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A itinerância do desejo: modos de subjetivação e territorialidades em diálogo com Néstor Perlongher *

The Itinerancy of Desire: Modes of Subjectivation and Territorialities in Dialogue with Néstor Perlongher

Resumo

Este artigo pretende, em diálogo com Néstor Perlongher, analisar experiências de sujeitos em realidades urbanas que não se configuram como grandes cidades ou metrópoles do país. A partir de pesquisas realizadas em contextos marcados pelo deslocamento entre cidades de diferentes escalas, zonas fronteiriças e tensões entre distintos registros de moralidades, a obra de Perlongher nos possibilita subsidiar análises de espacialidades complexas no Brasil contemporâneo. A ênfase em narrativas pessoais, mobilidades e derivas, recurso utilizado por ele, ajuda-nos a perceber o alcance e a atualidade de sua obra.

Néstor Perlongher; Rural-urbano; Mobilidade; Subjetivação; Desejo

Abstract

This article analyzes experiences of individuals in urban realities that are not classified as big cities or metropolis of the country according to Néstor Perlongher. From the researches done in contexts of displacement between cities in different scales, border areas and tensions between different moralities, Perlongher’s work enables making analyzes of complex spatialities in contemporary Brazil. The emphasys in personal tellings, mobility and drift, subjects applied by him, help us to notice the range and the present of his work.

Néstor Perlongher; Rural-urban; Mobility; Subjectivation; Desire

Introdução

A produção de Néstor Perlongher se ambienta em um horizonte intelectual e político que apontava o deslocamento para grandes cidades como destino comum para a intensificação das vivências tomadas como ordinárias, inclusive aquelas relativas à sexualidade, bem como para o incremento da emergência da cidadania e de novos sujeitos políticos. Néstor mesmo era um sujeito em trânsito, desterritorializado, transnacional, que se deslocava na literatura, em sua antropologia do trottoir e na militância política.

Neste artigo, analisamos experiências de sujeitos em espacialidades complexas no Brasil contemporâneo, dialogando com a obra de Néstor Perlongher. Buscamos fazê-lo a partir de diferentes pesquisas etnográficas realizadas em contextos marcados pelo deslocamento entre cidades de escalas variadas, zonas fronteiriças e conflitos entre distintos registros de moralidades.

As personagens cujas trajetórias de vida alimentam este texto advieram de diferentes pesquisas etnográficas. A primeira dessas personagens é André 1 1 André tem atualmente 31 anos. Ele se identifica como “moreno escuro”, tem ensino superior completo, considera-se gay e com um corpo “magro/definido”. Diz-se pertencente às classes médias. , quem Guilherme Passamani conheceu há dez anos em Corumbá, durante pesquisa sobre envelhecimento de LGBT na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul (Passamani, 2018). Na ocasião, o rapaz cursava universidade e fazia programas com turistas que visitavam o Pantanal. Ainda hoje interlocutor de pesquisa de Guilherme, André reside em Lisboa, onde se apresenta como instrutor de capoeira e permanece exercendo trabalho sexual. A segunda trajetória a que recorremos é a de Antônia 2 2 Em novembro de 2013, quando concedeu a Roberto a entrevista que subsidia este artigo, Antônia somava 51 anos. Identificava-se como mulher trans e travesti. Era parda e trabalhava como técnica em enfermagem. Antônia faleceu em 2020 em razão de um câncer. . Paraibana, Antonia tornou-se liderança nacional do Movimento LGBTI+ e interlocutora relevante da pesquisa de Roberto (Efrem Filho, 2017) sobre narrativas de violência engendradas em meio a conflitos e relações de gênero, sexualidade, classe e territoriais. Antes disso, foi uma adolescente que se tornou travesti enquanto – ela diz, “sem saber” – prostituía-se nas ruas anoitecidas do centro de João Pessoa dos idos da década de 1970. Enfim, a terceira personagem visitada neste texto é Tereza 3 3 Tereza é uma mulher madura, com traços indígenas evidentes. Filha de família das camadas médias da cidade de Crato-CE, ressaltou em entrevista a falência de seu pai como empresário local. Em uma cidade onde o sobrenome serve como símbolo de distinção, passa a ocupar um lugar ambíguo: ao tempo em que compartilha bens educacionais, trânsitos e moralidades das famílias abastadas dali, tal acesso não condiz com sua situação econômica. , interlocutora de Roberto Marques. Cearense profundamente impactada pela chegada de hippies e pela efervescência cultural na cidade de Crato (CE) daquela mesma década de 1970, Tereza vivia intensas tensões familiares que, segundo conta, levar-lhe-iam a deixar a cidade em busca de novas possibilidades ( Santos, 2006SANTOS, Maria de Fátima dos. A percepção da memória em narrativas de vida. In: MARQUES, Roberto (org.). Os limites do gênero: estudos transdisciplinares. Fortaleza, Expressão Gráfica, 2006, pp.87-98. ; Marques, 2019MARQUES, Roberto. Caldeirão de Santa Cruz, Avalon, Craterdam: lugares cognitivos da contracultura no interior do Ceará. In: KAMINSKI, Leon (org.). Contracultura no Brasil, anos 70: circulação, espaços e sociabilidades. Curitiba, CRV, 2019, pp.171-194. ).

André, Antônia e Tereza aqui se encontram para significar a diversificação de experiências, agências, sujeitos e territorialidades. Importa notar, contudo, que os materiais de pesquisa que ensejam as narrativas sobre suas trajetórias de vida possuem naturezas distintas: enquanto Passamani tem acompanhado com relativa proximidade os últimos dez anos da vida de André , Efrem Filho e Marques acessam as memórias de Antônia e Tereza sobretudo através de entrevistas realizadas anos atrás, quando de suas pesquisas de doutorado e mestrado, respectivamente. Para lidar com essas diferenças de corpus, resolvemos narrar tais trajetórias em primeira pessoa. Assim, André, Antônia e Tereza emergem no texto contando suas histórias. Este recurso narrativo representa mais explicitamente um esforço de ficcionalização na medida em que, embora estejamos costurando textualmente memórias, eventos, sujeitos e relações que antes nos foram narrados, nós também estamos cosendo pontos de vista, percepções e modos de contar.

Ao serem apresentadas em primeira pessoa, as trajetórias das três personagens enfatizam analiticamente processos de subjetivação e sujeição, algo que a este artigo interessa em especial. Dá-se que, assim como fez Mónica Fernanda Figurelli, estamos cientes de que “uma história contada nos fala também que não há história desligada do seu contar e que, mais que a um referente fixo e acabado, o que se conta alude a uma criação dinâmica que não se separa da situação em que se conta” (2011:01). Sendo assim, a experiência de narrar a própria história é, ela própria, performativa do sujeito que narra, daquilo que se viveu e que se acha vivendo. Disto se pressupõe que o sujeito, como bem apontou Avtar Brah (2006)BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26). Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376. , não é anterior a determinada experiência – tampouco a de contar a sua própria história –, mas que a experiência é “o lugar de formação do sujeito”.

Deslocamentos (geográficos e simbólicos) transpondo fronteiras (também geográficas e simbólicas) são recorrentes entre as pessoas. O desejo constitui-se, no humano, como uma dimensão itinerante. Ele pouco se compraz com limites rígidos. Portanto, desloca-se, rompe fronteiras. Não respeita geografias. Considerando-se que esse suposto esteja correto, de que forma a realização da sexualidade de sujeitos dissidentes em termos de convenções de gênero e sexualidade - realização está tão festejada nas capitais, nos grandes centros urbanos e nas metrópoles - operaria nas cidades menores em termos populacionais, nas vilas, nos lugarejos e contextos interioranos e rurais, ou seja, em realidades não autorreferentes ( Passamani, 2015PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. Batalha de Confete no “Mar de Xarayés”: condutas homossexuais, envelhecimento e regimes de visibilidade. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2015. , 2018PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal - MS. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2018. )? Estaria, pois, esta realização ali interditada? O que nos dizem as trajetórias de André, Antônia e Tereza a esse respeito?

Presente em teorias sociais diversas, a antinomia rural-urbano se impõe como uma relação complexa, multifacetada e de difícil superação. No campo das ciências sociais, comunica-se com os estudos de comunidades, pesquisas sobre a relação entre meio-ambiente e sociedade, literatura sobre populações das chamadas periferias, estudos de parentesco e com a produção de um imaginário nacional pelo pensamento social brasileiro ( Sigaud, 1992SIGAUD, Lygia. Para que serve conhecer o campo. In: MICELI, Sérgio (org.). Temas e problemas da pesquisa em ciências sociais. São Paulo, Editora Sumaré / FAPESP; Rio de Janeiro, Fundação Ford, 1992, pp.30-42. ; Wanderley, 2007WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Ser socióloga do “mundo rural” na Unicamp: memórias muito vivas. Ruris, 1 (1). Campinas, 2007, pp.13-36. ; Garcia Jr.; Grynspan, 2002; Welch et. al., 2009).

Em texto clássico sobre o tema, Raymond Williams (1989)WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. ensina que a expressão dessa relação como mera oposição destituída de nuanças dificilmente sobreviveria à análise mais detida sobre a diversidade de formas localizadas de concentração humana4 4 Williams (1989) cita como exemplos: “subúrbio, cidades-dormitório, favelas, complexos industriais, entre outras” (p. 12, passin ). existente entre os pólos “campo” e “cidade”, definidos como extremos, capazes de informar uma grande variedade de situações hierarquizadas de moradia e localização social. Ao mesmo tempo, a imaginação de uma experiência primordial, orgânica, supostamente mais próxima à ideia de natureza e a seus processos, em oposição à rapidez e à artificialidade das relações urbanas ( Thompson, 1998THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: THOMPSON, E. P.. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp.267-304. ; Simmel, 1967SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (org.). O Fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp.13-28. ), apresenta-se como alegoria incontornável na fabulação de espaços e experiências sociais desde o século III a. C. ( Williams, 1989WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.: 28-29)5 5 Além da valorização do modo de produção rural e suas formas de vida como mais próximas a uma experiência originária, outros valores atravessam a antinomia rural-urbano. Por exemplo, a identificação de relações supostamente mais igualitárias no mundo urbano em oposição a hierarquias incontornáveis dos "papéis sociais provincianos”. Nos limites desse artigo, não tomaremos esse relevante debate como objeto de reflexão. . Que desafios e potencialidades essa oposição estabelece quando interseccionada à produção social de sujeitos a partir de categorias que dizem respeito a gênero e sexualidade?

Tendo em vista esta questão, acreditamos que enfatizar analiticamente narrativas individuais em torno de diferentes experiências urbanas ajuda-nos a perscrutar as relações de poder que as atravessam e a partir das quais sujeitos conjugam verbos e, portanto, fazem-se. Gênero, sexualidade, geração, classe e racialização estão entre essas relações de poder que se intersectam, articulam-se e coproduzem-se intimamente, algo que os estudos sobre as diferenças ( McClintock, 2010McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. Trad. Plínio Dentzien. ; Brah, 2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26). Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376. ; Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 11 (2). Goiânia, 2008, pp.263-274. ) e sobretudo os feminismos negros (Davis, 1981; Gonzalez, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. São Paulo, Anpocs, 1984, pp.223-244. ) têm indicado já há algumas décadas, ainda que sob diferentes perspectivas. Para nós, importa especialmente destacar como território, espaço e cidade encontram-se em meio a essas relações de poder, movendo-se e transformando-se, participando intensamente dos processos de formação de sujeitos e identidades, algo que Néstor Perlongher (1987)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987. notou ao manejar noções como “desterritorialização” e “reterritorialização”, trazidas dos trabalhos de Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980. ; 1974). À sua maneira, André, Antônia e Tereza fazem-se enquanto narram suas histórias, tal qual fazem as cidades em que viveram e que, reciprocamente, também os engendraram.

Sonhos de vir a ser

A partir de incursões pela noite paulistana, Perlongher textualiza a conformação de um mercado do sexo e suas fixações: atributos fetichizados de desejo (pênis, masculinidade, traços racializados, juventude) e tipos que incorporam esses atributos. Jogos de desequilíbrio e reequilíbrio entre personagens são expressos pelas hierarquias ali ensejadas e as espacialidades que os ambientam e conformam. Essas espacialidades adquirem densidade a partir da errância e da reiteração de trânsitos. Sínteses fugazes entre “fluxos”, “derivas nômades” e suas “fixações” (Perlongher, 1987). Gestos, corpos, espaços conformam-se, produzindo a um só tempo indícios, mapas e bússolas. Funcionam como guia labiríntico no trânsito entre risco e prazer. Percorrer o labirinto é correr o risco. Abandonar um território específico de conjugação de si para precipitar-se outro. Perlongher (1985PERLONGHER, Néstor. O contrato da prostituição viril. Arq. Bras. Psic, 37(2). Rio de Janeiro, 1985, pp.94-105.: 104) não deixa dúvida: “todos esses complexos artifícios são, em verdade, artimanhas, às quais o gozo recorre para se realizar”. Novos universos psicossexuais ( Rolnik, 1997ROLNIK, Suely. Uma insólita viagem à subjetividade: fronteiras com a ética e a cultura. In: LINS, Daniel (org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades. São Paulo, Papirus, 1997, pp.25-34.: 29) vicejam na busca pelo desejo que busca florescer.

As memórias de Tereza e Antônia remontam à Remígio e ao Crato dos anos 1970, quando estas cidades contabilizavam 14.000 e 70.000 habitantes respectivamente. André nos fala de uma Corumbá no início dos anos 2010, então com 103.000 moradores. Em cada narrativa, é possível perceber como personagens errantes disparam sonhos para cada uma de si e, no limite, para os mundos ao seu redor.

Tereza: Na década de 1970, chegou aqui na cidade de Crato um hippie chamado Amizade. Veio para a Exposição Agropecuária e não foi mais embora. Ele vivia na Praça da Sé fazendo artesanato. Amizade nos fazia viajar com ele no pensamento! Minha família não admitia que eu me relacionasse com esse hippie ou com o pessoal metido com a cultura da cidade. Naquela época, havia exposições anuais com artes plásticas e fotografia, o “Salão de Outubro”. Fora isso, tinha os “Festivais da Canção”. (...) Eu lembro da quadra da praça Bicentenário lotada! Nessa mesma época, [o cineasta] Jefferson de Albuquerque Figueiredo Junior se casou com Célia Teles. Foi um casamento bem alternativo! Foram morar numa casa bem transada em um bairro perto da Chapada [do Araripe]. A liberdade completa na minha vida era ir para a casa desse casal! Lá vinha muita gente de fora! O pessoal do Recife e do Rio, da televisão, porque Jefferson já era cineasta! Tudo isso fazia com que eu começasse a repensar minha vida. Meus pais não admitiam uma moça que ficasse na Praça [da Sé]... E eu andava com Ribamar, o terror das moças aqui no Crato! Ninguém ousava chegar nem perto dele! Diziam que fumava maconha, que desvirginava as moças... E eu sentava na Praça com ele! Morria de rir com os casos que ele contava! Essa turma toda era um pessoal muito jovem e intelectualmente muito ativo! Antes dessa paixão por Ribamar, eu conheci Narcélio. Ele tinha ido embora tentar a vida em São Paulo. Não deu certo lá e ele voltou para o Crato. Era um tremendo gato! Fumava maconha, contestador, cabelo desse tamanho, tamanco no dedo, calça boca de sino, cheio de colar e tal. Também era aquela coisa, só me aproximava de quem se vestisse assim! Se estava com aquelas roupas convencionais e fosse pra missa, eu não queria nem saber! Tinha também um pessoal de uma banda de hippies de Recife que eu ficava muito com todos eles. Eu adorava essa vida! Mas a pressão em minha casa era muito grande! Não admitiam que uma filha ficasse na Praça, que andasse com Ribamar. A família inteira dizendo: é a moça mais falada do Crato! Você não tem mais nome na cidade! Por isso eu fui embora. Eu fugi de casa aos dezesseis anos. Fui embora pro Recife sem um tostão no bolso!

Antônia: Ah, eu fugi com o circo! Devia ser 1975 ou 1976, eu tinha 14 ou 15 anos, não me lembro exatamente. Me apaixonei por um menino que andava com o circo! Eu sonhava ser artista! Então sim, fugi! Meu pai saiu da nossa casa em Remígio, uma cidadezinha do interior da Paraíba que hoje não conta nem 20 mil habitantes, e foi me buscar no picadeiro. Eu o acompanhei de volta, pelo respeito que tinha a ele, sabe? Mas não demorou pra eu escapar de novo. Voltei pras lonas coloridas! Meu pai se convenceu de que não tinha jeito, deixou pra lá e me entregou pro dono do circo. Lá, menina, eu vivi o meu sonho de ser artista. A verdade é que aquela minha paixonite pelo rapazola era só uma boa desculpa, né? Porque gostar mesmo, eu sempre gostei foi de arte. Eu vivia pra ser a bailarina, a atriz, a trapezista! Mas oh, nunca nada no masculino, sempre no feminino. No circo, eu realizei meu sonho. Fui trapezista, malabarista, palhaço, locutora, atriz. Falando sério, eu aprendi teatro no circo. Só que, com dois anos de espetáculo, resolvi deixar o circo pra trás. É que o dono do circo se incomodava muito com minha feminilidade. Queria controlar meu jeito, igual faziam meus pais. Aí eu voltei pra Remígio, mas não me demorei três dias na casa da minha família.

Tereza e Antônia sonham a si mesmas mirando-se em um mundo ainda desconhecido, mas adivinhado a partir de outras personagens: o hippie, o cineasta, o casal alternativo, o pessoal da televisão. E ainda: a bailarina, a atriz, a trapezista. As visitas pendulares de Antônia impelem a necessidade de deixar Remígio para construir uma personagem que possa viver no “mundo da lona”. Esse impulso convida a construir mentalmente uma cidade de origem que convida à fixação em oposição a um “fora dali”, que impõe novas invenções de si. Um novo eu produzido por identificação, mas também por diferenciação e complementação. Tereza aprende quais gestos e lugares a conceberão como o oposto complementar de artistas, hippies e personagens da cidade menos identificados com a fixação e a moral familiares. A partir da “paixonite” pelo rapaz que acompanhava o circo, Antônia passa a se conjugar no feminino. É possível entrever a produção de lugares como espaços cognitivos ( Rapport, 2000RAPPORT, Nigel. The narrative as fieldwork technique: processual ethnography for a world in motion. In: AMIT, Vered (ed.). Constructing the field: ethnographic fieldwork in the contemporary world. New York, Routledge, 2000, pp.71-95. ; Marques, 2019MARQUES, Roberto. Caldeirão de Santa Cruz, Avalon, Craterdam: lugares cognitivos da contracultura no interior do Ceará. In: KAMINSKI, Leon (org.). Contracultura no Brasil, anos 70: circulação, espaços e sociabilidades. Curitiba, CRV, 2019, pp.171-194. ) que precipitam a produção de novos mundos. O espelhamento de si como expediente necessário da produção de personagens capazes de habitar esses mundos. Assim ocorre também com André , nos anos 2010: “dizem que pantaneiro é bicho desgarrado. Eu gosto de andar sozinho por aí. Mas não sou brabo não! Queria ver o mundo de outro jeito, andar por outros lugares”.

A empresa de turismo da tia de André estabelece os elementos a partir dos quais pode conceber-se como sujeito em deslocamento.

André: Aprendi com os turistas que ter contatos é o caminho das pedrinhas e que eu podia me dar bem fazendo o que eu gosto e ganhar uma boa grana com isso! Os clientes lá no Pantanal elogiavam meu corpo, minha cor, meu jeito. Eles falavam que era bacana eu saber conversar de tudo. Que isso fazia diferença. Quando a gente tava embarcado, com os turistas, entre uma pegação e outra, quando não tava fodendo, eu aproveitava para conversar com os caras e conhecer mais dos lugares de onde eles vinham. Tá bem que eu fazia isso pra não ficar fodendo toda hora, mas também era por muita curiosidade e vontade de eu mesmo estar por lá. O contato com estas pessoas que vinham de todos os lugares foi colocando uma pulga atrás da minha orelha pra eu sair de Corumbá e me arriscar pelo mundo. Meu curso, eu aprendi logo no começo, não daria dinheiro. Mas ele também me despertou curiosidade. Ia ser bom ser gay longe dos conhecidos, ir numa balada GLS, numa sauna. Ter mais gente nos aplicativos. Fazer uma turma de amigos viados. Mas o que me interessava mesmo era poder estar mais perto daquele mundo dos turistas, que eu achava incrível, mais perto das histórias da cidade grande, ganhar mais dinheiro e poder curtir aquela vida. Eu não tinha medo de ser viado em Corumbá. Eu nunca sofri nada. Ah, sei lá, sempre teve muito gay na cidade! Eu não queria fugir. Não disso! Mas eu queria alguma coisa maior! Eu sempre penso naquelas luzes de neon. Foi isso que me impressionou em São Paulo e em todas as outras cidades grandes que eu conheci. Cidade grande tinha luz de néon! Eu queria neblina, frio e luz de néon. Experiências que eu não conseguia ter ali. Isso foi decisivo pra mim.

“Fluxo de populações, fluxos do desejo”, ensina Perlongher (1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 48). Os deslocamentos de André, Antônia e Tereza ensaiam novos mundos para elas e para ele. Impulso mediado por redes de proteção ou vivido como espécie de frenesi. A experiência anterior de André como guia turístico em outro barco, suas características físicas, idade e habilidade na interação com os clientes motivaram sua tia a convidá-lo para um novo ofício: “pacotes turísticos com putas, boys e drogas”. Tereza , por sua vez, chega ao Recife aos 16 anos sem o endereço do “pessoal do jornal e da televisão” com quem costumava interagir em Crato. Possivelmente supunha um Recife com fluxos concêntricos de interação de uma classe média intelectualizada ao redor de uma única praça, tal como ocorria em sua cidade natal. “Mas eu não encontrei ninguém! Também não tinha endereço de ninguém!”.

Na fala de Antônia , a expressão do deslocamento conflui dois mundos: “Mas não demorou pra eu escapar de novo” (...) “Meu pai se convenceu de que não tinha jeito, deixou pra lá e me entregou pro dono do circo.” Ao tempo que almeja um novo mundo, Antônia localiza no pai a incumbência de “entregá-la” ao novo destino. Expressão inventiva, que agrega o fluxo de seu desejo à hierarquia de uma relação usualmente descrita como própria às famílias em pequenas comunidades ( Fonseca, 1987FONSECA, Claudia. Aliados e inimigos em família: o conflito entre consangüíneos e afins em uma vila porto-alegrense. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 4 (2). São Paulo, 1987, pp.88-104. ).

Curiosa afinidade une Tereza, Antonia e o “mundo marginal” descrito por Perlongher (1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 76). O autor torna possível entrever a emergência de sonhos compartilhados pelos “novos marginais urbanos da década de [19]70” ( Perlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 85). Um de seus interlocutores ensina: “Muitas pessoas na época eram expulsas de casa e não ficavam amargas, entendiam que a verdade estava com elas!” (p. 79).

Como veremos adiante, o percurso de Tereza está marcado por dois relacionamentos estáveis e perambulações entre as cidades de Tracunhaém, Brasília, Cabedelo e Crato. Alternando relações afetivas e lugares, Tereza estabelece mediações criativas entre os novos processos de identificação impostos a partir de suas perambulações e lugares sociais legitimados em sua cidade natal, recuos nas dinâmicas de reinvenção de si: “Eu saí das asas de meu pai e fui para as asas de um pintor” - afirma, ressaltando a dependência financeira que marcava sua relação com o pai de sua primeira filha. Quando apaixona-se por um novo homem, “um intelectual, carioca e barbudo”, e vê-se mãe de família, grávida uma segunda vez e ainda atrelada a um relacionamento que não deseja mais para si, decide voltar para Crato, sua cidade natal, onde contaria com o apoio de sua mãe para o nascimento de seu segundo filho. Vive assim não apenas entre mundos, mas encarna personagens ambíguos, afeitos a moralidades apontadas por ela mesma como opostas. Dessa forma, parafraseando o prefácio de Peter Fry (1987)FRY, Peter. Prefácio. In: PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp.11-15. ao “Negócio do Michê”, o desejo maldito parece alternar-se ao desejo duradouro e socialmente aceitável, habitando simultaneamente o mesmo indivíduo, no caso, Tereza .

Se, no relato de Antônia , as ambiguidades entre o que almeja ser e os caminhos percorridos para alcançá-lo são descritas como um contínuo de obstáculos superados para a assunção de si, Tereza parece capaz de encarnar personas complexas. Conjuga mundos e moralidades de difícil localização, constituindo seu corpo-território como libelo contra a antinomia rural-urbano. Ao tempo que encarna o mandamento que marcou o imaginário sexual dos anos 1970 “Ide para a grande cidade” ( Weston, 1995WESTON, K. Get thee to a big city: sexual imaginary and the great gay migration. GLQ: a Journaul of Lesbian and Gay Studies, 2. Durham, 1995, pp.253-277. ), agencia benesses advindas de suas localizações de origem, classe, gênero e filiação. Possivelmente Antônia não tenha voltado por saber que não havia para onde voltar. Mais que delírio, seu desejo era imperativo inelutável. Via de mão única, marcado no corpo. Para ambas, o princípio parece ser: constituir-se a si mesmas, no tempo e lugar que concebem a partir de seus trânsitos. Para André , a materialização do sonho parece depender de algo além de seu corpo: “alguma coisa maior, que tivesse luz e brilho”.

A putaria me deu uma casa, grana, a possibilidade de conhecer o mundo (...) Eu queria mesmo era ser dono de um pub lá na Avenida em Corumbá (...). Afinal, falta Europa em Corumbá.

Em sua profícua pesquisa “A Utopia urbana”, Gilberto Velho (1978VELHO, Gilberto. A Utopia urbana: um estudo de antropologia social, 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.: 13) discute a complexidade de agentes que instituem para populações específicas a distinção de lograr as “boas coisas da vida”. Chama atenção para os esforços exigidos dos sujeitos em “(...) uma estratégia de mobilidade social baseada em estabelecimento de objetivos claros e um esforço às vezes gigantesco”. A subjetivação de modos de vida urbana identificados a partir de um estilo, acesso a bens e equipamentos de lazer e consumo está de certo modo presente nas narrativas de Antônia e Tereza . Mas assume um tom peculiar na fala de André .

Nascido em uma geração em que o mercado de lazer aliado à circulação econômica já se encontra bastante consolidado no Brasil ( França, 2012FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. ), André almeja evidenciar a potência de seu estilo de vida em um espaço público compartilhado. Confluência de memória pessoal, expressão de estilo e produto do mercado de lazer. André sintetiza, assim, deslocamentos vivenciados fora do Brasil e a distância entre suas práticas erótico-afetivas e uma moral provinciana, “Falta Europa em Corumbá!”.

Como discute França (2012)FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. , o consumo presente em espaços de lazer noturno materializaria a percepção que as pessoas possuem de si mesmas, onde poderiam “ser o que realmente são”. Espaços privilegiados de expressão e projeção de aspirações e desejos. Simões e França (2005)SIMÕES, Júlio; FRANÇA, Isadora Lins. Do “gueto” ao mercado. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, pp.309-336. chamam atenção ainda para como a liberdade sexual expressa a partir dos anos 1990 pelo mercado e pela mídia associa um estilo moderno e descolado a um padrão de vida que envolve poder aquisitivo mais alto e capital simbólico distintivo. A habilidade de materializar a Europa em Corumbá denota não apenas um outro modo de vida que deseja ver presente na cidade. Explicita a habilidade de André como mediador privilegiado desse modo de vida. Curiosamente, os trânsitos que desencadearam esse sonho tomaram forma a partir de espaços institucionais bastante marcados: família, universidade, trabalho. Espaços por ele agenciados e alinhados em pontos de fuga diversos.

Trânsitos, deslocamentos e os percursos do desejo

André: Comecei como garoto de programa quando eu já era guia turístico no Pantanal. A minha tia sempre foi puta e criou uma empresa de putaria! Os grupos de turistas, quase sempre homens, contratavam um pacote para pescaria durante 5 dias, por exemplo. Isso incluía tudo: traslado, hotel, alimentação, barco, bebidas, festas a bordo. Esse era o pacote oficial. Mas havia o pacote secreto, com as putas e as drogas. Eles às vezes pediam que, além das meninas, tivesse um boy, ou mais de um. Minha tia contou a parada pra mim e eu topei. Isso foi abrindo a minha cabeça pro mundo. Eu pouco tinha saído de Corumbá, sabe? Não era muito viajado. Eu digo pra você, o que eu aprendi mesmo sobre o mundo foi na faculdade e foi com os turistas. Com os turistas antes mesmo da faculdade. E à Europa que a faculdade ensinava nos livros, meio morta e velha, os turistas davam cor, sabe? Parecia que eu podia tocar na Europa. Eles falavam das ruas, das pessoas, das coisas mais cotidianas. Eu ficava curioso e me imaginando lá. Foi desse mesmo jeitinho que eu conheci o Nordeste. Depois, quando fui por lá, comprovei que eram lugares lindos. As pessoas de lá que vinham aqui sempre eram bacanas com a gente. Quando eu cheguei à Argentina, parecia que eu já conhecia aquilo. Tinha uma época em que vinham muitos argentinos aqui. Já atendi a uns gringos dos Estados Unidos. Eu sou muito grato a estes homens. Ganhei grana. Mas também pude conhecer outras realidades. Até meio que aprendi inglês assim.

Tereza: Cheguei em Recife sem conhecer porra nenhuma! Com 16 anos, como era que eu ia fazer? Vinha muita gente de Recife para a casa do Jefferson. Gente do Jornal, da TV, pessoal bem legal... Mas eu não encontrei ninguém. Também não tinha endereço de ninguém! Enquanto isso, meu pai colocou o Exército atrás de mim. Quando me encontraram, já estava posando para um artista plástico em Tracunhaém, na zona da mata de Pernambuco. Nesta cidade, todo mundo cortava cana e trabalhava com barro. Eu recebi o convite de Gildemar para posar pra ele fazer as peças. Esse moço é pai da minha primeira filha. Aos 17 anos, eu já estava sendo mãe! Saí das asas de meu pai e fui para as asas de um pintor... Ser dona de casa, morando com artista, morando em uma casa sem luz, sem água encanada, cozinhando com lenha... Sem nada dentro de casa. Eu fui ser a miserável. Com minha filha mamando, eu não tinha como trabalhar fora. Era passar fome mesmo.

Antônia: Sim, hoje, com 52 anos, eu sei. Sair de casa, pra mim, já tinha a ver com gênero e sexualidade. Porque, assim, eu já sabia, eu só não sabia definir essa história de ser travesti ou ser transex. Tudo meu era do gênero feminino, eu queria viver essa pessoa do gênero feminino que estava presa dentro de mim. Daí, pra ser quem eu era, levantei a mala e peguei a estrada. Vim embora pra João Pessoa e decidi: “eu agora vou viver a minha vida”. Na época, João Pessoa era uma cidade bem menor, não chegava nem a 300 mil habitantes. Cheguei e fui trabalhar numa construtora. Preparava e servia a comida dos peões da obra. Depois fiquei desempregada e passei a lavar roupa. Ainda fiquei mais de um ano numa lanchonete, até que comecei a trabalhar em casa de família como empregada doméstica. Numa dessas casas, demorei 10 anos. Noutra casa, foram 12. Mas enquanto trabalhava em casa de família, eu também estudava, viu? Ah, meu amor, bicha burra nasce morta! Aí eu terminei o ensino médio e um curso técnico profissionalizante de auxiliar de enfermagem. Isso me permitiu largar o trabalho de doméstica e ter uma nova profissão. O trabalho como auxiliar de enfermagem eu exerço até hoje. No meio disso, eu entrei no movimento, a gente fundou a associação de travestis e transexuais e até candidata a vereadora e deputada eu já fui! Mas nesse tempo do final dos anos 70 e do começo dos anos 80, ah, eu vivi muita discriminação nesta cidade. Lembro que eu não conseguia andar de ônibus porque os caras me colocavam pra fora. Sim, me espancavam. Pra voltar da escola ou do curso de teatro pra casa onde eu trabalhava, eu precisava atravessar vários bairros a pé. Hoje as violências são mais graves, mas eu confesso que naquela época as discriminações eram maiores. Por isso que eu digo que minha militância começou assim, como um ativismo isolado. Minha vida política começou ali enquanto eu andava por João Pessoa, decidia transformar meu corpo, assumia o gênero feminino e me vestia e vivia assim, como eu gostava. Então, esse é o meu primeiro momento de militância, mesmo sem entender.

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André, Tereza e Antônia são sujeitos em trânsito. Mais precisamente, fazem-se sujeitos enquanto transitam. Quando contam suas histórias, enfatizam haver rompido, ainda que parcialmente, com ordens morais e familiares anteriores porque, nas palavras de Antônia , “eu agora vou viver a minha vida”. Esse rompimento necessário para que novos horizontes se abram e a vida seja vivida, Néstor Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. chamou, em diálogo com Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980. ; 1974), de “desterritorialização”. Os michês e demais personagens que trafegam pelo “mundo da noite’ do centro de São Paulo desterritorializam-se na medida em que experienciam desejos, práticas eróticas e relações sociais que pressupõem uma quebra ou uma fuga do que seria a “ordem moral e familiar dominante” ( Perlongher, 2008PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008.: 191). Em quebras e fugas, assemelham-se ao vivido e narrado por André, Tereza e Antônia . Sem que seus pais soubessem, André aceita o convite da tia e passa a compor o “pacote secreto” oferecido aos turistas no Pantanal. Tereza e Antônia fogem, ainda adolescentes, das casas dos seus pais. Tereza parte para as “asas de um pintor”. Já posava nua para o artesão de Tracunhaém que seria pai do seu primeiro filho, quando a família finalmente a encontrou, após o pai colocar o Exército em seu encalço. Antônia vai “viver a vida” trabalhando e - ela diz - “andando” em João Pessoa.

A desterritorialização, Perlongher (2008PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008.: 191) explica, está associada porém a um “duplo movimento”: desterritorializar-se implica reterritorialização. Se dissentem de certas convenções morais, michês e clientes reterritorializam-se nos códigos do “gueto homossexual”. Tanto há fuga quanto há captura, portanto. Corria a década de 70, Tereza tem seu filho aos 17 anos numa casa sem energia elétrica, numa cidadezinha da zona da mata pernambucana dominada por engenhos de cana-de-açúcar e conhecida pelo artesanato em barro. Era sustentada pelo companheiro, por sua arte. Viveu a fome e a miséria. Em tempo próximo, Antônia serviu comida a peões de obra, lavou roupa por encomenda, prestou serviço numa lanchonete até começar a trabalhar como empregada doméstica em “casa de família”. Enfrentou discriminações. Preferia caminhar quilômetros a ser espancada e expulsa do ônibus. Foi apontada, achincalhada, sofreu violência física e verbal.

A opção pelo trânsito, pelo deslocamento e pela deriva pressupõe abertura para o acaso, desejo por ele. Assim como o desejo experimentado pelos frequentadores do “mundo da noite” - a que Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. se volta - é aberto, profuso e disposto à casualidade, o desejo de Tereza ou de Antônia de deixar a casa dos pais supunha o imprevisível. A adolescente encantada por hippies , cinema, fotografia e artes plásticas, apaixonada pelos rapazes de cabelos compridos, tamancos nos dedos e calças boca de sino, não previa a pobreza em que se emaranhou ao resolver viver com um artesão na zona da mata pernambucana. Tampouco a menina que fugiu com o circo porque desejava ser bailarina, atriz, trapezista, podia prever as mais de duas décadas em que trabalhou como empregada doméstica ou as eleições a que se candidatou na Paraíba. Mesmo André não adivinharia que, ao aceitar o convite da tia para os programas no Rio Paraguai, acabaria conhecendo os lugares que seus clientes o apresentavam em palavras.

O desejo pelo acaso, no entanto, articula-se a cálculo. Nos termos de Perlongher, “esse desejo não é indiscriminado, mas agencia, para se consumar, um complexo sistema de cálculo de valores” (2008:170). Este cálculo tem em conta possíveis riscos e perigos: a possibilidade da violência consistia num perigo para clientes e michês no centro de São Paulo, assim como para André e Antônia ; analogamente, a possibilidade da gravidez também representava um risco para Tereza . Riscos e perigos preenchem o acaso de sentidos e influem inclusive nos contornos do desejo, daquilo que pode ou deve ser vivido em meio ao que se deseja, daquilo que se deseja em meio ao que pode ou deve ser vivido. Em certos casos, como Maria Filomena Gregori (2016)GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016. percebeu, riscos e perigos informam o próprio prazer e, com isso, operam o que ela chamou de “limites da sexualidade”, zona fronteiriça em que se realiza a tensão entre prazer e perigo. Em suma, no trânsito - em suas condições de possibilidade, portanto -, o próprio desejo se transforma, desterritorializa-se e reterritorializa-se, tal qual os sujeitos que desejam.

Em sua etnografia sobre trânsitos de homens que se relacionam afetivo-sexualmente com outros homens em Recife e São Paulo, Isadora Lins França (2013)FRANÇA, Isadora Lins. “Frango com frango é coisa de paulista”: erotismo, deslocamento e homossexualidade entre Recife e São Paulo. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, 14. Rio de Janeiro, 2013, pp.13-39. recorre aos argumentos de Néstor Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. para destacar a capacidade de o desejo se fazer e refazer. Muito habilmente, França nota não estar apenas tratando de “itinerários percorridos por homens que portam um desejo já cristalizado: não são apenas percursos relacionados ao desejo, mas também o próprio percurso do desejo” (2013:32). “Percurso do desejo” é uma expressão de Perlongher (2008PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008.: 226) da qual França se vale para ressaltar a mutabilidade do desejo, seus próprios movimentos e trânsitos. Embora este desejo a que Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. e França (2013)FRANÇA, Isadora Lins. “Frango com frango é coisa de paulista”: erotismo, deslocamento e homossexualidade entre Recife e São Paulo. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, 14. Rio de Janeiro, 2013, pp.13-39. estão-se referindo seja mais explicitamente o desejo erótico, as mesmas conclusões acerca da mutabilidade do desejo poderiam ser alcançadas diante do desejo de André, Tereza e Antônia de transitar e desterritorializar-se, ou seja, de “viver a própria vida”. Isto de pronto porque, segundo o que as três personagens nos contam acerca de suas trajetórias, sexualidade e gênero compreendem dimensão relevante desse “viver a vida”. Além disso, como Roberto Marques já percebeu, a ideia de trânsito (ou o desejo por ela) “é também útil para pensar a circulação entre parceiros sexuais e afetivos” (2014:365).

No modo como o compreendemos, “trânsito” consiste numa noção espaço-temporal atravessada por diferentes relações de poder. Esta compreensão, por sua vez, é certamente debitária da forma como Néstor Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. apreendeu sexualidade, desejo e territorialidade no âmbito das práticas sociais, perscrutando seus agenciamentos. Se, nos argumentos de Perlongher, o desejo possui um percurso, os territórios percorridos por desejos e sujeitos também se movimentam e transformam, são produzidos. Tal apreensão é teoricamente possível porque o intenso diálogo que Perlongher estabelece com Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille plateaux. Paris, Minuit, 1980. ; 1974) e com os estudos da Escola Sociológica de Chicago favorece a tomada do território em movimento, no interstício de moralidades sob conflito. Os conceitos de desterritorialização e reterritorialização aludem a isso, afinal. Como indicamos acima, desterritorializar-se é romper, ainda que parcialmente, com certa ordem moral. Além disso, o próprio conceito de região moral pressupõe uma associação estreita entre espaço e moralidades. O fato de Perlongher, como Regina Facchini (2008)FACCHINI, Regina. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2008. bem percebeu, não haver compreendido o “gueto” como “entidade discreta”, território apartado e insulado, acabou desnaturalizando a ideia de “sobreposição entre grupos culturalmente unitários e territórios específicos” ( Facchini, 2008FACCHINI, Regina. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2008.: 104) e oportunizou inclusive a dinamização e a complexificação do uso (crítico) do conceito de “região moral”.

Parece-nos interessante que parte relevante dos estudos antropológicos contemporâneos influenciados pela obra de Néstor Perlongher6 6 Uma dimensão dessa influência de Perlongher pode ser percebida na importante revisão crítica que Facchini, França e Braz (2014) realizaram sobre os estudos antropológicos brasileiros que entrecruzam questões atinentes a sexualidade, sociabilidade e mercado. venha abordando território, espaço e lugar através dos seus agenciamentos. Esta abordagem é particularmente sensível nas análises que, além de a Perlongher, recorrem explicitamente à obra da geógrafa feminista britânica Doreen Massey (2004MASSEY, Doreen. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. GEOgraphia, 6 (12). Niterói, 2004, pp.07-23. ; 1994) - como acontece com as etnografias empreendidas por Isadora Lins França (2012)FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. , Ramon Reis (2016)REIS, Ramon. Cidades e subjetividades homossexuais: cruzando marcadores da diferença em bares nas “periferias” de São Paulo e Belém. Tese (Doutorado em Antropologia Social), FFLCH, Universidade de São Paulo (USP), 2016. e Bruno Puccinelli (2017)PUCCINELLI, Bruno. “Perfeito para você, no centro de São Paulo”: mercado, conflitos urbanos e homossexualidades na produção da cidade. Tese (Doutorado em Ciências Sociai), IFCH, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2017. . A interlocução com os trabalhos de Massey (1994)MASSEY, Doreen. Space, place and gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1994. permite a França concluir, por exemplo, que “o significado adquirido por um lugar sempre é produzido a partir das relações com outros lugares e com outras pessoas” (2012:50). Nesse mesmo sentido, e se aproximando das análises do historiador Frank Mort (1996)MORT, Frank. Cultures of consumption: masculinities and social space in late twentieth-century Britain. Londres, Routledge, 1996. , Isadora Lins França (2012)FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. também nota que o espaço não deve ser compreendido como mero pano de fundo passivo a ser ocupado por sujeitos prévia e plenamente constituídos. O espaço age e incita. A seu tempo, Puccinelli e Reis enfatizam a acepção de Massey segundo a qual “a noção de espaço é uma produção aberta e contínua sempre construída em relação a algo/alguém” (2020:25).

As narrativas de André, Tereza e Antônia sobre suas trajetórias de vida tanto apontam para as desterritorializações e reterritorializações dos sujeitos e de seus desejos como oferecem interessantes imagens acerca de agenciamentos territoriais e espaciais, algo que os trabalhos de Néstor Perlongher e as etnografias acima mencionadas nos ajudam a divisar. No que André conta das histórias que escutava dos seus clientes enquanto o barco de turismo cortava o Rio Paraguai, materializam-se cidades, regiões do país e até um continente. Estas espacialidades dançam nas memórias do rapaz de Corumbá. Adquirem novas cores, convertem-se elas mesmas em desejo de trânsito, descoberta e conhecimento. De algum modo, também significam perspectiva de ascensão e mobilidade social. Quantos outros jovens com a sua origem de classe e territorial poderiam falar com intimidade de cidades tão diversas quanto Campo Grande, Natal, Fortaleza, Salvador e Buenos Aires? Por sua vez, nas lembranças de Tereza , a Praça da Sé viceja novidade e ousadia no Crato dos anos 1970. Lá está o hippie Amizade , que “nos fazia viajar com ele no pensamento!” Lá está o “pessoal metido com a cultura da cidade”, com quem sua família não permitia que Tereza mantivesse contato. Há ainda, em meio a essas lembranças, aquela casa “bem transada” que representava “a liberdade completa na minha vida”. Assim como há, em contraposição, a casa dos seus pais, onde “a pressão era muito grande”, e a casa em que viveu com o pai do seu primeiro filho, uma casa sem luz e água encanada, território de miserabilidade fincado numa Tracunhaém de cana-de-açúcar e barro.

Já na história contada por Antônia , as ruas da cidade de João Pessoa participam decisivamente da mulher em que ela se transformou. Antônia , afinal, “queria viver essa pessoa do gênero feminino que estava presa dentro de mim”. De acordo com o que ela nos diz, o afastamento da casa dos pais consistiu num passo fundamental para sua desterritorialização. Contudo, foi andando pelas ruas da pequena capital paraibana que Antônia passou a exercitar novas expressões de gênero e, reciprocamente, aquilo que, no futuro, ela identificaria como sendo o início de sua “vida política”: “minha vida política começou ali enquanto eu andava por João Pessoa, decidia transformar meu corpo, assumia o gênero feminino e me vestia e vivia assim, como eu gostava”. As ruas em que a achincalhavam e expulsavam dos ônibus eram também as ruas em que Antônia se vestia e vivia - “eu vou viver a minha vida” - conforme queria e gostava. Como demonstraremos adiante, estas eram também as ruas em que Antônia se entendeu “travesti” enquanto ganhava algum dinheiro dos homens que paquerava.

Acreditamos que a potência da etnografia de Néstor Perlongher (2008)PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008. para auxiliar na compreensão de trânsitos como os experimentados por André, Tereza e Antônia reside substancialmente em sua recusa teórico-metodológica em tomar a identidade como uma premissa. Dá-se que, segundo explica, essa premissa “afasta do campo estudado as fugas, contradições, incoerências, desejos dos sujeitos – esmagando-os sob o imperativo da sujeição a uma coerência preestabelecida”. Além disso, ele completa, tal premissa opõe o “obstáculo epistemológico” de deter o observador “nos meandros da atribuição de identidade, talvez em detrimento das práticas concretas” ( Perlongher, 2008PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008.: 201). É esta recusa que permite a Perlongher, por exemplo, compreender gênero como ele o faz, também em trânsito: os michês são caricatos em sua masculinidade, “eles parecem mais másculos que o mais heterossexual dos homens” (Perlongher, 2008:100); determinado rapaz pode ser classificado como “gay” numa avenida e como “bicha” numa outra, e “não se trata apenas de mudança na denominação: o mesmo sujeito pode ele mesmo mudar de ‘gênero’ segundo seus objetivos ou expectativas” ( Perlongher, 2008PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Perseu Abramo, 2008.: 155).

Esta recusa teórico-metodológica de Néstor Perlongher conflui, segundo observaram Sérgio Carrara e Júlio Assis Simões (2007), com uma geração de estudos antropológicos brasileiros que, desde o final dos anos 1970, preocupava-se sofisticadamente como os problemas e dilemas próprios aos “fechamentos identitários” e que se dedicava detidamente à articulação entre diferentes relações sociais, como gênero, sexualidade, raça e classe7 7 A essa geração pertencem, segundo Carrara e Simões (2007) , os trabalhos de Peter Fry (1982) , Carmen Dora Guimarães (2004 [1977]), Edward MacRae (1990) , Jurandir Freire Costa (1992) e Maria Luiza Heilborn (2004) , além de Néstor Perlongher. . Em meio a essa profícua geração, Perlongher exerceu a antropologia conforme ele mesmo a definiu, como “a ciência do sutil”, desprovida de “técnicas predeterminadas rigidamente”, analiticamente sensível às práticas e aos sujeitos nelas implicadas (2008:60). Transitar, perambular e desejar achavam-se entre essas práticas a que Néstor Perlongher tão densamente se voltou.

Sexo, afeto e dinheiro nas perambulações desejantes

André: A primeira cidade grande em que eu fui ganhar a vida foi Campo Grande. Ganhei algum dinheiro, mas vi que não ia rolar. Fui pra São Paulo. Nossa, São Paulo é um mundo numa cidade, rapaz. Lá eu trabalhei na rua. Pouco. Ganhei grana em saunas, em sites e aplicativos. Ganhei bem. Só que São Paulo me viciou em cocaína. Um amigo me tirou de lá e me levou pro Rio. Acontece que no Rio todo mundo é muito malhado e têm muitos morenos escuros como eu. Pra ser sincero, não gostei muito do Rio e lá tinha muito corumbaense. Mas dei um tempo da cocaína lá. Depois do Rio já veio Lisboa. Surgiu a oportunidade de jogar capoeira em Lisboa e ensinar, junto com uns amigos que estavam em Portugal. Mas eu sabia que queria ganhar grana com sexo. Meus amigos já faziam isso. Oficialmente eles eram capoeiristas, mas tavam era fodendo gringo e ganhando em euro. Tô conseguindo viajar e conhecer aquele mundo que lá atrás me despertou pra tudo isso e tô ganhando uns bons trocados. Comprei uma casa lá no centro de Corumbá, casa boa, dois andares e com piscina. Além disso, tenho dinheiro aplicado. Minha vontade, agora, depois de rodar tudo isso, é voltar pra casa e começar um negócio lá. A vida da correria vai cansando a gente. Eu queria mesmo era ser dono de um pub lá na Avenida em Corumbá. Uma coisa moderninha, cosmopolita, com fotos de todos os lugares que eu conheci. Você sabe, falta Europa em Corumbá. Eu quero levar o mundo que eu conheci para os corumbaenses que nunca saíram de lá, mas também para que os turistas se sintam em casa, num cenário familiar. Foi isso que aconteceu comigo. O mundo dos turistas meio que virou o meu mundo. Cara, sou muito grato ao mundo do sexo, nada disso existiria sem ele. Não tô me aposentando, apenas diversificando o negócio.

Tereza: Passei três anos casada, até que conheci o professor Carlos Alberto. Ele fazia pesquisa na zona da mata. Carlos Alberto era carioca, barbudo. Acho que foi por questão financeira e também por causa do posicionamento político dele, do trabalho em si que estava fazendo na cidade. Aquela coisa foi me fascinando! Chegou um dia em que eu disse pra Gildemar: “Vou embora com outro cara! Minha vida com você está uma merda! Esse cara quer me levar para Brasília e eu vou com ele!” Só que eu estava grávida de meu segundo filho. Então, ao invés de ir pra Brasília ou ficar em Tracunhaém, voltei para o Crato. Carlos Alberto pagou minhas despesas durante um ano ainda. Fiquei na casa de minha mãe, já mãe e grávida de outra criança, sem dinheiro para grandes coisas. Ficava cozinhando, lavando, passando. Mãe igual a minha mãe! Passei esse período aqui no Crato até a criança nascer. Seis meses depois que a criança nasceu, voltei pro Recife. Fiquei na casa da mãe de Gildemar. Passei um ano fazendo artesanato de barro, de palha, bordado e roupas de retalhos feitas à mão. Eu saía vendendo nos bares à noite, em Olinda e Recife. Nessa coisa ... Dois filhos, na casa de minha ex-sogra. Depois de dois anos vendendo artesanato nos bares, encontro Carlos Alberto. Aí, dessa vez, eu fui para Brasília com ele! Passei a trabalhar transcrevendo fitas. Um de meus filhos ficou com minha mãe, o outro com o pai. Passei seis meses ainda num sofrimento atroz. Um dia cheguei pra ele e disse: “Bicho, tu vai ter que tomar uma atitude, porque a grana que eu estou ganhando é bem legal, mas tem meus filhos!” Então ele conseguiu transferência para Cabedelo- PB e foi aí que eu peguei meus dois filhos. Nessa época, Carlos Alberto se desentendeu com a fundação em que trabalhava e mandou tudo para o alto. Cada um pegou seus filhos e, com a grana da rescisão, fomos fazer todo o litoral do Brasil. Passamos três meses pra torrar esse dinheiro todinho! Quando voltei para o Crato fui para a casa dos meus pais. Eles não sabiam que eu estava separada! Pensavam que eu estava em Recife, morando com o pai das crianças. Mas eu estava era no mundo! Meus pais tinham uma casa de sítio na serra. Eu disse: “Quero a casa lá do sítio porque meu novo marido vem morar comigo!” Meu pai não queria dar a casa. Dizia que eu podia namorar, me amancebar, mas não na casa dele. Eu disse: “Você vai me dar, senão vou ser a primeira pessoa a morar embaixo do viaduto no Crato!” Ele me deu a casa. Moramos quatro anos com meus filhos no sítio. Retomei meus estudos, fiz o magistério e fui ser professora no Colégio Pequeno Príncipe, um colégio tradicional em Crato. A vida voltou à normalidade. Era o que meu pai sempre desejou! Era o que eu desejava para mim então! Até que Carlos Alberto se apaixonou por uma aluna! Foi aí que minha vida desmoronou por completo. Eu era alucinada por ele! Foi embora o Carlos Alberto da minha vida e eu fiquei alcoólatra. Comecei a namorar e sair bastante. No outro dia, ia ser professora. Só que minha vida particular tinha que ser condizente com minha função de professora de criança em um estabelecimento mantido pela igreja! O colégio me demitiu e passei a vender livros para editoras em Recife. Trabalho com livros até hoje. Além disso, sou contadora de estórias!

Antônia: Não, eu nem sabia o que era prostituição. Pra mim, prostitutas eram as mulheres cis que ficavam pela Lagoa, no centro da cidade. Eu e minhas amigas, não. No universo das travestis, a gente não sabia bem o que era. Pra falar a verdade, a gente também não sabia muito bem que era travesti. É porque, naquele tempo, quase não tinha travestis como se conhece hoje. Não existiam assim tão travestis. Existiam alguns gays afeminados que tomavam hormônios e tinham seios. Eu, com pouco mais de 15 anos, era assim. Meu corpo era afeminado e, vou dizer, todo homem me desejava, todo homem queria sair comigo. E eu saía. Mas eu tanto saía pra transar por prazer como eu saía por dinheiro, entende? Na época, eu era tão bonita... Hoje eu posso dizer que eu fui uma pessoa bonita. Tenho certeza de que fui porque, quando eu ficava num ponto de ônibus, paravam 20, 30, 40, 50 carros de uma vez pra mim. Numa noite, um delegado de polícia mandou me chamar para saber o porquê de tantos carros fazerem fila no ponto de ônibus. Mas eu não entendia assim “eu vou pra prostituição”. Eu apenas transava por prazer e transava por dinheiro. Hoje, eu sei que foi um momento de prostituição porque, pense, era uma época em que eu não trabalhava. Era disso que eu vivia. Tudo que eu comia e vestia vinha disso. Mas, pra ser sincera, mesmo depois de ter emprego em casa de família, eu não parei de me divertir. Quando a gente chegava ali, no mercado, a gente se juntava, oito, dez homossexuais que era tudo empregada doméstica. Esses encontros aconteciam também na Praça João Pessoa ou na Lagoa. Nesses momentos, homens me abordavam. Queriam pagar pra sair, pra fazer programa, transar. Olhe, sem modéstia, isso acontecia porque eu era a gostosona do pedaço! Era tanto que muita gente brigou por minha causa, teve gente que furou gente por minha causa, teve gente que atirou em gente por minha causa.

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Como demonstramos anteriormente, nossas personagens são sujeitos em trânsito. Perlongher (1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 157) identificava o movimento constante entre os michês – chamados por ele de “nômades urbanos” – no centro da cidade de São Paulo por meio da ideia de “nomadização”. Quer dizer, os michês estavam à deriva pela noite, em “perambulações mais ou menos prolongadas”. No mercado do sexo, nas economias do desejo, as perambulações em busca de visibilidade e clientes são identificadas como um trottoir muito particular. “Entendidos” compreenderiam as diferenças entre uma simples caminhada, um simples passeio e um sujeito a trottoir , à deriva, na perambulação da paquera. Para esses entendidos, os michês perambulavam. A seu modo, André, Tereza e Antônia também perambulam. Há qualquer coisa de trottoir na trajetória dessas personagens.

No movimento que elas empreendem há cruzamentos entre sexo, afeto e dinheiro. São nômades entre “pontos de ruptura” e “pontos de sutura”. Tal como observara o antropólogo argentino em sua pesquisa, as derivas de nossas personagens nos permitem olhar o social para além da “estruturação”, ou seja, elas dão pistas “das fugas e desestruturações”. Isto não ocorre na mesma proporção e nem da mesma forma, mas há uma recorrência entre esses elementos (sexo, afeto e dinheiro) nas trajetórias desses sujeitos. Como bem dissera Néstor Perlongher (1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 107), o negócio do michê é constituído por uma “multiplicidade de coordenadas sociais” Portanto, adverte-nos ele, que o negócio do desejo é operado a partir de uma complexidade muitas vezes imperceptível àqueles que dele não fazem parte. É muito mais que trocar sexo por dinheiro. Há sutilezas que se impõem no “desejo da transgressão”. Nos extratos narrativos que apresentamos acima, há um pouco disso. Há ali sexo, há ali afeto, há ali dinheiro. Há ali uma intrincada relação entre esses elementos, subvertendo ordens, (des)construindo moralidades na expectativa de concretizar sonhos e permitir que vidas sejam vividas na turbulência dos desejos mais (extra)ordinários.

André ganha dinheiro transando com turistas. Ele ganha o mundo dos turistas transando com os gringos europeus. Ganha dinheiro por isso. Mas ganha também mais repertório. E, talvez, deseje tanto o mundo e o repertório quanto o dinheiro. Em verdade, eles parecem indissociáveis. André perambula de cidade em cidade até querer voltar para a sua cidade. Tereza também deseja. Homens, outras realidades e outros lugares. Torna-se funcionária de seu companheiro. Passa apertos financeiros. Torna-se professora. Vai para lá e para cá. Nas trocas afetivas de seus (des)caminhos, ela pare crianças, embala crianças, deixa crianças, reencontra crianças e passa a ganhar a vida contando histórias para crianças. Perambula atrás do sonho. Parece que o afeto a embala. Já Antônia , a seu turno, ao perambular busca encontrar-se consigo. Mais que com o mundo. Embora também deseje a mágica do mundo, personificada no picadeiro do circo. Encontra-se com o prazer, com o dinheiro e com os desafios de ser travesti, mesmo antes de saber-se travesti e de que havia muitos desafios na associação entre sexo e dinheiro.

Nossas personagens transitam entre diferentes códigos de moralidade. Tensionam normas que regulam condutas. Não se adequam aos lugares de onde são oriundas. Extrapolam. Explodem. Por diferentes razões, são ali “tipos marginais”, nas palavras de Perlongher. Nos estudos da Escola de Chicago, já anteriormente destacada, Robert Park (1971)PARK, R. E. Comunicação. In: PARK, Robert E.; SAPIR, Edward. Comunicação, linguagem, cultura. São Paulo, ECA/ USP, 1971, pp.55-76. trabalhou o conceito de “homem marginal”. Esta foi então a chave analítica encontrada para compreender as levas de imigrantes que chegavam à cidade desde o final do século XIX. Era preciso perceber a complexidade daquela “gente diferente” (brancos europeus e negros africanos) no processo de integração à sociedade estadunidense.

Eram estrangeiros. Aliás, o conceito operado por Park foi influenciado pela noção de estrangeiro proposta por Georg Simmel. Simmel (1990) problematizara a noção de estrangeiro a partir do caso judeu. Sua perspectiva levava em consideração a errância imposta àquele povo e uma indeterminação geográfica no que diz respeito a um pertencimento natal, algo resolvido apenas em meados do século XX. Portanto, Simmel, ao falar de estrangeiro, atenta para alguém que não estaria associado a um determinado lugar tido como seu. Isto, entretanto, não quer dizer que o estrangeiro seja um turista, um viajante, um flaneur . O estrangeiro chega e fica. Estabelece vínculos. Cria relações. No entanto, apesar de estar ali, naquele lugar, todos, inclusive ele (estrangeiro), sabiam-no como um “de fora”. Esse sujeito, de fora, mas dentro, mexe com o que está estabelecido. Primeiro porque tenta estabelecer-se. Depois porque sua presença, nas relações estabelecidas, vai alterando o que estava posto.

Os conceitos de homem marginal e estrangeiro ajudaram a compor a percepção de Perlongher sobre os michês, esses nômades urbanos e sujeitos da noite. Contudo, era preciso, na reflexão que desenvolvia, olhar para esses sujeitos de forma fragmentada e segmentada sem um suposto “ranço moralista”. É nesse sentido que Perlongher compreende os michês fragmentados em diversas segmentaridades. Em vista disso, ele foi além do conceito de identidade e - como mostramos antes -, influenciado por Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995. , percebeu a potência da noção de territorialidade na composição daqueles homens. Há aqui diálogos possíveis entre nossos campos, mesmo em vista das distâncias contextuais.

André, Tereza e Antônia constituem-se a partir de territorialidades que desafiam a moral ordinária. Ao não se enquadrarem em determinados fluxos e ambulações expectáveis a eles nos seus “territórios de origem”, seja por envolver-se com o trabalho sexual, com um estilo de vida “diferente”, ou com dissidências de gênero e sexualidade, nossas personagens tornam-se “marginais” e, portanto, itinerantes. Ainda que seus agenciamentos desejantes possam ter tido outras causas imediatas, talvez estas questões sempre tenham rondado a vontade/necessidade do “nomadismo”.

Nos devires de André, Tereza e Antônia há a clara alusão a sujeitos desterritorializados no que diz respeito à ordem moral e familiar. O que pode não significar – e parece não ter significado – um rompimento completo com “a origem”, mas a necessidade da operação de um deslocamento. Ao mesmo tempo, André, Tereza e Antônia configuram-se como sujeitos reterritorializados nos códigos-territórios que escolheram/conseguiram transitar/inserir-se. Quando fala em códigos-territórios, Néstor Perlongher está pensando na perambulação dos michês. Segundo ele:

Pode acontecer, ainda, que sujeitos “ocupem” sucessivamente diversos lugares do código, isto é, se desloquem mais ou menos intermitentemente pelos vários caminhos classificatórios, mudando de classificação conforme o local e a situação. Frequentemente é o mesmo sujeito que vai assumindo e recebendo várias nomenclaturas classificatórias em diferentes momentos de seu deslocamento. Poder-se-ia falar, então, de um deslocamento do sujeito pelas redes do código. Configura-se, assim, um complexo “código-território” (Deleuze), dado pelos códigos e suas superfícies de inscrição em zonas do corpo social. Territorialidade entendida não apenas no espaço físico [...] ( Perlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 152).

André , por exemplo, “vende-se” como estudante, pantaneiro, moreno escuro, malhadinho, socialmente heterossexual. Conhecido como guia turístico, instrutor de capoeira e, para os mais chegados, como garoto de programa. Ao mesmo tempo cosmopolita, por ganhar o mundo dos turistas, mas corumbaense na expectativa de ser um dono de “pub moderninho” na principal avenida da cidade natal. Cada um desses códigos-territórios associados a André são personas constituídas a partir de experiências contextuais vivenciadas por ele. O mesmo se passa com Tereza , esposa, mãe, dona de casa, mas que “explodiu” diante dos limites desses horizontes. Queria o mundo, quem sabe sonhara ser hippie e viajar sem destino. Deixou um filho lá, outro cá. Foi artesã, ajudante de pesquisa, embalando outra criança no colo. Estas credenciais foram determinantes para ser tida como “louca”. Afinal, como podia uma mulher, naquela altura e naquele contexto, querer “ser do mundo”? Tal como o negócio do michê, a vida cotidiana é igualmente cheia de dobras. Nas dobras da vida, Tereza torna-se estudante, professora de crianças em colégio religioso, ao mesmo tempo que alcoólatra, namoradeira e adepta de noitadas. Arremata vendendo livros e contando histórias de outros mundos possíveis. Também Antônia experimentou diferentes códigos-territórios. Primeiro percebeu-se “o viado afeminado da família”. Em outro momento, percebera-se travesti enquanto se prostituía, mesmo sem reconhecer que aquela prática era prostituição. Afinal, ela fazia por prazer e… também por dinheiro. Era como se sexo, prazer e dinheiro andassem juntos. Bonita e desejada por homens, Antônia sabia que não podia fazer isso nos arredores da escola, mas apenas na região do mercado, onde lhe aguardavam seus iguais, bem como os demais envolvidos no negócio .

O tecer das linhas costuradas por André, Tereza e Antônia mostram muito de agenciamentos desejantes . Não há projetos herméticos planeados a longo prazo. Apesar de André querer ser dono de um pub, por exemplo. As três personagens apostam no devir e ali desejam. Se compreendermos os agenciamentos como práticas sociais atravessadas por linhas de poder (centrais e periféricas), estaremos diante de uma conexão de fluxos ( Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995. ). O que André, Tereza e Antônia nos contam alude a isso. Os códigos-territórios são erigidos a partir das linhas que se encontram, desencontram-se e se reencontram em suas trajetórias. Tais agenciamentos não são livres de contradições. Pelo contrário, a tensão libidinal parece residir, justamente, aí8 8 Os tensores libidinais são variantes (séries ou fluxos) que, no campo de Perlongher, estimulavam desejos, prazeres e potenciais perigos a partir de diferentes articulações. A atuação dos tensores libidinais naquele contexto é que fazia com que o negócio do michê fosse um processo mais complexo que uma transação sexual e monetária banal, ou, nas palavras de Júlio Simões (2008) , tratava-se de uma engrenagem mais ampla que um “quadro de mercantilização sexual”. Em vista disso, os tensores libidinais abrem a possibilidade de diferentes matizes de relações engendradas entre as pessoas envolvidas no negócio do desejo. Em nossa análise, quando elencamos as histórias contadas por André, Tereza e Antônia , é possível perceber diferentes articulações de tensores libidinais na concretização dos agenciamentos desejantes de nossas personagens. . Segundo Néstor Perlongher, a partir de sua pesquisa com os michês:

Tratar-se-ia então de uma maquinaria que funciona socialmente, articulando séries (ou fluxos) corporais e monetários [...]. Um agenciamento é uma conexão de fluxos: fluxos de dinheiro e desejo, de paixão e de morte, de corpos de clientes (homossexuais marginalizados pela idade e pelo estigma), de corpos prostituídos (adolescentes minorizados pela juventude e pela miséria). Agenciamento específico, singular, onde o desejo [...] põe em movimento um dispositivo social ( Perlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.: 257).

A conexão de fluxos no caso de André aproxima dinheiro e desejo, a partir dos turistas e das promessas de modernidade e cosmopolitismo que povoariam tais mundos. Ao mesmo recorre a trajetória de Tereza , envolta em fluxos de paixão pelos “homens de fora”, numa vida que se impõe além do ordinário. A vida de Antônia também representa um agenciamento de fluxos em relação ao mundo, atravessado por desejo e dinheiro. Ainda que contemos três histórias, afeto, sexo e dinheiro são matizes, algo como fios condutores, que põem a funcionar a maquinaria de nossas personagens.

Há uma dimensão igualmente comum às três. Seja por meio do trabalho sexual ou das paixões (extra)ordinárias, a percepção da concretização do sonho ou de vidas que pareçam mais vivíveis, ou mais próximas daquilo que fora sonhado por elas, apenas se realizaria viajando, descolando-se da terra natal, embarcando rumo ao mundo do turista, seguindo a trupe do circo, ou a galera hippie, paz e amor. Em todas estas situações, o que há no depois não é certo. Mas sabe-se que é lá – e não ali – que o desejo vai se realizar. Para tal realização, o uso tarifado do corpo para fins sexuais (Pocahy, 2012) com nobres e/ou pueris homens, ou uma sequência de amores perros (Pelúcio, 2011), quase uma tragédia mambembe, não interessa muito, porque parece não ser o fim, mas um meio de tentar finalmente ser quem se quer ser. O inusitado é que nossas personagens conseguem isso, quem sabe, voltando pra casa.

Essas histórias que aqui contamos parecem muito próximas das noções de mercados do sexo e economias sexuais. Afinal, há trocas sexuais, afetivas e econômicas nelas. Para tanto é preciso fazer alguns apontamentos entre os dois conceitos. Ambos, a um primeiro olhar, referem-se ao trabalho sexual. No entanto, pensamos que podem ser alargados para refletir, por exemplo, as “ajudas” e projetos afetivos de Tereza 9 9 Sobre a noção de “ajuda” em contextos afetivos e sexuais, ver Fonseca (1996) , Piscitelli (2011) e Passamani (2018) . . A expressão “mercados do sexo” amplia o horizonte de possibilidades das demandas e ofertas de sexo, ou seja, constitui-se para além de um comércio e alocando algumas dessas trocas no campo mesmo de possíveis dádivas ( Piscitelli, 2016PISCITELLI, Adriana. Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas: novas questões conceituais. cadernos pagu (47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp,2016, e16475. ).

A seu turno, pode ser que nossas personagens componham o vasto campo das economias sexuais. Elas, as economias sexuais, fazem parte de uma engrenagem maior de relações sociais. Aliás, nesse âmbito de trocas sexuais e econômicas, a dimensão afetiva é muito presente. Projetos de casamento, por exemplo, são recorrentes ( Cabezas, 2009CABEZAS, Amalia. Economies of Desire, Sex and Tourism in Cuba and the Dominican Republic. Filadélfia, Temple University Press, 2009. ; Cole, 2014COLE, Jennifer. Producing Value among Malagasy Marriage Migrants in France Managing Horizons of Expectation. Current Anthropology, 55 (9). Chicago, 2014, pp. 85-94. ). Em vista disso, conforme Alaman e Passamani (2021)ALAMAN, Jônatas Stritar; PASSAMANI, Guilherme R. Marcas da ‘brasilidade’: negociações em torno de gênero, sexualidade e cor em Portugal. Sexualidad, Salud e Sociedad, 37, Rio de Janeiro, 2021, pp.1-27. , a compreensão do casamento como parte das economias sexuais constituiria o que Amalia Cabezas chama de “sexo tático”. Quer dizer, as economias sexuais guardam uma dimensão afetiva e, por meio do sexo tático, promoveriam “arranjos contingentes e temporários que envolveriam o prazer, o companheirismo e a amizade” (Alaman, Passamani, 2021:4).

Assim, ainda que por diferentes agenciamentos desejantes, André, Tereza e Antônia buscam concretizar seus sonhos e essa concretização dos sonhos parece residir na mobilidade, no trânsito, no devir . Para tanto, é empreendida uma verdadeira engenharia que movimenta as economias do desejo na difícil missão de conseguir sossegar o querer. Se Paulinho da Viola está certo e “ninguém consegue explicar a vida num samba curto”10 10 Paulinho da Viola, Num Samba Curto (1971). , as dobras dos (des)caminhos de nossas personagens ainda seguirão a produzir potências nas próximas reentrâncias, mesmo que uma delas, Antônia , agora continue o seu trottoir como encantada.

Considerações finais

Logo nas primeiras linhas deste texto, notamos como a obra de Néstor Perlongher ambientou-se num horizonte intelectual e político que enxergava as grandes cidades como lócus de experimentação da cidadania, dos direitos e da liberdade, espaço privilegiado de fruição dos desejos e da diferença. No decorrer destas páginas, porém, ao percorrer as narrativas de André, Tereza e Antônia acerca de suas trajetórias, dos seus sonhos e trânsitos, nós tentamos iluminar experiências que, em razão das diferenciações e conflitos que expressam, dissentem dos pressupostos da antinomia rural x urbano que lastreou a identificação da grande cidade como espaço por excelência de encontro das diferenças. Curiosamente, fizemos isso valendo-nos das contribuições do próprio Néstor Perlongher, cujas chaves analíticas têm sido fundamentais aos nossos trabalhos de pesquisa realizados em cidades de menor escala e em suas fronteiras.

Analisar as trajetórias das nossas interlocutoras a partir de conceitos de Néstor Perlongher desassossega-nos em várias frentes. Primeiro porque já nos oferece o desafio de perceber que tais sujeitos deslocam-se, enquanto reconhecemos que não se trata de quaisquer deslocamentos. Não são os deslocamentos clássicos apontados pelos estudos migratórios e que se tornaram máxima em certa parcela dos estudos de gênero e sexualidade: rompe-se com a família de origem na cidade dita pequena do dito interior rumo à realização plena da sexualidade na cidade considerada grande, na metrópole, na capital. Ou seja, não se sai de um aqui para um lá e, no lá, faz-se uma outra vida bem diferente da vida daqui. Se há um pouco disso naquilo que André, Tereza e Antônia nos dizem, seus deslocamentos de modo algum se esgotam nessa perspectiva. Isto porque os vínculos anteriores não são cortados, justamente porque mais que migrar, nossos sujeitos transitam, perambulam, circulam, e nisso, voltam. Assim, as cidades de origem – pequenas, opressoras, conservadoras, interioranas – também podem operar como produtoras de diferenças e complexidades na orquestração de relações sociais não exatamente paroquiais. Cabem muitas vidas impossíveis nos arrabaldes do Brasil. Nossas personagens confirmam isso.

A partir de Perlongher, conseguimos perceber como se processa essa operação, como agenciamentos e relações de poder produzem estratégias de resistência e cuidados de si no sentido de possibilitar um leque maior de estilos de existência. Desejo, produção de diferenças e moralidades estão a todo tempo sendo negociados. André, Tereza e Antônia conseguiram compreender isso muito cedo. Por isso transitam. Por isso transformam-se. Quem sabe, por isso voltam... diferentes. Mas voltam.

Nossas interlocutoras nos dizem que, de fato, não é necessário um processo migratório para os grandes centros urbanos para a realização plena das sexualidades dissidentes. Dizem-nos também, no entanto, que perambular parece inevitável. Sim, André, Tereza e Antônia nos mostram que, na grande maquinaria da sexualidade, a economia do desejo funciona a partir de muitas lógicas experienciadas lá, nos arrabaldes. E mais, elas nos dizem que essas experiências sempre estiveram lá. Que não consistem numa invenção característica ao século XXI e às suas idiossincrasias tecnológicas. Enfim, André, Tereza e Antônia nos contam mais: suas narrativas demonstram que lá, nos arrabaldes, talvez faltasse a curiosidade de um olhar acadêmico mais descentrado, disposto a perceber os conflitos e as diferenças que germinam enquanto as pessoas “vivem suas vidas”.

Néstor Perlongher, sofisticada e poeticamente, disse-nos que a Antropologia é a ciência do sutil, analiticamente sensível. Por esses caminhos de etnografias acerca de vidas infames, sujeitos ordinários e coisas comuns e miúdas, como em um jogo de espelhos, nós conseguimos perceber potências metodológicas que podem nos ajudar, não sabemos se a olhar mais longe, mas apostamos, a olhar mais detidamente. Assim, a análise de diferenças múltiplas coproduzidas em espaços semelhantes, a relevância das narrativas em primeira pessoa e suas estratégias de textualização são contribuições contemporâneas das ciências sociais que, associadas à obra de Perlongher, ajudam-nos a superar algumas percepções sobre espaço e - por que não? - sobre sexualidade no Brasil contemporâneo.

Os sonhos e derivas de André, Tereza e Antônia não nos deixam esquecer que a cidade de origem e aquela que se deseja alcançar não se constituem como espacialidades justapostas, em escala crescente e linear de superação. Existem antes como mundos múltiplos que lhes habitam. E, dessa forma, embalam e constituem André, Tereza e Antônia .

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  • SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.535-546.
  • SIMÕES, Júlio; FRANÇA, Isadora Lins. Do “gueto” ao mercado. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, pp.309-336.
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  • VELHO, Gilberto. A Utopia urbana: um estudo de antropologia social, 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
  • WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Ser socióloga do “mundo rural” na Unicamp: memórias muito vivas. Ruris, 1 (1). Campinas, 2007, pp.13-36.
  • WELCH, Clifford et al. (org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássicas. São Paulo, Editora Unesp; Brasília, Núcleo de Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Rural, 2009.
  • WESTON, K. Get thee to a big city: sexual imaginary and the great gay migration. GLQ: a Journaul of Lesbian and Gay Studies, 2. Durham, 1995, pp.253-277.
  • WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
  • 1
    André tem atualmente 31 anos. Ele se identifica como “moreno escuro”, tem ensino superior completo, considera-se gay e com um corpo “magro/definido”. Diz-se pertencente às classes médias.
  • 2
    Em novembro de 2013, quando concedeu a Roberto a entrevista que subsidia este artigo, Antônia somava 51 anos. Identificava-se como mulher trans e travesti. Era parda e trabalhava como técnica em enfermagem. Antônia faleceu em 2020 em razão de um câncer.
  • 3
    Tereza é uma mulher madura, com traços indígenas evidentes. Filha de família das camadas médias da cidade de Crato-CE, ressaltou em entrevista a falência de seu pai como empresário local. Em uma cidade onde o sobrenome serve como símbolo de distinção, passa a ocupar um lugar ambíguo: ao tempo em que compartilha bens educacionais, trânsitos e moralidades das famílias abastadas dali, tal acesso não condiz com sua situação econômica.
  • 4
    Williams (1989)WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. cita como exemplos: “subúrbio, cidades-dormitório, favelas, complexos industriais, entre outras” (p. 12, passin ).
  • 5
    Além da valorização do modo de produção rural e suas formas de vida como mais próximas a uma experiência originária, outros valores atravessam a antinomia rural-urbano. Por exemplo, a identificação de relações supostamente mais igualitárias no mundo urbano em oposição a hierarquias incontornáveis dos "papéis sociais provincianos”. Nos limites desse artigo, não tomaremos esse relevante debate como objeto de reflexão.
  • 6
    Uma dimensão dessa influência de Perlongher pode ser percebida na importante revisão crítica que Facchini, França e Braz (2014) realizaram sobre os estudos antropológicos brasileiros que entrecruzam questões atinentes a sexualidade, sociabilidade e mercado.
  • 7
    A essa geração pertencem, segundo Carrara e Simões (2007)CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. cadernos pagu (28). Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.65-99. , os trabalhos de Peter Fry (1982)FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. , Carmen Dora Guimarães (2004GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro, Garamond, 2004. [1977]), Edward MacRae (1990)MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. , Jurandir Freire Costa (1992)COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1992. e Maria Luiza Heilborn (2004)HEILBORN, Maria Luiza. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro, Garamond, 2004. , além de Néstor Perlongher.
  • 8
    Os tensores libidinais são variantes (séries ou fluxos) que, no campo de Perlongher, estimulavam desejos, prazeres e potenciais perigos a partir de diferentes articulações. A atuação dos tensores libidinais naquele contexto é que fazia com que o negócio do michê fosse um processo mais complexo que uma transação sexual e monetária banal, ou, nas palavras de Júlio Simões (2008)SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.535-546. , tratava-se de uma engrenagem mais ampla que um “quadro de mercantilização sexual”. Em vista disso, os tensores libidinais abrem a possibilidade de diferentes matizes de relações engendradas entre as pessoas envolvidas no negócio do desejo. Em nossa análise, quando elencamos as histórias contadas por André, Tereza e Antônia , é possível perceber diferentes articulações de tensores libidinais na concretização dos agenciamentos desejantes de nossas personagens.
  • 9
    Sobre a noção de “ajuda” em contextos afetivos e sexuais, ver Fonseca (1996)FONSECA, Cláudia. A dupla carreira da mulher prostituta. Revista Estudos Feministas, 4 (1). Florianópolis, 1996, pp.7-33. , Piscitelli (2011)PISCITELLI, Adriana. Actuar la brasileñidad: tránsitos a partir del mercado del sexo. Etnográfica, 15 (2), Lisboa, 2011, pp.5-29. e Passamani (2018)PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal - MS. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2018. .
  • 10
    Paulinho da Viola, Num Samba Curto (1971).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2022
  • Aceito
    26 Out 2022
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