Acessibilidade / Reportar erro

Antropologia da dominação, lesbianidade feminista decolonial e a re-direitização da sociedade: uma entrevista com Ochy Curiel* * Tradução de entrevista realizada com Ochy Curiel em 20 de junho de 2017.

Apresentação

No livro La Nación Heterosexual, a afro-dominicana Ochy Curiel (2013)CURIEL, Ochy. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá, Brecha Lésbica y en la frontera, 2013. assume a lesbianidade feminista decolonial como posicionamento político e epistemológico. Analisando o percurso histórico e o processo de negociação política por meio do qual foi gestada a Constituição colombiana, o livro evidencia como o regime heterossexual faz parte da norma essencial dessa nação. Curiel tenta superar o frequente olhar sobre “esses outros da colonialidade” para, por meio da antropologia da dominação, oferecer compreensões de como se produzem sujeitos e grupos sociais excluídos, mas fundamentalmente como grupos dominantes conseguem garantir a existência de ordens hierárquicas.

A entrevista foi feita por Skype entre Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil) e Bogotá (Colômbia) no dia 20 de junho de 2017, gravada em voz e vídeo e posteriormente transcrita para sua tradução. A conversa fez parte da preparação de um seminário apresentado pelas entrevistadoras então discentes na disciplina “Psicologia, Política e Feminismo”, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ministrada pela professora doutora Cláudia Mayorga, no primeiro semestre letivo de 2017.

Mestra e doutora em Antropologia Social pela Universidad Nacional de Colombia – UNAL, Ochy é professora dessa instituição e da Universidad Javeriana, duas importantes instituições colombianas, e se destaca como uma das teóricas feministas e ativistas lésbicas mais relevantes na América Latina e Caribe, sendo conhecida por ajudar a estabelecer o movimento de mulheres afro-caribenhas. Visitas de Ochy Curiel à UFMG, especificamente sua participação em dois eventos acadêmicos entre 2016 e 2017, propiciaram esta conversa. A afabilidade e simplicidade dessa professora e pesquisadora latino-americana tornaram possível este diálogo. Sua fala é carregada de críticas profundas e desafiadoras às instituições, da ciência e dos(as) sujeitos(as) do conhecimento. Ela refresca um contexto acadêmico ainda incapaz de ser pensado fora de uma perspectiva ocidental, capitalista e primeiro-mundista que domina, inferioriza e invisibiliza as periferias do mundo. Sua proposta tenta ser uma alternativa que procura a recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais, transformados em objeto ou matéria prima dos saberes dominantes.

Por fim, buscar traduções fiéis e apropriadas para as palavras da Ochy Curiel foi um trabalho complexo. A entrevista ocorreu em espanhol e entendemos a importância de sua tradução para o português no contexto da circulação do conhecimento nessa língua. Contudo, mais que traduções literais, pensamos que a grande contribuição da entrevista pode ser trazer as problematizações e provocações que a caracterizam, postulando sua insubordinação a nomes e a posições teóricas tidas hoje como sacras e irrefutáveis.

***

Entrevistadoras (E): Ochy, a ideia da entrevista é conhecer o seu ponto de vista sobre alguns elementos discutidos em seu livro La Nación Heterosexual. Reunimos esses pontos em três tópicos gerais e queríamos partir dessas pautas, sem manter um roteiro inflexível.

Ochy Curiel (OC): Poderiam me dizer quais são os três tópicos para eu ir pensando sobre eles?

E: Sim, claro! O primeiro ponto se refere a questões epistemológicas e teóricas que são amplas em seu livro. Queremos sintetizá-las e integrá-las um pouco mais e conhecer quais são as referências utilizadas, os elementos teóricos novos que o livro levanta e a proposta feminista que você defende. A segunda pergunta é sobre a obra de Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, A. Colonidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2014. e o debate acerca da ausência de um componente de gênero na análise sobre colonialidade que ele faz – e algumas discussões que essa ausência suscita. Queremos conhecer sua posição sobre isso. E o último ponto: discutir sobre as famílias homoparentais ocorrentes em países como Colômbia e Brasil que, a partir das reformas recentes, têm aparecido e cobrado legitimidade, sem nos esquecer da existência de grandes críticas em torno delas. Uma dessas críticas tem a ver com a heteronormatividade e o problema da universalidade de direitos, que na verdade não são tão universais… De fato existem outras pautas, digamos, mais prioritárias à comunidade LGBTQIA+ em geral do que o acesso a instituições como o casamento ou a adoção. No entanto, a discussão que queremos propor é em relação ao que está acontecendo na Colômbia atualmente, onde temos visto que, assim como no Brasil e em outros países, os movimentos anti-LGBT estão se exacerbando e se preocupando especialmente com as famílias homoparentais. A pergunta seria: essas famílias estariam sendo assediadas? Essas novas famílias encontram dificuldades atualmente para se desenvolverem? Além da crítica pela heteronormatividade, pensamos que talvez essas famílias homoparentais também propõem aspectos novos e positivos que vão reconfigurar o panorama das famílias, pois não são famílias tradicionais. Esses seriam os três aspectos de maneira geral.

Começando, Ochy, pela introdução de seu livro. Você faz uma exposição bem ampla sobre vários elementos teóricos que você leva em consideração, discussões, debates que ocorreram para que esse livro pudesse aparecer. Nós organizamos essas referências a partir de três blocos principais, e queremos saber se você está de acordo com esta síntese que fizemos: pensamos que suas referências, influências teóricas, poderiam ser o pós-estruturalismo, o pensamento decolonial e a terceira onda do feminismo. Você concorda com essa síntese que fizemos?

OC: Primeiro, quero explicar por que nasceu o livro. Ele é parte da minha dissertação de mestrado em Antropologia Social e, como sabemos, a Antropologia é uma das disciplinas mais coloniais que já existiu, porque sempre se estuda o outro, e esse outro é a diferença colonial. Ou seja, o outro é quem está sendo definido a partir da lógica do poder e da hierarquização em contextos coloniais – são os indígenas, os negros, as mulheres, as pessoas pobres. Esses sujeitos têm sido os objetos de estudo da Antropologia. Além disso, vê-se o antropólogo ou a antropóloga como aquele que tem a capacidade de estudar e ir até algum lugar para estudar aquela matéria prima, para construir créditos acadêmicos.

Quando eu cheguei na Antropologia, como ativista antirracista e feminista decolonial, me neguei a estudar esses outros e me utilizei dos mesmos métodos da Antropologia, como a etnografia, para estudar a dominação. Aqui, fui inspirada pela proposta de Arturo Escobar, que diz que temos de fazer antropologia da modernidade, ou seja, etnografia do poder. A maioria das pessoas que estão na academia e querem estudar o racismo ou o sexismo sempre buscam as vítimas desses sistemas de opressão, mas muito dificilmente se estuda o que ou quem produz as opressões. Foi por isso que me dediquei a estudar, no caso da Colômbia, a Constituição de 1991 e o processo da sua construção, entendendo o contexto em que ela ocorria: os anos 1990. Nessa década, tem-se, por um lado, a ascensão do neoliberalismo, e, por outro, vê-se um ressurgimento de grupos que reivindicavam o reconhecimento cultural. Foi uma década de contradições na América Latina não somente em relação ao poder, mas também em relação às lutas que houve por parte de movimentos indígenas, negros etc., que fazem com que a maioria das nações latino-americanas e caribenhas se definisse como nações e Estados pluriculturais e plurinacionais. Então, nesse paradoxo, me interessava estudar o que aconteceu na Constituição de 1991: quem a impulsionou, em que contexto, para não dizer apenas que foi uma demanda dos grupos indígenas e negros, mas também que ao neoliberalismo era interessante uma estabilidade política.

Em termos de participação, nossos novos setores sociais não são novos; porém, dentro da lógica das Ciências Sociais, foi dado o nome de “novos movimentos sociais”, ainda que a luta acontecesse desde a época colonial. Por isso, chamo a minha proposta de antropologia da dominação: estou estudando os setores que impulsionaram, aqui na Colômbia, a Constituição de 1991. Além disso, particularmente na Colômbia, havia muita gente que estava interessada em uma modificação na Constituição, sobretudo gente ligada a setores do narcotráfico por medo da extradição para os Estados Unidos. Há muitos elementos que devem ser entendidos para saber por que ocorreram tantas modificações na Constituição, e isso foi no que foquei. Essa é uma das propostas em que estou trabalhando muito, uma antropologia da hegemonia e da dominação: verificar como funciona a hegemonia, como funciona a dominação, para entender, primeiro, a responsabilidade de certos setores sociais, de privilégios, de raça, de classe, de sexo etc., em construir essa dominação.

Dessa forma, acredito que a proposta segue uma ideia, que a Antropologia sempre teve, de que é necessário transformar essa relação sujeito-objeto. Eu creio que em uma posição decolonial devemos transformar essa relação e, além disso, refletir em quais marcos institucionais ela se dá. Uma coisa é estudar na academia e outra coisa é o que nós, como feministas decoloniais, estamos propondo – e é o que nós temos de fazer como ativistas decoloniais, antirracistas, antissexistas etc. Temos de fazer nossas próprias pesquisas porque, por mais alternativos que sejamos na academia, ela tem uma série de estruturas e uma colonialidade do saber instalada que permite o pensamento crítico, mas que, ao final, faz com que nós pesquisadores levemos os créditos; ou seja, não são os coletivos, os movimentos que levam os créditos. Esse é o contexto do livro, por um lado.

Por outro lado, pelo menos aqui na Colômbia, muito pouco se conhecia sobre a proposta lésbico-feminista de entender a heterossexualidade como um regime político. O máximo a que se chegou foi a estudar a sexualidade como uma prática cultural e as contribuições que o movimento LGBTQIA+ tem feito em termos de respeito aos direitos da diversidade sexual. No entanto, um elemento claro que contribui para o livro e para a pesquisa é entender e tornar prática a proposta da lesbianidade feminista – a partir de Monique Wittig (2006)WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Editorial EGALES, S.L., Barcelona, 2006. e de Adrienne Rich (1996)RICH, Adrienne. Heterosexualidad obligatoria y existencia lesbiana. Duoda: Revista d'estudis feministes, New York; Londres, 1996. Traducción de María-Milagros Rivera Garretas., entender a heterossexualidade como regime político. Isto significa que, ainda que a sexualidade seja politizada (a sexualidade em termos do desejo de com quem vou pra cama, se me torno um casal ou não), é necessário levar essa heterossexualidade a um plano de outro tipo de relação social, incluindo a construção da Nação. Esse era meu eixo fundamental, e me interessava falar a partir disso sobre a Constituição colombiana de 1991 (poderia ser em qualquer outra Constituição). Há uma visão das relações sociais entre a mulher, o homem, a família, os parentes, como totalmente heterossexuais, e essa concepção está impregnada em uma lei magna. Isso reflete também em como a sociedade vive, em como os setores sociais concebem esse assunto.

Interessava-me muito colocar a proposta do liberalismo feminista como uma teoria, uma teorização, um pensamento muito importante na Antropologia, para poder entender como é que essa heterossexualidade funciona em termos das relações sociais em nível geral. Eu utilizei a Constituição, mas o que me interessava entender era a própria Nação, a construção do Estado Nacional a partir da heterossexualidade – assim como podemos dizer do racismo ou do sexismo. A heterossexualidade, sendo tomada como um dever político, era muito pouco estudada na Antropologia, daí levo essa proposta para entender a lógica da Nação, ou melhor, da relação entre Estado Nacional e heterossexualidade.

Outro ponto, é que me interessava muito não somente fazer uma pesquisa para a academia, um mestrado em Antropologia Social, mas também para o mesmo movimento social do qual venho. Queria contribuir para a lesbianidade feminista a partir de uma perspectiva muito mais macroestrutural, não pensando somente a lesbianidade como a liberdade do desejo, como a possibilidade de uma sexualidade mais livre fora das lógicas heterossexuais como práticas sexuais, mas também contribuir para pensar como esse regime político estava ligado a uma macroestrutura, que é econômica e tem a ver com as questões raciais, sexuais. Esses eram os objetivos desse livro, fundamentalmente. Em termos de teorias, como vocês leram, há várias questões. Eu creio que minha proposta fundamental é a de uma teoria feminista crítica que parte do lesbianismo feminista, mas que retoma outros aportes do feminismo crítico, como o feminismo negro, o feminismo chicano, boa parte das abordagens pós-coloniais – e, logo, decoloniais.

Há algo de pós-estruturalista, sobretudo em questionar como vão se construindo as identidades, em questionar essas identidades essenciais que vão se construindo nessas relações. Foquei também no tema do discurso, na análise do discurso – não tanto na abordagem de Foucault (1999)FOUCAULT, M. Estrategias de poder. Obras esenciales volumen II. Barcelona, Paidós Básica, 1999. que a entende como prática social, mas me interessou muito a proposta metodológica de [Teun] van Dijk (2013)VAN DIJK, T. Discurso y contexto: um enfoque sociocognitivo. Barcelona, Editorial Gedisa, 2013., que oferece métodos para fazer não somente uma análise epistemológica do discurso, mas também para fazer o [próprio] discurso. A partir de van Dijk, utilizei a proposta de Giménez (1989)GIMÉNEZ, G. Poder, estado y discurso. Perspectivas sociológicas y semiológicas del discurso político-jurídico. México, UNAM, 1989., um sociólogo mexicano que aborda, fundamentalmente, como em textos jurídicos é muito mais importante a argumentação que os outros elementos semióticos do discurso. Interessava-me muito o que a maioria dos constitucionalistas dizia a respeito de temas como família, casal etc., porque eles apontam que de alguma maneira a ideologia toma forma por meio dos argumentos. Obviamente, minha proposta teórica é e sempre vai ser transdisciplinar; na verdade, assumo questões da antropologia política também, algumas questões sociológicas, mas minha base fundamental é a teoria mais crítica do feminismo, que vai desde o feminismo negro até o feminismo chicano, o feminismo pós-colonial e decolonial.

E: Sobre isso, Ochy, você tem algum diálogo com a obra de Judith Butler? Acreditamos que você, como ela, radicaliza o socioconstrucionismo, levantando que sexo é uma construção, pois não haveria nunca a possibilidade de se ter acesso ao sexo “naturalmente” – pelo contrário, isso se passa primeiro por meio de experiências sociais e culturais que temos sobre os sexos. Nesse aspecto, você considera que também está recorrendo ao socioconstrucionismo para defender que existem denominações que criamos por consensos, ou que se tem fixado imaginários sociais que se mantêm ao longo do tempo, e a proposta seria romper com essas formas também de chamar as coisas, mudar o modo pelo qual nos referimos a elas? Seria o caso, por exemplo, quando você utiliza o termo “Abya Yala”, resgatando o nome original do território América Latina?

OC: Eu creio que quase tudo é socioconstrucionismo, que não há nada fora da linguagem e a linguagem não está dada fora das construções políticas e sociais que temos, das histórias situadas. Nisso estou para além de Butler. Fazendo uma análise muito mais precisa, o resgate do conceito de Abya Yala é um pensamento e uma posição decoloniais, e o decolonial supõe várias coisas em termos epistemológicos; são muitas coisas, mas vou colocar algumas. Uma das coisas que o colonialismo fez foi apagar: apagar história, apagar epistemes, apagar saberes, apagar pensamentos, práticas. Uma das coisas que temos feito historicamente como grupos negros, indígenas etc. é a recuperação das nossas histórias, de nossas representações, de nossos saberes e de nossas nomeações. Abya Yala é uma nomeação que é tão importante hoje numa proposta decolonial porque assim lhe chamaram os indígenas cuna, que são precisamente os que estão na atual fronteira Colômbia, Panamá.

Se, por um lado, uma das coisas que o decolonial traz é a recuperação, por outro, temos um desafio muito grande – o que Stuart Hall (2010)HALL, S. La cuestión multicultural en Stuart Hall. Sin garantías. Trayectorias y problemáticas en estudios culturales. Popayán; Lima; Quito, Envión Editores; IEP; Instituto Pensar; Universidad Andina Simón Bolívar, 2010. chama de “desengajamento epistemológico”. Nós temos que nos desengajar de categorias, conceitos, teorias que têm sido eurocêntricas, ocidentais, brancas etc., para criar e ao mesmo tempo recuperar uma série de conceitos e categorias que estão nos nossos povos, nos nossos bairros, na gente, nas comunidades. Conceitos nunca considerados parte das epistemes como parte da teoria, como parte da referência que temos, que a academia nunca valida. É um exercício que implica, por um lado, a recuperação e, por outro, um reconhecimento no sentido de localizar categorias, epistemes que a fazemos todos os dias e que formam parte da teorização que realizamos em termos de interpretação da realidade que temos. Mas nós, que estamos ligadas à academia, preferimos localizar a categoria de Foucault, de Habermas, de Butler, porque é o que dá certo prestígio e legitimidade acadêmica; por isso é importante Abya Yala como uma recuperação histórica.

Por outro lado, creio que a análise que Judith Butler (2006)BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006. (referenciar) faz de sexo e gênero não é nova. Essa autora conseguiu a fama que ela tem por causa do seu lugar de enunciação – uma mulher branca nos Estados Unidos. Por exemplo, eu estudo muito as feministas materialistas francesas, que, ainda que sejam brancas, têm sido mais radicais e não são tão reconhecidas, como Monique Wittig. E dentre as feministas materialistas, há muito tempo que Christine Delphy (1985)DELPHY, Christine. Por un feminismo materialista: el enemigo principal y otros textos. Barcelona, LaSal Ed., 1985. disse que o gênero precedia o sexo e que sexo e gênero são a mesma coisa. Não é que eu descarte Butler, eu a uso porque me interessa muito – no livro [La Nación Heterosexual], eu a utilizo muito com as suas análises sobre tudo o que são as relações de parentesco articuladas com lógicas heterossexuais, mas também nessas lógicas que levam muitos movimentos LGBTQIA+ a reivindicarem o matrimônio, enquanto muitas feministas radicais dizem que historicamente o matrimônio é uma instituição patriarcal, racista, classista. Para além disso, significa fundamentalmente uma questão de herança – não daqueles que se casam nem daqueles que querem se casar; para além da legitimidade social, isso denota uma materialidade, é passar propriedades por meio de sobrenomes, etc. E vocês veem que aparece ao final [do livro] um epílogo que já saía um pouco do tempo, mas no momento em que estava escrevendo, precisamente se dá aqui na Colômbia e em muitos lugares todo o debate sobre o matrimônio igualitário. Como lésbica feminista, sou das que dizem que o matrimônio, a adoção, essas formas da heterossexualidade se assentam em termos institucionais, reproduzem o modelo heterossexual. É o questionamento que lhe estamos fazendo há muitos anos para esse movimento LGBTQIA+ que quer se legitimar exatamente no modelo da heterossexualidade.

E: Ochy, antes de sair dos aspectos teóricos que sustentam sua proposta de lesbianidade feminista, gostaríamos de saber se você adere à terceira onda do feminismo ou se localiza aí algumas fronteiras teóricas.

OC: Não, eu não gosto das ondas do feminismo, porque há nisso um problema político: ver o feminismo como conceito, digamos, moderno e europeu. Agora, a partir do ponto de vista de uma oposição decolonial, temos que reconhecer que, antes de chegar o feminismo à América Latina (ou à Abya Yala), já havia lutas de seres sexuados contra o poder, contra o patriarcado, antes de conhecer o feminismo; então, quando estamos dizendo “a primeira onda”, estamos situando o surgimento de lutas contra questões de patriarcado em um lugar específico – neste caso, na Europa, e isso é um problema. Assumir as ondas do feminismo significa assumir uma história linear das lutas contra o patriarcado e contra todas as opressões que têm afetado não somente as mulheres, mas também outros grupos sociais. Essa coisa de primeira onda, segunda onda, terceira onda, de alguma maneira reproduz o efeito linear eurocêntrico; então, prefiro não me localizar aí. Além disso, há problemas temporais: no momento em que nasce o feminismo negro, que é o que se chama supostamente de terceira onda, também é o momento em que nasce a segunda onda (risos), quando muitas estadunidenses se localizam no movimento pela liberação das mulheres, que se desenvolve fundamentalmente nos Estados Unidos. E é nesse momento, quando se colocam outros movimentos dentro do feminismo, que se põe o tema da violência como um centro importante e o tema da sexualidade começa a ser valorizado; ao mesmo tempo, está surgindo também o feminismo negro, questionando essa visão branca do que seria a opressão das mulheres.

Nessa coisa de primeira, segunda, terceira onda tem um problema temporal e tem um problema político. Não me situo aí, me situo melhor nas propostas críticas feministas que têm feito as feministas negras, as companheiras indígenas, as lésbicas feministas, as feministas autônomas, cujo questionamento incide tanto nas teorias quanto nas práticas políticas feministas há muito tempo, e não apenas na última etapa do feminismo, como as ondas do feminismo querem assinalar.

E: A propósito da teoria da colonialidade do saber, que você enuncia como uma das referências de La Nación Heterosexual, é colocado que Aníbal Quijano não entra em um debate de gênero, que há uma ausência da questão na teoria por ele formulada. Nós entendemos que essa ausência tem a ver com os eixos que Quijano utiliza para entender o problema histórico por meio do qual a América se converteu em periferia e a Europa, em centro do mundo. Quando Quijano estuda o tema, ele entende que a lógica que prevaleceu ali foi a da questão racial e a de se pensar que existiam os brancos europeus e as outras raças; essa diferença racial dava superioridade aos brancos e isso explicaria as desigualdades e a ausência de um conflito de poder entre si. Eles se posicionaram criando a falácia de que as raças não brancas eram inferiores à raça branca. O outro eixo que ele propõe é o capitalismo, que em algum sentido é uma “exploração bem democrática”, porque explora todo mundo (risos), ainda que de maneiras diferentes – temos que reconhecer que as mulheres são especialmente oprimidas no capitalismo, vejamos a dupla ou terceira jornada que elas têm de cumprir. Recapitulando: Quijano não tomou a perspectiva de gênero, ele não aborda essa questão na sua teoria; María Lugones faz uma crítica a isso e coloca que existe uma cegueira epistemológica na perspectiva de Quijano. Outras autoras, como a feminista Donna Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995., quando falam de saberes localizados, abordam o problema da autoridade epistêmica e como talvez aquilo surja das experiências de opressão e de sensibilidades necessárias para dar conta do que acontece ali.

Qual é sua posição sobre essa ausência de um componente de gênero na teoria de Quijano? Cabe lhe fazer uma crítica? Cabe dizer que ele foi machista ou que teve um viés machista por não falar desse tema?

OC: Pois sim, é obvio! (Risos) Olha, eu creio que o problema de Quijano (2014)QUIJANO, A. Colonidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2014. é que ele toma como determinantes a raça e a classe, obviamente pelo o que acabo de dizer. O capitalismo é sua base fundamental de análise do que ele chama de colonialidade do poder, e aí então coloca a raça como determinante. Estou de acordo com a crítica que María Lugones (2008)LUGONES, M. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n. 9, Bogotá, Colombia, julio-diciembre 2008, pp.73-101. faz de que não é somente a raça determinante; o gênero também o é, a sexualidade, a geopolítica. Acredito que ele observa a geopolítica, por exemplo, quando ele começa a dizer como a colonialidade do poder conforma geopolíticas, identidades geopolíticas dentro da análise global. Estou de acordo com María Lugones quando ela diz que quando ele [Quijano] toca no tema das mulheres ou no tema do sexo, o que ele faz é hiperbiologização: ele parte do pressuposto de que o sexo é uma questão biológica e que o gênero é uma construção cultural. Não o diz, mas podemos apreender da definição que assume que: primeiro, o sexo é um dado preexistente, e não que o gênero e o sexo são uma mesma coisa; e segundo, que a colonialidade também construiu o gênero, que é a teoria que desenvolve muito bem María Lugones. Por exemplo, quando María Lugones analisa se as escravizadas eram mulheres, sua resposta vai ser: não eram mulheres, porque eram seres que significavam mercadoria, não havia divisão do trabalho por sexo. Angela Davis (2016)DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, BOITEMPO, 2016. também desenvolve isso em “Mulheres, Raça e Classe”: essas fêmeas escravizadas também faziam trabalho nas plantações, igual aos homens; portanto, uma das questões centrais do feminismo decolonial é pensar sobre quando se começa a construir o tema de gênero.

Sobre isso, há muito debate. Por exemplo, no conceito de patriarcado, Rita Segato (2015)SEGATO, Rita. Género y Colonialidad. In: SEGATO, Rita. La Crítica de la Colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires, Prometeo, 2015. diz que antes da instrução colonial, antes da colonização, havia relações patriarcais em comunidades e povos indígenas antes da chegada dos espanhóis. O feminismo comunitário também vai sustentar isso, de que os incas, antes da chegada dos colonizadores, também sustentavam relações patriarcais e que, inclusive, chamam mulheres e homens. Lugones (2008)LUGONES, M. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n. 9, Bogotá, Colombia, julio-diciembre 2008, pp.73-101. vai dizer que isso não é certo, porque a concepção de mulher estava ligada fundamentalmente às mulheres brancas europeias que podiam se assemelhar a essa coisa que o feminismo logo desenvolve, de que as mulheres são catalogadas como sexo débil, o assunto da feminidade etc. O que Lugones vem dizer, o que Davis também diz é que, ainda que o senhor branco utilize os corpos das escravizadas e as viole como fêmeas, é mais ou menos como faziam com um animal. Lembre-se de que um elemento central nessa lógica da animalidade atribuída a esses seres em escravidão é que eles não eram considerados suficientemente humanos. Então, creio que o que Quijano traz quando toca no tema do sexo, inclusive abordando de alguma forma o tema dos casais, é abordar também o tema da família, como isso vai se construindo dentro da questão da colonialidade. A crítica que se tem a Quijano é que sua visão sobre o sexo é hiperbiologizado e, por conseguinte, heterossexualizado. Nesse sentido, esses são elementos machistas, mas o machismo é uma coisa muito mais interpessoal. Eu creio que o problema na teoria de Quijano é que a sua visão é heterossexualizada: quando digo isso, [entendo que] ele assume que o sexo é um dado preexistente, mas sabemos que se constrói socialmente.

A outra crítica é que ele assume que o único determinante fundamental é a raça e, de alguma maneira, a classe; mas não são possíveis aí outras opressões, como mostra o feminismo negro quando pensa a explicação dos sistemas de opressões, de sexo, de raça, de classe, de sexualidade, de política. A partir das contribuições dos muitos feminismos decoloniais, também podemos falar da religião, podemos falar de todo tipo de relação social, como também tem sido fundamental para entender a colonialidade de poder em nível geral.

E: Voltando-se para outra questão, gostaríamos de saber sua opinião sobre eventos que estão acontecendo na Colômbia, que se relacionam com outros países. Em 2016, a campanha contra o processo de paz – que o governo de Juan Manuel Santos estabeleceu com a guerrilha das FARC – colocou um elemento homofóbico como argumento central contra esses acordos. Grupos de ultradireita e cristãos se aliaram para combater a "ideologia do gênero", exacerbando a lgbtfobia. A Colômbia é um país claramente machista e patriarcal, com tradições profundamente arraigadas, mas nunca foi tão visível um movimento desse tipo: mobilizações muito extensas na rua, com um padrão claramente discriminatório. Foi o que vimos contra a Ministra da Educação Ginna Parody em 2016 e depois no processo de paz: é um movimento anti-LGBT. Como você analisa esse aspecto e o relaciona com outros dados, tais como alguns avanços legais que ocorreram na Colômbia? Por exemplo, atualmente, é legal o casamento entre casais do mesmo sexo. No entanto, no primeiro ano da reforma legal apenas 114 casais se casaram todo o país; são números realmente muito pouco significativos. Pensamos que talvez essas garantias tenham sido dadas, mas a comunidade LGBTQIA+ não está aderindo a essas possibilidades, talvez por desinteresse, mas também talvez por causa de uma homofobia que se manifesta de forma tão violenta.

OC.: Em geral, eu acho que a direita está ganhando força em todos os lados, não só na Colômbia, e as expressões são diversas. Veja a islamofobia na Europa, o racismo nos Estados Unidos e na América Latina... É só pensar nos assassinatos de líderes sociais que estão acontecendo no território1 1 Na Colômbia, soam os alarmes pela gravíssima situação de ameaça contra líderes sociais. Em 2017, foram assassinadas mais de 80 lideranças comunitárias de todo o país. Evidentemente, a hipótese principal é que são fatos criminais de ocorrência sistêmica, relacionados com duas situações: a presença dos paramilitares (que atuam em todo o território) e a ainda muito recente desmobilização da guerrilha das FARC que se deslocou de lugares vulneráveis que antes ocupava. . Acho que efetivamente a direita e a extrema direita estão ganhando muita força, e a pergunta seria: por que estão ganhando tanta força? É uma pergunta que temos de nos fazer, e as respostas são variadas. Historicamente, houve variações, estamos em um momento em que ser de direita ou de extrema direita já não é um segredo; antes, dizer-se conservador ou conservadora, de direita, era quase ofensivo; hoje, a gente está se reivindicando enquanto parte de uma identidade política a partir desse lugar, daí as coisas são muito mais abertas, a gente tem mais permissão para isso. A direita tem tido o controle dos meios de comunicação e nesse sentido a lógica de se manifestar amplamente, midiaticamente, é muito mais fácil.

Por outro lado, eu acho que devemos prestar atenção no crescimento das religiões, tenham elas ou não uma lógica extremista ou fundamentalista. No Brasil, temos um exemplo disso: é enorme a quantidade de igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais que se proliferam. No mundo e, particularmente, na América Latina, falamos de uma coisa impressionante. Isso não tem só a ver com a fé, mas também diz respeito a recursos econômicos; ou seja, as reclamações que foram feitas historicamente contra pastores sobre a gestão de dinheiro é uma coisa impressionante, em que temos que prestar atenção. Por outro lado, eu acho que não podemos perder de vista as crises econômicas na América Latina: nossos países cada vez mais estão em crises econômicas, em situação de flexibilidade laboral etc. Muitas pessoas, pela lógica individualista por meio da qual pensamos a vida, vão às igrejas como uma forma de procurar soluções para além do material; a partir do momento em que você não encontra soluções no material, vai procurá-las no terreno espiritual. Infelizmente, aquela espiritualidade que se procura é a espiritualidade hegemônica, neste caso, judaico-cristã. Então, acredito que há várias coisas que temos que analisar ao mesmo tempo.

Nesse sentido, eu acho que o que aconteceu aqui na Colômbia evidentemente foi uma aliança bastante estratégica por parte de setores da direita que não queriam o processo de paz, porque a paz implica várias coisas. Para além dos movimentos sociais desejarem uma paz estrutural, nós sabemos que, com esse processo, não vai se resolver o problema estrutural. Mas era mais um passo, um passo importante para que pelo menos se calassem os fuzis e se pudesse dar outro processo ao nível comunitário. Especialmente porque as pessoas que estavam morrendo pela guerra, que têm sido deslocadas pela guerra, são as pessoas que estão nas regiões do campo – geralmente camponeses, indígenas, afros e pessoas pobres em geral. Se você vê a quantidade de pessoas mortas pela guerra, que têm sido deslocadas pela guerra, o que significa esse acordo de paz para a direita? Significa, primeiro, que muitos deles, vinculados a grupos paramilitares, perderiam privilégios. Há muitos dirigentes políticos vinculados ao aparelho paramilitar em várias regiões, inclusive em Bogotá, e aquilo significava acabar com regalias que eles tinham em termos de controle do território, por exemplo. Adiciona-se a questão do narcotráfico, que também instiga um interesse econômico por uma parte. Por outro lado, sempre a direita e a extrema direita têm defendido aquela lógica de família nuclear judaico-cristã como o núcleo da sociedade. Pensar em homossexuais, lésbicas, mães solteiras, isso tudo não é só homofobia, mas também misoginia – por exemplo, temos a proposta da senadora Vivian Morales2 2 A senadora cristã Vivian Morales, filiada ao Partido Liberal, apresentou ao final do ano de 2016 uma proposta de referendo que visava, por meio de votação popular, a verificar se a população era contra ou a favor da possibilidade de adoção de crianças por parte de casais do mesmo sexo, homossexuais, pessoas solteiras e qualquer outra estrutura familiar diferente ao modelo de família nuclear, monogâmica e heterossexual, tido como “normal e natural”. Tal ação foi dirigida principalmente para tentar revogar os efeitos da sentença C-683 de 04 de novembro de 2015, pela qual a Corte Constitucional colombiana decidiu, a favor da Comunidade LGBTQIA+, a impugnação de inconstitucionalidade da adoção por casais do mesmo sexo. Antes da referida sentença, pessoas homossexuais solteiras podiam fazer solicitações para adotar crianças, mas existia a restrição explícita para casais homossexuais. Surpreendentemente, a iniciativa da senadora Morales foi derrotada no segundo debate. Na disputa no Legislativo, além da importante aliança com a Academia colombiana e com o alto governo, foi muito destacada a defesa feita pela também congressista Angélica Lozano, lésbica assumida eleita pelo Partido Verde. , apresentada como parte do recente plebiscito, de que a sociedade colombiana dissesse o que é uma família e o que não é.

E: Lembrando que foi um plebiscito que felizmente não passou [na legislatura do senado], porque estávamos esperando que passasse…

OC: Claro, mas o fundamento disso é a lógica de família nuclear. Sabemos que na Colômbia (e no mundo todo) as famílias são tão diversas, mesmo que sejam contempladas pela Constituição ou não – avós, tias, sobrinhos e netos conformam famílias estendidas. A realidade de nosso país é a de que existem muitas tipologias familiares, para além das que a lei contempla. O assunto começa com o suicídio do rapaz Sergio Urrego3 3 No dia 04 de agosto de 2014, o garoto Sergio Urrego, de 16 anos, se suicidou em Bogotá depois de sofrer um período de violentíssimo assédio homofóbico na escola particular onde ele estava matriculado. Sua instituição educativa o expulsou e obrigou os pais de seu namorado a apresentarem uma denúncia falsa contra ele. Foi um caso que impactou a realidade colombiana: as ações da família do jovem levantaram a solidariedade da sociedade do país em seu conjunto, do ativismo LGBTQIA+ e de setores da academia que levaram à visibilização da homofobia, persistente na escola, e aos impactos que essa opressão causa. Na resolução por discriminação por razões de orientação sexual contra o colégio, também se demandou ao Ministério de Educação da Colômbia que revisasse as legislações internas de todas as escolas (chamadas Manuais de Convivência), pois muitas legitimavam a homofobia e desprotegiam os alunos com orientações sexuais diversas. A psicóloga da instituição, acusada de discriminação e falsa denúncia, foi condenada a cumprir pena, assim como membros da direção do colégio. , que pulou de cima de um shopping, o que motivou uma cartilha do Ministério de Educação, projeto que foi rejeitado pelos partidos de direita e extrema direita nesse país: fundamentalmente o “Centro Democrático”, a representação da extrema direita na Colômbia. Eles começaram uma série de campanhas midiáticas homofóbicas, lesbofóbicas, misóginas e fora da realidade de outros parentescos. Acontece que, para além de eu concordar ou não com o casamento (de fato não estou interessada no casamento como opção pessoal), trata-se de um direito que politicamente temos de defender. Contudo, sempre digo que nossa política tem de ser intervir para que o casamento heterossexual desapareça, em vez de fazer que muita gente se junte sob o modelo da heterossexualidade. Obviamente, trata-se de uma questão política que por vezes envolve questões materiais, por exemplo. Eu, como cidadã estrangeira, para conseguir me manter no país, tive de fazer uns papéis não de casamento, mas de união estável4 4 Na Colômbia, a sentença SU-214 de 28 de abril de 2016 aprova o casamento entre casais do mesmo sexo. A Corte Constitucional resolveu em favor da comunidade LGBTQIA+ no que tange à celebração do casamento civil. Anteriormente, existia a possibilidade de se registrar as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, mas não se aceitava a possibilidade do casamento civil, sendo apenas um contrato que negava o reconhecimento legal às famílias homoparentais, somente protegendo bens comuns e assegurando acesso à previdência social compartilhada. com minha parceira de vida, para poder permanecer no país. Obviamente existem exigências materiais que devem ser cumpridas. Porém, à medida que reavaliamos o casamento heterossexual, acho que teremos mais chance de que seja reconhecido o parentesco, não só hétero ou homossexual, lésbico ou trans, ou qualquer um que seja, mas outro tipo de parentesco, uma avó morando com o neto dela por muitos anos, uma mãe que adota uma menina – como tantas às vezes vemos em nossos povos. Na medida em que questionamos o casamento heterossexual, vamos ter mais possibilidades para o reconhecimento dessas vidas coletivas que estamos levando de outra maneira.

Obviamente, para os homossexuais, as lésbicas que buscam se casar, hoje podem fazê-lo no cartório, mas existem ainda muitas limitações para além desse assunto. Recentemente, três rapazes se casaram em Medellín [Colômbia], e isso é o tipo de coisa que acho que provoca um choque (não necessariamente imediato): três pessoas saindo da lógica de casal monogâmico, “nós três moramos juntos”. Eu acho que nessa situação acontece algo muito mais revolucionário que essas coisas de casal [homoafetivo] monogâmico se casando...

E: Mas você acha que as famílias homoparentais, essas novas famílias, reforçam o regime heterossexual, ou talvez sejam alternativa, uma saída?

OC: Considero que, no fundo, reforçam o modelo heterossexual. São passos que devemos dar pela realidade da materialidade das coisas, mas também devemos questionar a lógica judaico-cristã da família nuclear composta por um homem e uma mulher. No fim das contas, nós replicamos esse modelo, inclusive por chamar essas relações de “família”, o que já é problemático... A concepção de que morar e fazer sexo com alguém implica ser uma família já é idêntica à lógica judaico-cristã , em especial no caso dos casais do mesmo sexo. E se você junta a isso a reprodução de papéis sexuais e sociais que são produzidos nos casais, estaremos falando quase da mesma coisa.

Concluindo, eu acho que a união homoparental, de alguma maneira, questiona o modelo, mas não limita o regime heterossexual. Temos que nos perguntar: bem, qual é a nossa proposta política? Seria nos inserir no modelo? Porque isso é uma simples lógica de imersão... Ou, talvez, o que precisamos é remover esse modelo para que possa acontecer outro tipo de reconhecimento de relações sociais? Particularmente, como lésbica feminista, acredito mais na segunda opção. Temos que acabar com todas as lógicas institucionais que definem o que teríamos que ser, se homens ou mulheres. E lógicas que dizem que nunca devemos desejar dentro do mesmo sexo, reproduzindo também a lógica da ideologia da diferença sexual. No fim das contas, a possibilidade da família homoparental questiona, em algum momento, mas não elimina a heterossexualidade – pelo contrário, a reproduz.

E: Já encerrando aqui, nos parece que o livro “La Nación Heterosexual” apresenta, observando a Constituição de 1991, uma abertura social na Colômbia para questões étnico-raciais sumamente importantes para o futuro da nação. Essa abertura não teria acontecido no que toca ao regime heterossexual, que permanece naturalizado, como algo que não temos nem que pensar sobre.

OC: A Constituição colombiana de 1991, como todas as mudanças constitucionais que passaram pela América Latina nos anos 1990, foi embasada em uma proposta liberal. Ou seja: como toda democracia liberal, se trata de uma proposta de um multiculturalismo liberal, no sentido em que se reconhecem as culturas e se reconhece que existem na nação diferentes grupos. Esse reconhecimento implicou mudanças nas condições materiais desses que foram incorporados à nação? Claro que não! Primeiro, o racismo não acabou, mas, ao contrário, reforçou-se; segundo, as condições materiais da população negra e da população indígena estão cada vez piores, ainda mais em um contexto de conflito armado como há na Colômbia ou com os grandes projetos multinacionais de extrativismo. Isso tem atingido os povos indígenas ao ponto de muitos deles poderem desaparecer. Por um lado, há quem diga que a Constituição da Colômbia foi a mais avançada nesse sentido, mas na verdade só foi, evidentemente, uma resposta às necessidades (neo)liberais do que se entende como “Estado-Nacional-Democrático-Republicano”, que é incorporar a diferença colonial como parte da nação. Mas só é parte até um ponto, dizendo “somos uma nação multicultural”. No turismo, então, você mostra os indígenas, mostra os negros, mas na materialidade tem-se reforçado os níveis de desigualdade social de tais grupos. Não sei se vocês acompanham as manifestações, a greve geral que acontece na cidade de Buenaventura, em Chocó, no pacífico colombiano, que foi incrível! As pessoas foram para as ruas por dias e dias, precisamente porque em Buenaventura, cidade do porto mais importante da Colômbia, que tanta riqueza movimenta, não tem água, não tem asfalto... As condições materiais desses povos são uma coisa inacreditável, situação que podemos estender a outras regiões da Colômbia5 5 Depois de 21 dias, por fim o governo colombiano reconheceu as demandas da população e encerrou uma longa e valente greve protagonizada pela população de Buenaventura, uma das regiões mais pobres da Colômbia e que tem altos índices de violência. Os líderes da ação popular denunciam que existe uma tática para degradar a região e sua estrutura para que as pessoas se movam e deixem o lugar; seria uma ação coordenada por parte de empresários e do governo para esvaziar de gente a região do porto, expulsar as famílias que ali vivem há anos, para dar lugar à expansão da zona portuária. Seria a Política a responsável pelo abandono e pela crise humanitária na cidade. . Seria aquilo que María Lugones (referenciar) chama de “multiculturalismo ornamental”. É como se você fosse elogiado e recebesse aquele “tapinha nas costas” camarada, mas que, no fundo, não passa de trairagem. As relações de poder históricas, em termos de raça, em termos de sexo, em termos de sexualidades, em termos de classe, foram mantidas, mas precisávamos fazer aquela nova Constituição de 1991. O que se conquistou com essa Constituição foram algumas coisas dentro da lógica liberal – por exemplo, a ação de tutela, pela qual as pessoas podem, no caso de uma instituição de saúde que não se importa em resolver seu problema, acioná-la juridicamente para resolver sua questão.

E: A garantia seria em nível individual, então.

OC: Exatamente, em um nível individual. O sistema de saúde, nesse exemplo, não melhorou, ficou ainda mais precário... Ainda que tenhamos algumas conquistas, é essa a realidade que vemos agora. Além disso, as pessoas falam muito sobre a Constituição e mais neste país em que [as pessoas] são muito “leguleyos”6 6 Expressão colombiana que sugere que as pessoas nesse país costumam ser muito normativas, conservadoras e precisam de regulamentos amplos e específicos, mas, no fim das contas, fazem de tudo para não os cumprir. Poderíamos “traduzir” a expressão para “caga-regras” em português bem brasileiro. (“caga-regras”). Contudo, as relações de poder são tão fortes que aqui está a oligarquia, branca, mestiça-branca, tão forte, que segue mantendo o poder. É o que vemos agora com a corrupção, o nível de corrupção que existe é uma coisa incrível, ligada à questão paramilitar. A Colômbia é um país de muitas normas, mas no qual, no fim das contas, todo mundo enfia as regras na bunda!7 7 No original: “En Colombia la gente tiene muchas normas pero todas se la mete por el culo!”. (risos).

Referências bibliográficas

  • BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.
  • CURIEL, Ochy. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá, Brecha Lésbica y en la frontera, 2013.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, BOITEMPO, 2016.
  • DELPHY, Christine. Por un feminismo materialista: el enemigo principal y otros textos. Barcelona, LaSal Ed., 1985.
  • FOUCAULT, M. Estrategias de poder. Obras esenciales volumen II. Barcelona, Paidós Básica, 1999.
  • GIMÉNEZ, G. Poder, estado y discurso. Perspectivas sociológicas y semiológicas del discurso político-jurídico. México, UNAM, 1989.
  • HALL, S. La cuestión multicultural en Stuart Hall. Sin garantías. Trayectorias y problemáticas en estudios culturales. Popayán; Lima; Quito, Envión Editores; IEP; Instituto Pensar; Universidad Andina Simón Bolívar, 2010.
  • HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995.
  • LUGONES, M. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n. 9, Bogotá, Colombia, julio-diciembre 2008, pp.73-101.
  • QUIJANO, A. Colonidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires, CLACSO, 2014.
  • RICH, Adrienne. Heterosexualidad obligatoria y existencia lesbiana. Duoda: Revista d'estudis feministes, New York; Londres, 1996. Traducción de María-Milagros Rivera Garretas.
  • SEGATO, Rita. Género y Colonialidad. In: SEGATO, Rita. La Crítica de la Colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires, Prometeo, 2015.
  • VAN DIJK, T. Discurso y contexto: um enfoque sociocognitivo. Barcelona, Editorial Gedisa, 2013.
  • WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Editorial EGALES, S.L., Barcelona, 2006.
  • *
    Tradução de entrevista realizada com Ochy Curiel em 20 de junho de 2017.
  • 1
    Na Colômbia, soam os alarmes pela gravíssima situação de ameaça contra líderes sociais. Em 2017, foram assassinadas mais de 80 lideranças comunitárias de todo o país. Evidentemente, a hipótese principal é que são fatos criminais de ocorrência sistêmica, relacionados com duas situações: a presença dos paramilitares (que atuam em todo o território) e a ainda muito recente desmobilização da guerrilha das FARC que se deslocou de lugares vulneráveis que antes ocupava.
  • 2
    A senadora cristã Vivian Morales, filiada ao Partido Liberal, apresentou ao final do ano de 2016 uma proposta de referendo que visava, por meio de votação popular, a verificar se a população era contra ou a favor da possibilidade de adoção de crianças por parte de casais do mesmo sexo, homossexuais, pessoas solteiras e qualquer outra estrutura familiar diferente ao modelo de família nuclear, monogâmica e heterossexual, tido como “normal e natural”. Tal ação foi dirigida principalmente para tentar revogar os efeitos da sentença C-683 de 04 de novembro de 2015, pela qual a Corte Constitucional colombiana decidiu, a favor da Comunidade LGBTQIA+, a impugnação de inconstitucionalidade da adoção por casais do mesmo sexo. Antes da referida sentença, pessoas homossexuais solteiras podiam fazer solicitações para adotar crianças, mas existia a restrição explícita para casais homossexuais. Surpreendentemente, a iniciativa da senadora Morales foi derrotada no segundo debate. Na disputa no Legislativo, além da importante aliança com a Academia colombiana e com o alto governo, foi muito destacada a defesa feita pela também congressista Angélica Lozano, lésbica assumida eleita pelo Partido Verde.
  • 3
    No dia 04 de agosto de 2014, o garoto Sergio Urrego, de 16 anos, se suicidou em Bogotá depois de sofrer um período de violentíssimo assédio homofóbico na escola particular onde ele estava matriculado. Sua instituição educativa o expulsou e obrigou os pais de seu namorado a apresentarem uma denúncia falsa contra ele. Foi um caso que impactou a realidade colombiana: as ações da família do jovem levantaram a solidariedade da sociedade do país em seu conjunto, do ativismo LGBTQIA+ e de setores da academia que levaram à visibilização da homofobia, persistente na escola, e aos impactos que essa opressão causa. Na resolução por discriminação por razões de orientação sexual contra o colégio, também se demandou ao Ministério de Educação da Colômbia que revisasse as legislações internas de todas as escolas (chamadas Manuais de Convivência), pois muitas legitimavam a homofobia e desprotegiam os alunos com orientações sexuais diversas. A psicóloga da instituição, acusada de discriminação e falsa denúncia, foi condenada a cumprir pena, assim como membros da direção do colégio.
  • 4
    Na Colômbia, a sentença SU-214 de 28 de abril de 2016 aprova o casamento entre casais do mesmo sexo. A Corte Constitucional resolveu em favor da comunidade LGBTQIA+ no que tange à celebração do casamento civil. Anteriormente, existia a possibilidade de se registrar as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, mas não se aceitava a possibilidade do casamento civil, sendo apenas um contrato que negava o reconhecimento legal às famílias homoparentais, somente protegendo bens comuns e assegurando acesso à previdência social compartilhada.
  • 5
    Depois de 21 dias, por fim o governo colombiano reconheceu as demandas da população e encerrou uma longa e valente greve protagonizada pela população de Buenaventura, uma das regiões mais pobres da Colômbia e que tem altos índices de violência. Os líderes da ação popular denunciam que existe uma tática para degradar a região e sua estrutura para que as pessoas se movam e deixem o lugar; seria uma ação coordenada por parte de empresários e do governo para esvaziar de gente a região do porto, expulsar as famílias que ali vivem há anos, para dar lugar à expansão da zona portuária. Seria a Política a responsável pelo abandono e pela crise humanitária na cidade.
  • 6
    Expressão colombiana que sugere que as pessoas nesse país costumam ser muito normativas, conservadoras e precisam de regulamentos amplos e específicos, mas, no fim das contas, fazem de tudo para não os cumprir. Poderíamos “traduzir” a expressão para “caga-regras” em português bem brasileiro.
  • 7
    No original: “En Colombia la gente tiene muchas normas pero todas se la mete por el culo!”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2018
  • Aceito
    30 Out 2020
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br