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Entre os movimentos conservadores e os movimentos identitários: uma análise dos embates na esfera pública no Brasil contemporâneo

MISKOLCI, Richard. Batalhas morais. : política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte: Autêntica, 2021

O livro Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada (2021), de Richard Miskolci, se volta para uma das temáticas mais efervescentes do nosso tempo: o debate na área pública em torno da agenda moral, especialmente com relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Inegavelmente, Miskolci analisa em profundidade o que tem ocorrido no Brasil nas últimas décadas com a ascensão de movimentos conservadores, cuja expressão máxima se deu com a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. Ele também se volta, todavia, para o exame dos chamados movimentos identitários, evidenciando seu caráter ambivalente. O pano de fundo de sua análise não poderia ser outro se não as redes sociais, que amplificam o debate existente e redimensionam a capacidade dos agentes de impactarem outros sujeitos.

O livro origina-se de sua defesa de titularidade na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2020, porém sua análise acerca dos embates envolvendo a chamada “ideologia de gênero”1 1 O termo “ideologia de gênero” foi cunhado originalmente no âmbito da Igreja Católica, ainda na década de 1990, sendo uma “resposta” ao avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. Esse conceito tem sido utilizado de forma bastante ampla por grupos conservadores religiosos e laicos na esfera pública, não apenas no Brasil, mas em diversos países. Ainda que a categoria “gênero” seja bastante consolidada no âmbito das ciências humanas e sociais, remetendo em sua gênese à medicina, ela tem sido utilizada como indutor de pânico moral pelos movimentos conservadores, ainda que eles a utilizem de forma plástica, sem haver necessariamente uma definição clara de seu sentido, assentando-se exclusivamente na ideia de que ela representa uma ameaça. Destaca-se ainda que tais movimentos opõem recorrentemente o termo “ideologia de gênero” a uma concepção assentada em uma perspectiva que reduz os papéis sociais (relacionados a gênero e sexualidade) ao sexo biológico. antecede esse trabalho, tendo desenvolvido uma importante reflexão de como esse fenômeno emerge como um pânico moral no Brasil. Nesses trabalhos, o autor também aponta como tais questões envolvem diretamente os direitos sexuais e reprodutivos e seus avanços, ao menos desde 2010, o que se reverberou também em uma reorientação dos empreendedores morais da agenda conservadora2 2 Segundo Miskolci e Campana (2017:730), “a análise sociológica clássica sobre os empreendedores morais foi desenvolvida por Howard Becker (2008) em seu já clássico Outsiders, assim como pela vertente da teoria dos pânicos morais, ambas surgidas na década de 1960”. Para os autores, aqueles que combatem a ideologia de gênero não constituiriam um movimento social alocado na sociedade civil, mas sim empreendedores morais que agem dentro de um campo discursivo. , do combate ao comunismo ao combate à ideologia de gênero3 3 No processo de ascensão dos movimentos conservadores no Brasil contemporâneo, ocorreu um processo de produção de determinada cosmovisão cristalizada no discurso de algumas lideranças. Tal leitura da realidade baseia-se em uma compreensão de que há um fosso moral entre dois polos da sociedade brasileira (e mundial), estando de um lado a direita, com a defesa dos valores cristãos e da família, e de outro a esquerda, que visaria destruir tais valores (Massenberg, 2017). Nesse sentido, além de reativar o sentimento anticomunismo já presente em movimentos de direita em momentos anteriores, agregam-se novas narrativas produzidas por aqueles que estariam no polo da “defesa da família”, como no caso do combate à ideologia de gênero, o que ganhou um especial eco no debate sobre as políticas educacionais (Oliveira, 2022). Notadamente, tais conceitos são utilizados como significantes vazios, sem serem claramente delimitados no discurso produzido por esses agentes (Cesarino, 2019). .

Miskolci, ao destacar o fato de que o pânico moral em torno da ideologia de gênero foi potencializado pelo avanço do ativismo identitário no Brasil, traz um novo ângulo de análise, ainda que se possa tecer críticas a tal observação, principalmente na forma como ele insere os chamados “movimentos identitários” nesse fenômeno, pois, em minha perspectiva, esses movimentos se relacionam de forma substancialmente distinta com a ciência e com o conhecimento acadêmico, como explanarei mais adiante4 4 Colling (2018) também tece críticas ao livro que aqui está sendo debatido, indicando que Miskolci não apresenta dados empíricos que possam sustentar sua interpretação da ação dos movimentos identitários, especialmente no âmbito acadêmico. Ademais, “o que levou a extrema direita ao poder foi a construção de um discurso de ódio ao petismo, um discurso de ódio para com as pautas identitárias, uma gigantesca produção de fake news, uma gigantesca operação criminosa para retirar o principal nome da oposição da eleição (ver, por exemplo, os trabalhos de Cepêda, 2018, Chaloub, Lima e Perlatto, 2018 ou Souza, 2016). O sociólogo queer não cita nenhuma dessas razões. Seu foco está em atacar os movimentos identitários” (Colling, 2022:58). .

Um dos avanços interessantes que o trabalho de Miskolci traz é o de reconhecer, ao mesmo tempo, o caráter local e sui generis que esse debate possui no Brasil, mas sem olvidar sua articulação no plano internacional, uma vez que a ascensão de movimentos conservadores tem sido observada em diferentes partes do mundo. Como bem observa o autor, “a cruzada moral brasileira contra a propalada ‘ideologia de gênero’ só é compreensível quando inserida em nosso contexto histórico e político” (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:22). Ademais, deve-se destacar a pertinência dessa discussão no momento atual, considerando o fato de que a pandemia da covid-19 visibilizou ainda mais o impacto de tais movimentos, especialmente no contexto da pós-verdade (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Amurabi. Educación, Negacionismo y Desigualdades en Brasil en Tiempos de Pandemia. Revista Internacional de Educación para la Justicia Social, v. 9, n. 3, 2020, pp.1-12 [https://revistas.uam.es/riejs/article/view/13264 - acesso em: maio 2022].
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).

No capítulo 1, intitulado “As diferenças na esfera pública técnico-midiatizada”, o autor destaca que o poder das redes sociais no Brasil se tornou patente a partir de junho de 2013, com as manifestações que tomaram as ruas no país. Os efeitos dessas manifestações foram profundamente contraditórios.

Os protestos que atraíram multidões às ruas geraram reações diversas e alternadas: do entusiasmo de alguns que ainda associavam o povo nas ruas com demandas de democracia e igualdade ao temor de outros que os recusavam pelas mesmas razões. Mas os protestos nasceram de uma forma e foram se transformando quando grupos da extrema-direita enxergaram no impulso anti-institucional que os aglutinava a janela de oportunidade para tomar o controle sobre eles, redirecionando-os para seus objetivos (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:31).

O autor chama a atenção para o fato de que foram os movimentos de extrema-direita que conseguiram melhor capitalizar aquele momento, principalmente através das redes sociais. Esse fenômeno ocorreu concomitantemente a uma crescente visibilização do “identitarismo” dos movimentos brasileiros LGBTQIAP+. Entretanto, ao conectar os dois fenômenos, o autor alerta para o fato de que “essa constatação não visa — de forma alguma — à busca de culpados, antes a identificação e compreensão das condições estruturantes da agência no campo da política sexual e de gênero” (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:39). Em ambos os movimentos, seria possível observar um aspecto em comum: o ataque a instituições profissionais que o autor classifica como mediadores sociais.

Miskolci analisa ainda as batalhas morais em torno da chamada “ideologia de gênero”, nas quais os agentes que ele classifica como empreendedores morais (religiosos e laicos) unem-se para reagir aos avanços dos direitos sexuais e reconhecimento da diversidade de gênero na escola. Notadamente, o movimento Escola sem Partido (ESP) ganha visibilidade nesse processo e, como nota Miguel (2016)MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero” – Escola sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Práxis, v. 7, n. 15, 2016, pp.590-621 [https://doi.org/10.12957/dep.2016.25163 - acesso em: maio 2022].
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, em um primeiro momento, voltou-se principalmente para o “combate ao comunismo” e só posteriormente ao embate com a chamada “ideologia de gênero”. Para Miskolci (2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:53), “ideologia de gênero” seria “[...] um referente compartilhado a despeito de diagnósticos diversos sobre o que ele significa e das razões pelas quais ele deveria ser combatido”, algo que se distancia substancialmente do que ela de fato é: um conceito criado pela medicina, na década de 1950, e posteriormente incorporado aos estudos acadêmicos feministas.

Um dos méritos desse trabalho de Miskolci é a ênfase na heterogeneidade dos agentes envolvidos nesse cenário, na medida em que associa tanto agentes religiosos quanto laicos, envolvendo os “defensores do mercado” e os que “se engajam pela defesa das famílias e das crianças”. O autor destaca como esses agentes conseguiram ser bem-sucedidos nesse processo utilizando do “pânico moral” produzido pela ideologia de gênero, que, contudo, parece estar se esgotando desde a eleição de 2018.

A partir do terceiro capítulo, intitulado “A política identitária no neoliberalismo”, Miskolci entra em um terreno mais espinhoso, iniciando pela sumarização de alguns acontecimentos ocorridos durante um evento realizado em 2010, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no qual uma mesa formada por pesquisadoras feministas foi interrompida por um protesto de uma ala do movimento “LGBTQIAP+”, em que “[...] uma ativista subiu nua ao palco e fez um discurso contra a ciência, a universidade e a mesa — que dizia ser formada por ‘feministas brancas do Sul e do Sudeste’” (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:67). Para o autor, “o ativismo sexual baseado em identidades semeou o que podemos denominar de empreendedorismo de si, a capitalização de uma identidade-condição de vítima cristalizado no tempo e no espaço” (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:70), algo que se relaciona em sua leitura ao neoliberalismo e sua recusa por mediações. Ainda segundo o autor, esses agentes utilizam-se principalmente de duas estratégias: o escracho e o cancelamento, porém não apenas contra adversários comuns, como também contra colegas do mesmo campo de atuação política e produção do conhecimento. Em sua crítica, tais movimentos secundarizam a mediação da ciência, a favor de uma percepção que indica a própria identidade como algo transparente, sendo, portanto, uma forma de anti-intelectualismo.

Em parte, concordo com os argumentos apresentados, todavia compreendo que os movimentos conservadores e os identitários assentam-se em pressupostos substancialmente distintos não apenas em termos políticos, como também em termos acadêmicos, pois, se por um lado, os intelectuais da nova direita são marcados por um afastamento e mesmo recusa do conhecimento acadêmico (Rodrigues, 2018RODRIGUES, Lidiane Soares. Uma revolução conservadora dos intelectuais (Brasil/2002-2016). Política & Sociedade, v. 17, n. 39, 2018, pp.277-312 [https://doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p277 - acesso em: maio 2022].
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), nos movimentos identitários, há um certo diálogo que se desdobra (com certa frequência) em dissenso e negação, fundamentando-se também em debates acadêmicos. É inegável que os movimentos identitários também buscam na academia formas de legitimação, algo que não ocorre com os movimentos conservadores.

Poderíamos ainda indicar que recorrentemente encontramos em movimentos conservadores uma negação da necessidade do conhecimento acadêmico no mundo e de toda a estrutura que o produz, ao passo que os movimentos identitários tendem a demandar reformas por dentro desse sistema. Essa diferença implica em maiores distanciamentos entre esses dois pontos do que aqueles que Miskolci aponta.

Ademais, caberia a indagação sobre a capacidade de demonstrar empiricamente em que medida tais movimentos conseguiriam silenciar determinados agentes no espaço acadêmico, uma vez que perduram na academia as desigualdades de gênero e raça, o que tem sido demonstrado empiricamente (Candido; Feres; Campos, 2020; Oliveira et al., 2021OLIVEIRA, Amurabi; MELO, Marina; RODRIGUES, Quemuel; PEQUENO, Mayres. Gênero e desigualdade na academia brasileira: uma análise a partir dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq. Configurações. Revista Ciências Sociais, n. 27, 2021, pp.75-93 [https://doi.org/10.4000/configuracoes.11979 - acesso em: maio 2022].
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). Dito de outra forma: em que pesem as “denúncias” e “ataques” dos movimentos identitários, esses espaços de poder continuam sendo locus dominados por determinados agentes, sendo pouco crível que eles estejam sendo silenciados, já que se perpetuam em suas posições.

Seguindo por esse terreno espinhoso, Miskolci adentra em outro debate atual e polêmico: as questões envolvendo “local de fala”, “experiência” e “cisgeneridade”. Para o autor:

Noções como ‘local de fala’, ‘experiência’ e ‘cisgeneridade’ não se sustentam em termos empíricos e epistemológicos. Só fazem sentido como armas retóricas em disputas por uma reserva de mercado em eventos, em uma área de estudos e, claro, em um movimento social organizado a partir da justaposição de identidades que, ao mesmo tempo que permite reconhecer sua heterogeneidade interna, fragiliza sua unidade e, em tempos neoliberais, promove mais a competição e o conflito do que alianças (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:89).

Efetivamente, tais categorias precisam ser melhor examinadas, inserindo-as em um debate mais amplo, todavia isso não necessariamente as invalidam. Concordo também com o autor que o mundo social é mais dinâmico do que muitas vezes essas categorias deixam parecer, entretanto isso não significa também que elas não abarquem realidades que existam concretamente. Estou pensando, nesse caso especialmente, a questão da cisgeneridade.

Claro que podemos tensionar tais questões com o fato de que essas categorias podem ser (e são em muitos casos) cooptadas pela agenda neoliberal, tal como ocorreu com a ideia de queer, que passou a assumir diversos usos nesse contexto (McRuer, 2021MCRUER, Robert. Aleijando as políticas queer, ou os perigos do neoliberalismo. Educação em Análise, v. 6, n. 1, 2021, pp.105-119 [https://doi.org/10.5433/1984-7939.2021v6n1p105 - acesso em: jun. 2022].
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), porém, em minha percepção, isso não invalida o fato de que elas efetivamente funcionem como chaves relevantes para determinados sujeitos interpretarem a realidade e se posicionarem no mundo social. O que não pode ser esquecido é que se trata de conceitos em disputa e que são definidos a partir de uma miríade de fatores, incluindo aí o próprio mercado.

Em todo caso, cabe-nos ressaltar a relevância da seguinte afirmação que Miskolci (2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:90) realiza: “Uma área de estudos — quiçá até um campo de luta política poderia ser aberta a qualquer pessoa comprometida (committed) com a árdua tarefa de investigar o objeto que a define criando trabalhos a partir de sólida base empírica e metodológica”. Isso, porém, não significa — em minha avaliação — que se possa ignorar como nosso estar no mundo possui implicações sobre a forma como nos inserimos em determinado campo de estudos e como nos posicionamos também em termos teóricos e metodológicos.

Miskolci argumenta que as políticas de reconhecimento poderiam ser conduzidas de forma dialógica, mas que, no Brasil da década de 2010, houve um encaminhamento na direção oposta. Seu diagnóstico sobre o porquê desse processo é preciso:

[...] não apenas pela emergência da esfera pública técnico-midiatizada, mas também porque se priorizou uma política fincada na afirmação essencialista das identidades e em seu repertório de práticas. Somadas à melhor articulação da aliança conservadora e sua estratégia de comunicação bem-sucedida, contribuíram para que vivemos uma era de confrontos morais que favoreceu os adversários da ciência e dos direitos sexuais e reprodutivos (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:91).

Esse cenário, ainda segundo o autor, contribui para a disseminação de teorias conspiratórias, muitas vezes nutridas por uma falsa ideia de disseminação do conhecimento. As instituições de ensino — escolas e universidades — passariam a ser atacadas agora não apenas por fora, como também por dentro. Iriam se destacar aí principalmente duas formas de conflitos internos nas instituições de ensino:

A primeira é o questionamento da autoridade dos educadores por meio da apologia da horizontalidade como sinônimo de democracia, uma falácia promovida pelos serviços comerciais de rede social. A segunda é o questionamento dos currículos e dos conteúdos formativos em nome do reconhecimento e da incorporação das diferenças, fenômeno mais nuançado que causou desde arroubos de censura de autores até a positiva ampliação dos temas e da bibliografia (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:94).

Efetivamente, um dos efeitos da era da pós-verdade tem sido o questionamento da capacidade dos professores de arbitrar sobre fatos (Peters, 2017PETERS, Michael A. Education in a post-truth world. Educational Philosophy and Theory, v. 49, n. 6, 2017, pp.563-566 [https://doi.org/10.1080/00131857.2016.1264114 - acesso em: jun. 2022].
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; Oliveira, 2021), o que reflete a própria dinâmica desse fenômeno global no qual os fatos se tornam menos relevantes que as convicções pessoais (McIntyre, 2018MCINTYRE, Lee. Post-truth. Cambridge, MIt Press, 2018.). Entretanto, uma das conclusões mais originais e polêmicas do livro é, certamente, aquela que entrelaça os movimentos conservadores que ascenderam ao poder no Brasil nos últimos anos e os movimentos identitários:

A aliança anti-igualitária que conquistou o poder demanda análises que não deixem de reconhecer como os adeptos da política identitária essencialista contribuíram para sua vitória ao dilacerar formas democráticas de convívio que poderiam ter potencializado alianças no campo das defesas dos direitos humanas, em especial nas áreas de gênero e sexualidade. Por mais paradoxal que pareça, ambos os que protagonizaram os embates discutidos anteriormente — empreendedores morais e ativistas identitários — têm em comum a recusa do conceito de gênero. Os conservadores porque reconhecem nele a abertura para demandas LGBTI+ e feministas, enquanto, para os ativistas identitários, é um conceito que coloca em xeque a perspectiva essencialista em que se baseia seu repertório político (Miskolci, 2021MISKOLCI, Richard. Batalhas morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.:99).

Seus argumentos se voltam para uma defesa radical da formação do espírito crítico, algo que seria o melhor antídoto contra as armadilhas da esfera pública técnico-midiatizada. A construção de seus argumentos leva o livro a uma interpretação original desses acontecimentos em nossos tempos, considerando principalmente a singularidade do caso brasileiro com a ascensão do bolsonarismo, fenômeno diretamente conectado às redes sociais e à pós-verdade (Cesarino, 2019CESARINO, Letícia. Identidade e representação no bolsonarismo. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, 2019, pp.530-557. [https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232 - acesso em jun. 2022].
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). Apesar de a ascensão de movimentos conservadores e da agenda antigênero ser um fenômeno global, há de fato agendas locais singulares, e o trabalho de Miskolci nos ajuda a desvelar o caso brasileiro.

Esse livro se torna, portanto, uma leitura obrigatória para aqueles que pretendem compreender os debates e embates em torno da agenda acadêmica e política que envolve o conceito de gênero, incluindo-se aí os ataques diretos sintetizados na ideia de “ideologia de gênero”. Mais que isso, esse trabalho se torna fundamental para a compreensão dos dilemas da academia hoje, considerando seus embates externos e internos, e os desafios para reacender a crença na ciência no mundo contemporâneo.

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    O termo “ideologia de gênero” foi cunhado originalmente no âmbito da Igreja Católica, ainda na década de 1990, sendo uma “resposta” ao avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. Esse conceito tem sido utilizado de forma bastante ampla por grupos conservadores religiosos e laicos na esfera pública, não apenas no Brasil, mas em diversos países. Ainda que a categoria “gênero” seja bastante consolidada no âmbito das ciências humanas e sociais, remetendo em sua gênese à medicina, ela tem sido utilizada como indutor de pânico moral pelos movimentos conservadores, ainda que eles a utilizem de forma plástica, sem haver necessariamente uma definição clara de seu sentido, assentando-se exclusivamente na ideia de que ela representa uma ameaça. Destaca-se ainda que tais movimentos opõem recorrentemente o termo “ideologia de gênero” a uma concepção assentada em uma perspectiva que reduz os papéis sociais (relacionados a gênero e sexualidade) ao sexo biológico.
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    Segundo Miskolci e Campana (2017MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, 2017, pp.723-745 [https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3203008 – acesso em; jun. 2022].
    https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3...
    :730), “a análise sociológica clássica sobre os empreendedores morais foi desenvolvida por Howard Becker (2008) em seu já clássico Outsiders, assim como pela vertente da teoria dos pânicos morais, ambas surgidas na década de 1960”. Para os autores, aqueles que combatem a ideologia de gênero não constituiriam um movimento social alocado na sociedade civil, mas sim empreendedores morais que agem dentro de um campo discursivo.
  • 3
    No processo de ascensão dos movimentos conservadores no Brasil contemporâneo, ocorreu um processo de produção de determinada cosmovisão cristalizada no discurso de algumas lideranças. Tal leitura da realidade baseia-se em uma compreensão de que há um fosso moral entre dois polos da sociedade brasileira (e mundial), estando de um lado a direita, com a defesa dos valores cristãos e da família, e de outro a esquerda, que visaria destruir tais valores (Massenberg, 2017). Nesse sentido, além de reativar o sentimento anticomunismo já presente em movimentos de direita em momentos anteriores, agregam-se novas narrativas produzidas por aqueles que estariam no polo da “defesa da família”, como no caso do combate à ideologia de gênero, o que ganhou um especial eco no debate sobre as políticas educacionais (Oliveira, 2022OLIVEIRA, Amurabi. The rise of the School Without Party movement and the denunciations against the “indoctrinating teachers” in Brazil. REIDICS. Revista de Investigación en Didáctica de las Ciencias Sociales, n. 11, 2022, pp.85-100 [https://doi.org/10.17398/2531-0968.11.85 - acesso em: maio 2022].
    https://doi.org/10.17398/2531-0968.11.85...
    ). Notadamente, tais conceitos são utilizados como significantes vazios, sem serem claramente delimitados no discurso produzido por esses agentes (Cesarino, 2019CESARINO, Letícia. Identidade e representação no bolsonarismo. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, 2019, pp.530-557. [https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232 - acesso em jun. 2022].
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    ).
  • 4
    Colling (2018) também tece críticas ao livro que aqui está sendo debatido, indicando que Miskolci não apresenta dados empíricos que possam sustentar sua interpretação da ação dos movimentos identitários, especialmente no âmbito acadêmico. Ademais, “o que levou a extrema direita ao poder foi a construção de um discurso de ódio ao petismo, um discurso de ódio para com as pautas identitárias, uma gigantesca produção de fake news, uma gigantesca operação criminosa para retirar o principal nome da oposição da eleição (ver, por exemplo, os trabalhos de Cepêda, 2018, Chaloub, Lima e Perlatto, 2018 ou Souza, 2016). O sociólogo queer não cita nenhuma dessas razões. Seu foco está em atacar os movimentos identitários” (Colling, 2022COLLING, Leandro. Ataques recentes às perspectivas das interseccionalidades. Revista Periódicus, v. 2, n. 17, 2022, pp.51-62 [https://doi.org/10.9771/peri.v2i17.50166 - acesso em: maio 2022].
    https://doi.org/10.9771/peri.v2i17.50166...
    :58).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Maio 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2022
  • Aceito
    14 Mar 2023
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