010MOL, Annemarie; MOSER, Ingunn; POLS, Jeannett. Care: putting practice into theory. In: MOL, Annemarie; MOSER, Ingunn; POLS, Jeannett. Care in practice: on tinkering in clinics, homes and farms. Bielefeld, Transcript Verlag, 2010, pp.7-26.). Sobre as diferenças em torno do cuidado em países que passaram por experiências de Wellfare State e países onde o cuidado é tratado como questão doméstica, ver Fonseca e Fietz (2018)FONSECA, Cláudia; FIETZ, Helena. Collectives of care in the relations surrounding people with "head troubles": family community and gender in a working-class neighbourhood of southern Brazil. Sociologia e Antropologia, 8(1), 2018, pp.223-243 [doi.org/10.1590/2238-38752017v818 - acesso em: 15 set. 2019].
    https://doi.org/10.1590/2238-38752017v81...
    .
  • 5
    Para uma análise detalhada dos dados sobre o cuidado de idosos levantados pela Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2013)IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde. Brasília, 2013 [ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf - acesso em: 10 jan. 2020].
    ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.p...
    , ver Lima Costa, et. al. (2017). O termo “ajuda” é utilizado na Pesquisa Nacional de Saúde.
  • 6
    Veena Das (2015a)DAS, Veena. Afliction: health, disease, poverty. New York, Fordham University Press, 2015a. nos fala para prestar atenção nos enunciados de pessoas classificadas como “loucas” ou “incapazes”. Eu tentei fazer esse exercício com Dona Carmem e, em trabalhos futuros, pretendo adentrar esse problema. Contudo, era impossível para Dona Carmem me narrar seus processos de adoecimento de forma que eu pudesse compreendê-los.
  • 7
    As Clínicas da Família são as unidades públicas de saúde gerenciadas pelos municípios, que fazem o acompanhamento básico de saúde da população com foco em atenção primária.
  • 8
  • 9
    Em dezembro de 2013, o salário mensal era de 678,00 reais ou aproximadamente 291,00 dólares. Em dezembro de 2018, o salário mínimo era de 954,00 reais ou aproximadamente 243,00 dólares. Sites consultados: http://www.idealsoftwares.com.br/indices/dolar2018.html, http://www.idealsoftwares.com.br/indices/dolar2013.html e http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo.htm - acesso em: 10 jan. 2020.
  • 10
    Agradeço a Regina Facchini pelos comentários sobre o texto e por me chamar a atenção a esse processo.
  • 11
    Devido ao espaço e à questão proposta neste artigo, eu não tenho como desenvolver a relação de cuidado de Leonor com seus filhos e netos. Contudo, as relações familiares de Leonor, que incluem o cuidado com seus filhos e netos, aparecem em diferentes capítulos de minha tese (Pierobon, 2018)PIEROBON, Camila. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro, 2018.. Para uma discussão sobre o cuidado de crianças nas classes populares, ver o trabalho de Fernandes (2017)FERNANDES, Camila. Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso popular e nas políticas de Estado. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2017..
  • 12
    O Benefício Assistencial ao Idoso é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com mais de 65 anos cuja renda familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo [https://www.inss.gov.br/beneficios/beneficio-assistencia-a-pessoa-com-deficiencia-bpc/beneficio-assistencial-ao-idoso/ - acesso em: 10 jan. 2020.
  • 13
    Refiro-me ao 5º Capítulo de minha tese de doutorado (Pierobon, 2018)PIEROBON, Camila. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), PPCIS/UERJ, Rio de Janeiro, 2018., intitulado: “Instituições de Saúde: precariedade e conflitos cotidianos”. Nele, eu descrevo as internações de Dona Carmem nos hospitais e as relações de cuidado entre ela e sua filha Leonor.
  • 14
    Página consultada: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/prolapso-genital/ - acesso em: 10 jan. 2020.
  • 15
    Destaco o delicado trabalho de Cintia Engel (2020)ENGEL, Cintia. Partilha e cuidado das demências: entre interações medicamentosas e rotinas. Tese (Doutorado em Antropologia Social), UNB, Brasília, 2020. que analisa a doença de Alzheimer e outras demências em associação com diferentes processos de adoecimento. Por meio do conceito de “interações medicamentosas”, a autora nos apresenta a quantidade e complexidade do manejo de medicamentos em pessoas com demência e a rotina dos familiares para administrar o cotidiano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2020
  • Aceito
    10 Jun 2021
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