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Vasculhar pedaços, produzir papéis: sobre vestígios e técnicas de perícia

Resumo

Este artigo busca desvelar as muitas camadas narrativas, gráficas e formais que dão existência aos laudos de corpo de delito em casos de estupro e atentado violento ao pudor, produzidos pelo Instituto Médico Legal (IML) de Campinas, entre 2004 e 2005. Nesse sentido, parto do modelo gráfico que conforma esses papéis – sua forma-formulário – para gradativamente evidenciar a fórmula narrativa neles contida: pedaços de carne. Ao seguir tais caminhos, por fim, intento mostrar como materialidade do crime de estupro e atentado violento ao pudor se confunde com a materialidade do sexo de meninas, meninos e mulheres ali atendidos.

Estupro; Documentos; Materialidade; Gênero; Sexualidade

Abstract

This article seeks to unveil the many narrative, graphic and formal layers that give rise to the forensics reports on rape and sexual assault crimes, produced by the Legal Medical Institute of Campinas ( Instituto Médico Legal - IML), between 2004 and 2005. Therefore, I start from the graphic model that shapes these papers – its layout-form – to gradually show the narrative formula contained in them: pieces of flesh . Finally, by following these paths, I intend to show how the criminal materiality of rape and sexual assault is confused with the materiality of the sex of girls, boys and women who are taken care of at this institution.

Rape; Documents; Materiality; Gender; Sexuality

Introdução

“A carne é o que se nomeia, a carne é aquilo de que se fala, a carne é o que se diz”

(Foucault, 2001:257).

Em junho de 2004, uma Alice caminhava por uma conhecida avenida da cidade de Campinas, quando foi abordada por um Desconhecido . Munido de arma de fogo, o Desconhecido obrigou uma Alice a acompanhá-lo até a linha férrea da cidade. Nesse local, o Desconhecido “manteve sexo oral, anal e vaginal” com uma Alice 1 1 A economia textual, ora grafada pelo plural, ora pelo artigo indefinido uma/um, tem por intuito mostrar a não especificidade do caso, ressaltando não sua exemplaridade, mas, ao contrário, a maneira como ele se comunica com inúmeros outros casos que aparecem no decorrer deste artigo. Quanto às padronizações de escrita, optei por deixar em itálico expressões ou noções construídas a partir de meu campo de pesquisa que assumem, aqui, um sentido específico. As frases, expressões e termos retirados dos documentos oficiais, bibliografias médico-legais, assim como das entrevistas realizadas durante a pesquisa ficarão grafadas entre aspas e em itálico. Quanto às citações bibliográficas, essas estarão grafadas apenas entre aspas. O negrito será utilizado somente como forma de dar ênfase a certas passagens ou expressões que julguei importantes. . A queixa foi tipificada na delegacia como estupro e atentado violento ao pudor. Do atendimento resultou uma requisição de exame de corpo de delito, cuja função foi encaminhar uma Alice ao Núcleo de Perícias do Instituto Médico Legal (IML) da cidade. Na presença de sua mãe , uma Alice foi atendida por um médico-legista e, do atendimento a ela prestado [o exame in loco ], resultaram dois formulários padronizados, cujo preenchimento foi realizado pelo referido profissional. Dali em diante, referendados pelas institucionalidades de assinaturas, brasões e insígnias do IML e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, esses papéis estabeleceram-se como laudos de corpo de delito, um destinado ao “exame de conjunção carnal”, e outro denominado “exame de ato libidinoso” . Ambos foram, então, encaminhados à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), sendo, muito tempo depois, anexados ao Inquérito Policial lá presidido.

O caso de uma Alice ilumina os nós fundamentais deste artigo: a produção de provas materiais em casos de estupro e atentado violento ao pudor, a posição do IML nessas engrenagens investigativas e criminais e o documento como um suporte inescapável para tal empreendimento. Nesse sentido, incito o leitor a paulatinamente se demover do abuso sexual como um ato vivido por uma Alice para seguirmos juntos às tecnologias por meio das quais o Instituto Médico Legal de Campinas inscreve em papel vestígios da violação sexual, para, a partir deles, conformar aquilo que a medicina legal denomina como materialidade criminal . Também será preciso deslocar à atenção do que foi consolidado pela narrativa da corporação policial – “manteve [com ela] sexo oral, anal e vaginal” – para nos enveredarmos por outras soluções narrativas forjadas pelo IML, que, como veremos, são elas mesmas mais rarefeitas e lacônicas.

Em vista disso, essa reflexão se apoia num conjunto de laudos de corpo de delito de conjunção carnal e ato libidinoso presentes em inquéritos policiais destinados a averiguação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ocorridos em Campinas, entre 2004 e 20052 2 O recorte temporal especificado, crimes ocorridos entre os anos de 2004 e 2005, diz respeito aos inquéritos policiais que eu investiguei junto à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas, entre os anos de 2009 e 2011, em meu mestrado. O objetivo ou a questão central daquela pesquisa era entender como crimes de estupro e atentado violento ao pudor eram forjados e investigados por/na corporação. Na pesquisa de doutorado que dela se seguiu, eu intentava compreender como os laudos de corpo de delito eram forjados, como se inseriam no processo criminal subsequente e quais eram seus impactos na condenação ou na absolvição de um réu acusado de estupro. Como jamais adentrei ao espaço institucional do Instituto Médico Legal (IML) de Campinas, em função de minha solicitação de pesquisa ter sido indeferida pela Comissão Científica do IML, orientei meus interesses àqueles mesmos laudos que eu já havia recolhido entre 2009 e 2011 na DDM. Assim, voltei meu olhar a tais documentos a fim de repensá-los, agora, como repositórios enraizados não apenas na prática técnica cotidiana da corporação, mas, também, conectados e articulados a outras modalidades de conhecimento e escrutínio: manuais, textos acadêmicos, aulas de medicina legal, entrevistas com legistas aposentados e ainda em atuação no IML etc. Ambas as pesquisas mencionadas foram financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP). Ademais, é preciso salientar que, até 2009, ainda estava em vigor na lei uma distinção entre estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214), tal qual denominada pelo Código Penal de 1940 [1998]. Para uma análise da legislação destinada à tipificação de crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ver: Rolim (2007), Vieira (2007) e Nadai (2012 ; 2017). . Tais documentos técnico-científicos se apresentaram como elementos centrais dentro da trama de relações institucionais e históricas que constitui o Instituto Médico Legal ( Nadai, 2018NADAI, Larissa. Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2018. ). Ao dizer isso, gostaria de sublinhar o caráter híbrido imposto a esses documentos. Ou seja, são produtos forjados por uma corporação policial, em resposta a uma demanda jurídica, mas realizados mediante saberes científicos para os quais a referência é a medicina legal – essa última, uma área de saber situada na intersecção de modelos jurídicos e médicos, simultaneamente ( Corrêa, 1998CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 1998. ; Ferreira, 2009FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Dos autos da cova rasa: a identificação dos corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro, E-papers, Laced/Museu Nacional, 2009. ; Antunes, 1995ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Crime, sexo e morte: avatares da Medicina no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1995. ).

Para além desta introdução, o artigo está dividido em duas seções e um arremate a serem lidos como um desfolhar de camadas. Isto é, “sigo os papéis” ( Lowenkron; Ferreira, 2014LOWENKRON, Laura; FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Anthropological perspectives on documents: Ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant 11 (2), Brasília, Associação Brasileira de Antropologia (ABA), 2014, pp.75-111 [https://www.scielo.br/j/vb/a/3jnYPgTxPknzVBNqh7Jr5yt/?lang=em – acesso em: 15 jun. 2020].
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) a fim de exibi-los como construtores da realidade, “tanto por aquilo que produzem na situação da qual fazem parte (...) quanto por aquilo que conscientemente sedimentam” ( Vianna, 2014VIANNA, Adriana de Resende Barreto. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: CASTILHO, Sérgio R.R.; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; TEIXEIRA, Carla C. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2014, pp.43-70.: 47). Na primeira seção, lanço luz ao fato de que um laudo é um papel oficial subdividido em partes, caixas de texto e/ou seções previamente definidas. Normalmente discriminados em duas páginas, tanto os laudos de “exame de conjunção” quanto aqueles destinados ao “exame de ato libidinoso”, estão estetizados a partir de quatro seções autocontidas. A primeira delas visa orientar e especificar qual é o tipo de laudo, quem o requisitou, quem o realizou, em qual data foi realizado e qual era a vítima ali presente para o exame. As seções subsequentes concentram-se em transpor ao papel o movimento do próprio exame médico-legal. Da história contada ao legista, seguimos à práxis do exame, que se encontra subdivida em três caixas-textos destinadas a descrever: o que foi “visto e observado” pelo legista, o que disso pode-se inferir a guisa de “conclusão” médico-legal e, finalmente, qual será a resposta dada aos quesitos obrigatórios e previstos em lei para exames de “conjunção carnal” e “ato libidinoso”, especificamente. Denomino tal diagramação formal forma-formulário e argumento que tal estrutura limita, constrange e dá direção a tudo aquilo que pode e deve ser visto pelo legista durante um exame de corpo de delito de conjunção carnal e/ou de ato libidinoso.

Na seção subsequente, disseco com atenção os dizeres que se sublevam da forma-formulário . Fiada a ideia de que o coração do laudo corresponde exatamente às lacunas destinadas à descrição do que foi “visto e observado” e na “conclusão” que delas se erigem, busco mostrar como do “observado” surgem pedaços. Pedaços de carne cujos protagonismos (ou seu mascaramento) têm implicações impensáveis ao que desses laudos eleva-se como conclusão adequada e amparada por preceitos médico-legais. Ou seja, aquilo que será definido como vestígio material com fins criminais. Exatamente por tais artimanhas, a seção se subdivide em duas subseções que se iluminam mutuamente. Procuro mostrar que himens e fissuras anais são fórmulas narrativas ( Nadai, 2012NADAI, Larissa. Descrever crimes, Decifrar convenções narrativas: uma etnografia entre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e atentado violento ao pudor. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2012. ; 2018), e, simultaneamente, modos científicos e técnicos pelos quais os corpos e seus pedaços são materializados e ganham materialidade por meio e através dos laudos de corpo de delito. Um tipo de materialização profundamente clivada por gênero e sexualidade, cuja compreensão só se efetua quando cotejada com slides, vídeos, aulas, entrevistas e bibliografias médico-legais canônicas de sexologia forense3 3 Neste artigo tomo o laudo como um produto textual finalizado, mas resultante de uma relação face a face que posso apenas confabular, visto que não realizei uma pesquisa junto ao cotidiano de trabalho desta instituição. Minha escolha por construir a figura do legista como um sujeito despersonalizado e cujas trajetórias estão aquém desta pesquisa responde ao próprio efeito de articulação que o artigo busca desvelar: o laudo como uma forma pré-estabelecida e seu preenchimento atinado a dizeres e soluções narrativas que reiteram o protocolo, mais do que o tensionam ou o colocam em risco através de nuances pessoais de escrita/atendimento. .

Por entre formas e formulários: quais pedaços para quais lacunas?

Os laudos de corpo de delito realizados em mulheres e meninas que chegam ao IML de Campinas encontram-se embasados pelo Código de Processo Penal (1941), no Livro I, sob o título designado “Da Prova”, no Capítulo II – “Do Exame de Corpo de Delito e das Perícias em Geral”. No referido texto legal, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, é indispensável quando a infração deixa vestígios, mesmo nos casos em que o acusado tenha confessado o crime. O procedimento, por conseguinte, obrigatório, deve ser realizado por um perito oficial e portador de diploma de curso superior, mediante a requisição de “autoridade policial”, ou representante do Judiciário. Trata-se, aqui, de uma polícia específica, técnica e científica, que, em resposta a requisições, comparece às investigações realizadas pela Polícia Civil por meio de suas conclusões médico-legais emitidas e atestadas. De modo pragmático, como argumentou em entrevista um legista, “ Todos os exames são feitos mediante uma requisição! Tem que ter! Eu, legista, não posso fazer exame se não houver uma solicitação formal (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Nesse sentido, a requisição destinada aos cuidados do “Ilmo(a). Dr(a). Diretor(a) do Instituto Médico Legal”, sob o título “Requisição IML-Pessoa”, demanda as “providências” que deverão ser processadas pelo IML no que tange à perícia solicitada e encaminhada em nome das vítimas pela DDM. Em seguida, na lacuna “Objetivo da Perícia”, de modo direto e sucinto, a autoridade policial “solicita” aquilo que deverá ser investigado : “conjunção carnal”, “ato libidinoso”, “lesões corporais” etc. Já no campo “Características da Ocorrência”, são os tipos penais e os dados sobre os fatos que orientam a perícia: “Costumes (arts. 213 e 214) / Estupro (art. 213) (Tentado)”. Ou seja, a “natureza” do crime, a “data” e o “local da ocorrência”.

Na requisição, destaca-se, também, o preenchimento recorrente das “Observações”, derradeiro campo do documento. Em uma única linha, a autoridade policial frisa aquilo que deve ser verificado por meio da especificação da tipificação penal. Assim, a terminologia técnica – “estupro e atentado violento ao pudor” – é acrescida de termos coloquiais colocados entre parênteses que burocraticamente explicitam aquilo que deve ser “observado”, tais como “sexo anal, oral e/ou vaginal”. Assinada pela vítima, pela escrivã de polícia e pela delegada responsável pela condução do inquérito, a requisição chega, então, ao IML.

Dessa maneira, as formas protocolares acima descritas materializam, de antemão, o lugar do IML nessa engrenagem que ata instâncias técnico-científicas à Polícia Civil: um legista não escolhe realizar um exame de corpo de delito ou tem autonomia para fazê-lo sem “uma solicitação formal” . Por seu caráter necessário, a requisição é, simultaneamente, uma forma de controle e uma técnica de direcionamento. Como ludicamente me explicou um dos legistas do IML de Campinas: “em medicina, a gente costuma dizer o seguinte: você só encontra aquilo que você sabe procurar. Se eu não sei o valor de ouro, é capaz de eu pisar em cima e ir embora” (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Portanto, os laudos de corpo de delito são profundamente arregimentados pelos elementos jurídicos retirados da lei e prescritos em requisições. Posteriormente convertidos em noções médico-legais4 4 Para uma genealogia sobre as conexões entre saberes jurídicos e saberes médicos para os casos de crime sexual, ver Antunes (1995) . Para conhecer mais sobre as relações entre direito e medicina e sobre a constituição da medicina legal, ver Carrara (1998), Corrêa (1998) e Schwarcz (1993) . , “conjunção carnal” e “ato libidinoso” são os vestígios que darão, através do IML, materialidade a delitos de estupro e atentado violento ao pudor. No primeiro caso, “conjunção carnal” remete a um conceito restrito – a penetração vaginal por pênis –, excluindo assim outras formas de sexo – anal, oral, intermamas, interfemural, uso de dedo, mão, outro objeto com formato peniano como dildos, próteses ou vibradores ou outro tipo qualquer de objeto. Já no segundo caso, o “ato libidinoso” congrega uma gama variada de intercursos – vestibular, oral, anal, masturbação – e carícias – beijos, chupões, toques etc.

Se parece difícil precisar ou reconstruir as relações de causalidade entre o conceito jurídico e sua acepção em matéria médico-legal, é fundamental, no entanto, demonstrar como tais conceitos, estetizados no subtítulo do documento – centralizado e em caixa alta “Exame de Conjunção Carnal e/ou “Exame de Ato Libidinoso” –, sublinham uma qualidade formal que precede a autonomia daquele que produz o laudo. Dito de outro modo, enquanto a requisição determina o que deve ser investigado nos corpos, “conjunção carnal” e “ato libidinoso”, por correlato, circunscrevem posições de exame que, por sua vez, são formalizadas por meio de sínteses textuais: “Colocado(a) em posição ____________” . O preenchimento da lacuna com as expressões “ginecológicas” e “genupeitural” marca tudo aquilo que deve ser visto e concluído em todos os exames periciais realizados.

No exame “ginecológico”, o legista deve perscrutar toda a genitália da vítima, mas também deve dar atenção às mamas e ao ânus5 5 Tais técnicas mostram de modo fático os muitos e diferentes entrelaçamentos entre sexologia forense e ginecologia/obstetrícia no Brasil. Para uma análise do surgimento da ginecologia como uma especialidade médica, ver Rohden (2001) . . Nesse caso, esses últimos são coadjuvantes, uma vez que, como determina Fávero (1954FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954.: 232), o legista deve se ater a “diagnosticar a cópula” nesse tipo de exame. Essa, sim, aparece como decisiva à definição da figura jurídica: “estupro” . Para tanto, o legista deve avaliar a rotura himenal, a presença de esperma na vagina e a existência de gravidez. Fazê-lo implica colocar em operação uma forma de narrar o estupro por meio do “hímen”, dos “genitais em conformação”, das “lesões de interesse médico-legal” na “altura uterina” e de outras partes corpóreas externas – membros, dorsos, cabeças etc. Exige, também, anexar exames laboratoriais, proceder à coleta de secreção vaginal ou, em casos de suspeita de gravidez, requisitar um ultrassom junto ao hospital que deu atendimento clínico à vítima.

Já no exame “genupeitoral”, são os “toques e manobras” nos órgãos genitais ou em “zonas eróticas” e as “práticas sexuais anormais” – a “cópula anal”, a “cópula em outras sedes” (intermamas, interfemural etc.) e as “outras manobras equivalentes” – que devem ser investigados ( Fávero, 1954FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954.: 202-203). Por mais datados que possam parecer os conceitos utilizados por Flamínio Fávero (1954)FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954., o conteúdo de suas descrições segue dando sustentação à noção de “ato libidinoso” tal qual veiculada pelos laudos aqui referenciados. Formalmente, o legista deve destacar, caso haja, a existência de mordidas, arranhões, toques, esfoliações, marcas e/ou manchas encontradas no corpo da vítima. Em seguida, é a “posição genupeitoral” que define o tipo de exame que o legista deve executar; a vítima, com os joelhos encostados no peito, deixará em evidência o “ânus”, cuja inspeção é obrigatória e deve ser feita com minúcia.

Fundamentadas por tais práxis, as fórmulas textuais evidenciadas nos laudos de corpo de delito têm como ponto de partida um diagrama legal que é convertido em uma acepção médico-legal. Essa última converte-se numa representação formal. Estamos envoltos em qualidades estéticas muito particulares: forma-formulário . A forma-formulário, como um modelo padrão ou uma matriz, resulta, nos termos de Riles (2001)RILES, Annelise. The network inside out. Ann Arbor, University of Michigan Press, 2001., em técnicas de escrita autocontidas que limitam, constrangem e estimulam certas formas de preenchimento.

Portanto, distante dos imaginários retratados em filmes e séries cujo foco está no trabalho pericial, em que se procura por tudo e qualquer coisa, a perícia, tal como é realizada no IML, tem uma direção e um formato. A forma-formulário que precede e delimita o exame, explicita tal orientação. As seções do documento incitam o legista a orientar seu olhar para as regiões “ginecológicas” e “genupeitoral”, resguardando a integralidade do corpo ao preenchimento do campo “lesões corporais”, a primeira subdivisão da seção “Descrição” da forma-formulário . Segue-se a ela uma nova subdivisão: “Colocada em posição ginecológica/genupeitural observamos:” . Nela, o estilo protocolar instituído por intermédio de tópicos autocontidos e enumerados de 1 a 6, no caso dos exames de conjunção carnal, e por meio de um campo específico – “ânus” –, para os exames de ato libidinoso, é bastante evidente. Tal estrutura formal, por consequência, fragmenta e esmiúça as partes genitais do corpo, dando centralidade a elas. Assim, em oposição à liberdade descritiva encorajada pela primeira lacuna da “Descrição”, – uma vez que toda e qualquer “lesão corporal” pode e deve ser ali enumerada –, na subdivisão “colocada [a vítima] em posição ginecológica e/ou genupeitoral”, o legista está obrigado a somente complementar um roteiro previamente formulado, que é exortado pelas características estéticas do próprio documento.

No caso de um “exame de conjunção carnal”, a enumeração de 1 a 6 perscruta a região genital, do externo ao interno, resguardando as últimas numerações às adjacências daquilo que perfaz os aspectos ginecológicos. Do “Monte de Vênus” à “Altura uterina”, é preciso descrever os “Genitais Externos de Conformação” e o “Hímen” . Em ato contínuo, as “Mamas” e o “Ânus” arrematam a inspeção criteriosa. Nesse sentido, chama atenção que mesmo diante do “conceito restrito” imposto à prática de “conjunção carnal”, o “ânus” figure como um pedaço importante no exame, a ponto de receber uma numeração em separado e destinada apenas a ele.

No caso dos “exames de ato libidinoso”, por procedimentos semelhantes, independentemente da queixa ou do “Histórico” transcrito em laudo, no campo específico “ânus”, tal orifício, colocado em evidência pela “posição genupeitoral”, deve ser inspecionado, e as lesões, encontradas nele, elencadas livremente. Porém, ao contrário dos exames de “conjunção carnal”, nos exames de “ato libidinoso”, os genitais não aparecem como elementos obrigatórios a serem descritos. Fica a critério do legista incluir (ou não) o campo “Genitais” em seu laudo, dando à tal parte uma lacuna em específico. Fazê-lo reforça aquilo que na próxima seção descrevo como materialidade/vestígios .

Em contraste a fórmulas dissertativas que incitam os profissionais da DDM a contar histórias ( Nadai, 2016NADAI, Larissa. Entre estupros e convenções narrativas: os Cartórios Policiais e seus papéis numa Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). Horizontes Antropológicos 22 (46), Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), 2016, pp.66-96. ), a forma-formulário impele legistas e peritos a soluções textuais breves e comedidas. Inspirada pela premissa de que o formato não é um “dispare inofensivo” ( Strathern, 2006STRATHERN, Marilyn. Bullet-Proofing: A Tale from the United Kingdom. In: RILES, Annelise. Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Michigan, University of Michigan Press, 2006, pp.181-205. ), gostaria de enfatizar o caráter pouco narrativo imposto aos laudos e sua refração a leituras lineares, causais e/ou relacionais, com começo, meio e fim. Graficamente, eles estimulam que diferentes pontos, autônomos e contidos em si mesmos, sejam enumerados, sem explicitar, contudo, as correlações entre os pontos da listagem ali construída. Ao preencherem a lista, os legistas não refutam seu formato imposto, ao contrário, cotidianamente reafirmam seu preenchimento protocolar e necessário. Como todos os meus interlocutores didaticamente me explicavam: “todo laudo tem o Histórico, o Exame, a Discussão e a Conclusão, e nessa Conclusão, os quesitos oficiais que você responde”. Tratam-se, aqui, de camadas que vão, sistematicamente, sendo sobrepostas e atadas de modo a ser improvável que o legista disserte livremente sobre o “visto e observado” .

Em diálogo estreito com a pesquisa desenvolvida por Riles (2001)RILES, Annelise. The network inside out. Ann Arbor, University of Michigan Press, 2001., posso dizer que a forma-formulário resulta num modelo gráfico insistentemente replicado no IML ao longo do tempo. Sua manutenção, a depender de mudanças jurídicas em torno da tipificação para crimes sexuais ou de publicações que visam padronizar a atuação, reforça um tipo de prática documental intencional e irrefletida simultaneamente. Como sugere o trabalho de Riles (2006RILES, Annelise. Introduction: In Response. In: RILES, Annelise. Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Michigan, University of Michigan Press, 2006, pp.1-38.: 20), “a forma é uma entidade auto-contextualizável” cujos “espaços (...) a serem preenchidos contêm todos os termos de análise necessários para entendê-la ou completá-la”.

Assim, se o formato dos laudos estetiza um gênero documental – a forma-formulário –, os efeitos propagados pelo preenchimento reiterado desses papéis eletrizam pedaços, como sugere Foucault (2009)FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2009. . Se retornássemos àquilo que Vigarello (1998)VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998. descreveu como a centralidade da fisionomia do criminoso nas primeiras décadas do século XIX, ficaríamos surpresos com as semelhanças nos procedimentos. No caso dos criminosos, os médicos procuravam por medidas antropométricas que circulavam, preponderantemente, por circunferências cranianas e ângulos faciais; no caso dos exames de “conjunção carnal” e “ato libidinoso”, medidas e ângulos também saltam aos olhos. Himens, fissuras e exulcerações são devidamente esquadrinhados, vasculhados, para deles fazer emergir vestígios e materialidades. Portanto, a forma-formulário, quando preenchida, nos exige a aquisição de novas habilidades de leitura. Numerações, caixas de texto e lacunas revertem-se, daqui em diante, em terminologias médico-legais compreensíveis àqueles que foram devidamente instruídos em tal linguagem autorizada ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: O que falar quer dizer. São Paulo, EdUSP, 2008. ).

“Do visto e observado”: sobre a arte materializar pedaços de carne

Sobre o brilho de uma fixação: o hímen e suas roturas

O hímen é uma membrana mucosa mais ou menos permeável, excepcionalmente imperfurada, que se apresenta no orifício inferior da vagina. Não é apanágio da espécie humana, pois a fêmea de muitos animais o apresenta. (...) A sua situação é profunda ou superficial: profunda nas crianças; superficial nas mulheres púberes ( Fávero, 1954FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954.: 210).

Sem precisar a origem embrionária ou a função fisiológica da fina e flexível membrana, são inúmeros os trabalhos que dão atenção especial aos aspectos morfológicos do hímen e às características de sua ruptura, assim como suas correlações com temas como honestidade moral, conformação racial e/ou elemento civilizatório ( Rodrigues, 1900RODRIGUES, Raimundo Nina. Des formes de l’ hymen el le leur rôle dans la rupture de cette mebrane. Annales d’Hygiene Publique et Médicine Légale 43 (6), Paris, Jean-Baptiste Baillière, 1900, pp.481-517 [https://www.biusante.parisdescartes.fr/historie/medica - acesso em: 15 jun. 2020].
https://www.biusante.parisdescartes.fr/h...
; Reis, 1917REIS, Álvaro Borges. Formas Himenais mais frequentes na Bahia. Gazeta Médica da Bahia 49 (5/6), Bahia, Universidade Federal da Bahia (UFBA), 1917, pp.256-259 [http://www.gmbahia.ufba.br - acesso em: 15 jun. 2020].
http://www.gmbahia.ufba.br...
; Freire, 1918FREIRE, Oscar. Localização das lesões himenais. Brazil-Médico 32 (6), Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, Rio de Janeiro, 1918, pp.57-60 [https://www.obrasraras.fiocruz.br - acesso em: 15 jun. 2020].
https://www.obrasraras.fiocruz.br...
; 1923 e Peixoto, 1934). Tecnicamente, como explica Fávero (1954)FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954., o hímen apresenta, morfologicamente, o que pode ser chamado de membrana e o que é denominado como óstio (que seria limitado pela borda livre da membrana). A membrana possui duas faces, uma vaginal e outra vestibular, e duas bordas (uma inserção vaginal e outra livre). Especificamente, a seriação de Afrânio Peixoto se dedicou a classificar o hímen pelo aspecto da membrana. Daí o renomado médico ter traçado linhas de junção que dariam origem a ângulos ou fendas na inserção da membrana no óstio vaginal. Foi por meio dessas aberturas que Peixoto identificou os himens a partir de três grupos: os acomissurados (imperfurados), os comissurados (com números variados de pontos de junção) e os atípicos. Somada à definição de Peixoto, Fávero apresenta a classificação empreendida por Oscar Freire, que, por sua vez, estava ligada ao óstio, já que a borda livre da membrana apresenta dimensões e aspectos também variáveis. Sua categorização dividia o hímen em três classes: sem orifício, com orifício e os atípicos. Dessa sintética explicação segue-se, no livro de Fávero (1954), um compêndio de tipos himenais desenhados, com vistas a ensinar aos iniciantes na profissão sobre as formas e os formatos que a membrana pode adquirir.

As nomenclaturas, por conseguinte, também se multiplicam. Himens anulares, semilunares, em ferradura, bilabiais, helicoidais, ovalados, septados ou imperfurados dão existência diversa a uma mesma e variada membrana. Sem dúvida, manuais como esses visam dar materialidade visual àquilo que um legista, durante um “exame de corpo de delito de conjunção carnal”, deve prestar atenção.

Atenta a tais técnicas pedagógicas e inspirada pelas análises de Laqueur (2001)LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. sobre a anatomia humana, argumento que a linguagem marca a carne, fazendo existir o hímen como elemento decisivo para anatomia sexual das mulheres. Sem importância para anatomistas, patologistas, médicos ou biólogos citados pelo autor, a membrana himenal passa despercebida frente à exaustiva preocupação desses com a vagina, o clitóris ou os órgãos reprodutivos femininos. Curiosa e relevante, tal invisibilidade reafirma o argumento de Laqueur (2001)LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. ao cotejar, com atenção, uma gama variada de fontes históricas, científicas e estéticas responsáveis por forjar discursivamente as formas e características do corpo feminino. Como sugere o autor, as estratégias de representação e nomeação sempre assumem um “ponto de vista”, e o fazem “(...) inclu[indo] algumas estruturas e exclu[indo] outras, (...) que não merecem nomes ou entidades individuais” ( Laqueur, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.: 203).

Logo, chama atenção uma espécie de metonímia que os trabalhos destinados à matéria de sexologia forense acabaram por edificar. A fixação pelo hímen, seja para desqualificá-lo, seja para tomá-lo como elemento diacrítico para a averiguação da concretização da conjunção carnal, transformou os especialistas brasileiros em medicina legal, como argumenta Caulfield (2000)CAULFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campina, SP, Editora da Unicamp, 2000., em autoridades mundiais sobre a morfologia da membrana. Atrelada à noção de virgindade, a questão do formato do hímen, por conseguinte, redundava em acalorados debates sobre como determinar, com certeza, o momento exato de sua rotura completa, bem como os vestígios cicatrizados ou sanguinolentos do fato (Peixoto, 1934a; 1934b).

Em um primeiro momento, portanto, o hímen aparece como interesse médico-legal devido a suas relações estreitas com as noções de honra sexual e virgindade ( Caulfield, 2000CAULFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campina, SP, Editora da Unicamp, 2000. ). Porém, de modo surpreendente, ainda que juridicamente distinto6 6 No que interessa a essa argumentação, ao dizer que os laudos por mim analisados neste artigo entrelaçam defloramento e estupro, busco enfatizar como a data da primeira relação sexual ganha centralidade nestes artefatos documentais, vide o lugar ocupado pela membrana himenal, em detrimento daquilo que na tipificação penal para estupro figura como central à sua conformação jurídica. A saber, a imprescindibilidade do uso de violência ou grave ameaça e noção de conjunção carnal (independentemente de ser essa relação sexual o primeiro intercurso estabelecido pela vítima). Para uma análise das justaposições entre honra, resistência e estupro, ver Nadai (2017 ; 2012). , “defloramentos” e “estupros” acabavam por se entrelaçar durante a leitura dos laudos de corpo de delito importantes a esta pesquisa e a suas adjacências – aulas de medicina legal, entrevistas e bibliografias sobre o tema –, dando conteúdo à forma-formulário . A inspeção rotineira do hímen, feita ainda hoje e descrita nos laudos de corpo de delito de conjunção carnal, denota que tais modos de olhar e perscrutar continuam presentes no imaginário da disciplina. Mesmo desvirginadas, em “data não recente”, as mulheres e meninas atendidas no IML de Campinas entre os anos de 2004 e 2005 tinham seu hímen criteriosamente descrito e investigado. Isso porque, apesar das mudanças legais em torno dos crimes de defloramento e/ou sedução previstos no Código Penal, tais práticas de produção técnica de conhecimento e produção de provas sobre o crime seguem praticamente sem alterações substanciais. Os ensinamentos destinados aos médicos em formação durante a aula de medicina legal sobre a temática também enfatizavam a centralidade da fina e performática membrana. Por ser de difícil reconhecimento e visualização, o hímen precisava ser observado com atenção e, diante de todas as lesões a serem anotadas, convertia-se num desafio àqueles que, como eu, precisavam ser iniciados na disciplina.

As justaposições de quase um século entre as explicações exibidas em slide nas aulas que acompanhei de medicina legal no auditório da FCM, na Unicamp, e os textos nos quais Oscar Freire (1918)FREIRE, Oscar. Localização das lesões himenais. Brazil-Médico 32 (6), Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, Rio de Janeiro, 1918, pp.57-60 [https://www.obrasraras.fiocruz.br - acesso em: 15 jun. 2020].
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e Afrânio Peixoto (1934b) discorrem sobre a importância de realizar, com atenção e rigor, a aferição do hímen e de suas roturas, são impactantes. Passamos, desse modo, de forma gradual, da morfologia da membrana para sua ruptura. Como sugere Peixoto (1934), é inútil que o legista conheça a morfologia e os formatos possíveis para o hímen íntegro se não for capaz de diferenciar “entalhes naturais” de “roturas incompletas” . Ou, ainda, se não for ensinado que o “hímen não se destrói nem desaparece. Rompe-se, lacera-se, faz-se em retalhos, transforma-se em tubérculos, cristas mucosas, carúnculas, mas subsiste, nestes estados” (Peixoto, 1934b:120).

Por sua vez, num artigo publicado em 1918, na Revista Brazil-Médico, do Rio de Janeiro, Oscar Freire produz um diálogo com as afirmações de Afrânio Peixoto. Interessado não apenas em determinar com exatidão de detalhes as lesões encontradas na membrana himenal depois de sua rotura, mas em localizar “rupturas cicatrizadas e entalhes grandes ou pequenos que recortam a borda himenal” ( Freire, 1918FREIRE, Oscar. Localização das lesões himenais. Brazil-Médico 32 (6), Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, Rio de Janeiro, 1918, pp.57-60 [https://www.obrasraras.fiocruz.br - acesso em: 15 jun. 2020].
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: 58), o autor oferece uma nova técnica, a qual estabelece as bases científicas para a realização do exame. Sua proposta é a utilização de uma circunferência graduada dividida em quadrantes, nos quais linhas com os mais variados ângulos permitiriam ao legista obter grande precisão quanto às lesões encontradas no hímen.

A circunferência graduada que aparece desenhada no artigo de Freire, publicado em 1918, pode ser encontrada, numa versão mais modesta e menos detalhada, nos laudos realizados pelo IML entre 2004-2005. A figura, estilizada por um círculo cortado por duas linhas em forma de cruz, alude à técnica publicada por Freire (1918)FREIRE, Oscar. Localização das lesões himenais. Brazil-Médico 32 (6), Revista Semanal de Medicina e Cirurgia, Rio de Janeiro, 1918, pp.57-60 [https://www.obrasraras.fiocruz.br - acesso em: 15 jun. 2020].
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. Todavia, graficamente, o desenho quase sempre não é preenchido ou rabiscado nesses documentos periciais com os ângulos que determinam, com precisão, as rupturas ou lesões himenais. Se da inspeção resultam apenas palavras em papel, é diante das pernas posicionadas e da área vaginal em exposição que o legista deve, com “a extremidade do polegar para dentro e a borda radial do indicador para fora”, separar os pequenos e os grandes lábios vaginais movimentando-os para cima ( Fávero, 1954FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954.: 221).

Dessa maneira, uma Selma tem um hímen “anular, carnoso, de orla alta, óstio de média amplitude, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de quadrantes anterior e posterior direito”. Se a membrana himenal de uma Márcia, por sua vez, está “reduzida a carúnculas mirtiformes”, o hímen “anular, carnoso, de orla baixa, óstio de média amplitude” de uma Madalena é descrito, apenas, como “apresentando rotura” . Por expedientes semelhantes, mais uma entre tantas Lucianas tem o hímen “integro, carnoso, orla alta, óstio de média amplitude, não apresentando rotura” . Assim como Lucianas, uma Laura também apresenta a membrana himenal “não apresentando roturas” . Seu hímen “anular, membranoso, de orla baixa e óstio de pequena amplitude”, exatamente porque íntegro, figura meticulosamente apresentado.

Ainda que seja fato que todas essas mulheres e meninas chegaram ao IML de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005, com uma requisição de corpo de delito, a queixa tipificada pelo artigo 213, ou ainda pelo artigo 214, reverteu-se em “exames de conjunção carnal’ com “Histórico [s] breves e sintéticos, independentemente da complexidade da situação de violência ou abuso por elas vivenciadas. A frase “informa a examinada ” ou “informa a acompanhante” é completada por diferentes – porém, sucintos – enredos: “vítima de ato libidinoso (sexo oral e tentativa de anal) sob ameaça de arma de fogo em [data] ”, “vítima de estupro em [data]”, “vítima teria sido tentada ou abusada pelo próprio pai” ou “vítima de conjunção carnal, mediante ameaça com revólver em [data] .

Se é exatamente por uma fixação de longa data que himens seguem, até hoje, tão bem esquadrinhados pelos legistas e aparecem quase autônomos da totalidade dos corpos “colocados em posição ginecológica”, por oposição, os “genitais externos de conformação” são vasculhados sem muito interesse. Pequenos e grandes lábios vaginais, vulva e clitóris não figuram descritos ou investigados individualmente com minúcia. A todos esses pequenos pedaços resta a afirmação de que estão “norm [ais] para a idade” . Mesmo no caso de uma Alice, as lesões encontradas no “assoalho do vestíbulo vaginal” não foram anotadas em nenhum dos tópicos numerados de 1 a 6. Por comparação, o tópico destinado ao “Monte de Vênus” sempre é completado, seja pela descrição de presença de pelos, seja com a coloração dos mesmos. Dedicados ao hímen, nos exames de conjunção carnal, os legistas são modestos na exposição de outras partes do corpo de Madalenas, Márcias, Selmas, Lucianas, Lauras ou Alices . Quase sempre ânus, mamas, a altura uterina e as áreas periféricas de seus corpos são definidos por frases tais como: “sem interesse médico-legal”, “ausentes”, “não palpável pelo abdômen” ou “nada digno de nota” .

Isso ocorre porque, na lacuna em que se coloca a “Descrição”, o médico não deve produzir ilações sobre a relação entre esses pedaços. Ou seja, nos laudos, jamais veremos frases que afrontem a forma-formulário criando uma relação entre o que se descreve do hímen de uma Alice (sem roturas observáveis) e as lesões encontradas no “assoalho vaginal” da vítima. Ao contrário, deve apenas expô-los com objetividade, dando atenção àquilo que por ele foi “visto e observado”. Desse modo, mediante termos técnicos, deve-se descrever se há marcas nas partes genitais, qual a coloração, quais os aspectos e formatos das mucosas e membranas, da pele, da carne. Da forma-formulário aparece um modo de preenchimento específico e insistentemente repetido. Se as descrições em tópicos – “lesões corporais”, “monte de vênus”, “genitais externos de conformação”, “hímen”, “altura uterina”, “mamas”, “ânus” – são os elementos que constituem o “volume” desses corpos ( Foucault, 1980FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1980. ), a correlação desses elementos é destinada a uma outra lacuna. O que ocorreu, as marcas, as lesões, os entalhes, os formatos, o histórico contado pela “examinada”, tudo isso será fundamental à construção da lacuna “Conclusão”, na qual o legista deve explicitar suas considerações médico-legais.

A prática médica/clínica/forense, dando primazia aos olhos ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. ), através de seus métodos inquisitoriais e cartoriais, interroga, faz falar membranas, órgãos, lesões de interesse médico-legal e documenta vestígios encontrados na carne ; em certos pedaços de carne ( Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2009. ). Se, como sugere Afrânio Peixoto (1934b:117), o “ hímen não se destrói nem desaparece (...) mas subsiste” em retalhos e lacerações, ao tomá-lo como elemento decisivo, legistas e laudos inscrevem tal estrutura na carne e como lastro da carnalidade imposta à própria carne ( Gregori, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. ). Por tais atos de “apenas preencher papel” ( Ferreira, 2013FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. “Apenas preencher papéis”: reflexões sobre registros policiais de desaparecimento de pessoa e outros documentos. Mana 19 (1), Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, 2013, pp.39-68. ), o “sexo” figura como um termo crucial, um lugar de contestação e um campo de batalhas intelectuais e técnicas. Ou seja, como dirá Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2010.: 243) vemos nessa produção discursiva, “uma encarnação do corpo e uma incorporação da carne”, cujo móvel não está tornar dócil e útil os corpos ( Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1987. ), mas traçar sobre ele uma “fisiologia moral da carne”, fazendo ouvir, no caso do interesse legal pelo hímen, o próprio “sexo”. Assim, inspirada por Butler (2001)BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2001, pp.151-172., argumento que o sexo é um discurso de natureza que opera como marcador e diferenciador dos corpos por ele produzidos, mesmo na sua acepção mais aparentemente estável – a anatomia. Nos termos da autora, não é algo que alguém tem, antes é uma das normas mediante as quais alguém se torna viável e inteligível no mundo ( Butler, 2001BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2001, pp.151-172. ).

Ainda que Madalenas, Selmas, Márcias, Lucianas, Lauras e Alices tenham um hímen ou os retalhos que restam dele, é somente diante das correlações de força tramadas em laudos e aulas de medicina legal que a desprezada membrana tornou-se protagonista e pôde, finalmente, ser alçada a um tipo incontestável de vestígio . A pergunta a ser feita, portanto, é: depois de inspecionar, sobretudo, o hímen, o que concluem os legistas? A resposta nos exige retornar à solução narrativa veiculada nos próprios laudos:

Uma Selma: “Do observado e exposto concluímos que a examinada apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve marcas não ficaram...”.

Uma Márcia: “Do observado e exposto concluímos que a examinada apresenta carúnculas mirtiformes, portanto, não temos condições de afirmarmos ou negarmos a queixa da pericianda...”.

Uma Madalena : Do observado e acima exposto concluímos que a examinada apresenta hímen com rotura antiga.

Uma Laura: “ Do exposto e observado concluímos que a examinada apresenta hímen integro”.

Uma Luciana: Do observado e acima exposto concluímos que a examinada não manteve conjunção carnal, portanto é virgem.

Uma Alice: “Do observado e exposto concluímos que a examinada não manteve conjunção carnal”.

Dado que muitas são as entradas médicas forjadas por esses especialistas, é notável que, do visto, escutado e tateado apareça sem mediações, mais uma vez e somente, o hímen. Afinal, o que trouxe mulheres e meninas como Madalenas, Márcias, Selmas, Lucianas, Lauras e Alices à sala de exames do IML? Focados nos himens e nas roturas dessas mulheres, os legistas terminam em suas conclusões produzindo um deslizamento entre a requisição do exame de corpo de delito e a conclusão médica anotada e certificada. Como apresentei na seção anterior sobre a forma-formulário, a requisição de corpo de delito, ao tipificar o ato como “um 213”, ou seja, fazendo menção ao artigo penal que tipifica um crime de estupro, demanda do IML que um exame de “conjunção carnal” seja realizado. As considerações do legista, para tanto, têm por urdidura dois elementos: de um lado, a “conjunção carnal” e, de outro lado, “o hímen” . Ambos são alinhavados de modo rotineiro – ou mimetizados – por aquele que deve concluir o laudo.

Se tais soluções narrativas parecem cruciais à compreensão dos laudos de corpo de delito até aqui apresentados, o hímen, todavia, foi apenas um dentre os muitos fios que constituem uma complexa trama de classificações e deciframentos sobre o “sexo” feminino promovido (e até hoje reencenado) pelas práticas de medicina legal. A inscrição desse receptáculo ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. ), perigosamente situado em “zonas de indefinição” (Lowenkron, 2015b) e de excessivas camadas de sentidos e significações, desliza a outro orifício cuja penetração ilumina, a contrapelo, o hímen e sua fixação . Antes de qualquer arremate, faz-se fundamental direcionarmos nosso olhar ao ânus como cavidade a ser minuciosamente perscrutada.

Sobre ânus e fissuras: deslocamentos etnográficos

Sem hímen a ser inspecionado, o corpo de meninos como Felipes abre caminho a outras fórmulas narrativas . Sua ida ao IML de Campinas, em dezembro de 2004, aos doze anos de idade, corresponde aos achados de sua mãe, que “ notou a presença de uma marca ‘chupão’ [em seu] pescoço”. Em laudo, tal lesão foi anotada pelos médicos legistas, que informaram na lacuna “Descrição”: “lesões corporais: observa-se 2 equimoses avermelhadas com cerca de 1,5 X 1,2 cm lateral-direita o pescoço, ovalada” . Aparentemente encerrado7 7 Ambos os legistas concluíram em laudo: “Do observado exposto concluímos que fora a vítima de sucção oral” . , o laudo de ato libidinoso de um Felipe, ao menos nos dizeres anotados em papel, mantém seu padrão formal, e na lacuna “colocado em posição genupeitoral”, na caixa-texto “ânus”, fica anotado “nada de interesse médico legal” .

Como afirmei na seção anterior deste artigo, exames de corpo de delito de “ato libidinoso” se debruçam sobre “toques, manobras”, mas também a outros orifícios penetráveis que não o canal vaginal. O laudo destinado a examinar o corpo de um Felipe não pode, ao que parece, prescindir da centralidade que o ânus adquire nesses papéis. Perscrutado por hábito ou descrito mediante praxes de escrita de rotina, o ânus ganha protagonismo e uma lacuna em destaque no documento oficial forjado no IML. O recurso estilístico de destinar a ele uma caixa-texto em específico que o desconecte da região genital a ele adjacente busca ilustrar uma descontinuidade, um corte. Enquanto himens respondem por conjunções carnais, “fissuras” aparecem como elementos materiais importantes a serem investigados na região anal e, a depender de “toques e manobras”, cruciais para materializar (ou não) um “ato libidinoso” . Ademais, tais laudos também evidenciam os raros momentos nos quais os “genitais”, independentemente da centralidade dada ao hímen, figuram como partes a serem descritas com zelo e precisão.

Sem descrições extensas sobre as “manobras libidinosas” em tratados de medicina legal, tanto Fávero (1954)FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954. quanto Peixoto (1934b) são enfáticos em qualificar como de difícil conclusão a ocorrência de toques, intercursos anais e em outras sedes do corpo. Na ausência de elementos decisivos e irrefutáveis, Peixoto (1934b) pacientemente demonstra como deformidades penianas, desenvolvimentos excessivos de nádegas e relaxamentos do esfíncter, rasgos, carúnculas, fissuras e/ou fístulas anais são elementos de pouca confiabilidade. A “firmada diagnose”, como argumenta Fávero (1954)FÁVERO, Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. São Paulo, Editora Martins, 1954., é, assim, um desafio, visto que lesões nas mucosas e relaxamentos de esfíncter podem ser oriundos de outras causas que não apenas o coito sem consentimento. Seja em casos de fissuras e fístulas, seja para as constatações de cristas, carúnculas ou condilomas8 8 Para o autor, tais lesões são constatadas mediante eczemas nas margens do ânus e se configuram como saliências, inflamações, dobras epidérmicas perineais e anais (Peixoto, 1934b). , Peixoto (1934b) é bastante enfático ao afirmar que “deve haver prudência no observar o sinal por que (...) qualquer afecção pruriginosa” é muito comum nessa região. Além disso, relaxamentos, erosões ou lacerações na pele ou na mucosa anal “cessam em breve, logo que os fenômenos inflamatórios e dolorosos desaparecem” (Peixoto, 1934b:145).

Como sugere William Ian Miller (1997)MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. em seu extenso compêndio sobre os orifícios e os resíduos asquerosos por eles excretados, o ânus, como um orifício de saída, é contaminador, tanto pelos excrementos que dele são expelidos – as fezes e os gases – quanto pela sua característica de base ou fundamento. Nos termos do autor, ele, o ânus, é “visto como a base da qual depende nossa dignidade. Deve ser seguro, ou tudo o que está construído sobre ele desmorona” ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997.: 100).

Ao dizer isso, Miller (1997)MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. busca enfatizar o caráter generificado do ânus. Em sua argumentação, a penetração do ânus é uma sobretaxa de significação para o corpo feminino – acessível via penetração e penetrável devido ao seu design – e um interdito irrevogável ao masculino. Como sugere o autor, “o ânus feminino nunca será sua vagina, é, na melhor das hipóteses, uma cópia de segurança, um segundo ângulo, mas o ânus de um homem é sua única vagina” ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997.: 101). Nesse sentido, o fato de o ânus figurar como um orifício merecedor de uma numeração e uma lacuna destinada somente a ele, como apresentei anteriormente, denota, por um lado, como ele é o “centro, o olho, de onde irradiam possíveis inclinações de gênero” ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997.: 101); e como, por outro lado, o ânus é o lugar das ambiguidades, em contraposição, à certeza aferida pelo hímen.

Estendendo o argumento de Miller (1997)MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. aos dados etnográficos aqui delineados, se o “sexo” de Biancas, Lauras, Selmas e Joanas “espera” por sua constituição e figuração, por uma “certa quantidade de penetração como advindo do território da feminilidade”, a região anal perfaz um excesso. Por contraste, o ânus de um Felipe subjaz seu revés. A noção do masculino como inviolável ou impenetrável transforma o ânus de um homem ou de um menino em sua “única vagina” ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997.: 100). Daí o esmero em atestar em laudo que o ânus de um Felipe não foi lesionado, mesmo tendo sido o “chupão” o vestígio a ser materializado9 9 Para uma análise sobre as estreitas relações entre esse orifício e sua sexualização/violação e brutalização dos corpos, ver Efrem Filho (2017). Já para análise de como a vítima de violência sexual é presumida e marcada por gênero, inviabilizando assim a possibilidade de pensar o corpo de um homem heterossexual como penetrável, ver Sarti (2009) . .

Assim, ao que tudo indica, o atestado de que Alices e Lauras possuíam “hímen integro, não apresentando rotura” parece intensificar o rigor descritivo para as “exulcerações” e “fissuras sangrantes” encontradas nos genitais e no ânus de cada uma delas, respectivamente. Ainda que, em exame de “conjunção carnal”, essa região tenha sido retratada pela máxima “6. Ânus: sem lesões de interesse médico legal”, seus corpos, quando postos e observados em “posição genupeitoral”, merecem descrições e afirmações bastante conclusivas do médico legista.

Com nove anos de idade, uma Laura teve seu ânus visto, apalpado, esquadrinhado e documentado com atenção: “ Ânus, apresentando fissura, rasgada sangrante, medindo 2 cm no quadrante posterior, assim como, apresentando hiperemia em torno da região anal ”.

As mesmas características estéticas são explicitadas nos laudos realizados para uma Alice . A “ exulceração (ruptura) longitudinal em toda a extensão do assoalho do vestíbulo vaginal” é anotada, em diferentes lacunas, nos documentos de corpo de delito confeccionados pelo IML. Enquanto em exame de “conjunção carnal”, seus “genitais externos de conformação” são descritos como “normal para idade”, a mencionada “exulceração (ruptura)” é registrada em seção especial – “genitais” – inserida no laudo de ato libidinoso.

Em ambos os casos, a aparente contradição exposta por esses papéis apenas reforça o argumento de que os documentos oficiais implicam em delimitações. E que, em resposta a cada demanda, certos pedaços de carne devem ser eletrizados, em declínio do protagonismo de outros. Na “Conclusão”, a contundência quanto à relação entre a lesão e o ato libidinoso contraria as esquivas sistemáticas desses profissionais em afirmar a causa jurídica do ato investigado para crimes tipificados como estupro:

Uma Alice: “Do observado e exposto concluímos que a examinada foi submetida a ato libidinoso coito vestibular ”.

Uma Laura:Do observado e exposto, concluímos que a vítima foi submetida a ato libidinoso com características de tentativa de penetração em região anal ”.

Roteiros semelhantes são seguidos para o caso de jovens como uma Bianca . Aos dezessete anos, uma Bianca foi examinada nas dependências do IML, em julho de 2004. Requisitado pelo delegado do 1º Distrito Policial de Campinas, seu laudo de corpo de delito afirmou em “Histórico” que uma Bianca foi “forçada a relação oral e anal nesta data” . Realizado pouco tempo depois do ocorrido, o exame determinou, na lacuna “Descrição”, que a jovem não apresentava “lesões corporais” a serem atestadas. Mas, estando uma Bianca em “posição genupeitoral”, os legistas deixaram anotados “eritema e edema anal; observamos duas fissuras localizadas em posições [ilegível] na região externa e interna” . E, “do observado e exposto”, concluíram “ que houve prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal”. Mais uma vez, “fissuras” eram devidamente anotadas como sinal suficiente para que o “ato libidinoso” fosse confirmado.

Frente a tais afirmações imperativas, mas sem catálogos ou imagens fotográficas desse tipo peculiar de úlcera ou lesão aberta na pele ou na mucosa anal, o laudo indireto10 10 Por laudo indireto, os médicos legistas fazem menção a um tipo característico de exame de corpo de delito que tem por parâmetro um prontuário clínico, e não a observação direta do corpo da vítima nas dependências do IML. formulado para uma Joana e a completa ausência de laudo de ato libidinoso para mulheres como Selmas eram, no mínimo, curiosos.

No laudo de uma Joana, vemos aparecer em termos de “interesse médico-legal” o que foi visto e revertido em descrição clínica forjada pelo médico do hospital que a atendeu: “fissura no ânus; mamas/genitais externos e internos: sem alterações e presença de escoriação no quadril esquerdo”. Dessa resumida formulação, e antes de expor suas conclusões num item discriminado pelo termo “Discussão”, o legista explica o motivo pelo qual chegou a tal desfecho: “embora a presença de fissura anal possa ser compatível com o histórico, outras causas de etiologia não traumática, mas patológica, podem apresentar esse mesmo achado do exame” . Sendo assim, profere sua “Conclusão”: “De acordo com os dados médicos fornecidos não temos elementos de certeza que permitam afirmar ou infirmar ter ocorrido ato libidinoso”.

Sem desconsiderar uma certa forma de narrar que termina por constranger ainda mais os exames feitos de modo “indireto”11 11 O documento revela, sem dúvida, uma tensão entre a função de legista oficial e as práticas médicas realizadas por outras instituições, também médicas, como hospitais que atendem à vítima momentos depois do estupro ter ocorrido. Para uma análise acurada sobre isso, ver Nadai (2018) . , o laudo de uma Joana, quando contrastado com outros empreendidos em meninas e jovens como Lauras e Biancas, incitam perguntas. Se “fissuras anais” podem ter origem em “outras causas de etiologia não traumática”, por que é dado por certo que algumas “fissuras, eritemas e/ou edemas” são, para certos diagnósticos, elementos de materialidade e, para outros, motivos de dúvida? Ou ainda, por que mesmo anotando em “Histórico” que mulheres como uma Selma foram “vítima de ato libidinoso (sexo oral e tentativa de anal)”, tais inspeções resultaram apenas em “exame de conjunção carnal” e não “ato libidinoso” ? Por corolário, por que o ânus figura como coadjuvante, “sem lesões de interesse médico-legal”, enquanto o “hímen anular, carnoso, de orla alta, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de quadrantes anterior e posterior direito” de mulheres como Selmas reina soberano? Para essa última pergunta, não surpreende que, na “Conclusão”, os legistas afirmem “que a examinada apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve marcas não ficaram... ”.

Arremates finais: entre tecnologias de materialização e pedaços de carne

Os três pontos ao final da sentença médico-legal que encerra o tópico da seção anterior, durante um tempo considerável da pesquisa, pareciam graficamente zombar de qualquer leitor que deles demandasse soluções / conclusões médico-legais . Do mistério e do enigma impostos aos pedaços de carnes que pairam autônomos dos corpos periciados, restam, factualmente, reticências. Desse mal-estar surge uma pergunta imperativa: o que os pedaços de carne materializam?

A resposta a essa pergunta é ela mesma traiçoeira e exige que olhemos para a noção de materialidade e seus efeitos incontornáveis à feitura dos laudos. Como sugerem meus interlocutores, causas médicas são distintas de causas jurídicas, sendo apenas a primeira o critério a ser considerado pelo legista durante suas conclusões médico-periciais. Portanto, “ na maior [ia] dos casos você vai ver [só] a ação [daquilo que foi empreendido no corpo da vítima]”. À luz de seus ensinamentos, logo chegaremos à compreensão de que, nos casos aqui analisados, as conclusões emitidas pelo legista estão circunscritas aos elementos médicos-jurídicos que orientam o exame de corpo de delito: “conjunções carnais” e “ato libidinoso”, e não a suas tipificações no Código Penal “estupro” e “atentado violento ao pudor” . Trata-se de um modo ardiloso de descrever lesões e vestígios a partir de pedaços da carne. Himens “anulares” ou “carnosos”, “cicatrizados” ou “roturados” nas mais diferentes junções e quadrantes, assim como fissuras “sangrantes”, de dimensões e formatos variados, são metonímias para vaginas, ânus e corpos integrais sexualizados e sexualizáveis. Todavia, quase nunca convergem nem à causa médica “conjunção carnal” ou “ato libidinoso”, muito menos à causa jurídica, que dispara sua feitura mediante uma requisição. Ou seja, de modo inusitado, a materialidade do hímen e das fissuras de Alices, Márcias, Selmas, Madalenas, Lauras, Joanas, Biancas ou Lucianas eclipsa, ou melhor, desconstitui a materialidade do crime: o estupro ou o atentado violento ao pudor. Na mesma linha do que argumenta Lowenkron (2015b:6), nos meus casos, “a materialidade do crime e a materialidade dos corpos constituem-se mutuamente”, o que, por sua vez, resulta, como bem mostra a autora, em destituir o crime no ato mesmo de constituir um corpo ferido, cuja materialização não está dada, nem é preexistente12 12 Faço alusão aqui ao caso envolvendo um imigrante chinês exposto a serviços análogos à escravidão numa pastelaria do Rio de Janeiro, tal qual analisado por Lowenkron (2015b). Para outras miradas sobre materialidade do corpo e materialidade do crime, ver Lowenkron (2013 ; 2015a). .

Ao final, talvez, desde sempre hímen e fissura tenham servido a outra coisa : materializar o sexo para dar guarida a uma incansável prática de vasculhamento. Nesse sentido, as técnicas de perscrutar himens e “fissuras” somam-se a um “número de manobras”, “apoios”, “articulações” e “estratégias” que fizeram florescer o “sexo” como “chave universal” para saber “quem somos nós” ( Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2009.: 88). Contudo, se himens e fissuras são igualmente pedaços de carne, vistos a contrapelo um do outro, iluminam ímpetos desiguais sobre os quais corpos e pedaços, por imperativo, tornam-se irresistíveis ao escrutínio, ao vasculhamento, à aferição e ao desvelamento. Concorrentes, himens materializam um sexo já sobrecarregado por sondagens, classificações, taxonomias que o fizeram brilhar como sede de patologias, doenças nervosas, sensualidades excessivas, irracionalidade e/ou desonra (Jordanova, 1989; Schiebinger, 2000SCHIEBINGER, Londa. Skeletons in the Closet: The First Illustrations of the Female Skeleton in Eighteenth-Century Anatomy. In: SCHIEBINGER, Londa (org.). Feminism and the Body. Oxford, Oxford University Press, 2000, pp.25-57. ; Sanderman, 1985SANDERMAN, Gilman. Black Bodies, White Bodies: Toward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art, Medicine, and Literature. Critical Inquiry [“Race”, Writing, and Difference] 12 (1), Chicago Journals, Chicago, 1985, pp.204-242. ; Fausto-Sterling, 1995FAUSTO-STERLING, Anne. Gender, Race and Nation: The Comparative Anatomy “Honttentot Women in Europe 1815-1817”. In: TERRY, Jeniffer; URLA Jacqueline. Deviant Bodies: Critical Perspectives on Difference in Science and Popular Culture. Indiana, Indiana University Press, 1995, pp.19-48. ). Já fissuras, lembram-nos de que certos acessos são interditos e indevidos. A constituição do ânus e sua capacidade de distensão são traiçoeiras porque, assim como o hímen, são, também, profundamente generificadas. De impenetrável a dúctil, o ânus torna-se um terreno fértil a outras tantas nosografias ancoradas na imagem dessa fenda, como a base da qual depende nossa dignidade ( Miller, 1997MILLER, William Ian. The Anatomy of Disgust. Cambridge, Harvard University Press, 1997. ).

Se, como Lowenkron (2015b) afirma, para fins policiais e criminais, o ato de demarcar, circunscrever e diferenciar é produtor dos corpos que serão dali em diante objeto de governo dessas corporações, a conexão de suas assertivas, ao trabalho de Maria Filomena Gregori (2016)GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. , parece fundamental para pensar os efeitos de palidez – sempre destinados a himens – e de pungência – projetados para algumas fissuras. Em ambos os casos, os pedaços de carne – lívidas “roturas cicatrizadas” ou viçosas “fissuras sangrantes” – falam-nos do exato momento no qual “a pele vira carne”13 13 A carne, vista no caso de Gregori (2016) por intermédio das práticas sadomasoquistas, não estava ali à espera do chicotear; antes foi forjada na triangulação pele, chicote e flagelo como um objeto a ser encenado e visto. ( Gregori, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.: 175). Equiparável às cenas descritas por Gregori (2016)GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. no que tange às mecânicas e tecnologias de alisar, eletrizar e eriçar os corpos, no IML somos imersos, à sua maneira, em cenários, apetrechos e extenuações da carne quase concorrentes. Como um chicote que açoita a pele, os laudos, ungidos pelas institucionalidades de assinaturas, brasões e insígnias do IML e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, transmutam em palavras toda a parafernália carnal – espéculos, mãos, dedos, hastes flexíveis e olhares forenses –, que, ao tocar a pele e penetrar em diferentes buracos, “objetiva o corpo como carne” ( Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2010.: 256). Contudo, o fazem cerceando e refreando os discursos sobre materialidades corpóreas, feridas, marcas, sangue, rasgos, rupturas e sofrimento, em favor do uso de terminologias médico-legais. Essas, por sua vez, transformam o horror dos cenários e dos atos perpetrados em conclusões assépticas, desbotadas e, inevitavelmente, (in)conclusas .

Ao que tudo indica, materializar vestígios é um fazer técnico e burocrático que forja a carne para fazer dela seu terreno de escrutínio, mas com fins bastantes particulares: constituir um domínio de saber e de governo cuja imprescindibilidade está conjugada a sua surpreendente nulidade para fins criminais. Nulidade rotineira e estratégica que, nem por isso – ou, quiçá, precisamente por isso –, deixa de ser política. Afinal, como bem ensinou Mariza Corrêa (1983)CORRÊA, Mariza. Morte em família: Representações Jurídicas de Papéis Sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. em sua pesquisa sobre processos penais em casos de assassinato entre casais, é, justamente, nos autos que “o real é processado, moído, até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um modelo de inocência” (Côrrea, 1983:40). O papel, portanto, longe de veicular os atos que visa descrever, desnuda os modos, os “filtros”, as “condições de existência” por meio das quais um ato é erigido a crime, um sujeito é estabelecido como algoz, e outro é consagrado à vítima. Fundamentais nessas engrenagens, os laudos, ao descreverem pedaços e forjarem corpos, nos direcionam às intrincadas tramas políticas e institucionais que sustentam o IML: sua exata habilidade de forjar vestígios que, dali por diante, servirão, sem sombra de dúvidas, como peça científica e prova criminal ( Nadai, 2018NADAI, Larissa. Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2018. ). Isso porque trata-se de um tipo de artefato documental que mutualmente inscreve certos corpos e destitui certos crimes .

Figura 1
Classificação dos orifícios himenais

Figura 2
Esquema para lesões himenais

Figura 3
Técnica para o exame dos órgãos genitais externos femininos

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  • VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
  • 1
    A economia textual, ora grafada pelo plural, ora pelo artigo indefinido uma/um, tem por intuito mostrar a não especificidade do caso, ressaltando não sua exemplaridade, mas, ao contrário, a maneira como ele se comunica com inúmeros outros casos que aparecem no decorrer deste artigo. Quanto às padronizações de escrita, optei por deixar em itálico expressões ou noções construídas a partir de meu campo de pesquisa que assumem, aqui, um sentido específico. As frases, expressões e termos retirados dos documentos oficiais, bibliografias médico-legais, assim como das entrevistas realizadas durante a pesquisa ficarão grafadas entre aspas e em itálico. Quanto às citações bibliográficas, essas estarão grafadas apenas entre aspas. O negrito será utilizado somente como forma de dar ênfase a certas passagens ou expressões que julguei importantes.
  • 2
    O recorte temporal especificado, crimes ocorridos entre os anos de 2004 e 2005, diz respeito aos inquéritos policiais que eu investiguei junto à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas, entre os anos de 2009 e 2011, em meu mestrado. O objetivo ou a questão central daquela pesquisa era entender como crimes de estupro e atentado violento ao pudor eram forjados e investigados por/na corporação. Na pesquisa de doutorado que dela se seguiu, eu intentava compreender como os laudos de corpo de delito eram forjados, como se inseriam no processo criminal subsequente e quais eram seus impactos na condenação ou na absolvição de um réu acusado de estupro. Como jamais adentrei ao espaço institucional do Instituto Médico Legal (IML) de Campinas, em função de minha solicitação de pesquisa ter sido indeferida pela Comissão Científica do IML, orientei meus interesses àqueles mesmos laudos que eu já havia recolhido entre 2009 e 2011 na DDM. Assim, voltei meu olhar a tais documentos a fim de repensá-los, agora, como repositórios enraizados não apenas na prática técnica cotidiana da corporação, mas, também, conectados e articulados a outras modalidades de conhecimento e escrutínio: manuais, textos acadêmicos, aulas de medicina legal, entrevistas com legistas aposentados e ainda em atuação no IML etc. Ambas as pesquisas mencionadas foram financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP). Ademais, é preciso salientar que, até 2009, ainda estava em vigor na lei uma distinção entre estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214), tal qual denominada pelo Código Penal de 1940 [1998]. Para uma análise da legislação destinada à tipificação de crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ver: Rolim (2007)ROLIM, Rivail Carvalho. Justiça criminal e condição feminina na capital da República em meados do século XX. Sociedade e Estado 22 (1), Brasília, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), 2007, pp.97-133., Vieira (2007) e Nadai (2012NADAI, Larissa. Descrever crimes, Decifrar convenções narrativas: uma etnografia entre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e atentado violento ao pudor. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2012. ; 2017).
  • 3
    Neste artigo tomo o laudo como um produto textual finalizado, mas resultante de uma relação face a face que posso apenas confabular, visto que não realizei uma pesquisa junto ao cotidiano de trabalho desta instituição. Minha escolha por construir a figura do legista como um sujeito despersonalizado e cujas trajetórias estão aquém desta pesquisa responde ao próprio efeito de articulação que o artigo busca desvelar: o laudo como uma forma pré-estabelecida e seu preenchimento atinado a dizeres e soluções narrativas que reiteram o protocolo, mais do que o tensionam ou o colocam em risco através de nuances pessoais de escrita/atendimento.
  • 4
    Para uma genealogia sobre as conexões entre saberes jurídicos e saberes médicos para os casos de crime sexual, ver Antunes (1995)ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Crime, sexo e morte: avatares da Medicina no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1995. . Para conhecer mais sobre as relações entre direito e medicina e sobre a constituição da medicina legal, ver Carrara (1998)CARRARA, Sérgio. Crime e Loucura: o aparecimento do Manicômio Judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro, EdUERJ; São Paulo, EdUSP, 1998., Corrêa (1998)CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 1998. e Schwarcz (1993)SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo, Companhia das Letras, 1993. .
  • 5
    Tais técnicas mostram de modo fático os muitos e diferentes entrelaçamentos entre sexologia forense e ginecologia/obstetrícia no Brasil. Para uma análise do surgimento da ginecologia como uma especialidade médica, ver Rohden (2001)ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ, 2001. .
  • 6
    No que interessa a essa argumentação, ao dizer que os laudos por mim analisados neste artigo entrelaçam defloramento e estupro, busco enfatizar como a data da primeira relação sexual ganha centralidade nestes artefatos documentais, vide o lugar ocupado pela membrana himenal, em detrimento daquilo que na tipificação penal para estupro figura como central à sua conformação jurídica. A saber, a imprescindibilidade do uso de violência ou grave ameaça e noção de conjunção carnal (independentemente de ser essa relação sexual o primeiro intercurso estabelecido pela vítima). Para uma análise das justaposições entre honra, resistência e estupro, ver Nadai (2017NADAI, Larissa. Entre histórias e “históricos”: o boletim de ocorrência como técnica de enquadramento de crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Insurgência: Revista de Direitos e Movimentos Sociais (3), Brasília, Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, 2017, pp.343-381. ; 2012).
  • 7
    Ambos os legistas concluíram em laudo: “Do observado exposto concluímos que fora a vítima de sucção oral” .
  • 8
    Para o autor, tais lesões são constatadas mediante eczemas nas margens do ânus e se configuram como saliências, inflamações, dobras epidérmicas perineais e anais (Peixoto, 1934b).
  • 9
    Para uma análise sobre as estreitas relações entre esse orifício e sua sexualização/violação e brutalização dos corpos, ver Efrem Filho (2017). Já para análise de como a vítima de violência sexual é presumida e marcada por gênero, inviabilizando assim a possibilidade de pensar o corpo de um homem heterossexual como penetrável, ver Sarti (2009)SARTI, Cyntia A. Corpo, violência e saúde: a produção da vítima. Sexualidad, Salud y Sociedade: Revista Latinoamericana (1), Centro Latinoamericano de Sexualidad y Derechos Humanos (CLAM), Rio de Janeiro, 2009, pp.89-103. .
  • 10
    Por laudo indireto, os médicos legistas fazem menção a um tipo característico de exame de corpo de delito que tem por parâmetro um prontuário clínico, e não a observação direta do corpo da vítima nas dependências do IML.
  • 11
    O documento revela, sem dúvida, uma tensão entre a função de legista oficial e as práticas médicas realizadas por outras instituições, também médicas, como hospitais que atendem à vítima momentos depois do estupro ter ocorrido. Para uma análise acurada sobre isso, ver Nadai (2018)NADAI, Larissa. Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2018. .
  • 12
    Faço alusão aqui ao caso envolvendo um imigrante chinês exposto a serviços análogos à escravidão numa pastelaria do Rio de Janeiro, tal qual analisado por Lowenkron (2015b). Para outras miradas sobre materialidade do corpo e materialidade do crime, ver Lowenkron (2013LOWENKRON, Laura. Da materialidade dos corpos à materialidade do crime: a materialização da pornografia infantil em investigações policiais. Mana 19 (3), Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, 2013, pp.505-528. ; 2015a).
  • 13
    A carne, vista no caso de Gregori (2016)GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. por intermédio das práticas sadomasoquistas, não estava ali à espera do chicotear; antes foi forjada na triangulação pele, chicote e flagelo como um objeto a ser encenado e visto.
  • ** Pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2018/26728-4. lari.antropologias@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2020
  • Aceito
    03 Mar 2021
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