Acessibilidade / Reportar erro

Ativismo feminista negro digital: políticas estéticas e afetivo-sexuais

Digital Black Feminist Activism: Aesthetic and Sexual-Affective Politics

Resumo

O ativismo negro ganhou força na Internet a partir de 2010, com a presença marcada de jovens mulheres ativistas. Expressão dos novíssimos movimentos sociais, o vocabulário e a prática desses coletivos voltam-se sobretudo às dimensões estéticas, afetivo-sexuais e de representatividade/empoderamento. No presente artigo, analisamos essa nova face do ativismo feminista negro digital no Brasil a partir de análises dos posts do Blogueiras Negras e interações no grupo de Facebook Afrodengo. Concluímos que, ao mesmo tempo que adere a postulados individualizantes alinhados à perspectiva neoliberal, o ativismo feminista negro digital contribui para a politização da subjetividade.

Feminismo negro; Ativismo digital; Novíssimos movimentos sociais

Abstract

Black activism has gained strength on the Internet since 2010 with a marked presence of young women activists. An expression of the newest social movements, the vocabulary and practice of these collectives focus mainly on aesthetics, romantic and sexual relationships, as well as representation and empowerment. In this article, we analyze this new face of digital Black feminist activism in Brazil, based on analyses of blogposts on the Blogueiras Negras site, and interactions in the Facebook group Afrodengo. We conclude that while adhering to individualizing postulates aligned with the neoliberal perspective, digital Black feminist activism contributes to the politicization of subjectivity.

Black feminism; Digital activism; Newest social movements

Introdução

O ativismo negro brasileiro contemporâneo caracteriza-se pela pluralidade organizacional e diversidade de repertórios de mobilização política. O processo de pluralização e diversificação de temáticas, formatos e estratégias de ação ganhou força quando o projeto de construção de uma mobilização negra de caráter nacional e unificado, priorizado a partir de 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), foi perdendo espaço. A partir dos anos 1990, formatos de ativismo negro já existentes em diferentes partes do país ganharam proeminência e trouxeram a lume intersecções inovadoras entre raça, classe, gênero e sexualidade, entre outras temáticas (Rodrigues, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba, Appris, 2020.; Rodrigues; Freitas, 2021RODRIGUES, Cristiano; FREITAS, Viviane G. Ativismo feminista negro no Brasil: Do Movimento de Mulheres Negras ao feminismo interseccional. Revista Brasileira de Ciência Política 34, E238917, 2021, pp.1-54.). Outra face desse processo foi o aumento expressivo do protagonismo de mulheres negras, quer na construção de organizações autônomas ou em entidades mistas, quer na ampliação da discussão das desigualdades raciais que elas trouxeram ao apontar clivagens geracionais, de gênero, orientação sexual, classe, entre outras, no interior da população negra (Rodrigues, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba, Appris, 2020.).

Entre 1990 e 2010, o ativismo negro priorizou três frentes (formatos e estratégias) de intervenção e mobilização política. Nos anos 1990, o foco esteve nas estratégias de advocacy institucional e no fortalecimento de redes transnacionais antirracismo. Nos anos 2000, privilegiou-se os repertórios de interação com o Estado, em particular por via da participação institucionalizada em espaços chancelados pelo Estado e pela ocupação de cargos na burocracia – práticas comuns entre os movimentos sociais durante o período (Abers; Serafim; Tatagiba, 2014). A partir de 2010, o ativismo negro nas redes sociais ganhou força. Esse tipo de ativismo conta com destacada participação de jovens mulheres em coletivos pouco direcionados ao diálogo com o Estado e que contam primordialmente com repertórios forjados na Internet. Seu vocabulário e suas práticas são voltados, amiúde, para as questões da representatividade e do empoderamento individuais, marcando importantes elementos de continuidade e rompimento com o padrão de ativismo negro institucional que se tornou hegemônico entre as décadas de 1990 e 2000 (Rodrigues, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba, Appris, 2020.).

A emergência dos coletivos negros universitários e do ativismo feminista negro digital no Brasil contemporâneo é parte dessa configuração inovadora de ação coletiva, forjada através ou com o apoio das tecnologias da informação e comunicação (TICs), as quais, por sua vez, ampliaram sobremaneira o alcance de diversas formas de ativismo. Embora herdeiro dos modelos anteriores e mais tradicionais do ativismo negro (como o MNU e as ONGs de mulheres negras), o ativismo feminista negro digital que analisamos aqui não constitui necessariamente um movimento social. Nesse sentido, ele se aproxima mais daquilo que Carla Gomes (2018)GOMES, Carla C. Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo brasileiro: a marcha das vadias do Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Antropologia), UFRJ, Rio de Janeiro, 2018. define como “corpos-bandeira”, ou táticas políticas que enfatizam a identidade, a experiência e o essencialismo estratégico. Nesse contexto, debates sobre estética negra e os relacionamentos afetivo-sexuais são tomados como objetos de disputa política de modos e proporções inéditos.

Neste artigo, analisamos como o ativismo feminista negro digital mobiliza a estética e a afetividade (aqui, sempre referida também à sexualidade), com vistas a compreender as transformações recentes no ativismo e suas implicações mais amplas para o movimento de mulheres negras. Com esse objetivo, analisamos 835 postagens do blog Blogueiras Negras (BN) e realizamos observações no grupo de Facebook Afrodengo para contemplar interações e comportamentos em debates sobre gênero e raça. Com a crescente incorporação da tecnologia no dia a dia das pessoas, as estratégias empregadas para investigações científicas na Internet e nas mídias virtuais, ainda que demandem alguma criatividade por parte do/a pesquisador/a, não diferem essencialmente daquelas adequadas à observação face a face (Hine, 2000HINE, Christine. Virtual Ethnography. London, Sage, 2000.; Campanella, 2015CAMPANELLA, B. Por uma etnografia para a Internet: transformações e novos desafios. MATRIZes, 9(2), 2015, pp.167-173.). Uma particularidade da investigação em ambientes online é a possibilidade de capturar discursos e comportamentos que se desenvolvem e se rearticulam em um meio mais disperso e geral, uma vez que centrado em conexões ao invés de em localidades (Hine, 2000HINE, Christine. Virtual Ethnography. London, Sage, 2000.). Neste estudo, apreendemos as linhas gerais do debate e as práticas que vêm ganhando força em todo o país a partir das redes sociais e que passam a influenciar cada vez mais a vida das pessoas na e a partir da Internet.

Na primeira seção do artigo, discutimos como a estética e as relações afetivo-sexuais emergem em diversos momentos da história do ativismo negro brasileiro contemporâneo. A seguir, discutimos os impactos das TICs sobre os novíssimos movimentos sociais e discorremos sobre o surgimento de novas ferramentas, táticas, espaços e atores coletivos no ambiente online. Nas duas seções seguintes, respectivamente, analisamos como a estética e os relacionamentos afetivo-sexuais são mobilizados no Blogueiras Negras e no Afrodengo. Por fim, valemo-nos dos achados de nossas pesquisas para refletir sobre o ativismo negro e o ativismo de mulheres negras no Brasil e suas implicações para as práticas observadas.

Estética e afetividade no ativismo negro

Uma miríade de contranarrativas ao discurso racial hegemônico tem sido produzida por coletivos negros no decorrer da história brasileira (Moura, 1988MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988.), com reivindicação de igualdade e justiça social para a população negra, em termos materiais e simbólicos, tendo em vista o combate ao racismo (Pereira, A., 2019; Rodrigues, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba, Appris, 2020.).

No âmbito das demandas materiais, o ativismo negro reivindica medidas para a inserção equitativa da população negra na sociedade brasileira, superando a condição de marginalização. Ao mesmo tempo, frente à generalizada representação negativa da população negra, o ativismo negro busca ampliar a disseminação de formulações simbólicas positivas sobre a negritude, favorecendo a autoidentificação de um contingente maior de brasileiros/as como negros/as, a valorização estética de traços associados à negritude e do par negro. A atuação dos movimentos sociais prioriza promover condições de vida mais favoráveis à população negra, melhorando sua inserção no mercado de trabalho e seu acesso à educação, mas estende-se também ao âmbito da estética e da identidade.

No imaginário ocidental moderno, a valorização estética constitui um dos alicerces da construção de raça como categoria hierárquica e de diferença fundamental entre seres humanos. Formuladas inicialmente pelos filósofos e teóricos do racismo científico no século XIX, as escalas de beleza foram concebidas a partir de representações de diferenças físicas e estabeleciam comparações entre africanos/as, cujos rostos eram retratados à semelhança de macacos, e europeus/eias, cujas feições eram ilustradas por esculturas gregas (Young, 2005YOUNG, Robert C. G. Desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo, Perspectiva, 2005.). Representações como essas serviam ao propósito de “comprovar” a “natureza inferior” e “anacrônica” tanto do corpo feminino quanto da anatomia dos povos “primitivos”. Aparência e fisionomia foram tratadas como evidências de qualidades temperamentais – tais como racionalidade, de um lado, e apetite sexual acentuado e “primitivo”, de outro (McClintock, 2010MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010.).

A partir do período moderno, estereótipos sobre a sexualidade dos grupos sociais passaram a justificar a designação de lugares diferenciados na escala entre animal (ou primitivo) e plenamente humano. De acordo com concepções de diferença racial forjadas pelo racismo científico do século XIX, pessoas negras estariam dotadas de uma sexualidade atraente, mas perigosa, bem como de uma fertilidade ilimitada e ameaçadora (Young, 2005YOUNG, Robert C. G. Desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo, Perspectiva, 2005.). Sua proeminência sexual se oporia às capacidades intelectuais e à fisionomia atribuídas ao grupo branco, o qual estaria dotado de uma mente mais desenvolvida e aparência harmônica – evidências de sua superioridade racial.

Na formação racial brasileira, sexualidade e raça estão intimamente conectadas (Goldstein, 1999GOLDSTEIN, Donna M. “Interracial” sex and racial democracy in Brazil: twin concepts? American Anthropologist, 101(3), 1999, pp.563-578.), a ponto de, como indicou Roger Bastide (1961)BASTIDE, Roger. Dusky Venus, black Apollo. Race 3(1), 1961, pp.10-18., a pergunta “raça” sempre ensejar a resposta “sexo”. Nas narrativas sobre a formação da nação brasileira, a hipersexualização das mulheres negras adquire importância substancial, pois elas são tomadas como as “mediadoras” entre culturas e raças (Giacomini, 1994GIACOMINI, Sônia. Beleza mulata e beleza negra. Revista Estudos Feministas (94), 1994, pp.217-227.). De fato, a imagem do corpo feminino negro que “exerce” um apelo sexual é empregada para romantizar as práticas sexuais sádicas e exploratórias sistemáticas dos homens brancos em relação às mulheres não brancas (Carneiro, 2003CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA Empreendimentos Sociais; TAKANO CIDADANIA (org.). Racismos Contemporâneo. Rio de Janeiro, Takano Editora, 2003, pp.49-58.).

As influências duradouras do racismo científico no Brasil verificam-se nas representações do corpo negro como hipersexualizado, na leitura de traços associados à negritude como sinônimos de feiura e no arcabouço dos esforços eugênicos deflagrados no início do século XX. Rearticulando princípios das teorias do racismo científico em projetos nacionais de “melhoria” da população, intelectuais e políticos encontraram na mestiçagem um dos caminhos para modernizar a nação, guiados por miragens de um povo brasileiro de fenótipo claro e racialmente homogêneo a ser alcançado no decorrer das gerações (Bento, 2009BENTO, Maria Aparecida S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida S. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis-RJ, Vozes, 2009, pp.25-57.; Jarrín, 2017JARRÍN, Alvaro. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland, CA, University of California Press, 2017.; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.). “Modernizar” era também um projeto de “embelezar” a sociedade, livrando o país de seus elementos mais “feios” – isto é, de tez mais escura (Jarrín, 2017JARRÍN, Alvaro. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland, CA, University of California Press, 2017.).

No Brasil contemporâneo, os critérios de julgamento e os juízos estéticos são definidos tendo em vista raça e classe, amiúde codificados em expressões aparentemente neutras. Um lugar do qual se diz ser frequentado por “gente bonita” designa um espaço social de circulação de pessoas das camadas médias e altas e de tez clara, ao passo que a feiura é atribuída genericamente a pessoas “pretas e pobres”. “Boa aparência”, termo usualmente empregado para descrever requisitos para vagas de trabalho, designa, de forma implícita, a preferência por candidatos/as brancos/as ou de tez clara e de aparência e comportamento identificados com códigos das classes médias (Gonzalez, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, 2(1), 1984, pp. 223-244.; Gordon, 2013GORDON, Doreen. A beleza abre portas: beauty and the racialised body among black middle-class women in Salvador. Feminist Theory, 14(2), 2013, pp.203-218.; Jarrín, 2017JARRÍN, Alvaro. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland, CA, University of California Press, 2017.).

O ideal de beleza branco prevalece e é amplamente disseminado pelos meios de comunicação, pela moda e pela indústria de cosméticos. Mulheres loiras, como a modelo Gisele Bündchen, são consideradas ícones de beleza. Na televisão, que dispõe de significativa influência sobre a vida cotidiana dos/as brasileiros/as, pessoas negras ainda são escassas e, quando presentes, são retratadas de modo pejorativo: em condições de subserviência, pobreza e incorporando o arquétipo da feiura (Hordge-Freeman, 2015HORDGE-FREEMAN, Elizabeth. The color of love: racial features, stigma and socialization in black Brazilian families. Austin, University of Texas Press, 2015.; Pinho, 2009PINHO, Patrícia S. White but not quite: tones and overtones of whiteness in Brazil. Small Axe, 13(2), 2009, pp.39-56.).

Entre os segmentos negros, a ideologia do branqueamento ou do embranquecimento (Andrews, 2014ANDREWS, George. R. América Afro-latina: 1800-2000. São Carlos, EdUFSCar, 2014.; Gonzalez, 1988GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de Amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro (92/93), 1988, pp.69-82.) promove a valorização simbólica da branquitude e o desprezo pela negritude e pelos traços fenotípicos que a identificam. Seus impactos na autoestima de pessoas negras desdobram-se na busca por aproximação das camadas brancas e afastamento dos/as demais negros/as (Bicudo, 2010BICUDO, Virgínia L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo, Editora Sociologia e Política, 2010 [1945]. [1945]; Moura, 1988MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988.) – inclusive na esfera íntima (Pereira, B., 2020).

A despeito dos esforços do movimento negro, a representação da hipersexualidade negra ainda se faz presente no imaginário nacional (Moutinho, 2004MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, UNESP, 2004.). Homens negros e mulheres negras são considerados/as sexualmente desviantes, vistos/as como incapazes de performar os papéis modelares de gênero e, logo, de se organizar em núcleos familiares “estruturados” (Giacomini, 2006GIACOMINI, Sônia. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da zona norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte; Rio de Janeiro, Editora UFMG; IUPERJ, 2006.; Pacheco, 2013PACHECO, Ana Cláudia. Mulher negra: afetividade e solidão. Salvador, EDUFBA, 2013.). Além disso, as mulheres negras são frequentemente associadas à hipersexualidade e à prostituição (Osuji, 2013OSUJI, Chinyere. Confronting whitening in an era of black consciousness: racial ideology and black-white interracial marriages in Rio de Janeiro. Ethnic and Racial Studies, 36(10), 2013, pp.1490-1506.; Williams, 2013WILLIAMS, Erica Lorraine. Sex tourism in Bahia: ambiguous entanglements. Champaign, IL, University of Illinois Press, 2013.).

Como desdobramento, no âmbito estético-afetivo, a supremacia branca1 1 Aqui, “supremacia branca” refere-se à imposição de hierarquias raciais com o domínio do grupo branco de uma maneira geral. configura-se pela superioridade (em termos de beleza e status) atribuída a pessoas brancas e na preferência por compor com elas relacionamentos “oficiais”, amplamente disseminada entre brancos/as e negros/as. A branquitude funciona como uma força centrípeta, com um fluxo de desejo em direção aos/às brancos/as, ao passo que pessoas negras – e, sobretudo, as mulheres negras – são, muitas vezes, rejeitadas, escondidas ou instadas a “compensar” de alguma forma o menor status atribuído à sua cor quando em um relacionamento. Nos relacionamentos interraciais, o interesse por uma sexualidade “exacerbada” e “exótica” emerge como o principal fator de atração do par branco em relação às mulheres negras (Pereira, B., 2020).

Ao longo de sua história, o movimento negro vem promovendo ações voltadas a romper com essa valorização simbólica da branquitude e contestar a ideia de inferioridade estética da população negra. Nos anos 1970, grupos de afoxé, comunidades religiosas afro-brasileiras, blocos carnavalescos e clubes sociais negros passaram a politizar a estética e o afeto por meio de eventos-manifestações. A Noite da Beleza Negra, concurso que acontece anualmente desde 1975 na sede do Ilê Aiyê em Salvador, os Bailes Soul e o Movimento Black Rio, que reuniam ativistas do movimento negro e jovens dos subúrbios cariocas na década de 1970, são alguns dos exemplos de espaços constituídos para fortalecer a identidade, a autoestima e o orgulho negros (Giacomini, 2006GIACOMINI, Sônia. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da zona norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte; Rio de Janeiro, Editora UFMG; IUPERJ, 2006.; Peixoto; Sebadelhe, 2016PEIXOTO, Luiz F. L.; SEBADELHE, Zé Octavio. 1976: Movimento Black Rio. Rio de Janeiro, José Olympio, 2016.).

As reivindicações no âmbito da estética foram acompanhadas por reivindicações no âmbito afetivo-sexual, com representações alternativas do casal negro. O casal negro heterossexual é tomado como uma forma de resistência ao racismo, ainda que haja algumas nuanças próprias a cada época em que a representação é mobilizada. Um exemplo emblemático é o número 19 do jornal do Movimento Negro Unificado, referente a maio, junho e julho de 1991, que trouxe em sua capa a foto de um casal negro se beijando, acompanhada da frase “Reaja à violência policial: beije sua preta em praça pública”, do poeta Cuti2 2 Pseudônimo de Luiz Silva, poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e ativista do movimento negro. . Afeto e ativismo contra a violência policial racista são aqui retratados como o móvel do relacionamento, ao mesmo tempo que se exalta a beleza negra. Mais recentemente, tem ganhado força no movimento negro – sobretudo pela atuação das ativistas e intelectuais negras – a demanda pela “politização do amor”, como contraponto à preferência pelo par branco (Flauzina, 2015FLAUZINA, Ana Luiza P. Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília-DF, Brado Negro, 2015.), e pela construção de representações positivas do vínculo entre pessoas negras, combatendo-se assim a desvalorização estética dos negros/as e as imagens que os/as retratam como hipersexualizados/as.

No início da década de 2010, os debates sobre os efeitos do racismo para a afetividade negra em geral e, particularmente, sobre a maneira como ele resulta na “solidão da mulher negra” começaram a ganhar força entre ativistas e não-ativistas (Pacheco, 2013PACHECO, Ana Cláudia. Mulher negra: afetividade e solidão. Salvador, EDUFBA, 2013.; Moutinho; Alves; Mateuzi, 2016). A expressão tem sido muito utilizada nos círculos intelectuais e de militância negra, empregada sobretudo por mulheres negras. Ela se refere, de maneira genérica, ao abandono, desprezo, rebaixamento, humilhação e sofrimento experimentados por mulheres negras no âmbito afetivo. Trata, ainda, da demanda por respeito, dignidade e prazer no âmbito das relações. Apesar de a expressão também ser debatida em espaços ativistas offline, é na Internet que as discussões sobre o tema têm encontrado um espaço privilegiado. Nesse aspecto, o ativismo negro ressoa mudanças recentes que vêm reconfigurando o fazer do ativismo e dos movimentos sociais em geral.

Coletivos negros universitários, novíssimos movimentos sociais e ativismo feminista negro digital

A expansão dos debates sobre estética e afetividade negras na Internet está relacionada a três fatores distintos, mas inter-relacionados: o surgimento de coletivos negros nas universidades brasileiras, a transnacionalização dos “novíssimos movimentos sociais” e a expansão do ativismo digital, com a popularização das redes sociais e dos smartphones.

Os coletivos constituem organizações fluidas, informais, horizontais e ideologicamente distantes da política institucional e dos movimentos sociais tradicionais (Perez; Souza, 2017PEREZ, Olívia C.; SOUZA, Bruno M. Velhos, novos ou novíssimos movimentos sociais? As pautas e práticas dos coletivos. Anais do 41o Encontro Anual da Anpocs, 2017.). Os coletivos negros universitários surgiram na esteira do processo de democratização do ensino superior público, decorrente da implementação de ações afirmativas a partir dos anos 2000, e são inspirados nos coletivos feministas negros dos anos 1970 e 1980, que defendiam horizontalidade na tomada de decisões e formatos não-hierárquicos de organização. Eles caracterizam-se pela quebra de hierarquia de gênero, uma vez que muitas de suas lideranças são mulheres e pessoas LGBTQIA+, mas também por suas diferenças ideológicas em relação às organizações tradicionais de movimentos sociais (Guimarães; Rios; Sotero, 2020). A agenda desses coletivos é marcada pela articulação entre gênero, raça e sexualidade (Rios; Perez; Ricoldi, 2018).

Tais grupos atuam fortemente em ambientes digitais, especialmente nas redes sociais – Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp –, mas também em blogs e em canais do Youtube. Seu alcance e visibilidade na Internet são significativamente maiores que o número de pessoas que participam cotidianamente das atividades organizativas desses. O uso dessas diferentes plataformas também é variado: blogs, canais de Youtube, páginas de Facebook, Twitter e Instagram são meios de divulgação das ações dos coletivos. Já os grupos fechados funcionam como espaços de articulação e execução de tarefas internas (Guimarães; Rios; Sotero, 2020).

Os coletivos negros distanciam-se do formato de ativismo institucional que caracterizou as organizações do movimento negro nas décadas de 1990 e 2000 e se aproximam de um conjunto de ações coletivas que emergiram em diferentes países a partir de finais dos anos 2000, tais como a Primavera Árabe, o 15-M na Espanha, o Occupy Wall Street nos EUA e as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil. Essas ações coletivas emergentes têm sido chamadas de novíssimos movimentos sociais pelos teóricos do campo (Perez, 2019PEREZ, Olívia C. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho. Opinião Pública, 25(3), 2019, pp.577-96.). Carentes de liderança, de um projeto de continuidade e de opositores/as, esses coletivos não constituem movimentos sociais (Perez, 2019PEREZ, Olívia C. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho. Opinião Pública, 25(3), 2019, pp.577-96.) – embora possam vir a sê-lo (Gohn, 2017GOHN, Maria da Glória M. Manifestações e protestos no Brasil. São Paulo, Cortez, 2017.).

Com efeito, coletivos tais como o Blogueiras Negras e o Afrodengo, que analisamos neste artigo, recusam o uso do termo “movimentos sociais” para classificar seus discursos e ações políticas – assim como outros coletivos caracterizados como novíssimos movimentos sociais (Facchini; Carmo; Lima 2020). Eles são parte de novo formato de ativismo, o ativismo digital, cuja consolidação caminha pari passu com a crescente importância da Internet e das mídias digitais para a sociabilidade e o fazer político. Hoje, a ação coletiva faz uso de instrumentos variados, ocupa novos espaços e inclui uma infinidade de atores, bem como observa importantes mudanças relativas às temáticas priorizadas. A atuação política via Internet muitas vezes substitui ou complementa as formas tradicionais de ação coletiva, prescinde ou mesmo rechaça lideranças, e atua a partir de laços digitais efêmeros entre ativistas que se encontram fisicamente distantes (Bennett; Segerberg, 2013BENNETT, W. Lance; SEGERBERG, Alexandra. The logic of connective action: digital media and the personalization. New York, Cambridge University Press, 2013.; Carty, 2015CARTY, Victoria. Social movements and new technology. New York, Routledge, 2015.).

O ativismo feminista negro digital brasileiro surgiu à esteira da experiência adquirida nos coletivos negros universitários, da popularização dos blogs nos anos 2000 e da emergência de uma quarta onda feminista na América Latina. Esta, por sua vez, caracteriza-se pelo uso massivo de redes sociais e da tecnologia (tal como o feminismo hashtag)3 3 Essa variante contemporânea do feminismo se caracteriza por criar e difundir hashtags, de maneira fragmentada, para realizar campanhas virtuais contra o assédio, violência de gênero, entre outras, e/ou convocar pessoas para participarem de mobilizações nas ruas. Para maior aprofundamento ver Sarmento (2021). , pelo aprofundamento de discussões sobre identidade e corpo e pelo engajamento em torno de questões já amplamente debatidas em outros momentos pelo feminismo, mas ainda não resolvidas, tais como violência de gênero, representação política, direitos sexuais e direitos reprodutivos (Rodrigues; Freitas, 2021RODRIGUES, Cristiano; FREITAS, Viviane G. Ativismo feminista negro no Brasil: Do Movimento de Mulheres Negras ao feminismo interseccional. Revista Brasileira de Ciência Política 34, E238917, 2021, pp.1-54.).

Foi a partir da criação do Blogueiras Negras em 2013 que o ativismo feminista negro digital brasileiro começou a ganhar visibilidade. Um dos seus objetivos é conscientizar seu público e alterar a forma como pensam e tratam mulheres negras, desafiando o racismo e o sexismo. Nesse cenário, os debates sobre transição capilar e afetividade da mulher negra ganharam uma centralidade nunca vista e alcançaram uma audiência muito mais ampla do que ativistas e organizações do movimento negro conseguiram no passado.

Na última década, disputas sobre textura capilar tornaram-se o principal foco de debates em torno da estética negra. Segundo pesquisa do Google, as buscas por “cabelo afro” entre 2015 e 2017 no Brasil aumentaram 309%, superando as buscas por “cabelo liso” (Brandlab, 2017). Considerando-se apenas o Instagram, hasghtags sobre transição capilar já ultrapassaram mais de 3 milhões de marcações. As influenciadoras digitais sobre o tema, assim como seu público, são majoritariamente jovens negras que estão passando ou passaram pela experiência de transição capilar. Elas compartilham suas experiências, produtos e técnicas para lidar com diferentes texturas de cabelo. Criam, assim, uma rede de solidariedade e apoio diante das críticas racistas e misóginas ao longo do processo. Além disso, o movimento de transição capilar contribuiu para uma transformação da indústria de cosméticos, que passou a criar marcas e incluir uma gama mais ampla de produtos para cabelos cacheados e crespos. A interseção entre o ativismo feminista negro e a tecnocultura transformou a Internet em um salão de beleza virtual (Steele, 2021STEELE, Catherine K. Digital black feminism. New York, NYU Press, 2021.).

Como será visto, debates online sobre estética negra são frequentemente acompanhados de discussões sobre “amor negro” e “solidão da mulher negra”. Nossa escolha por analisar como as temáticas da estética e da afetividade são mobilizadas no Blogueiras Negras e no Afrodengo parte dessa constatação. Trata-se de ambientes comunicacionais distintos: o primeiro adota estratégias e discursos voltados para um público mais amplo, das blogueiras com o público; o segundo, para um público mais reduzido, e funciona pela troca entre integrantes. Entendemos que, em suas diferenças, operam em dimensões essenciais para compreensão do ativismo feminista negro contemporâneo e, como tal, são loci privilegiados de observação dos enfoques, estratégias e temáticas que emergem como parte de sua ação coletiva.

Estética, afetividade e sexualidade no Blogueiras Negras4

O Blogueiras Negras (BN) foi fundado, em maio de 2013, pelas feministas interseccionais Larissa Santiago, Charô Nunes e Maria Rita Casagrande. Elas se conheceram no Blogueiras Feministas, um blog coletivo feminista e fórum de discussão no Google, fundado em 2010. Raramente, o Blogueiras Feministas produzia textos articulando gênero e raça: entre 2010 e 2012, elas publicaram 282 textos dos quais apenas três discutiam raça e gênero (Rodrigues; Freitas, 2021RODRIGUES, Cristiano; FREITAS, Viviane G. Ativismo feminista negro no Brasil: Do Movimento de Mulheres Negras ao feminismo interseccional. Revista Brasileira de Ciência Política 34, E238917, 2021, pp.1-54.). Frente à ausência do debate racial, Santiago, Nunes e Casagrande realizaram a Blogagem Coletiva Mulher Negra, entre 20 e 25 de novembro de 2012, uma iniciativa online que visava a aglutinar as discussões sobre o Dia da Consciência Negra (celebrado no dia 20) e o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher (celebrado no dia 25).

O BN foi criado a partir da Blogagem Coletiva e como um manifesto em forma de postagem coletiva, com o objetivo de chamar a atenção para a invisibilidade observada por jovens feministas negras em outras plataformas de debate feminista via Internet, conforme elas próprias descrevem na seção “Quem somos” do blog:

[...] temos em nossa origem a Blogagem Coletiva Mulher Negra [...] cujo objetivo foi a aproximação de discussões acerca do Dia da Consciência Negra e do Dia Internacional de Não Violência contra a Mulher. O sucesso do projeto revelou não somente a existência de um grupo de blogueiras negras e afrodescendentes escrevendo muito bem e muito, mas também a necessidade de criarmos espaços de visibilidade para produção tão significativa (Blogueiras Negras, s.d.).

Atualmente, o BN é coordenado por Charô Nunes, Larissa Santiago e Viviane Gomes que, juntamente com uma equipe de editoras, seleciona os textos a serem publicados no blog e se dedicam à manutenção da plataforma. Entre 2013 e 2020, aproximadamente 400 mulheres negras participaram do blog como autoras eventuais e fixas, e mais de 1000 posts foram publicados no período. O BN também mantém perfis no Facebook e no Twitter. Em outubro de 2022, o coletivo contava com 218.260 seguidores/as no Facebook e 48 mil, no Twitter. Tal qual ocorre com os coletivos negros universitários, o público-alvo do BN é composto principalmente por jovens mulheres negras urbanas, de classe média baixa, com bom nível educacional.

O BN se apresenta como uma plataforma que prioriza o feminismo negro e interseccional, conforme podemos observar no texto de apresentação do blog:

Somos uma comunidade muito produtiva de blogueiras dispostas a tornar a escrita uma ferramenta contra opressões incidentes sobre a mulher negra [,] como racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia, homofobia, classismo e gordofobia. Nós também somos uma comunidade, área de recepção, de energia, de reabilitação e visibilidade, além de espaço para perguntas, palavras e pedidos de mulheres negras. Acreditamos que a troca de experiências e de questões através do ativismo compartilhado não é apenas desejável, mas imprescindível. Nós celebramos quem fomos, quem somos e quem queremos ser. O Blogueiras Negras é construído por uma comunidade de mulheres negras comprometidas com gênero e raça (Blogueiras Negras, s.d.).

Para este artigo, analisamos o conteúdo e principais temáticas de 835 textos, postados entre 2016 e 2020. As postagens foram listadas, catalogadas e analisadas a partir dos seguintes eixos: (a) o público-alvo – com quem elas interagem, em alinhamento ou oposição; (b) a narrativa central dos posts – temas mais recorrentes, os que recebem o maior número de compartilhamentos, o que nos permite analisar a formação das identidades coletivas e dos jogos discursivos de enfretamento político; e (c) a análise das postagens com maior impacto, maior número de compartilhamentos e comentários favoráveis e/ou desfavoráveis.

Segundo a análise empreendida, os principais temas discutidos no BN são: estética, relacionamentos afetivo-sexuais, representatividade e empoderamento individuais. O Quadro 1 apresenta o número de postagens sobre sexualidade, afeto e afetividade no BN, entre 2016 e 2020. Ao todo, foram publicados 39 textos, cobrindo diferentes aspectos das temáticas. A análise dos posts revela que os principais temas das postagens são: os relacionamentos afetivo-sexuais (17 posts), a solidão da mulher negra (9), mulheres negras lésbicas e bissexuais (5 posts). Nos posts analisados, as mulheres negras expressam solidariedade umas às outras em razão de considerarem a “dororidade”5 5 O termo foi proposto por Vilma Piedade (2017) para designar a empatia entre mulheres negras em virtude de experiências comuns de dor, decorrentes do racismo. um traço comum às suas experiências afetivo-sexuais. A possibilidade de sair da solidão por meio de relacionamentos afetivos é vista com ceticismo na maioria dos textos. A relação com homens também é considerada com reservas, mesmo com homens negros, cuja preferência por mulheres brancas em detrimento das mulheres negras é percebida como uma internalização do racismo contra si próprios. Ao trazer tais questões à tona, o BN consolida-se como um espaço de debates sobre questões consideradas menos relevantes ou mesmo prejudiciais aos homens negros ou à comunidade negra em outros âmbitos do ativismo, mas que versam sobre maneiras como o racismo e o sexismo são vivenciados cotidianamente por mulheres negras na esfera da intimidade.

Quadro 1
– Postagens sobre sexualidade, afeto/afetividade por ano (2016 – 2020)

Os posts analisados discutem principalmente relacionamentos heterossexuais, fazem poucas referências às mulheres brancas (em geral, apenas para apontar a preferência de homens negros por mulheres brancas) e mencionam relacionamentos lésbicos e bissexuais a partir de uma perspectiva heteronormativa e monogâmica. A narrativa central dos posts pode ser exemplificada pela passagem abaixo:

Sabemos[,] cientificamente[,] que elas não conseguem companheiros ou companheiras para dividir os bons e maus momentos de suas caminhadas. Elas estão sós nas suas dores e nas suas glórias. Enfrentam salas de parto, hospitais, prisões e cemitérios sozinhas. Estão sozinhas porque estudaram demais. Estão sozinhas porque foram sexualizadas demais. Estão sozinhas porque são fortes demais. Estão sozinhas porque são bonitas e feias demais (Carvalho, 2016CARVALHO, Layla P. Das diferentes solidões da mulher negra: do estar sozinha ao ser exótica. Blogueiras Negras, 2016 [http://blogueirasnegras.org/das-diferentes-solidoes-da-mulher-negra/ - acesso: 20 maio 2022].
http://blogueirasnegras.org/das-diferent...
).

O Quadro 2 apresenta o número de postagens sobre corpo, beleza e estética no BN entre 2016 e 2020. Nos anos considerados, foram publicados 16 textos abordando temas relativos à estética. O número parece reduzido frente à centralidade do tema para o BN, o que se justifica pelo fato de que a maioria dos posts sobre o assunto tenha sido publicada até 2015 – período não coberto por nossa análise.

Quadro 2
– Postagens sobre corpo, beleza e estética por ano (2016 – 2020)

Os temas tratados nas postagens são: aceitação do corpo e autoestima (5 posts), estética negra (3 posts), transição capilar e beleza (2 posts), saúde e padrões de beleza (2 posts), saúde mental e autoestima (2 posts). A frequência com que tais termos são mobilizados nos posts e comentários no BN demonstram que mulheres negras se apropriam das TICs para produzir, consolidar e disseminar saberes identitários, políticos e estéticos-corpóreos alternativos (Gomes, N. 2017). Sua atuação nas redes sociais busca forjar uma comunidade contra-hegemônica, capaz de ressignificar a estética negra e construir um sentido fora dos estereótipos, da reprodução de padrões de beleza brancos e mover-se em direção a um projeto de emancipação coletiva. Esse projeto pode ser observado na narrativa central dos posts publicados no BN e exemplificada pelo excerto abaixo:

Podemos afirmar que a estética negra é, sem sombra de dúvidas, um instrumento de autoaceitação, de resistência, de empoderamento, uma forma de mostrar que não aceitamos o padrão socialmente imposto, mas que o negro é belo, é lindo, é diverso, é versátil. Somos seres políticos e a nossa opção estética diz muito sobre nós, nossas crenças, nossos valores, afirma nossa existência e nossa resistência contra as tentativas de nos enquadrar em modismos que banalizam nossa cultura, nossa estética (Anunciada, 2016ANUNCIADA, Patricia. Estética negra, opressão e resistência. Blogueiras Negras, 2016 [http://blogueirasnegras.org/estetica-negra-opressao-e-resistencia - acesso em: 20 maio 2022].
http://blogueirasnegras.org/estetica-neg...
).

As subtemáticas mais comentadas e compartilhadas do período analisado são as seguintes: estética negra, cabelo e solidão da mulher negra em relacionamentos afetivos. A prevalência desses temas ao longo dos anos revela, por um lado, que corpo e experiência são categorias preponderantes no ativismo feminista negro digital brasileiro, como sugere Carla Gomes (2018)GOMES, Carla C. Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo brasileiro: a marcha das vadias do Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Antropologia), UFRJ, Rio de Janeiro, 2018. com o conceito de “corpos-bandeira”. Por outro lado, essas discussões estão impulsionadas pela dinâmica capitalista, com acentuada ênfase em consumo – uma descontinuidade em relação ao movimento de mulheres negras, que originalmente, alinhava-se à pauta anticapitalista (Rodrigues; Freitas, 2021RODRIGUES, Cristiano; FREITAS, Viviane G. Ativismo feminista negro no Brasil: Do Movimento de Mulheres Negras ao feminismo interseccional. Revista Brasileira de Ciência Política 34, E238917, 2021, pp.1-54.). O foco nas experiências individuais e em noções simplistas de empoderamento e resistência convergem para o que Nancy Fraser (2017)FRASER, Nancy. The End of Progressive Neoliberalism. Dissent, 2017 [https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser/ - acesso em: 27 maio 2022].
https://www.dissentmagazine.org/online_a...
chama de “neoliberalismo progressista”, ou seja, para uma aliança entre setores dos movimentos feminista, antirracismo e LGBTQIA+ e domínios modernos e dinâmicos da economia, como a indústria de tecnologia, com tendência a focar no acesso e reconhecimento de poucos em detrimento de muitos/as.

Afrodengo: território de afetos e disputas6

Uma alternativa disponível para as pessoas negras que queiram fugir das dinâmicas típicas de rejeição e objetificação sexual ou que baseiam suas escolhas na política de “amor afrocentrado”7 7 A proposta do amor afrocentradodefende o envolvimento afetivo-sexual exclusivamente entre pessoas negras como forma de ativismo antirracista (Borges, 2014). é recorrer a aplicativos e redes sociais voltados exclusivamente para o público negro, tais como AfriDate, Sanka, Pretinder & Afrocentrados e o Afrodengo.

Criado em 2016, o Afrodengo é um grupo privado no Facebook, no qual realizamos uma observação entre os meses de setembro e outubro de 2018, acompanhando posts anteriores e as interações travadas durante esse período, com foco nas experiências das mulheres negras. Em junho de 2020, o grupo contava com a participação de mais de 53 mil membros. A entrada está sujeita à aprovação, como forma de garantir a presença exclusiva de pessoas negras e maiores de 18 anos. Quando aceito/a, o/a participante tem acesso à seguinte descrição:

Quem não gosta de um dengo? Palavra que vem da língua Kikongo, de origem africana (norte da Angola) [,] que significa “carinho”, “agrado”. Tão presente no linguajar da população negra e no vocabulário brasileiro, expressa nossa forma de amar, dar colo, fazer um cafuné, um abraço, dar amor.

O Afrodengo é um grupo de paquera virtual criado para pessoas negras e tem como proposta ser um espaço de interação, flerte, construção de relações saudáveis, saídas casuais [,] com o intuito de fortalecer a afetividade negra (tão abalada no período pós-abolição). Também é um espaço para dialogar sobre a importância do amor para população preta e todas as suas nuances.

Paquerem, se amem, combinem, se beijem, se abracem, deem dengo, transem, pratiquem a sarrada e o negro amor em sua máxima essência, para além do mundo virtual.

Sejam bem-vindes!

A imagem então atribuída ao perfil do Afrodengo (que se define com uma start up) é o desenho de um cupido negro. Circulam no grupo fotografias oficiais de pares hétero e LGBTQIA+, além de arranjos poliamorosos, sempre retratando exclusivamente pessoas negras. Casais negros orgulhosos postam suas próprias fotos, contam sua história e alimentam, assim, as esperanças de quem busca um par. As interações indicam a formação de grupos de Whatsapp, de acordo com a localidade dos/as participantes, e, nas discussões, multiplicam-se as enquetes e os jogos de paquera e postagens de selfies dos/as candidatos/as a encontrar o seu próprio “dengo”. O grupo conta também com uma galeria de seminudes, com postagens e hashtags específicas para fotos do tipo.

No Afrodengo, em particular, encontramos um universo de representações mais ampla do que outros espaços de ativismo negro (Pereira, B. 2019) – inclusive no Blogueiras Negras –, na medida em que não se atribui centralidade ao casal heterossexual enquanto símbolo de resistência negra. Não notamos, por exemplo, comentários ofensivos a posts de pessoas homo ou bissexuais ou não binárias; posts dessa natureza são vetados e, se postados, são rapidamente apagados pelos/as moderadores/as). A utilização da linguagem inclusiva de gênero é outro traço da queerização do espaço.

A proposta afirmativa do grupo faz-se ver na grande maioria dos posts e interações. São frequentes os elogios aos tons de pele mais escuros e os cabelos crespos, e sobejam os tratamentos carinhosos pelo termo “preto/a” – “Que preto/a lindo/a!”; “Olha eu com o meu/minha preto/a”. A galeria de seminudes é um sucesso absoluto, a se tomar por critério o número de likes. Não são aceitas imagens de nudez explícita, mas fotografias de decotes profundos, torsos e nádegas muito pouco ou nada cobertos revelam corpos de homens e mulheres com tamanhos, estruturas e tons de pele os mais variados. Em geral, as interações são sensuais e têm um tom de flerte, mas não são explícitas ou agressivas. Nesse sentido, o grupo proporciona às mulheres negras experiências de agência, afirmação subjetiva e prazer que elas dificilmente vivenciam em outros espaços públicos (online e offline) em sua vida cotidiana8 8 Sobre o uso de nudes como estratégia de afirmação simbólica por mulheres negras e a ambiguidade das mídias sociais como espaço de empoderamento, mas também de opressão, ver o artigo Fat, Black and Butch: The use os Internet Nudes to Resist Racism and Practice ‘Eratic Therapy’ de Gabriela Loureiro (2017). . Em suma, como espaço de manifestação de afeto entre pessoas negras e de valorização da estética negra, o Afrodengo apresenta uma abordagem progressista da estética e da afetividade negra e afirmativa da diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero.

Mas esse pequeno “mundo dos/as negros/as”9 9 A expressão faz alusão ao título do livro O negro no mundo dos brancos, de Florestan Fernandes (1972). também tem conflitos. Entre flertes, nudes e declarações de amor, afloram as famigeradas “tretas”, que desvelam algumas outras maneiras como gênero articula-se com raça e é mobilizado nos debates sobre afetividade e em espaços de ativismo negro. As reclamações mais frequentes, da parte de homens e de mulheres, dizem respeito à preferência dos/as participantes por pessoas que estejam mais próximas dos padrões de beleza, com o favoritismo, por exemplo, dos/as magros/as e jovens. Também não são poucas as queixas de mulheres quanto ao machismo de alguns dos integrantes do Afrodengo ou dos homens negros em geral. Elas reclamam, sobretudo, dos “embustes” – homens que enganam mulheres – com quem se envolveram, e denunciam posts ou mensagens machistas de membros do grupo. Acompanhamos algumas das “tretas”. Embora não sejam tão frequentes – talvez, novamente, devido à ação dos/as moderadores/as –, durante a pesquisa, elas seguiram um certo padrão.

As objeções femininas a comentários masculinos taxados como machistas desdobram-se em intermináveis discussões sobre o enquadramento adequado do caso: em sua maioria, as mulheres afirmam que houve machismo, ao que os homens que se pronunciam opõem-se. Em um caso concreto, algumas participantes reclamaram de uma cantada de um participante que elas consideraram machista, e partiram para ações que englobavam desde uma postura progressista que se valia do “escracho”, para “expor machistas” – denunciando-os acintosamente em público –, até outras mais conservadoras e que reforçavam padrões sociais, rotulando o autor dos comentários de “feio” e “velho”.

Alguns dos integrantes do grupo defendiam o algoz e alvo das críticas com afinco. Eles alegavam que o comentário tinha sido somente uma brincadeira e que as mulheres negras deveriam ser mais pacientes e respeitosas com os homens negros. Os mais exaltados repetiam que, se o comentário tivesse sido feito por um “branco padrão”, “branco tilelê” – ou seja, de visual ou integrante de grupos “descolados”, “alternativos” – ou “negro padrão NBA”, elas não estariam reclamando, mas “lambendo a tela”; um outro disse que elas estariam “de quatro lambendo o chão”.

Daí por diante, a discussão acirrou-se. Algumas mulheres, indignadas, chamavam os autores dos comentários de “machos escrotos”, ao que eles respondiam dizendo que elas estavam “iludidas por ideologias brankkkas10 10 O uso do “kkk” em palavras como “brankkko(a)” por ativistas do movimento negro advém da influência de textos como os da autora Assata Shakur (2005), que faz uso do termo “Amerikkka”, por exemplo, em referência à Klu Klux Klan, utilizando a menção como metáfora para indicar o racismo estrutural e a supremacia branca que conformam a sociedade estadunidense – e por aqui apropriadas para fazer referência a um quadro semelhante na sociedade brasileira. “, ou, mais explicitamente, pelo “feminismo pintado de branco”, que “propõe a opressão dos homens”. Para os mais radicais, a postura das mulheres negras teria por consequência a desunião do “povo preto”. O tom geral era: “depois vocês reclamam da solidão da mulher negra, mas é por isso que nos relacionamos com mulheres brancas”.

Acompanhando os desentendimentos, notamos que os históricos padrões de preferência por pares brancos/as é uma ferida aberta no interior da comunidade negra, e que perpassam as lógicas e dinâmicas das interações entre pessoas negras, inclusive nos debates coletivos em espaços de ativismo. Na discussão observada, os ressentimentos manifestam-se opondo homens e mulheres. Se a centralidade do par negro heterossexual não ocorre aqui pela sua promoção como símbolo da resistência negra ao racismo, ela se estabelece pelo protagonismo adquirido pelo par nas discussões sobre o comportamento adequado deles e delas e de uns/mas em relação aos/às outros/as.

Assim como as mulheres negras acusam os homens brancos de tratarem as mulheres brancas bem, enquanto as tratam “como lixo” (Burdick, 1998BURDICK, John. Blessed Anastacia: women, race and Christianity in Brazil. London, Routledge, 1998.), os homens negros as acusam de tolerar em maior medida as posturas machistas dos homens brancos (Moutinho, 2004MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, UNESP, 2004.). De um lado e de outro recorre-se aos padrões considerados adequados para se formar um par: algumas mulheres deslegitimam a fala de homens porque não os consideram dentro da idade ou estética adequada para tanto; já no discurso dos homens, elas tolerariam machismo de homens brancos ou de homens negros considerados esteticamente superiores. É notável que, nesse ponto, eles não questionem a existência do machismo, apenas a tolerância das mulheres a ele.

Quando o linguajar e o ideário acionados por elas são aqueles associados à luta pela igualdade de gênero, mesmo quando não nomeados diretamente como “feminismo”, os homens do grupo acionam a imagem de “povo” para conclamar uma unidade que é tomada como dada, e que as mulheres estariam pondo em risco ao convocar aquilo que eles classificam como um discurso exógeno, de substrato opressor e, portanto, ameaçador para a coletividade. Os homens negros, por sua vez, mobilizam a sua vantagem relativa em conseguir parceiras brancas como uma “carta na manga”, ou seja, como um trunfo – ou elemento de chantagem – para tentar impor às mulheres negras padrões de interação e relacionamento que elas consideram machistas e, portanto, desvantajosos.

A análise da discussão nos permite observar que o Afrodengo se identifica com a agenda de desmantelamento da superioridade estética branca e da preferência pelo par branco, alinhando-se, assim, com o ideário do movimento negro. Como espaço ímpar para a afirmação da (auto)imagem negra, apresenta-se como uma nova estratégia de empoderamento e descolonização das subjetividades. Simultaneamente, nota-se que os debates sobre afetividades incorporam argumentos relativos ao ativismo. Seus/Suas integrantes adentram o grupo a partir de alguma afinidade com o discurso ativista (ou fragmentos dele) ou então passam a ter contato com certas versões desse tipo de elaboração que circulam continuamente em tal espaço. Um grupo virtual para encontros erótico-amorosos, nesse sentido, aproxima do movimento negro atores que talvez jamais se identificassem com o programa político ou modos de ação da militância tradicional, mas que o fazem a partir de um interesse pontual, de cunho estético-subjetivo e em um espaço e formato em que o nível de engajamento depende exclusivamente do indivíduo. Afinal, não há exigência de adesão e participação consistente ou contínua.

Ao mesmo tempo, o debate acalorado revela que as redes sociais são utilizadas como espaço de “prestação de contas”. No caso em questão, as mulheres negras reivindicam a revisão dos papéis tradicionais de gênero e da submissão feminina. Por outro lado, os homens negros demandam, acima de tudo, a lealdade ao grupo negro. Simultaneamente, o espaço virtual faculta um envolvimento efêmero e frágil com as pautas do movimento negro, facilita mobilizações coletivas (na medida em que permite uma disseminação de seu discurso e fragmentos dele) e serve como lugar de teste de fidelidade de afiliação – quaisquer que sejam os critérios empregados para tanto.

Considerações finais: estética e afetividade no ativismo feminista negro digital

Analisamos neste artigo alguns dos traços, discussões e estratégias emergentes que caracterizam o ativismo feminista negro digital no Brasil. Mostramos que as reflexões sobre o corpo, a estética e as relações amorosas – temas secundários na agenda do movimento negro nas décadas de 1980 e 1990 – são centrais para o ativismo feminista negro digital brasileiro contemporâneo. Tais temáticas desempenham um papel fundamental para engajar mulheres negras (predominantemente, jovens, urbanas, de classe média baixa), expandindo o vocabulário e tópicos de interesse do ativismo negro a públicos mais amplos. Nesse sentido, o ativismo feminista negro digital tem contribuído para a massificação do ativismo negro no Brasil.

Analisamos como as mulheres negras questionam a rejeição, a hipersexualização, as lógicas patriarcais e racistas generalizadas que intervêm em seus relacionamentos amorosos. Por meio do ativismo digital, elas reivindicam o direito de discutir publicamente questões tradicionalmente consideradas íntimas e privadas. Sua ação nas redes sociais, por um lado, rotula o sofrimento decorrente de estereótipos e valores racistas e patriarcais como injustos, e, por outro, reivindica a inclusão de corpos dissidentes (não brancos, fora do espectro heteronormativo, distantes dos padrões estéticos sexistas) e constrói espaços e formas de prazer e empoderamento. Nesse sentido, as mulheres negras investem em ativar o potencial mais radical de um dos principais lemas dos movimentos feministas, “o pessoal é político”, agora considerado para além da divisão sexual do trabalho e da violência doméstica – temas aos quais foi inicialmente relacionado. O bordão alcança aqui a configuração dos sentimentos, da sexualidade e do desejo, vividos de modo consciente ou não. Não apenas a esfera privada é interpelada como atravessada por questões de interesse público, mas também um aspecto mais íntimo é entendido como passível de politização – e, portanto, propenso ao ativismo: a subjetividade.

As demandas políticas relacionadas à dimensão simbólico-subjetiva reivindicam implicitamente um certo entendimento quanto à natureza da relação entre indivíduo e sociedade. Tal leitura alinha-se à abordagem teórica que estabelece que discursos e categorias culturais, instituições e valores sociais são interiorizados pelos indivíduos e afetam o desenvolvimento da subjetividade, sendo esta produzida gradual e continuamente num ambiente particular de interação e em referência a um corpo dado, atravessado – e constituído – por significados coletivamente elaborados e continuamente rearticulados. Esse não é um processo unilinear ou estático, no sentido de que os sujeitos dispõem de algum grau de agência no processo de subjetivação, e que tanto se identificam como resistem – ainda que nunca escapem totalmente – às posições estabelecidas por formulações discursivas hegemônicas, suas práticas e seus efeitos (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.; Moore, 2008MOORE, Henrietta L. The subject of Anthropology: gender, symbolism and Psychoanalysis. Cambridge, UK; Malden, MA, USA, Polity Press, 2008.). Por sua vez, as relações afetivo-sexuais são tomadas como “produto de um complexo conjunto de processos sociais, culturais e históricos – formas culturais intersubjetivas que moldam e estruturam a experiência subjetiva da vida sexual [e amorosa] em diferentes ambientes sociais” (Parker, 1991PARKER, Robert G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo, Editora Best Seller, 1991.:13).

O foco no individualismo e na subjetividade tem um grande apelo para o público negro não engajado – ou interessado – na agenda das organizações mais tradicionais e institucionalizadas do movimento negro. Distanciar o debate sobre a subjetividade de uma agenda mais institucionalizada contribui para sua massificação. Ao mesmo tempo, a estrutura descentralizada dos novíssimos movimentos sociais, particularmente o ativismo digital, e a circulação de pequenos textos divididos em seções temáticas, em blogs, grupos de WhatsApp, páginas do Facebook, entre outros, propagam discursos ativistas negros e feministas para um público desinteressado ou não familiarizado com essa produção intelectual. Não é necessário conhecer o debate sobre as altas taxas de homicídio de jovens negros, declamar os dados sobre a inserção precária da população negra no mercado de trabalho ou os argumentos a favor de ações afirmativas para negros/as no ensino superior, por exemplo, para se reconhecer em relatos de ofensas em relação aos cabelos cacheados ou crespos ou rejeições afetivo-sexuais recorrentes na própria trajetória pessoal.

Os aspectos estruturais das desigualdades raciais e do racismo são, nesse contexto, menos visíveis, e os individuais, mais proeminentes, o que permite uma pronta autoidentificação e engajamento. Esse interesse inicial pode servir como porta de entrada para debates de caráter mais evidentemente coletivos ou estruturais; contudo, não há garantia de que isso aconteça. Ao mesmo tempo, a politização da estética e, sobretudo, a politização da afetividade, são pautas com maior dificuldade de institucionalização do que, digamos, as desigualdades raciais no mercado de trabalho. Logo, o engajamento e o tipo de ativismo que promovem são modulares e efêmeros, tendo em vista a pulverização da pauta do movimento negro, e têm caráter essencialmente individual e individualizante.

Referências bibliográficas

  • ABERS, Rebecca; SERAFIM, Lizandra; TATAGIBA, Luciana. Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula, Dados, 57(2), 2014, pp.325-357.
  • ANDREWS, George. R. América Afro-latina: 1800-2000. São Carlos, EdUFSCar, 2014.
  • ANUNCIADA, Patricia. Estética negra, opressão e resistência. Blogueiras Negras, 2016 [http://blogueirasnegras.org/estetica-negra-opressao-e-resistencia - acesso em: 20 maio 2022].
    » http://blogueirasnegras.org/estetica-negra-opressao-e-resistencia
  • BASTIDE, Roger. Dusky Venus, black Apollo. Race 3(1), 1961, pp.10-18.
  • BENNETT, W. Lance; SEGERBERG, Alexandra. The logic of connective action: digital media and the personalization. New York, Cambridge University Press, 2013.
  • BENTO, Maria Aparecida S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida S. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis-RJ, Vozes, 2009, pp.25-57.
  • BICUDO, Virgínia L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo, Editora Sociologia e Política, 2010 [1945].
  • BLOGUEIRAS NEGRAS. Quem somos – reinventando a tela. Blogueiras Negras, s.d. [http://blogueirasnegras.org/quem-somos/ - acesso em: 20 maio 2022].
    » http://blogueirasnegras.org/quem-somos/
  • BORGES, Rosane. Amor (afro)centrado: é possível falar nesses termos? Blogueiras Negras, 2014 [http://blogueirasnegras.org/2014/06/10/amor-afrocentrado/ - acesso em: 10 maio 2022].
    » http://blogueirasnegras.org/2014/06/10/amor-afrocentrado/
  • BRANDLAB, Google. Dossiê BrandLab: a revolução dos cachos, 2017 [https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-channels/v%C3%ADdeo/revolucao-dos-cachos/ - acesso em: 5 fev. 2021].
    » https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/advertising-channels/v%C3%ADdeo/revolucao-dos-cachos/
  • BURDICK, John. Blessed Anastacia: women, race and Christianity in Brazil. London, Routledge, 1998.
  • CAMPANELLA, B. Por uma etnografia para a Internet: transformações e novos desafios. MATRIZes, 9(2), 2015, pp.167-173.
  • CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA Empreendimentos Sociais; TAKANO CIDADANIA (org.). Racismos Contemporâneo. Rio de Janeiro, Takano Editora, 2003, pp.49-58.
  • CARTY, Victoria. Social movements and new technology. New York, Routledge, 2015.
  • CARVALHO, Layla P. Das diferentes solidões da mulher negra: do estar sozinha ao ser exótica. Blogueiras Negras, 2016 [http://blogueirasnegras.org/das-diferentes-solidoes-da-mulher-negra/ - acesso: 20 maio 2022].
    » http://blogueirasnegras.org/das-diferentes-solidoes-da-mulher-negra/
  • FACCHINI, Regina; CARMO, Íris N.; LIMA, Stephanie P. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, 41, 2020, pp.1-22.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.
  • FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972.
  • FLAUZINA, Ana Luiza P. Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília-DF, Brado Negro, 2015.
  • FRASER, Nancy. The End of Progressive Neoliberalism. Dissent, 2017 [https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser/ - acesso em: 27 maio 2022].
    » https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser/
  • GIACOMINI, Sônia. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da zona norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte; Rio de Janeiro, Editora UFMG; IUPERJ, 2006.
  • GIACOMINI, Sônia. Beleza mulata e beleza negra. Revista Estudos Feministas (94), 1994, pp.217-227.
  • GOHN, Maria da Glória M. Manifestações e protestos no Brasil. São Paulo, Cortez, 2017.
  • GOLDSTEIN, Donna M. “Interracial” sex and racial democracy in Brazil: twin concepts? American Anthropologist, 101(3), 1999, pp.563-578.
  • GOMES, Carla C. Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo brasileiro: a marcha das vadias do Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Antropologia), UFRJ, Rio de Janeiro, 2018.
  • GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2017.
  • GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de Amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro (92/93), 1988, pp.69-82.
  • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, 2(1), 1984, pp. 223-244.
  • GORDON, Doreen. A beleza abre portas: beauty and the racialised body among black middle-class women in Salvador. Feminist Theory, 14(2), 2013, pp.203-218.
  • GUIMARÃES, Antônio S.; RIOS, Flávia; SOTERO, Edilza. Coletivos negros e novas identidades raciais. Novos Estudos CEBRAP, 39(2), 2020, pp.309–327.
  • HINE, Christine. Virtual Ethnography. London, Sage, 2000.
  • HORDGE-FREEMAN, Elizabeth. The color of love: racial features, stigma and socialization in black Brazilian families. Austin, University of Texas Press, 2015.
  • JARRÍN, Alvaro. The biopolitics of beauty: cosmetic citizenship and affective capital in Brazil. Oakland, CA, University of California Press, 2017.
  • LOUREIRO, Gabriela. Fat, black, and butch: the use of Internet nudes to resist racism and practice “erotic therapy”. Graduate Journal of Social Science, 13(1), 2017, pp.48-68.
  • MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010.
  • MOORE, Henrietta L. The subject of Anthropology: gender, symbolism and Psychoanalysis. Cambridge, UK; Malden, MA, USA, Polity Press, 2008.
  • MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988.
  • MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, UNESP, 2004.
  • MOUTINHO, Laura; ALVES, Valéria; MATEUZI, Milena. Quanto mais você me nega, mais eu me reafirmo. TOMO, (28), 2016, pp. 265-291.
  • OSUJI, Chinyere. Confronting whitening in an era of black consciousness: racial ideology and black-white interracial marriages in Rio de Janeiro. Ethnic and Racial Studies, 36(10), 2013, pp.1490-1506.
  • PACHECO, Ana Cláudia. Mulher negra: afetividade e solidão. Salvador, EDUFBA, 2013.
  • PARKER, Robert G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo, Editora Best Seller, 1991.
  • PEIXOTO, Luiz F. L.; SEBADELHE, Zé Octavio. 1976: Movimento Black Rio. Rio de Janeiro, José Olympio, 2016.
  • PEREIRA, Ana Claudia J. Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos. Belo Horizonte, Letramento, 2019.
  • PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Dengos e zangas das mulheres–moringa: vivências afetivo-sexuais de mulheres negras. Pittsburgh, Estados Unidos, Latin America Research Commons, 2020.
  • PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Batekoo: território de afetos. Arquivos do CMD 8(2), 2019, pp.58-77.
  • PEREZ, Olívia C. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho. Opinião Pública, 25(3), 2019, pp.577-96.
  • PEREZ, Olívia C.; SOUZA, Bruno M. Velhos, novos ou novíssimos movimentos sociais? As pautas e práticas dos coletivos. Anais do 41o Encontro Anual da Anpocs, 2017.
  • PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo, Editora Nós, 2017
  • PINHO, Patrícia S. White but not quite: tones and overtones of whiteness in Brazil. Small Axe, 13(2), 2009, pp.39-56.
  • RIOS, Flávia; PEREZ, Olíia; RICOLDI, Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações contemporâneas. Lutas Sociais, 22, 2018, pp.36-51.
  • RODRIGUES, Cristiano; FREITAS, Viviane G. Ativismo feminista negro no Brasil: Do Movimento de Mulheres Negras ao feminismo interseccional. Revista Brasileira de Ciência Política 34, E238917, 2021, pp.1-54.
  • RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba, Appris, 2020.
  • SARMENTO, Rayza. Ativismo feminista online: mapeando eixos de atuação. Revista Sul-Americana de Ciência Política, 7,1, 2021, pp.19-37.
  • SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
  • SHAKUR, Assata. A Message to my Sistas. 11 mar. 2005 [http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/669.html/ - acesso em: 27 maio 2022].
    » http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/669.html/
  • STEELE, Catherine K. Digital black feminism. New York, NYU Press, 2021.
  • WILLIAMS, Erica Lorraine. Sex tourism in Bahia: ambiguous entanglements. Champaign, IL, University of Illinois Press, 2013.
  • YOUNG, Robert C. G. Desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo, Perspectiva, 2005.
  • 1
    Aqui, “supremacia branca” refere-se à imposição de hierarquias raciais com o domínio do grupo branco de uma maneira geral.
  • 2
    Pseudônimo de Luiz Silva, poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e ativista do movimento negro.
  • 3
    Essa variante contemporânea do feminismo se caracteriza por criar e difundir hashtags, de maneira fragmentada, para realizar campanhas virtuais contra o assédio, violência de gênero, entre outras, e/ou convocar pessoas para participarem de mobilizações nas ruas. Para maior aprofundamento ver Sarmento (2021)SARMENTO, Rayza. Ativismo feminista online: mapeando eixos de atuação. Revista Sul-Americana de Ciência Política, 7,1, 2021, pp.19-37..
  • 4
    Os dados empíricos apresentados e analisados nesta seção foram coletados no âmbito do Projeto “Mulheres Negras em Movimento(s): trajetórias, intersecções e novos cenários para a teoria e práxis feminista negra no Brasil”, financiado pelo CNPq (Processo 432980/2016-4).
  • 5
    O termo foi proposto por Vilma Piedade (2017)PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo, Editora Nós, 2017 para designar a empatia entre mulheres negras em virtude de experiências comuns de dor, decorrentes do racismo.
  • 6
    Os dados apresentados nesta seção integram a pesquisa para a tese de doutorado “Dengos e zangas das mulheres-moringa: vivências afetivo-sexuais de mulheres negras”, financiada com bolsa do CNPq e defendida em 2019 pela Universidade de Brasília, e posteriormente publicada em livro (Pereira, B., 2020).
  • 7
    A proposta do amor afrocentradodefende o envolvimento afetivo-sexual exclusivamente entre pessoas negras como forma de ativismo antirracista (Borges, 2014BORGES, Rosane. Amor (afro)centrado: é possível falar nesses termos? Blogueiras Negras, 2014 [http://blogueirasnegras.org/2014/06/10/amor-afrocentrado/ - acesso em: 10 maio 2022].
    http://blogueirasnegras.org/2014/06/10/a...
    ).
  • 8
    Sobre o uso de nudes como estratégia de afirmação simbólica por mulheres negras e a ambiguidade das mídias sociais como espaço de empoderamento, mas também de opressão, ver o artigo Fat, Black and Butch: The use os Internet Nudes to Resist Racism and Practice ‘Eratic Therapy’ de Gabriela Loureiro (2017)LOUREIRO, Gabriela. Fat, black, and butch: the use of Internet nudes to resist racism and practice “erotic therapy”. Graduate Journal of Social Science, 13(1), 2017, pp.48-68..
  • 9
    A expressão faz alusão ao título do livro O negro no mundo dos brancos, de Florestan Fernandes (1972)FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972..
  • 10
    O uso do “kkk” em palavras como “brankkko(a)” por ativistas do movimento negro advém da influência de textos como os da autora Assata Shakur (2005)SHAKUR, Assata. A Message to my Sistas. 11 mar. 2005 [http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/669.html/ - acesso em: 27 maio 2022].
    http://www.hartford-hwp.com/archives/45a...
    , que faz uso do termo “Amerikkka”, por exemplo, em referência à Klu Klux Klan, utilizando a menção como metáfora para indicar o racismo estrutural e a supremacia branca que conformam a sociedade estadunidense – e por aqui apropriadas para fazer referência a um quadro semelhante na sociedade brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br