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A mulher, a matrifocalidade e a violência: a escuta “transformativa” de Clarice

Woman, Matrifocality and Violence: a "Transformative" Listening to Clarice

Resumo

Este artigo versa sobre a escuta interdisciplinar de Clarice, uma mulher – na sua condição de sujeito de direitos, de desejo e do laço social que vivencia a matrifocalidade atravessada pela violência. O percurso da pesquisa se desenvolveu sob o alicerce teórico da Teoria Social Crítica – na perspectiva do Serviço Social e da produção do sujeito – na interlocução com as premissas psicanalíticas. A organização do referencial teórico se pautou na narrativa interdisciplinar, que versou sobre o lócus institucional, nascedouro das angústias mobilizadoras da pesquisa, seguido da leitura crítica, histórica e social da mulher na sociedade, frente às transformações societárias e suas ressonâncias nos arranjos familiares. O método privilegiou a escuta sob a guisa psicanalítica, por meio de entrevista livre gravada e posteriormente transcrita, cujo acesso se deu por meio de uma instituição especializada, onde Clarice era assistida. A análise apontou para a relevância da escuta da subjetividade, em posição indispensável, articulada às intervenções sociais na rede de cuidado, proteção e garantia de direitos. Por fim, encontrou-se na escuta transformativa a potência de reinvenção do sujeito, articulada à primordial reafirmação de direitos desse segmento societário, fomentada na liberdade e justiça social, fazendo-se um encontro sensível e ousado, como possibilidade de fortalecimento do enfrentamento aos retrocessos degradantes no campo social contemporâneo.

Matrifocalidade; Serviço social; Psicanálise; Escuta; Interdisciplinaridade; Sujeito

Abstract

This article addresses an interdisciplinary listening to Clarice, a woman – in her condition as a subject of rights, desire and the social tie that experiences matrifocality permeated by violence. The research was conducted under the theoretical foundation of Critical Social Theory – from the perspective of social service and production of the subject – in interlocution with psychoanalytic premises. The theoretical framework is based on an interdisciplinary narrative and considered the institutional locus – the origin of the first anxieties that mobilized the study – followed by a critical, historical, and social reading of women in society, in light of societal transformations and their resonances in family arrangements. The method privileged listening under a psychoanalytical guise, through free interviews recorded and later transcribed, in a specialized institution where Clarice was assisted. The analysis pointed to the importance of listening to subjectivity as an indispensable position, articulated to social interventions in a network of care, protection, and guaranteed rights. Thereby, in transformative listening the power of the subject’s reinvention was found, articulated with the primordial reaffirmation of rights of this societal segment, fostered in freedom and social justice, using a sensitive and daring encounter as an opportunity to strengthen the confrontation of degrading setbacks in the contemporary social field.

Matrifocality; Social service; Psychoanalysis; Listening; Interdisciplinarity; Subject

A mulher e a compreensão do lócus institucional e social

A temática da mulher, quando analisada a partir da lógica institucional, reporta, muitas vezes, um quadro no qual as instituições que compõem a rede de cuidados, proteção social e garantia de direitos acabam “sofrendo do mal” que pretendem cuidar, tratar ou prevenir – ou seja, não raro essas instituições reproduzem relações de culpabilização e/ou revitimização das mulheres. Tal contexto indica multifacetas, quais sejam pelas repetidas vezes em que é preciso relatar histórias de violências sofridas, pela dificuldade do acesso às instituições, processos e/ou trâmites, por sentimentos como medo e vergonha, e também pela desarticulação da rede, ausência de um fluxo bem definido, coletivamente pactuado e viável para tal assistência.

Essa afirmação pode ser articulada à análise de Mello (2012)MELLO, Adriana. Seis anos da Lei Maria da Penha: Um marco divisor no enfrentamento à violência de gênero no Brasil. Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012 [http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-juiza-adriana-mello-fala-sobre-os-seis-anos-da-lei-maria-da-penha/ - acesso em: 10 jun. 2017].
http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-...
, que, embora aponte a Lei Maria da Penha (11.340/06) como um inegável e valioso avanço no campo do gênero, ressalva que ela revela crença no direito penal, colocando o aspecto punitivo enquanto o mais efetivo da lei, mesmo após mais de uma década de sua implementação.

Tal legislação é, sem dúvida, um dos maiores marcos no campo da garantia de direitos das mulheres, precedida de uma luta histórica e também de muitas vidas de mulheres vítimas da violência. Eis uma das razões pelas quais o aspecto punitivo parece despontar em relação aos demais. Destarte, é imprescindível o aspecto interdito, ao passo que é também urgente e necessário avançar sobre os aspectos preventivo e cuidativo das dimensões que envolvem os dispositivos de cuidado, proteção e garantia de direitos nas interrelações com os atores envolvidos nesse processo, quais sejam os profissionais e suas instrumentalidades, portanto, o lócus institucional.

Ao dialogar com Baremblitt (1994)BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994., na perspectiva do Movimento Institucionalista1 1 O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogêneo, heterológico e polimorfo de orientações […]. Sua aspiração é deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os processos autoanalíticos e autogestivos dos coletivos sociais. (Baremblitt, 1994BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994.:11), evidencia-se que à sociedade atual, circunscrita na lógica industrial, capitalista e tecnológica, embora tenha alcançado consideráveis avanços a partir de transformações sociais peculiares, devido à vasta produção de conhecimento em distintas áreas, sucederam também inegáveis prejuízos, tais como a divisão e segregação social estabelecida a partir de um suposto saber e a substituição do saber popular pelo saber técnico, acadêmico e teórico (este segundo delimitado a uma pequena parcela da sociedade), situação em que também se reproduzem as relações de dominação e exploração como parte de um mecanismo do perverso sistema capitalista de produção.

Quando articulamos tal análise à escuta das mulheres, que vivenciam a matrifocalidade e a violência, nos dispositivos das políticas públicas de cuidado e proteção social, ainda é evidente a subordinação do saber popular ao científico, o que aponta para um dos vários vestígios do modo de funcionamento capitalista, que se funda e se sustenta na produção e reprodução de quaisquer coisas que possam se tornar mercadorias, inclusive o conhecimento. Isso explica a divisão sociotécnica do trabalho e suas incontáveis precárias especializações. Baptista (2001BAPTISTA, Myrian Veras. A ação profissional no cotidiano. In: MARTINELLI, Maria. Lúcia; ON, Maria Lucia Rodrigues; MUCHAIL, Salma Tannus (org.). O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas do saber. São Paulo, Cortez, 2001, pp.110-121).:112) corrobora a reflexão ao pontuar que:

O lócus onde a prática profissional cotidiana, sob o vínculo empregatício e assalariada ocorre predominantemente é o das instituições. Ali, no “todo dia” do trabalho, o sujeito se depara com atividades normatizadas, técnico-burocráticas, onde, via de regra, a preocupação está mais voltada para a produção quantitativa, de aparência imediata, que para resultados qualitativos e duradouros. […] a instituição tem o monopólio do objeto e dos recursos institucionais, e é ela que define o significado objetivo do papel do profissional e a expectativa que existe em relação a ele, por outro lado, é o modo particular, subjetivo, como profissional que elabora a sua situação na instituição, estabelecendo sua própria ordem de relevâncias, que vai dar o sentido do seu trabalho. […] contudo, não se pode esquecer que esse processo constitutivo ocorre imbricado em um contexto sócio-histórico de relações complexas como o modo de produção dominante.

Compreende-se que o advento capitalista é a gênese de onde se parte para pensar a práxis do Serviço Social nas instituições, mas é também o que dá o tom das relações de poder que se estabelecem e marcam a história do sujeito. A partir daí, os dois objetivos centrais do institucionalismo contribuem para a construção de uma reflexão crítica no sentido de repensar a prática profissional nessas instituições. Trata-se da autoanálise e autogestão, que consistem em processos diferentes, porém simultâneos, concomitantes e articulados, nos quais a própria comunidade é protagonista de seus problemas, demandas, recursos, produção de saber e compreensão (Baremblitt, 1994BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994.).

Apesar do opressor contexto institucional, tal movimento ampara-nos como estratégia de resistência e reafirmação para um pensar-fazer despido de preconceitos e estigmas, que estão histórica, cultural e estruturalmente impregnados nas instituições, oferecendo-nos novas práticas e olhares que, de fato, se comprometam com a afirmação de direitos, a inclusão, o acesso e a participação daqueles que, muitas vezes, não têm voz, espaço e acolhimento. Destarte, os aspectos de gênero, classe e relações étnico-raciais estão na ordem do dia como estruturantes de todo esse funcionamento e não apenas como um recorte.

Nesses ensaios, o diálogo entre o Serviço Social e as premissas psicanalíticas compreende uma invenção concebida pelo desejo e objetivo de escutar as mulheres em face do fenômeno social da matrifocalidade e atravessamentos da violência, a partir de uma perspectiva abrangente com vista a compreender as dinâmicas e complexas transformações societárias.

As novas possibilidades que se inauguram a partir da convergência dialética desses campos do saber, embora com distinção de objeto e suas especificidades, contemplam esferas objetivas e subjetivas do palco familiar, em que se revela uma trama de histórias e heranças, com elementos do público e do privado, do individual e da cultura, do material, social e psíquico. Nessa perspectiva, concebe-se um novo lugar, de grande potência, onde há o espaço para o acolhimento, escuta, vínculo e empoderamento daqueles que vivem às margens da sociedade, e, amiúde, dos direitos fundamentais.

As articulações que se pretendem construir neste estudo assumem o sentido progressista do que Baremblitt (1994)BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994. vai chamar de instituinte, em prol da afirmação de direitos. O conceito supõe forças produtivas que tendem a transformar as instituições, avançando em relação àquilo que já fora instituído; no entanto, não atende às demandas sociais multifacetadas. O autor enfatiza:

Então, é importante saber que para a vida social, entendida como o processo em permanente transformação que deve tender ao aperfeiçoamento, que deve visar a maior felicidade, a maior realização, a maior saúde, a maior criatividade de todos os membros, essa vida só é possível quando ela é regulada por instituições e organizações, quando nessas instituições e organizações a relação e a dialética existentes entre o instuinte e o instituído, entre o organizante e o organizado (processo de institucionalização-organização) se mantém permanentemente permeáveis, fluidas, elásticas (Baremblitt, 1994BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994.:33).

Nesse âmbito, o autor ainda ressalta que os elementos mencionados fazem parte de um sistema que compõe a instituição e que, não raras vezes, coloca-se a serviço da ordem social conservadora e excludente, na velha cena que se repete e se perpetua em um contexto de grandes transformações sociais e desmontes, claramente observada no Brasil pós-golpe de 20162 2 Referência ao Golpe de Estado de 2016, em que se votou o impedimento da presidenta Dilma Roussef. O golpe foi orquestrado pelo poder judiciário e liderado pela minoria que, desde sempre, trata o Brasil e sua riqueza socialmente produzida como propriedade privada de poucos. Apesar de o processo ter sido votado pela Câmara, foi ilegítimo e a despeito da legislação magna vigente, a Constituição Federal de 1988, já antes mencionada. (Brum, 2016BRUM, Eliane. O Golpe e os golpeados. El País, 2016. [http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/20/opinion/1466431465_758346.html/ - acesso em: 20 jun. 2016].
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) e seus copiosos retrocessos. Portanto, nesse contexto, invocamos o seu contrário, a força instituinte criativa, vislumbrando avanços democráticos e sociais.

Assim, a articulação que acontece com vista à superação da incoerência, caracterizada pelo criativo, pelo novo, recebe o nome de transversalidade (Baremblitt, 1994BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994.) e, de alguma maneira, fala de um movimento subversivo à ordem, de montagens e arranjos alternativos e coerentes com um plano que abarca condições mínimas e viabilizadoras de uma sociedade menos desigual.

Muito embora o acesso às políticas públicas intersetoriais tenha se ampliado consideravelmente nos últimos anos, o instituído conservador, conforme Baremblitt (1994)BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994., coloca-se como desafio constante nesse cenário.

O atual período mencionado corresponde a um movimento global, caracterizado pela internacionalização do capital e encabeçado por grupos econômicos que representam ideias coercitivas, homofóbicas, misóginas, higienistas, negativas de toda alteridade, e pactuadas com a reprodução do capital a partir da exploração (Brum, 2016BRUM, Eliane. O Golpe e os golpeados. El País, 2016. [http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/20/opinion/1466431465_758346.html/ - acesso em: 20 jun. 2016].
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).

A ideologia, valores e argumentos que sustentam essa visão discrepante negam por completo a dívida histórica com as maiorias invisibilizadas; negam a escravização dos povos indígenas e negros e seus desdobramentos até os dias atuais, a colonização – e o ainda presente modus operandi de colonizar o outro –, a ditadura, o processo de globalização do capital sob a lógica de exploração e a opressão, dominação, exclusão e violência contra negros, indígenas, mulheres, crianças, entre outros grupos. Com isso, negam e desmontam também as políticas públicas, direitos, investimentos e ações afirmativas voltadas às pessoas em questão.

Nesse prisma, as ações de precarização e sucateamento das políticas públicas fundamentais, adotadas como projeto pelo atual (des)governo brasileiro, desdobrar-se-ão em incontáveis prejuízos para aqueles que são explorados por sua força de trabalho e têm suas vidas, corpos, comportamentos e crenças regulados pelo aparelhamento ideológico do Estado – instituição que monopoliza o suposto controle dos impulsos destrutivos do homem, mas que tem se mostrado ineficaz e incapaz de conciliar a “trégua” sustentável na vida em uma sociedade copiosamente desigual (Enriquez, 1990ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.).

Esse contexto revela não somente a derrocada da função social do Estado, mas, sobretudo, a condição de aliado dos grupos dominantes aos objetivos capitalistas, fazendo com que nos deparemos, nitidamente, com um dos limites preponderantes e impeditivos da construção de uma sociedade emancipada, mais justa e menos desigual.

Em consonância à construção dessa crítica, corroboram os pensamentos de Freud (1930/1996a), em Mal-estar na civilização, e Eugene Enriquez (1990)ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990., em sua obra Da Horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Ambos os textos destacam a dominação de uns sobre os outros, em que há negação e intolerância da alteridade, as quais são endereçadas à agressividade primitiva da condição humana na sua forma destrutiva.

Dessa maneira, no contexto desta pesquisa, os enunciados psicanalíticos inauguram – no campo da Teoria Social Crítica, fundante dos referenciais teóricos e metodológicos do Serviço Social – o instituinte, na sua vertente progressista e de força criativa de movimento e de reinvenção-reafirmação, ao analisar a própria prática na instituição na qual a Assistente Social está inserida, e que, não raramente, se depara com os instituídos conservadores paralisantes, deflagradores da reprodução da manutenção excludente (Barembblitt, 1994). A dialética que se esculpe entre premissas da Psicanálise e a Teoria Social Crítica permite a compreensão ampla e aprofundada dos fenômenos que se apresentam na cena social das famílias matrifocais em situação de violência.

Segundo Vasconcelos (2002)VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Complexidade e pesquisa interdisciplinar. Petrópolis-RJ, Vozes, 2002., em sua obra Complexidade e Pesquisa interdisciplinar, pesquisar é se atentar a outros olhares, desviar-se daquilo que é ordinário, mas também do que se apresenta circunstancial em demasia, no sentido de abarcar a diversidade e as multifacetas da contemporaneidade. Faz-se indispensável construir um genuíno embasamento teórico, mas, ao mesmo tempo, dialogar e reciprocamente produzir trocas entre os campos do saber. É esse o ensejo que as premissas psicanalíticas inauguram no campo social, o da invenção de novos olhares e fazeres.

Dito isso, as premissas da teoria psicanalítica, quando atribuídas à leitura sociocrítica, consideradas na conjuntura de pesquisa interdisciplinar, fazem aflorar promessas de novas formas de se olhar e compreender o fenômeno social da mulher na matrifocalidade e em situação de violência, nesse contexto social de transformações societárias. Partimos do alicerce teórico que coloca o lócus institucional como um recorte da arena de conflitos e das angústias que mobilizam a pesquisa, no sentido de corroborar o processo de repensar-desconstruir-construir as práticas profissionais nas instituições.

Portanto, após delinear o percurso teórico, que baseia-se no alicerce interdisciplinar esboçado a partir da exposição da motivação original da pesquisa e dos caminhos percorridos até aqui, adentrar-se-á no o território primordial para pensar nosso sujeito, a mulher.

O trânsito interdisciplinar e a escuta possível

Ao elencar o trânsito interdisciplinar, para refletir, sob diferentes enfoques, a respeito do fenômeno social da matrifocalidade e seus atravessamentos, inicia-se a navegação por territórios instigantes que, quando enlaçados, abarcam a potência singular desse encontro. Calha reproduzir a vivaz colocação de Moraes (1996MORAES, Maria Lygia Quartim. Vinte anos de feminismo. Tese de livre-docência (Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.:3):

Com o marxismo, e sua insuperável análise do modo de produção capitalista, entendi os limites históricos da nossa existência ao mesmo tempo que a urgência em transformar e superar muitos desses limites. Com a Psicanálise foi possível enfrentar as desilusões e perdas e acreditar nas possibilidades de transformação internas.

A autora define a Psicanálise e o marxismo como dois grandes continentes teóricos de seu tempo. A interlocução entre os campos do saber exigiu movimentação e coragem, “a circulação entre os campos pode fazer avançar uns e outros, além de dar testemunho da dimensão não toda de uma verdade sobre o sujeito ou sobre o campo sociopolítico” (Rosa, 2016ROSA, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo, Escuta/Fapesp, 2016.:27).

Por um lado, nos ancoramos no testemunho da exploração de classe, gênero e raça/etnia como cerne da desigualdade social e suas múltiplas mazelas na sociedade contemporânea, orquestrada pelo modus operandi capitalista; trajando as devastadoras vestes do modelo neoliberal – cujo ritmo pressupõe uma lógica de acumulação mais acirrada, forjando a barbárie dos nossos dias –, a partir dessa complexa conjuntura, ajustamos o foco, ou melhor, a escuta, para ouvir a perspectiva da protagonista mulher, afinada com a leitura em questão, na sua condição de sujeito de direitos. Ao mesmo tempo, sob outro prisma, a Psicanálise analisa o sujeito de desejo – nesse caso, a mulher em seus copiosos papéis, funções e posições – e, consequentemente, seu sofrimento e processo de subjetivação, atualizado em outros moldes, a depender do tempo histórico, social e cultural.

Navegar pelas correntezas as quais mencionei, à guisa da bússola psicanalítica, exigiu um esforço paradoxal: alternar as “lentes”, entre o conhecimento que constituíra minha identidade profissional, logo, de pesquisadora e assistente social, e me aventurar por territórios outros do saber. Também, embalada por essa confluência de correntes, e tomada por elementos desse novo território, “me deixar fisgar” por um sujeito de pesquisa que, dentre outros tantos, mobilizava a minha prática.

A interdisciplinaridade é o “ajuste das velas” substancial para navegar nessas correntezas, uma vez que compõe uma categoria de ação, e não de conhecimento, resultante da interlocução entre fronteiras claras de cada disciplina e paradigmas, rompendo com a ideia de que o conhecimento se processa em campos fechados. Respeitam-se territórios, discriminando seus pontos comuns e aqueles que o diferenciam (Fenelon, 2006FENELON, Grácia Maria. A interdisciplinaridade como metodologia e a Psicanálise como eixo referencial comum. Revista Psicopedagogia, 23(70), São Paulo, 2006, pp.30-41.).

Dito isso, é importante delimitar quais preceitos psicanalíticos tomamos como referência para o trajeto interdisciplinar. Belém (2000)BELÉM, Marisa. Mulher no Brasil: Nossas marcas e mitos, ensaio de psicanálise. São Paulo, Escuta, 2000. discorre que, pela via da palavra, nos perdemos, mas também nos achamos, abrimos e desvendamos. Constrói-se um caminho, ou vários possíveis.

Assim, a Psicanálise irrompe na disparidade das ciências tradicionais positivistas, trazendo leitura acerca da sexualidade como fundante dos sentidos e da relação que se estabelece com o outro. Freud, “o arqueólogo da mente”, como era chamado, em seus longos anos de dedicação, mostrou que o sintoma funcionava como guisa ao sofrimento do sujeito, e, na construção, pela via da palavra, tornaria possível o desvendar de novos saberes. O saber, a criação de novos saberes, só será instaurado pela transferência que supõe a relação de pelo menos dois inconscientes, a escuta de um outro (Rosa; Domingues, 2010ROSA, Miriam Debieux; DOMINGUES, Eliane. O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22(1), Belo Horizonte-MG, 2010, pp.180-188.).

A escuta psicanalítica revela o que está para além do objetivo, do superficial, do que se busca e se acha saber, lidando com o inesperado, com o que há de vir, tornando possível a compreensão ampliada do contexto em que se insere o sujeito. E, nessa relação de empatia, transferencial, que também implica o sujeito ouvinte, presta-se e empresta-se, a partir das ações, excessos do não saber, do revelado, do oculto, do observado e construído. Rosa e Domingues (2010ROSA, Miriam Debieux; DOMINGUES, Eliane. O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22(1), Belo Horizonte-MG, 2010, pp.180-188.:7) contribuem:

A experiência com os dados é transformada em texto que identifica e realça marcas no discurso, posições, efeitos de sentido. A escrita do caso vai além de uma apreensão circunstancial e momentânea do observado, pois envolve uma construção, a construção do caso metodológico, que transforma os registros daquilo que se apresenta como enigma em um relato, uma narrativa, uma experimentação e teorização de um campo. O caso revela não só o pesquisado, mas também aquele que escuta e as sinuosidades do campo que transita.

É evidente que a escrita dos dados, partindo da entrevista, ante uma escuta afinada, contemple apenas um recorte do complexo e plural contexto em que se insere o sujeito. O desafio que se coloca no trajeto interdisciplinar se refere a escutar o sujeito, amalgamando, de alguma maneira, a noção do sujeito de direitos, para considerar também o sujeito de desejo, e do laço social, sem a pretensão de prescindir da relevância de se olhar profundamente para um e outro nos respectivos campos.

É, assim, no solo paradoxal da construção interdisciplinar, que se propõe construir novas compreensões, alternativas e direções, elencadas como premissas preponderantes neste trabalho: a escuta, o vínculo e a transferência. Nesse tripé fundamental de premissas psicanalíticas, tornar-se-á possível escutar esse sujeito do desejo, do laço social, e de direitos. Rosa (2016ROSA, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo, Escuta/Fapesp, 2016.:22) é assertiva quando sustenta que:

[…] O sujeito não é o indivíduo justamente no ponto em que o singular de seu desejo escapa de uma conjuntura que busca determiná-lo e exercer seu poder no escuro das relações. Nesse ponto do laço social comparece a política que rege as relações sociais e em contraponto a ética e política da psicanálise.

A autora, em outra obra dessas veredas, vale-se do aparato de Enriquez (2005ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e Ciências Sociais. Ágora, 8(2), Rio de Janeiro, 2005, pp. 153-174., citado por Rosa; Domingues, 2010ROSA, Miriam Debieux; DOMINGUES, Eliane. O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22(1), Belo Horizonte-MG, 2010, pp.180-188.:2):

[…] de certa forma, a sociologia e a psicanálise têm o mesmo objeto de estudo: “a criação e evolução do laço social”. Enquanto a primeira está centrada nos aspectos objetivos das interações sociais, a segunda se detém sobre sua dimensão inconsciente, que abrange o modo como os sujeitos se enredam nos fenômenos sociais e empreendem ações coletivas, o imaginário social e coletivo, os processos de identificação, a repressão, a canalização das pulsões – que, por sua vez, são demandados pela sociedade.

Em outras palavras, para a Psicanálise, o laço social é a via pela qual o indivíduo se torna sujeito. Em “Uma ilusão frente ao desamparo”, Ceccarelli (2009)CECCARELLI, Paulo Roberto. Laço social: uma ilusão frente ao desamparo. Reverso, 31(58), São Paulo, 2009, pp.33-41. analisa os escritos de Freud (1930/1996a) e ratifica que o laço social é a possibilidade de que a humanidade lança mão frente ao desamparo original – marca constitutiva e irrevogável do sujeito.

As representações do laço social vão se modificando conforme a cultura e o momento histórico, ao passo que, para a Teoria Social crítica, interessa perceber o modo de produção e a reprodução social da vida, impressa na maneira como as civilizações vão se organizando, reproduzindo as relações sociais e, essencialmente, respondendo à lógica que orquestra a conjuntura. As aproximações possíveis entre as relações sociais e a intersubjetividade precisam acolher a marca original da dialética, as tensões e ambivalências. Esse diálogo “[...] supõe, para além de explicitar conceitos e os fundamentos do campo, também indicar a metodologia, ou seja, o modo de abordar o fenômeno” (Rosa, 2010:183).

Tal cenário implica lidar com a irrefutável complexidade que esse urgente e necessário diálogo inscreve em nós, sem prescindir das tensões, das descobertas, reconhecimentos, e da produção de novos sentidos, que ecoarão nas lacunas em que os campos do saber se entreveem.

A entrevista foi elencada como o instrumento coerente para a escuta. Segundo Costa e Poli (2006)COSTA, Ana; POLI, Maria Cristina. Alguns fundamentos da entrevista na pesquisa em psicanálise. Pulsional Revista de Psicanálise, 19(188), São Paulo, 2006, pp.14-21., ao se apoiar no cerne da teoria psicanalítica, o inconsciente e suas manifestações, fala-se, necessariamente, desse sujeito do desejo, do laço social. Então, aspira-se a que esses constructos simbólicos se descortinem no enredo da entrevista, quando o discurso “arrumado” e congruente de repente claudica, pelos silêncios, afetos, linguagem não verbal e outras possíveis formas pelas quais o sujeito e expressa ou deixa de se expressar. Essa reflexão aponta para a necessidade de “um tempo de apropriação por quem é afetado por elas. Esse tempo requer a inclusão em um circuito de transferência” (Cost; Poli, 2006COSTA, Ana; POLI, Maria Cristina. Alguns fundamentos da entrevista na pesquisa em psicanálise. Pulsional Revista de Psicanálise, 19(188), São Paulo, 2006, pp.14-21.:16).

E, nesse percurso metodológico interdisciplinar, no qual premissas psicanalíticas foram eleitas como o caminho para escutar essa mulher – dona de uma história cujas páginas falam de tantas outras mulheres, mas também de sua singularidade –, e a melodia única que se produz em conjunto com aquele que escuta. Tal movimento implica também o esforço contínuo em me apresentar na escrita, especialmente da análise, uma vez que a minha implicação na condição de pesquisadora é fomentada pelo constructo que se dá na relação transferencial, tomada por afetos, linguagem não verbal e interpretação articulada ao alicerce teórico.

Outrossim, é pertinente lembrar que o presente artigo se propõe a escutar – realizar essa escuta que se toma do campo psicanalítico, revelando grande potencial transformador nas relações intersubjetivas na cena social. Nesse sentido, para elucidar esse encontro de “continentes teóricos” desses sujeitos mulheres, no lugar de fala, de escuta, de reafirmação, resistência e reinvenção, elegeu-se a entrevista como método.

Uma vez constituído o percurso metodológico por premissas psicanalíticas, e, ainda, para fins deste artigo, o trabalho acurado de escuta-interpretação e articulação com o campo da Teoria Social Crítica dispensa o critério de números, haja vista que está interessado, para esse fim, em outros aspectos. Além do mais, tem-se, atualmente, pesquisas sérias e proficientes de caráteres quanti e qualitativos com objetivos e métodos distintos dos nossos. Uma vez que os campos teóricos deste artigo não disputam ou concorrem, mas se complementam, a existência desses estudos torna a análise mais ampla e significativa.

Foi entrevistada Clarice, usuária de um serviço da Organização da Sociedade Civil, que assiste mulheres e famílias em situação de violência. Assim, pelo intermédio de um profissional da instituição, realizei um contato telefônico para me apresentar e organizar a melhor forma de agendar o encontro. Clarice optou por ser entrevistada em sua casa, após o horário comercial.

Vale sublinhar que a análise da entrevista aconteceu em semelhança a um mosaico – do latim mouseîn, próprio das musas, imagem ou padrão visual formado por uma miscelânea de partes distintas, que é também um artesanato (Dicionário Informal, 2017). A composição de análise foi composta por trechos da entrevista, reflexões e articulações teóricas que, quando combinadas, enunciam o cenário singular da descoberta. Nessa toada, os preceitos psicanalíticos marcaram o caráter investigativo da pesquisa (Enriquez, 2005ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e Ciências Sociais. Ágora, 8(2), Rio de Janeiro, 2005, pp. 153-174.). Portanto, no decorrer da análise, foi privilegiada a escuta da subjetividade, para, mais tarde, pensar-se no alcance de sua contribuição enquanto um instrumento à dimensão técnico-operativa do Serviço Social.

Portanto, dizer sobre o método, no caso, é, antes de mais nada, despraticar as normas (Manoel de Barros, 2006BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo, Planeta, 2006.), olhar de um jeito diferente o fenômeno, desnudar-se do estatuto daquilo que se acha saber, fazendo espaço para o silêncio, para a dúvida. Parafraseando Brum (2006)BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. 11. ed. Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2006., caberá arriscar o lançamento de um olhar insubordinado, poderíamos transpor para “escuta insubordinada”, rompendo com a “surdez” do suposto saber, permitindo descobrir a singularidade nos apagamentos e aniquilamentos, que, por vezes, invisibilizam e silenciam o extraordinário da vida cotidiana. Trata-se de compreender com mais inteireza e sensibilidade o modus operandi do sujeito perante sua rede de relações, seu ser-estar-fazer no mundo. A descoberta e os ensaios da interpretação nos aguardam no próximo item.

A escuta “transformativa” de Clarice

Não sei muito sobre mim mesma. Quando acho que sei um pouco, eu mesma me desmascaro e escapo de mim” (O Olho da rua, E. Brum, 2008BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. 2. ed. Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2008.).

O trecho de Brum (2008)BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. 2. ed. Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2008. inaugura o item da análise. Do encadeamento de períodos da sua vida, subitamente, algo irrompia e interrompia, desassossegando o discurso de Clarice. Após o primeiro contato, por telefone, ela escolheu me receber em sua casa, depois do horário comercial, para a realização da entrevista. Já era começo da noite e a residência de Clarice ficava ao lado de um terreno baldio, com matagal já crescido, e um muro cinza chapiscado. Enquanto, lá de fora, eu aguardava ávida por escutá-la. Como essa experiência me afetaria? O que a narrativa de si própria, – lembrando que a entrevista em si não é um instrumento de intervenção, mas de pesquisa, – produziria em Clarice?

Bondía (2002BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 19, Rio de janeiro, 2002, pp.20-28.:21) fala do poder que as palavras têm quando faladas, pensadas, ou ainda silenciadas, podem “[..] sobretudo dar sentido ao que somos, e ao que nos acontece”. Cá estava eu, pronta e incompleta, experimentando a relação transferencial sobre a qual tanto lera, e, no meu íntimo, indagações pairavam sobre com quais palavras se faziam os silêncios, pensamentos, falas de Clarice. O que nosso encontro me revelaria?

Cabe, aqui, realizar uma breve apresentação da mulher entrevistada. Clarice, 33 anos, é recém-separada da segunda união – ambas, primeira e segunda, foram atravessadas pela violência intrafamiliar –, negra, mãe de três filhos, duas crianças e um adolescente, de idades de 11, 9 e 8 anos, frutos do primeiro relacionamento. Na ocasião da entrevista, trabalhava em dois empregos como profissional da saúde, sendo sua renda um pouco superior a três salários mínimos; ela é a responsável exclusiva pelo núcleo familiar.

Passamos por um corredor, entre sons de latidos e barulhos de televisão, onde primeiro há a casa do seu irmão com a família, e, aos fundos, a sua. Embora Clarice seja receptiva, ela reserva um quê de tristeza no olhar. Convida-me para entrar e sentar e explica que, ao escolher um horário para me receber, preferiu reservar um em que seus filhos não estivessem em casa (estavam na aula de música).

Primogênita de três irmãos, tem um irmão e uma irmã, esta já falecida. Clarice aprendeu bem cedo a árdua tarefa de “chefiar” a família. Narrando suas memórias, conta que, aos 11 anos, sua mãe sofrera um quadro de depressão pós-parto após o nascimento de seu irmão, período em que seu pai trabalhava viajando e só retornava aos finais de semana. Além das atividades domésticas como cozinhar, arrumar a casa, lavar roupas, cuidar dos irmãos mais novos, Clarice vigiava para que a mãe não tomasse remédios, e temia suas tentativas de suicídio. Clarice, filha, era, desde cedo, também mãe.

Ela menciona, por vezes, um vínculo afetivo fragilizado com a mãe ao longo de sua história. Por outro lado, disse que seu pai é a única pessoa com quem pode contar no cotidiano, uma vez que sua irmã – quem fazia, em grande parte, essa função materna –, falecera há pouco tempo. Sobre o período turbulento da primeira separação, conta que, por nove anos, sustentou o relacionamento conjugal com o pai de seus filhos, apesar de sofrer violências físicas e psicológicas, as quais se estendiam à sua prole.

Clarice é, dentre tantas coisas, mulher, negra, jovem, a provedora exclusiva do lar. Por meio de ações afirmativas3 3 A Política Pública de Cotas nas universidades teve sua implantação no Brasil, em 2003, num contexto de muita polêmica e resistência de forças instituídas (Barembblitt, 1994) conservadoras. No entanto, um estudo realizado por Referente há quase uma década da implantação da política apontou dados que afirmam sua potência enquanto “um instrumento de política pública de inclusão”: fatores como desempenho e aproveitamento durante o curso mostram-se bastante semelhante entre alunos cotistas e não cotistas, e, na categoria de evasão, o contingente entre cotistas é quase a metade do encontrado entre os não cotistas. (Bezerra; Gurgel, 2012BEZERRA, Teresa Olinda Caminha; GURGEL, Claudio Roberto Marques. A política pública de cotas em universidades, enquanto instrumento de inclusão social. Revista Pensamento & Realidade, 27(2), São Paulo, 2012, pp.95-117.), ingressou na universidade pública pela política de cotas, onde, depois, tornou-se bolsista durante a graduação. A bolsa recebida, no valor de quatrocentos reais, representava o sustento familiar. Em sua fala, ela atribuíra às ações afirmativas da educação, a possibilidade de ascensão social, e colocação no mercado de trabalho. Depois de formada, continuou sustentando a família, agora, com dois empregos. Contrariando as falácias conservadoras e meritocráticas no tocante à questão das cotas, como uma suposta iniciativa supérflua, vitimista e aproveitadora, Clarice reafirma as estatísticas sobre a relevância dessa política para a inclusão social de negros, pardos, indígenas e pessoas em situação de pobreza.

Clarice explica que o seu ex-parceiro não trabalhava, gastava os rendimentos dela com farras e mulheres, e, quando se via pressionado, ficava agressivo. Conta, ainda, que quando ele estava sob efeitos de cocaína e álcool, ela chegou a ser agredida fisicamente, mas, verbalmente, o era com frequência. Expressa que, nessa ocasião, ficou deprimida, deixou seus trabalhos, foi desistindo. Além de tudo isso, ele também era agressivo com os filhos, expondo-os a ambientes inadequados, por exemplo, quando oferecia festas regadas a drogas lícitas e ilícitas em casa, nos períodos em que Clarice estava trabalhando.

Não bastasse, depois da separação, quando Clarice o responsabilizou legalmente pela pensão alimentícia de direitos dos filhos, ele arrumou emprego para os dois filhos mais velhos, ainda crianças, sob o discurso de que eles já conseguiriam trabalhar e ele não mais precisaria pagar pensão. Além da exploração do trabalho infantil, que foi interrompida graças à denúncia no Conselho Tutelar, Clarice fala que teve de abrir mão da pensão, ainda que tenha acionado o sistema de garantia de direitos: percebeu que, por um acordo implícito, para ter ele próximo dos meninos, foi preciso desistir. Ainda expõe, que seu primogênito, o mais próximo do pai, chegou a dizer: É, não sei se eu vou conseguir ver meu pai preso, por que você não larga isso pra lá?

E, assim, Clarice cedeu. Tempos depois, se reergueu. Retomou o trabalho e envolveu-se em outra relação conjugal que, inicialmente, parecia ser promissora, aguçando o otimismo de Clarice. O segundo companheiro partilhava da vida doméstica e esboçava algum cuidado, até ela defrontar-se com episódios em que se repetiam traições e violências. Após 5 anos, aproximadamente 4 meses antes da nossa entrevista, ela separou-se mais uma vez. Eles ainda mantêm contato, por vezes, ele visita a casa e a ajuda com o filho mais novo, com quem tem vínculo e de quem acompanhou parte do crescimento. Ao contar, Clarice se refere ao ex-companheiro de forma quase que nostálgica, saudosa.

Me angustio ao pensar que Clarice já vivenciou experiências tão intensas aos seus 33 anos. É pela via da palavra que se alcança o que se desconhece, a palavra que fala e, às vezes, palavra que cala, silencia e ora grita. A escuta que se interessa pelo sofrimento daquele que fala é, por excelência, uma forma de comunicação, pela qual se enunciam demandas, nem sempre manifestas. Vejo-me assim, naquela escuta.

Na medida em que avança sua prosa, vai se montando um cenário de alguém precoce, que se adiantou em muitas funções durante as fases da vida –, entre elas, a de cuidar do próximo, em diferentes esferas, incluindo a profissional, na qual exerce a atividade de enfermeira. Por outro lado, sua narração fala também de uma mulher que, a despeito das adversidades enfrentadas, conseguiu concluir o ensino superior e se inserir com desenvoltura no mercado de trabalho.

Mas é a dor primeva, transportada no discurso de Clarice, que mais captura minha atenção: do colo de mãe que lhe faltou, do embaraço que é dar o colo também para os seus, frente às múltiplas exigências do cotidiano e jornadas de trabalho; da perda de sua irmã, que se fizera colo e presença, dentre tantas ausências; das investidas frustradas nas relações conjugais, esperançosas de afeto. Ao longo de toda sua fala, sinto um tom penoso de sacrifício. Entre “emancipação”, sobrevivência e fragilidades, eis um panorama do mosaico de Clarice.

Clarice-mulher: emancipação – fragilidade

“Trata-se de uma situação simples, um fato a contar e esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido” (Os obedientes, Felicidade Clandestina, Clarice Lispector, 1998c).

Após contar-lhe um pouco sobre a pesquisa, e feitas as formalidades, pergunto se posso começar a gravar. Clarice responde que sim, num misto de desajeito com ansiedade. Ela parecia ter vontade de falar. Inicio pedindo para que ela me contasse de sua trajetória. Clarice, na urgência de narrar, parte do primeiro casamento, seguido da maternidade e da agressão, como que, se numa sinopse, pudesse dizer os pontos principais da obra de sua vida. Era um convite para que minha escuta pudesse acompanhar sua narrativa – ela, ali, sendo a autora, editora e personagem. Fico atenta, mobilizada. Figueiredo (1994FIGUEIREDO, Luis Claudio. Escutar, recordar, dizer: encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica. São Paulo, Escuta/Educ., 1994.:122) discorre sobre a experiência da relação transferencial:

[...] não coincide com a obtenção de informações, ou das formulações acerca de algo, consiste então na experiência de ser afetado, e em ser transformado, deixando a coisa vir sobre nós, para que caia em cima e nos faça outro.

Pareceu-me uma combinação entre querer causar espanto, anunciando sua tragédia, e também comoção, pedindo acolhimento da sua dor dita às pressas, para que, sem rodeios, a aspereza do seu “tornar-se a mulher Clarice” marcasse o tom da história contada. Ela me convoca com seu olhar, há um franzido em sua testa, e seus olhos lamentam.

A compreensão da relação transferencial era algo. Ali acontecia um entrecruzamento de afetos e saberes que ressonava, fazendo ressonâncias na trajetória de Clarice e em mim. Nesse encontro, ela apresenta, dela, o singular. E eu reparava que ela apresentava também o universal4 4 Conceito do autor, a partir do materialismo histórico-dialético de Marx, segundo o qual, para “apreender a totalidade da realidade em suas conexões essenciais, das conexões entre o singular-particular-universal, é preciso orientar-se por essa noção.” (Luckás, 1967) de tantas Marias e Clarices. Aos poucos, na ponte interdisciplinar, eu percebia que essa avidez pela escuta me orientaria pela perspectiva de revelar a interpenetração dialética entre singularidade, particularidade e universalidade (Lukács, 1967LUKÁCS, Georg. Estetica I: La peculiaridad de lo estético. Barcelona-México, Grijalbo, 1967.).

Tomada pela escuta de Clarice, a entrevista foi guiada pela bússola psicanalítica, preservando o tom de dualidade que nossa protagonista convocava:

Como não odiar uma pessoa que te magoou tanto? É uma questão que eu queria entender mesmo... de como que eu posso amar uma pessoa que me fez mal? Odiar uma pessoa que me fez tanto mal, e consegui... continuar amando ela? (Clarice)

A dualidade, diferentemente da contradição, ou ambivalência, não disputa, nem concorre e, com ela, Clarice guia nossa busca. Maurano (2010MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? 3. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010.:42) sinaliza que “é preciso, antes de tudo, que apareça alguma possibilidade de o sujeito escutar algo dele mesmo [..] se situe no que está falando e, no mínimo, se intrigue com o seu posicionamento”. A autora aponta para a potência que surge quando o sujeito produz uma narrativa acerca do seu próprio sofrimento, e, nessa escuta transformativa, também habitam possibilidades.

Aliás, a dualidade, às vezes, chega até mim como confusão, um sentimento que Clarice desperta em mim ao longo de nosso encontro. Parece-me algo volátil, feito de excessos e vazios, de fúria e solidão, de tanto ao mesmo tempo. Por vezes, durante a entrevista, Clarice ria, e no instante seguinte, chorava, ao narrar partes da sua trajetória que escolheu contar:

Era esse o meu modelo, e eu não consegui... [rindo sem graça] mas tá bom, tô caminhando para que meus filhos tenham esse modelo [chorando]. É muito triste, é muito ruim, me dói muito, me dói no coração [...] (Clarice)

Esse movimento paradoxal vai revelando os desencontros de Clarice, os impasses, o caos que, por vezes, se instala. É importante resgatar que tal movimento influenciou na escolha do nome fictício da entrevistada, remetendo ao clássico da Música Popular Brasileira, MPB, da década de 1970, de composição de João Bosco e Fernando Brant, gravada na voz de Elis Regina:

[...] choram Marias e Clarices no solo do Brasil [..] // [...] mas sei, que uma dor assim pungente / não há de ser inutilmente / a esperança [..] / dança na corda bamba de sombrinha / e em cada passo dessa linha / pode se machucar [...] [..]

A canção retrata o período de regime militar no país, em que o autoritarismo e violação de direitos faziam marcas na carne, na subjetividade e na cultura da população. Nesse enredo, Clarices e Marias choravam o exílio, desaparecimento e tortura de si, e dos seus. Intrigavam-me as palavras e silêncios que compunham o choro de Clarice. Ecoava a questão: seria aquele um choro sentido do seu próprio exílio?

De um lado, ditames do capital, esse sujeito mulher, inserido na cultura, ao “emancipar-se”, não raramente, adere ao ideal moderno, de polivalência, autonomia, ascensão profissional e econômica, e, no revés, de exílio nas relações (Goldenberg, 2013GOLDENBERG, Mirian. A bela velhice. Rio de Janeiro, Record, 2013.). É esse um roteiro que remete aos primórdios da constituição do sujeito, para quem, sendo, irremediavelmente, marcado pelo desamparo, o laço social configura uma tentativa desesperada de restaurar-se e reatar-se. Versa sobre seu exílio singular, por vezes, remontado às trilhas percorridas em novas relações.

Depois de narrar o fim da sua relação conjugal, pautada num vínculo violento, ela conta, em tom entusiasmado, como foi bem sucedida em sua carreira profissional, por meio do acesso ao ensino superior (via cotas), aos seus programas de inclusão (bolsas de extensão, monitoria, estágio) e devido à sua imediata inserção no mercado de trabalho. Sobretudo, fala sobre como essa “emancipação” tornou possível que se separasse do companheiro, com quem repartia uma relação violenta e, cujas condutas, paulatinamente, se estendiam aos seus filhos.

[...] consegui terminar o meu curso, graças a Deus, e consegui manter uma casa com a bolsa de lá, com 400,00 reais eu mantive a minha casa por quatro anos, né. Saindo de lá, eu saí com dois empregos, e foi muito bom pra mim, eu nem tinha formado ainda [...]. Eu vi que eu pude dar um passo muito grande, e que eu não precisaria dele pra dar continuidade na minha vida, então eu resolvi a separar dele [...].

Tal passagem contava sobre como as ações afirmativas, por meio das políticas sociais (educação, raça/etnia, gênero), foram condição sine qua non, para alcançar a tão sonhada “emancipação feminina” de Clarice. Isso evidenciou que há muito o que se avançar nas dimensões preventivas, pedagógicas e intersetoriais, contempladas na Lei Maria da Penha, que, apesar de seu incontestável valor central ao campo de gênero, está se desenvolvendo mais na dimensão punitiva (Mello, 2012MELLO, Adriana. Seis anos da Lei Maria da Penha: Um marco divisor no enfrentamento à violência de gênero no Brasil. Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012 [http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-juiza-adriana-mello-fala-sobre-os-seis-anos-da-lei-maria-da-penha/ - acesso em: 10 jun. 2017].
http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-...
). Ainda, ecoavam indagações sobre a complexidade que povoava aquele misto de choro e riso, que exigia de Clarice um equilíbrio entre diferentes funções, às vezes, irreconciliáveis com seu desejo. Falava também desse lugar, a corda bamba, sugerindo contradições e confusão, como, às vezes, vibrava ao longo de suas falas:

[...] eu tinha que assumir a responsabilidade da minha casa. [...] foi aonde que eu me vi e falei, não, não preciso de ninguém praá poder tomar conta do meu lar, porque até hoje nas separações, em tudo, eu que tomei conta de tudo, eu que pago a água, que corro atrás das coisa [...] A mulher às vezes, ela queré um parceiro, ela quer uma homem pra tomar conta disso, de ter essa responsabilidade, nem todos tem essa responsabilidade.

Clarice, ambivalente, conta de um suposto inchaço das tarefas que lhe foram atribuídas como mulher, profissional e mãe. Com isso, revelou também seu processo de emancipação e autonomia, delineado como a trajetória de sucesso de alguém que é polivalente e tudo consegue fazer. Contudo, ela finaliza esse trecho dizendo o quanto gostaria de ter um parceiro que partilhasse dessa responsabilidade, anunciando também um desamparo.

Parece que, a partir da emancipação econômica, e da marca da violência em sua cria, Clarice conseguiu romper uma relação arrebatadora. Depois, se lançou em outra relação, talvez tanto quanto ou mais violenta que a primeira –, episódios simultâneos entre os altos e baixos da sua ascensão, que vinha quase como uma compensação (ora salvação) do vínculo violento. Mas, em alguma medida, essa liberdade era também aprisionadora:

Eu “tô” trabalhando de manhã e à tarde todos os dias, eu trabalho das sete às dez, venho em casa, dou o almoço, levo pra escola, e à tarde eu entro da uma às sete, aí eu chego, faço janta e a gente vai dormir. Essa é a nossa vida!

A sustentação material dessa suposta “emancipação” pode ser por vezes aprisionadora, uma vez que manter essa imagem de “mulher bem-sucedida”, está colada à manutenção de jornadas continuadas de trabalho e as outras demandas, em boa parte, familiares e domésticas.

Para lançar luz à construção acerca desse esgotamento físico e mental das mulheres diante da “sonhada emancipação”, é interessante trazer o olhar e os questionamentos de Reis (2014)REIS, João Victor de Souza. Onde está o pai? O lugar do homem em famílias “matrifocais” pobres na cidade de São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014., em cujo trabalho intitulado Onde está o pai? O lugar do homem em famílias “matrifocais” pobres na cidade de São Paulo, o autor discute com a costumeira ausência dos pais em um serviço que assiste adolescentes em conflito com a lei, e articula em seu trabalho uma reflexão sobre as figuras masculinas, além dos pais, que, por ventura, assumem essa função paterna, como tios, irmãos, avôs, primos, padrastos, além de articular essa análise à crescente sobrecarga e “inchaço” de tarefas e funções realizadas pela mãe.

O autor assertivamente se esclarece ao dizer que seu questionamento original, Onde está o pai?, não surge de uma suposta necessária presença do pai na dinâmica familiar, mas especialmente por como a sua ausência produz desdobramentos em toda a dinâmica familiar, apontando que, a sonhada “emancipação” ainda caminha, para, de fato, se efetivar. Eis aqui, uma clara consequência das raízes do patriarcado:, lugares e posições estanques supostamente femininas ou masculinas, haja vista que, quando se dá o início do processo emancipatório da mulher, esses papéis e funções não são cambiados com as figuras masculinas, mas são acumulados pelas mulheres.

Considero que a principal contribuição desse questionamento é reiterar a potência da escuta transformativa dessas mulheres e de suas famílias nos dispositivos sociais das políticas públicas de saúde, assistência social, educação e da rede de proteção e garantia de direitos como um todo, uma vez que cabe também a nós trabalhadoras da linha de frente, investir nas dimensões preventivas e educativas dessa temática para, paulatinamente, construir uma outra ótica social, logo uma outra, ou melhor, várias outras possibilidades de ser e estar nos lugares masculinos e femininos na cena social – para, quem sabe, darmos o próximo passo rumo à emancipação, de tarefas, papéis e funções distribuídos, cambiados e renegociados de forma mais justa e harmoniosa (Reis, 2014REIS, João Victor de Souza. Onde está o pai? O lugar do homem em famílias “matrifocais” pobres na cidade de São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.).

Nas trilhas da crescente e diversificada onda de movimentos feministas sociais acerca da liberdade e autonomia da mulher –, resguardando a indubitável relevância histórica e social trabalhada na seção teórica e na construção do mosaico na análise –, por vezes, nos discursos calorosos que povoam essa ideia de autonomia, confundida recorrentemente com autossuficiência), parece não restar espaço para a narrativa do singular, da dor e do sofrimento, da vulnerabilidade e do desamparo, da impotência, que, quando não ditos, revelam-se no laço, em aprisionamentos outros, nas configurações de morte e vida tão em voga nos tempos atuais.

Portanto, fica clara a necessidade de articulação dessa leitura crítica e histórica, aliada à escuta da subjetividade presente no contexto. Apreendendo a indissociabilidade na dança social e singular, cultura e sujeito, simultaneamente, se marcam e se constroem.

Clarice-amor: desamparo e laço, morte e vida

“As palavras me escondem sem cuidado. Aonde eu não estou, as palavras me acham. Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas” (Livro sobre nada, Manoel de Barros, 1996BARROS, Manoel. Livro sobre o nada. 3. ed. Rio de Janeiro, Record, 1996.).

Clarice esteve em atendimento na OSC por, aproximadamente, um ano, por meio de encaminhamento feito pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, que não pôde fazer nada (sic), uma vez que ela ainda continuava na companhia do seu cônjuge e agressor.

Ela vivenciara relações conjugais marcadas pelo traço da violência intrafamiliar e contava sobre sua trajetória na rede de cuidado entre vários encaminhamentos. Entre vínculos frágeis, ela revelava também que transitava por vários dispositivos institucionais e, ao mesmo tempo, não era de ninguém. Surge, aqui, outra faceta do desamparo, sua dimensão social.

O sofrimento e a dor de existir sempre foram fontes infinitas de inspiração para artistas, poetas, psicanalistas, estudiosos, cientistas, religiões e outros campos. Um enigma onipresente, a despeito de todas as barreiras geográficas, políticas, sociais e étnicas, marca a constituição do sujeito, e faz inaugurar o sujeito inserido na cultura. O desamparo é constitutivo do sujeito, “[...] uma perda eterna, atemporal em seu acontecer, em que o limite entre passado e futuro torna-se indistinto pela presença constante de uma falta [...]” (Freud, 1990a).

Quando anunciada a sinopse, Clarice resume sua história, declarando o final trágico da sua primeira relação conjugal, um episódio de violência (que sucedera outros), dizendo aquilo que, em seu imaginário, supostamente, me interessava ouvir. Ela inicia a narrativa, em cunho descritivo:

[...] fui casada 9 anos, casei mesmo no cartório, tudo bonitinho, tive desse primeiro relacionamento meu, eu tive 3 filhos, [...] no qual no decorrer desses 9 anos, eu passei um pedaço bemmm apertado mês com o pai deles e tudo, entre agressões verbais, até mesmo agressão física.

Ela menciona que logo percebeu que tinha dado num beco sem saída, e, decidida a não voltar atrás, se enfiou de cabeça. Faz referência a um modelo idealizado de família, que ainda busca, embora, quase num engano, em tom confessional, fala de como esse modelo nuclear a sobrecarregava, e que não era bem isso que almejava, mas, mesmo assim, o sustentou, diante da ameaça de ficar só. E afirma que isso sim seria mais doloroso ainda.

Nessa altura, Clarice, num retrato de mulher contemporânea, com tripla jornada, era a provedora exclusiva da casa e passava pouco tempo com a família, enquanto seu primeiro companheiro era o principal responsável por cuidar dos filhos e por algumas tarefas domésticas. No entanto, era impaciente com a prole e, com frequência, saía nos finais de semana, retornando somente na segunda-feira pela manhã. Esse, dentre outros comportamentos inconsequentes, levou ao conhecimento de Clarice de, que ele era dependente químico de cocaína e álcool. Entre casos, orgias e violência, ela já não mais suportava ser (fazer-se) refém de uma relação em que padecia.

Num dado episódio, ele promoveu um churrasco enquanto ela estava de plantão. Ao chegar, ela encontrou o filho mais velho machucado: limpando a desordem do churrasco, por acidente, ele cortou o supercílio. Diante de repetidas traições, exploração, violências e sangrias, e acrescento, empoderada pela emancipação financeira e profissional, Clarice assinala seu limite: “foi o bonde expiratório pra falar chega, basta!”

De forma muito original e interessante, ela se equivoca na expressão bonde expiratório ao substituir “bode” por “bonde”, cuja etimologia significa veículo que exala, expele (Dicio, 2017), enquanto a expressão popular “bode expiatório” é usada para definir uma pessoa sobre a qual recaem as culpas alheias (Dicio, 2017). Clarice, desafortunada, põe fim à tolerância da relação familiar negligente e abusiva:

[...] e então a gente separou e ele me deixou com os meninos bem pequenos, ele me... me traía muito, arrumava muitas mulheres, e um dia eu tava de plantão, cheguei em casa e ele tinha feito um churrasco aqui, e o meu mais velho tinha ido limpar a casa e ele caiu e bateu o supercílio, e eu cheguei, vi aquilo, pra mim foi a gota d'água.

É imperioso observar, no contexto da violência intrafamiliar, o funcionamento inconsciente das personagens em questão, partindo dos primórdios da constituição do sujeito, que, marcado pela falta original, é remetido a uma busca incessante de resgate ao objeto perdido, e que Freud (1990a) chama de desejo (Maurano, 2010MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? 3. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010.). Eu me perguntava qual era o lugar do desejo de Clarice frente ao vínculo violento. Ao que sugere, para além de um modus operandi que se repete, também se lança, nesse laço fragmentado, como uma tentativa de sobreviver ao desamparo.

Pela ótica psicanalítica, há uma repetição no ato de assujeitar-se ao outro, que remete aos primeiros estágios da constituição em que, diante da ausência de um outro, que legitime seu lugar de sujeito, tal efeito tornaria demasiado, excedendo o que se pode suportar da experiência. Freud (1996b) nomeia esse excedente de catástrofe. Sobre tal constructo freudiano, Naves (2014)NAVES, Emilse Terezinha. A mulher e a violência. Uma devastação subjetiva. Revista Subjetividades, 14(3), Fortaleza-CE, 2014, pp.454-462., elucida que essa posição subjetiva servil diante da catástrofe se estenderia ao longo da vida de Clarice, cujas amarras ocasionariam um torpor e incapacidade de reação frente ao ato violento, com consequências tais como: isolamento social, sentimento de vergonha, ruptura ou fragilização de vínculos familiares, abalos em sua saúde mental, possíveis instalações de quadros psiquiátricos, instabilidades econômicas, absenteísmo e abandono de emprego – fazendo do enredo da violência contra a mulher, uma espiral de difícil saída.

A decorrida elucidação nos dispõe de uma riqueza e uma profundidade de compreensão acerca do contexto da mulher em situação de violência, que corrobora uma atuação profissional - dos executores na linha de frente da saúde, assistência, educação e garantia de direitos, despida de tabus e paradigmas arraigados na cultura ao longo dos anos (inclusive àqueles inconscientes).

Isso vai tornando clara a indissociabilidade das origens e elaborações subjetivas, articuladas às políticas públicas de enfrentamento dessa realidade arcaica e devastadora, bem como da necessidade (e potência) anunciada nesse artigo, da articulação dessas duas dimensões, do enfoque psicanalítico, inconsciente, bem como da devida apropriação da Teoria Social Crítica, com seu vasto embasamento histórico, na tríade técnico-operativa, teórico-metodológica e ético-política.

Clarice, depois de um período deprimida, engajou-se nas terapias, acompanhamento médico, e retomou sua vida, inclusive, constituiu nova união:

[...] consegui me reerguer de novo, e comecei a trabalhar de novo, a levantar de novo, e me envolvi em outro relacionamento [...] nesse outro, ele me ajudou muito. [...] comecei a fazer o tratamento, tomar medicação, controla tudo. Só que, eu não sei o que que passa na cabeça de homem, pra te falar a verdade! [...] e eu vi que eu “tava” entrando no mesmo... na mesma redoma ali... eu falo assim, nossa!!

[...] um dia eu cheguei aqui ele tinha pegado o Bento, que eu falei, nossa! “Cê” quase matou meu filho! Eu não vou chamar a polícia pra você, por com... por... respeito à sua mãe!

Eu vivi muito tempo assim, o pai dos meinino me ofendia verbalmente, ele me agrediu uma vez só, mas agredia verbalmente, né... xingava, falava. Agora do segundo relacionamento, era empurrão né, era puxão de cabelo, ofensa, eu ganhei um soco no olho [...].

Os trechos acima levam a pensar sobre como relações conjugais violentas, possivelmente, se sustentam por multifacetas – objetivas e subjetivas, dentre elas, aspectos culturais, sociais, econômicos e afetivos. Por vezes, na contemporaneidade, a dependência vai além da financeira, em que a mulher depende parcial ou exclusivamente da renda do cônjuge para sobrevivência dos filhos e sua própria; ora se percebe, ainda, a alternância desses papéis: quando não há a dependência econômica, há outras, a exemplo de Clarice, que desejava contar com seus parceiros para cuidar dos filhos e da casa. Considera-se, aqui, uma leitura a partir da ótica da desigualdade de gênero, no interior da discussão da luta de classes (Inácio, 2003INÁCIO, Mirian de Oliveira. Violência de gênero e Serviço Social: ethos e ação ético-política no âmbito das delegacias da mulher. Dissertação (Mestrado em Serviço Social), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.).

Não menos importante, um aspecto que também viabiliza a perpetuação e agravamento da violência contra a mulher, como uma questão de saúde pública, são justamente as forças instituídas conservadoras (Baremblitt, 1994BAREMBLITT, Gregorio Franklin. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1994.). Em exemplo disso, é possível observar quando os símbolos de autoridade e poder de um país incitam e defendem publicamente ideias misóginas, homofóbicas e excludentes, como no caso dos chefes de Estado Bolsonaro e Trump5 5 Jair Messias Bolsonaro (então filiado ao Partido Social Liberal – PSL, e, atualmente no Partido Liberal), atual presidente atual presidente do Brasil, eleito em 2018 (mandato 2019 – 2022). Donald John Trump (Partido Republicano), 45º presidente dos Estados Unidos, eleito em 2016 (mandato 2017 – 2020), ambos pertencentes à extrema direita, pautada por ditames ultraconservadores. . Por meio dessas ideias expressas em suas falas, eles “autorizam”, tornam aceitáveis as ações violentas e aniquiladoras, ainda que a legislação vigente e todo o aparato do poder estatal devesse, supostamente, proibir e punir as variadas formas de preconceito, exclusão e violência.

Em indício dessa situação, é o veto integral de Bolsonaro ao Projeto de lei 2538/19, que representa um importante avanço na Portaria 104, de 25 de janeiro de 2011. O projeto ampliava a notificação compulsória para além do serviço de saúde (antes estabelecida pela referida portaria), mas também para o serviço de segurança (Polícia Militar), empreendendo esforços para evitar o agravamento da situação de violência, e/ou feminicídio, como já mencionamos, um espiral de difícil interrupção. Bem como evitando a vitimização secundária da mulher em serviços tais como o Instituto Médico Legal (IML). Mais tarde, o veto foi derrubado pelos parlamentares e a lei, então sancionada (Padilha, 2019PADILHA, Alexandre. Bolsonaro tem obsessão em retirar direitos das mulheres. Brasil de Fato, 2019. [https://www.brasildefato.com.br/2019/10/11/artigo-or-bolsonaro-tem-obsessao-em-retirar-direitos-das-mulheres-denuncia-padilha - acesso em: 10 jan. 2021].
https://www.brasildefato.com.br/2019/10/...
).

Esse contexto revela um antagonismo nu e cru quando um chefe do executivo, cuja função é fazer cumprir e executar a legislação vigente por meio de políticas públicas e ações nelas contempladas, defende e implanta um projeto que refuta toda alteridade – seja simbolicamente “autorizando” e incentivando à barbárie, seja pelo desmonte de políticas públicas via sucateamento, corte de verbas e de ações afirmativas. Assim, desmantela políticas abrangentes, que ainda teriam muito a avançar, e a partir das quais tantas Clarices puderam ascender, reafirmar direitos e se reinventar.

Nessa conjuntura, retomando a via do desejo, Marin (2004)MARIN, Isabel da Silva Kahn. Sofrimento e violência na contemporaneidade: destinos subjetivos. In: KHOURI, Magda Guimarães et alii (org.). Leituras Psicanalíticas da Violência. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, pp.85-100. aponta que um velho dilema assume novas roupagens nos dias atuais, e trata da tentativa de conciliação do sujeito, entre inserir-se na cultura, renunciando suas pulsões, e encontrar formas deleitáveis de viver. No entanto, frente às inatingíveis exigências da cena contemporânea, em que predomina o ideal de autonomia, individualismo, felicidade e prazer, o sujeito se vê frente ao desamparo. Contexto em que, segundo a análise da autora, o ato violento pode ser uma tentativa de resposta, afirmação de sua singularidade, e negação da alteridade.

Dessa maneira, no contexto de Clarice, podemos interpretar que se lançar aos vínculos violentos configura também uma tentativa de sobreviver frente ao desamparo. Tomando o palco de Clarice, considerar a violência, a partir de multifacetas, nem de longe é justificá-la ou negar os prejuízos dos atos de aniquilamento para os envolvidos na cena (em aspectos subjetivos e conjunturais). Contudo, é fundamental admitir sua complexa e heterogênea dimensão. É, antes de tudo, assumir uma postura ética, a escuta e o reconhecimento dos diferentes personagens – e suas posições, superando o dueto vítima-algoz, que compõe a trama; e, por fim, criar hiatos de reflexão para caminhos possíveis (Marin, 2004MARIN, Isabel da Silva Kahn. Sofrimento e violência na contemporaneidade: destinos subjetivos. In: KHOURI, Magda Guimarães et alii (org.). Leituras Psicanalíticas da Violência. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, pp.85-100.). Tal circunstância, absolutamente, não prescinde das conquistas no campo legal e de seus dispositivos protetivos e punitivos, para além disso, vislumbra ampliar o alcance da compreensão, logo, das intervenções.

Prova dessa necessidade é o alto número de reincidência. No estudo Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil (Waiselfisz, 2015WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília-DF, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, 2015.), foi apontado “que a reincidência acontece em praticamente metade dos casos de atendimento feminino (49,2%), especialmente com as mulheres adultas (54,1%) e as idosas (60,4%)” (Waiselfisz, 2015WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília-DF, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, 2015.:51). Também não são raros os casos em que há desistência ou tentativas de retiradas das denúncias, o que levou o Supremo Tribunal Federal a votar como procedente a Ação Direta 4.424/2012, reafirmando os artigos 12 e 16 da Lei nº 11340/2006, Lei Maria da Penha (Brasil, 2012), os quais conferem autonomia às instâncias de garantia de direitos no tocante aos trâmites aplicáveis da lei, incondicionada à apresentação da vítima. É comum que, sob ameaças, fragilidade de vínculos familiares e comunitários, e, em última instância, (que infelizmente ainda acontece) pelo despreparo, falta de compreensão e conhecimento, e resquícios machistas, alguns profissionais da rede de proteção, cuidado e garantia de direitos acabem por desqualificar o discurso da mulher em situação de violência. Isso, por vezes, provoca o abandono ou evasão – prefiro ainda exclusão – dos serviços de acolhimento, acompanhamento e proteção (Mello, 2012MELLO, Adriana. Seis anos da Lei Maria da Penha: Um marco divisor no enfrentamento à violência de gênero no Brasil. Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012 [http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-juiza-adriana-mello-fala-sobre-os-seis-anos-da-lei-maria-da-penha/ - acesso em: 10 jun. 2017].
http://amaerj.org.br/noticias/em-artigo-...
; Souza; Pimenta, 2014SOUZA, Hebert Geraldo; PIMENTA, Paula. Por que elas não (re)tornam? Considerações sobre a não adesão ao tratamento por parte da mulher em situação de violência. Opção Lacaniana online, 5(15), 2014, pp.1-11.).

Clarice-sujeito: mãe-filha

“Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer [..]” (Guimarães Rosa, 2001ROSA, Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.)

O primeiro afeto que Clarice associa à sua mãe, quando a menciona na entrevista, é a indiferença. Aos olhos dela, em tom de julgamento, sua mãe não oferece qualquer tipo de apoio ou solidariedade frente às adversidades que enfrenta. Na fala de Clarice, geralmente, em tom comparativo, o pai aparece como generoso e disponível, enquanto a mãe manifesta-se essa figura rival.

[...] eu “tô” tentando, levar, sabe, não... ignorar, porque é minha mãe, eu não posso ficar apontando os defeito dela né. Sempre foi difícil, desde quando eu era adolescente, minha mãe teve depressão pós-parto do meu irmão, eu com onze ano tive que assumir a responsabilidade da casa, com a minha irmã, ele pequeno, meu pai viajando né, a responsabilidade da casa era minha, de limpar a casa, de fazer comida, de cuidar da minha mãe, de cuidar tudo, e... ficar vigiando pra ver se não tomava remédio, porque ela tentava suicídio né [...].

Cedo na vida, Clarice estreou na função de “chefiar” a família. Aos 11 anos, sendo a irmã mais velha, assumiu as tarefas domésticas e os cuidados dos irmãos mais novos, diante do adoecimento mental de sua mãe, e da ausência do pai.

A respeito desse movimento da dinâmica familiar, Mello, Féres-Carneiro e Magalhães (2015) abordam os prejuízos para a saúde psíquica da criança, que vivencia o contexto de parentalização, processo “que consiste no esforço das crianças para assegurar o bem-estar dos seus progenitores” (Mello; Féres-Carneiro; Magalhães, 2015:215). A partir de um desempenho parental da criança, a fim de garantir um ambiente minimamente favorável ao seu próprio crescimento, esta toma para si funções dos genitores, renunciando suas demandas, fundamentais ao desenvolvimento saudável, para atender àquelas dos pais. É, portanto, uma inversão de papéis.

Clarice conta que saiu de casa aos 18 anos, quando se casou pela primeira vez. Queria se ver livre das encheções de saco de sua mãe. E, mesmo tendo logo se dado conta de que a sua relação conjugal anunciava uma enrascada, para não dar o gostinho à sua mãe de voltar para a casa dos pais, decidiu permanecer naquela relação opressora, que remontava à cena de ausência, violação e desamparo da casa primeira.

Após apenas três meses da separação conjugal, sua irmã e melhor amiga sofre um acidente vascular cerebral e falece. Clarice conta que a irmã, além de amiga e companheira, era a pessoa com quem mais podia contar frente às adversidades da vida, bem como no auxílio com os filhos e na conciliação para assumir múltiplos papéis no cotidiano.

[...] Então assim, eu fiquei muito sozinha, eu entrei em depressão, precisei fazer tratamento, fui pedindo conta dos meus empregos, e parece que eu tinha caído num poço sem fim, com aquelas três... aquelas três crianças muito pequenas [...].

Convocamos a notável poesia de Rosa (2001)ROSA, Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001., articulada às elucidações de Freud (1976c) em Luto e Melancolia, para ajudar a pensar sobre essa passagem de Clarice:

Miguilim tinha sido fado de uma porção de coisas, e ainda assim, estava no mesmo lugar! Quando chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas, aquelas coisas bonitas que o tempo havia de sempre teimar em tirar (Rosa, 2001ROSA, Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.).

Considerando a condução de Freud (1976c), no estado psíquico do enlutado, “arrancado de uma porção de coisas”, para além da perda de um ente amado, perde-se também o estimado lugar que se ocupara junto daquele que se foi; abruptamente, se é arrancado daquele lugar de afeto, por vezes desse colo maternal que lhe faltara; no entanto, continua-se naquela mesma vida, nas mesmas relações, sem sair do lugar. Um poço sem fim, como nomeia Clarice. Um luto que reatualiza velhas perdas que se fazem repetir na cena psíquica.

Para além desse olhar subjetivo que se lança sobre o sofrimento de Clarice, vale observar também o enredo sob outro prisma, considerando a cena familiar, em que sua irmã constituía uma rede de sociabilidade, permitindo a circulação das crianças como um arranjo possível e conciliador do cotidiano para Clarice. Sarti (2002) aponta que, aliado aos fatores econômicos e sociais de famílias vulneráveis, a instabilidade familiar provocada por separações ou mortes, permeada pela habitual desproteção do Estado, culmina em processos de coletivização das responsabilidades no grupo de parentesco.

Nessa perspectiva, as crianças circulam na rede de sociabilidade familiar, o que define a noção de família a partir de um aspecto moral, envolvendo obrigações entre pares, no sentido de corresponsabilização, o que concede um valor central a essa organização, sobretudo uma referência simbólica primordial, mediando a percepção do mundo social e familiar.

O arranjo familiar de Clarice é bastante contemplado na perspectiva de Sarti. Os desdobramentos desses múltiplos acontecimentos afetariam também as crianças, posto que vivenciaram uma sequência de acontecimentos trágicos, até traumáticos, pela via da violência intrafamiliar, seguido da separação hostil dos pais, daí a morte da tia, a quem o cuidado da prole era confiado com frequência, e, por fim, a instauração do quadro depressivo de Clarice. A cena sugere considerável fragilidade, a dependência de um adulto referência, que, pelo que ilustra, mais precisava receber do que conseguia dar:

[...] dependiam muito de mim, além de financeiro, e o pessoal mesmo né, aquele carinho de mãe e tudo. E porque que quem tomava conta da casa e deles, era ele. Porque eu tinha que estudar, e trabalhar e manter a casa, e ele ficava só por conta. Então ali pra mim, foi mui... foi um pedaço muito forte que eu passei.

Ouvindo Clarice, eu pensava sobre como ela era uma sobrevivente frente a uma história de vida acidentada, tantas transformações sociais, a sonhada “liberdade” – que, quando pôde experimentar, ao sair da casa dos pais, logo viu que era um beco sem saída –, a possibilidade de romper com o primeiro relacionamento e de adentrar num outro também violento. Que liberdade era essa, frente ao desamparo desesperador de Clarice?

Diante de condições precárias em vários aspectos, ela, um sujeito tão fragmentado – como se apresenta, lançando-se (às vezes, soava desesperada) em laços abusivos, em busca de aplacar esse desamparo –, nos trechos seguintes, nos convida a olhar para o caos, para seu sofrimento e a pulsão de morte que também a habita, frente a todo desamparo:

Eu ficava buscando sabe, eu deitava ali assim, eu entrava debaixo do chuveiro, começava a chorar e falava assim, “nossa... cadê meu eixo? Cadê meu eixo? Eu “num” “sô” assim, eu “num” “sô” assim!”. Sabe, eu num conseguia, eu perdi 25 kg [...].

[...] assim eu acho que... foi muito difícil, né, pra eles. Ter que me obedecer, ter que, tipo assim... “Opa! Quem que é essa mulher aqui?! Que a gente nem via, agora ela tá aqui!...” entendeu?! E, foi muito difícil... muito difícil eu trazer meus filho pra “perdimim”! Não me obedeciam, eu tinha que... às vezes eu tinha que ligar pra ele, pra ele vim aqui sabe, porque eles não me obedeciam, eles não... não sei... era uma coisa horrível! [...].

[...] eu... eu cheguei lá, na última crise que eu tive, que eu falei assim... nossa! Eu começava a chorar, sem parar, com nenhuma vontade de ir trabalhar, né, vontade de ficar só quieta, deitada e não fazer nada! Nada, nada, nada... não conseguia parar de chorar [...].

Em sua fala, Clarice conta das vezes em que sucumbiu a tanta tristeza, desamparo e vulnerabilidade. Fala, também, sobre esse vínculo fragilizado com seus filhos, sobre os quais a responsabilidade e autoridade no núcleo familiar eram, amiúde, atribuídas a um outro – ora sua irmã, ora o ex-companheiro, ora seu pai, seja pela indisponibilidade interna, seja pela opressiva realidade material que se dava no cotidiano. Na última fala em destaque, ela também conta do acolhimento e do vínculo que nutriu com a equipe de saúde da família, com quem pode chorar sua dor, ser acolhida e assistida. Sobre chefiar a família, Clarice diz: “Aí, é uma... é bem chato! [risadas] Bem chato, é uma coisa... é uma responsabilidade, muuuito grande né, muito grande [...]”.

A mulher Clarice, mãe-filha; morte-vida; “emancipação”-fragilidade, cuja trajetória se apresenta ora trágica, ora até poética na sua resistência, diante de toda vivência, quando indago, então, como é ser mulher para Clarice?

[...] Mas o que tem sido mais difícil é ficar sozinha, ficar sozinha, o ficar sozinha... por mais que eu tenha os meninos, falta um pedaço, é o estar sozinha que me pesa mais [chorosa], eu... eu queria ter alguém do meu lado, é isso que pesa, mas... eu querer o que me prejudica, o que me machuca, não sei se é a mesma coisa [...]. Uma fatalidade entendeu, mas quem sabe um dia eu encontre a minha metade, será né? Não é possível que nesse mundo de 5 milhões de habitantes, não vai ter um lá, que vai encaixar dentro do meu mundo, ou eu no mundo dele... sei lá.

Nas duas últimas falas, Clarice conta do quão difícil e pesado é ser, estar, sentir-se só e assumir tanta responsabilidade. Seus dizeres são uma resposta que atualiza a cena do desamparo de sua infância/adolescência parentalizadas. Por tanto tempo Clarice parecia assumir tudo em sua vida sozinha, e, quando encontrava/escolhia alguém para dividir esse peso, era também machucada. Fala-se aqui de Clarice, mas também de tantas outras, ao dizer que a sonhada emancipação ainda precisa muito cambiar os lugares de homem e mulher – nos espaços público e privado, na domesticidade e no mercado de trabalho –, e não somente atribuir mais e mais papéis e funções às mulheres. Clarice dizia da condição de desamparo, mas também desejava um outro vínculo. Quase que inevitavelmente, Clarice remete à clássica obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto:

Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais Severina para o homem que retira) [...] (Melo Neto, 1991:7).

Clarice, na sua esperança equilibrista, retirante, se deparou tanto com a morte, mas anseia por encontrar vida. E uma escuta só é transformativa quando, ao ser tomada nessa relação transferencial, diante da profundidade dessa dimensão subjetiva, articula-se com a construção da crítica, reflexão-ação. Por isso, cabe um hiato, para pensar no quanto choram as Clarices nesse país, em especial quando grifamos os marcadores classe e raça/etnia. De um lado, avançam direitos e conquistas; de outro, quando observada a questão da vulnerabilidade social nas configurações familiares matrifocais, depara-se com a questão de classe, gênero e raça/etnia, uma vez que situações de risco são mais comumente encontradas em domicílios chefiados por mulheres, em especial, por mulheres negras (IPEA, 2015IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça (4a ed.). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, DF, 2015 [http://ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf - acesso em: 10 jan. 2021].
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).

Por exemplo, constatou-se, no estudo anteriormente citado, que, entre 1995 e 2015, a taxa de analfabetismo entre mulheres negras era praticamente o dobro em relação às demais mulheres, o que afeta diretamente a inserção destas no mercado de trabalho. Vale destacar que o índice de desemprego entre as mulheres negras é de 17,4%, e o número de trabalhadoras domésticas remuneradas, entre as mulheres negras, é quase o dobro das demais.

Segundo análise realizada pelo IPEA em 2012IPEA. Expansão dos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, DF, 2012 [http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/nota_tecnica/120830_notatecnicadisoc010.pdf/ - acesso em: 10 jan. 2021].
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, o trabalho doméstico em 2009 empregava 7,2 milhões de brasileiros, dos quais 93% (6,7 milhões de pessoas) eram mulheres, e 62% (4,4 milhões de pessoas) eram negras, representando um total de quase 70% entre as mulheres trabalhadoras domésticas em diferentes vínculos de trabalho, com ou sem carteira assinada, mensalistas e diaristas.

Ainda, revelam os dados do Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil (Waiselfisz, 2015WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília-DF, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, 2015.), com base em dados de 2013, do Ministério da Saúde, que, no Brasil, o feminicídio é a forma mais letal de violência praticada contra as mulheres: foram registrados 4.762 homicídios de mulheres. Esses números colocam o Brasil no 5º lugar na classificação mundial desse tipo de crime. A pesquisa mostra que, no decorrer de dez anos, a quantidade de mortes violentas de mulheres negras aumentou copiosamente: de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013, o que representa 54%. Enquanto a mesma correlação para as mulheres brancas revelou uma redução de 9,8%, de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013.

Todos esses dados apresentados nos revelam o quanto as Clarices, retirantes, esperançosas, encontram a morte, seja na exclusão social, na arcaica violência institucional, na ausência de políticas públicas engajadas ou na execução de ações afirmativas com base no princípio da equidade. Por ora, é mister constatar o quanto a escuta de Clarice, analisada na perspectiva interdisciplinar, faz potência e dá um lugar à subjetividade mais coerente com a sua valia e com a repercussão que provoca, por abarcar aspectos sociais diversificados, e, principalmente, por sua singularidade – é na concretude do ordinário da vida cotidiana que o sujeito se constitui como tal e faz laço. “Na verdade, a realidade, os fatos, os acontecimentos precisam ser desmascarados, desvendados daí (...) [o] percurso contínuo entre o (...) que é a aparência e a essência, entre a parte e o todo, (...) o singular e o universal” (Mathis; Santana, 2009MATHIS, Adriana de Azevedo; SANTANA, Joana Valente. Serviço Social e tradição marxista: notas sobre a teoria social crítica. In: 6º Colóquio Internacional Marx e Engels, Campinas-SP, 2009 [https://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2009/trabalhos/servico-social-e-tradicao-marxista-notas-sobre-teoria-soci.pdf/ - acesso em: 25 jun. 2017].
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:2, 10).

Considerações (nada) finais

Eis que chegamos ao tempo de concluir, embora essa etapa do caminho, ao invés de ponto final, crie mais possibilidades, destinos e outros atracadouros. Nesse breve e fecundo vórtice da produção deste artigo, cuja intenção é um convite à reflexão e ao diálogo, no desejo de mais encontros interdisciplinares para tratar temas complexos – como o são a questão de gênero, classe e raça/etnia nesse país –, sobretudo o da escuta “transformativa” das mulheres.

O tempo aparece como um desafio do começo ao fim, delineia os limites da palavra (falada e escrita) e dá o tom da travessia, na qual só é possível galgar sob a identidade teórica e compromisso ético-político, ao passo que experimentamos o “deixar-se fisgar” (capturar) pelo que é do outro na teoria, no método e no afeto. Árdua tarefa se fez, encontrar essa justa medida.

Em primeiro lugar, cabe lançar olhar ao desafiador objetivo desse trabalho de escutar a história dessa mulher, na matrifocalidade, atravessada pela violência contra a mulher. Teve como norteador o percurso interdisciplinar, que se ancorou nos ensinamentos teóricos forjados pela Teoria Social Crítica, que sustenta o meu lugar no Serviço Social, na interlocução com premissas psicanalíticas. Habitava ali o convite à escuta do sujeito de desejo, do inconsciente, cujos desdobramentos se reportavam também às práticas sociais. O método, como o caminho elencado, era a oportunidade empírica dessa escuta. Por vezes, o encantamento – despertado ao entrarmos em contato com um novo saber e, com ele, pôr-nos a dialogar – fez-nos que nos deixássemos levar por algumas correntezas, velejando no fio da navalha, momento em que, oportunamente, por vezes no decorrer da escrita e da escuta, foi preciso ajustar as velas, tomando das marés, assim, uma direção, mas com a liberdade do espanto e das descobertas no caminho.

No contexto em que a concretude da produção da vida social se faz real e austera, por vezes, ameaçadora à existência, quando atribuído à mulher, esse cenário se agrava. Considerando sua trajetória de subjugação histórica, econômica e social, que se daria pela questão da classe, da raça/etnia e também do gênero, estava posto o desafio de escutar, lutar pela garantia e ampliação de direitos e autonomia desse segmento societário. Vimos que escutar o sujeito de direitos, inserido em um cenário capitalista copiosamente desigual (a partir da exploração), necessitava também de um urgente e necessário espaço resguardado para a escuta da subjetividade.

Escutar esse sujeito de modo ampliado implica em interpretar e intervir para transformar.

Abordar a matrifocalidade e a violência contra a mulher pressupõe incluir fenômenos sociais expressivos. Para o Serviço Social, na perspectiva da crítica dialética, utilizamo-nos do movimento das lentes de Galeano: uma lente na conjuntura e outra no recorte singular do sujeito mulher e nas expressões da questão social que se entrecruzam e envolvem a trama, acrescendo ainda uma escuta. Devemos, também, olhar atentos para as categorias de mediação e articulação entre tais dimensões, contextualizadas no rigor da questão social. Assim investigou-se a escuta da subjetividade como condição sine qua non nesse contexto.

São múltiplos os estudos que se dedicam a analisar mulheres em relacionamentos violentos, atravessados por múltiplas vulnerabilidades, quando atribuídos à matrifocalidade. Observamos que essa mulher pode revelar uma reinvenção possível, entre rupturas e repetições, e, com isso, reafirmar sua posição de sujeito de direitos e do laço. Ao traçarmos um panorama daqueles elementos apreendidos na escuta das mulheres, destacamos a reincidência da violência na mesma relação e/ou relações outras; trata-se da transmissão geracional no enlace de relacionamentos violentos.

Assim, percorremos pelo reconhecimento e interpretação dessa conjuntura, ao mesmo tempo que investimos esforços na desconstrução do que se tornara uma falácia vitimizadora e subalternizada, reconhecendo as armadilhas do capital – inclusive no interior das instituições, na lógica punitiva e na potência desse sujeito na condição de protagonista da sua trajetória –, sem prescindir dos dispositivos de proteção e responsabilização consequente que compõem a problemática. À medida que esse sujeito é também do desejo, do laço social, para escutá-lo, é preciso o fazer desapressado, o olhar insurbordinado (Brum, 2006BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. 11. ed. Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2006.), e o despraticar as normas (Barros, 2006BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo, Planeta, 2006.).

Nessa toada, as premissas psicanalíticas da escuta, vínculo e transferência nos ensejaram o contato com a dimensão inconsciente presente nas relações sociais da mulher, trazendo consigo uma complexidade de heranças psíquicas inter e transgeracionais, históricas e sociais, pendências e suspensões da sua constituição de sujeito. Ao insistir no valor do diálogo interdisciplinar e nas perspectivas transversais que as análises vão promovendo a partir desse mosaico plural de mulheres, apreciamos a composição de Bondía (2002)BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 19, Rio de janeiro, 2002, pp.20-28. sobre a experiência, tal qual vivenciada ao “deixar fisgar-nos” pela escuta transferencial dessas mulheres em diferentes tempos, idades e cores:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Bondía, 2002BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 19, Rio de janeiro, 2002, pp.20-28.:4).

Tatear pelas searas psicanalíticas pressupõe a leitura da posição subjetiva, por vezes de assujeitamento, e nela construir espaços para a dúvida, o não saber e a fratura; eis que, então, emerge a possiblidade de reinvenção desse lugar, e, a partir dele, a criação de propostas coerentes rumo à concretização e “reafirmação” de seus direitos, bem como seu engajamento nesse processo. É como se pudéssemos trançar as pontas do “singular-particular-universal” no cenário violência, mulher e suas histórias (Lukács, 1967LUKÁCS, Georg. Estetica I: La peculiaridad de lo estético. Barcelona-México, Grijalbo, 1967.).

Na potência desse encontro-movimento, de maneira vivaz, escutamos a história de Clarice, que guarda em si peculiaridades sobre a origem, etnia, classe, e ressonâncias de momentos distintos de sua vida.

Clarice, em sua peculiar dualidade, encarnou a figura da mulher contemporânea na ascensão social rumo à sonhada emancipação econômica. Ela, negra e advinda de família de trabalhadores, acessava a universidade pública e o mercado de trabalho. Suas conquistas representaram, também, um momento histórico no Brasil – período marcado por mais de uma década de implantações de ações afirmativas, políticas sociais inclusivas e ampliação de acesso a espaços diversos. Foi nesse momento que, transformando-se as estatísticas, possibilitou-se alguma “equidade” para os segmentos societários marcados pela classe e raça/etnia. A trajetória de Clarice até a matrifocalidade se nutriu de avanços sociais, mas ela também narrou sua dor e desamparo num cenário que se apresentou estreito para acolhida da subjetividade e para a compreensão da exaustão da trabalhadora polivalente. Assim, Clarice lançava-se à repetição, e desejava, nostálgica, a “receita cultural do marido, da família” (como na canção Triste, louca ou má, interpretada pela banda Francisco, El Hombre, composição de Vivien Carelli).

É relevante apontar a urgência de um minucioso manejo pelos profissionais das instituições que compõem a rede de proteção, cuidado e garantia de direitos das mulheres em situação de violência, as quais são atravessadas por diferentes discursos, olhares e práticas. É fundamental evitar as “intervenções retificadoras”, que reificam a culpabilização das mulheres no serviço. Tomando em conta que a dimensão do inconsciente humano ocupa um espaço tão relevante quanto o contrário, bem como se faz presente e se reproduz na forma do sujeito ser e estar no mundo, particularmente na tessitura de suas relações, nossa aposta aflora, partindo do pressuposto de que escutar a subjetividade do sujeito de direitos nas intervenções sociais reserva uma potência criativa no enfrentamento das expressões da questão social que se manifesta de forma intrincada na concretude do cotidiano. Isso ocorre, especialmente, quando o sujeito das nossas intervenções se trata de mulheres na matrifocalidade, em situação de violências, já que, a essa altura, temos alguma dimensão da complexidade que essas violências podem representar e das marcas reais e simbólicas que podem fazer, algumas reconhecidas e outras até inomináveis na sua trajetória. Doravante, compreendemos, sobretudo, que analisar-interpretar-intervir-transformar carece de se dar na construção com esse sujeito de direitos e de desejo que é a mulher. Da mesma forma, a escuta e a instituição devem fazer-se únicas. (Fonseca, 2009FONSECA, Claudia. Quando cada caso NÃO é um caso. Revista Brasileira de Educação, 10, Rio de Janeiro, 2009, pp.58-78.; Souza; Pimenta, 2014SOUZA, Hebert Geraldo; PIMENTA, Paula. Por que elas não (re)tornam? Considerações sobre a não adesão ao tratamento por parte da mulher em situação de violência. Opção Lacaniana online, 5(15), 2014, pp.1-11.).

Portanto, não nos furtamos em reconhecer que, para o Serviço Social, é a partir do alicerce – parte da análise da conjuntura da realidade, cuja lente foca no justo ponto da exploração, dominação e alienação de classes, gênero e raça/etnia (intrínsecas à contraditória relação capital-trabalho) –, que se constroem análises-interpretações-intervenções, considerando o sujeito de direitos, que se apresenta num sujeito individual-coletivo. A busca por navegar em correntes psicanalíticas é a busca por diálogo e acesso ao sujeito singular que habita esse universo social para além das imposições institucionais.

Por fim, as considerações nada finais deste trabalho são considerações de um fecundo aprendizado nesse atracadouro, de um contínuo caminho a ser percorrido no domínio social de interlocução entre os campos. Acerca da intersubjetividade nos núcleos familiares, para além dos atravessamentos de classe, raça/etnia e gênero, percebe-se, também, a partir da escuta dessas mulheres, os papéis sociais impostos e estanques de homens e mulheres, que nos desafiam interpretar e intervir nesse contexto, bem como redimensionar as políticas públicas, pensando sua envergadura nos níveis de planejamento e execução.

Marca também essa etapa de conclusão o urgente convite à construção interdisciplinar e articulação da rede de cuidado, proteção e garantia de direitos, que, por vezes, serão parte do cenário das trajetórias dessas mulheres e suas complexidades de sujeitos, em especial, como roga este artigo, daquelas com referências de núcleos familiares matrifocais. Tal chamado, seguramente, aponta, cada vez mais, para o fato de que há muito ainda que se caminhar no movimento dialético de ruptura de visões e práticas social e institucionalmente instituídas, ao passo que olhamos para a importância de instaurar espaços, práticas, olhares, escutas, fazeres nas trincheiras das políticas públicas e projetos profissionais pautados numa lógica emancipatória, integrada, horizontal, longitudinal, afirmativa e criativa.

Corroboramos a apreensão das complexas dimensões que envolvem o humano e a sociedade, e as relações que nela se produzem e reproduzem, num esforço de apreender a totalidade social demasiadamente complexa e multifacetada, mas de também nos assentar no lugar de sujeitos desejantes, pesquisadoras e profissionais. Buscamos, dessa forma, tornar mais arrojado e potente esse caminho de resistir nas trincheiras da contradição, em prol de uma sociedade mais justa e menos desigual, a partir da narrativa de universos diversos, mas convergentes, revelando serem fecundos os caminhos percorridos da pesquisa, bem como seu alcance social. Este estudo enseja e deseja, na ousada investida em forma de resistência em tempos de retrocessos, fragmentações e individualismos exacerbados, abrir possibilidades, encontros, pontes, construções e diálogos contínuos.

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  • 1
    O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogêneo, heterológico e polimorfo de orientações […]. Sua aspiração é deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os processos autoanalíticos e autogestivos dos coletivos sociais.
  • 2
    Referência ao Golpe de Estado de 2016, em que se votou o impedimento da presidenta Dilma Roussef. O golpe foi orquestrado pelo poder judiciário e liderado pela minoria que, desde sempre, trata o Brasil e sua riqueza socialmente produzida como propriedade privada de poucos. Apesar de o processo ter sido votado pela Câmara, foi ilegítimo e a despeito da legislação magna vigente, a Constituição Federal de 1988, já antes mencionada.
  • 3
    A Política Pública de Cotas nas universidades teve sua implantação no Brasil, em 2003, num contexto de muita polêmica e resistência de forças instituídas (Barembblitt, 1994) conservadoras. No entanto, um estudo realizado por Referente há quase uma década da implantação da política apontou dados que afirmam sua potência enquanto “um instrumento de política pública de inclusão”: fatores como desempenho e aproveitamento durante o curso mostram-se bastante semelhante entre alunos cotistas e não cotistas, e, na categoria de evasão, o contingente entre cotistas é quase a metade do encontrado entre os não cotistas.
  • 4
    Conceito do autor, a partir do materialismo histórico-dialético de Marx, segundo o qual, para “apreender a totalidade da realidade em suas conexões essenciais, das conexões entre o singular-particular-universal, é preciso orientar-se por essa noção.”
  • 5
    Jair Messias Bolsonaro (então filiado ao Partido Social Liberal – PSL, e, atualmente no Partido Liberal), atual presidente atual presidente do Brasil, eleito em 2018 (mandato 2019 – 2022). Donald John Trump (Partido Republicano), 45º presidente dos Estados Unidos, eleito em 2016 (mandato 2017 – 2020), ambos pertencentes à extrema direita, pautada por ditames ultraconservadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2019
  • Aceito
    16 Fev 2021
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