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Semânticas da violência: guerra, território e poder na África mandinga

The meanings of violence: war, territory and power in mandinga's Africa

Resumos

Este artigo aborda o grande tema da guerra na África básica o qual apresenta articulações múltiplas. A tradição mandê, da África ocidental permite compreender os modos de constituição do significado da violência organizada, e em especial da guerra justa, com particular atenção às configurações do poder em relação à territorialidade.

África; mandinga; violência


This article treats the great theme of war in Africa, which permits multiple articulations. The mandê tradition of West Africa permits the understanding of the ways the meaning of organized violence are constituted, especially the just war, with particular attention to the forms of power in relation to territoriality.

Africa; mandinga; violence


ARTIGOS

Semânticas da violência - guerra, território e poder na África mandinga1 1 Tradução de Francisco Vinhosa, a quem o autor agradece.

The meanings of violence - war, territory and power in mandinga's Africa

Angelo Turco

Professor do Departamento de Culturas Comparadas da Universidade de L'Aquila Facoltà di Lettere e Filosofia]p.zza S. Margherita 2, 67 100 L'Aquila turco@cc.univaq.it

RESUMO

Este artigo aborda o grande tema da guerra na África básica o qual apresenta articulações múltiplas. A tradição mandê, da África ocidental permite compreender os modos de constituição do significado da violência organizada, e em especial da guerra justa, com particular atenção às configurações do poder em relação à territorialidade.

Palavras-chave: África, mandinga, violência

ABSTRACT

This article treats the great theme of war in Africa, which permits multiple articulations. The mandê tradition of West Africa permits the understanding of the ways the meaning of organized violence are constituted, especially the just war, with particular attention to the forms of power in relation to territoriality.

Key words: Africa, mandinga, violence

Complexo e ainda pouco estudado, o grande tema da guerra na África básica apresenta articulações múltiplas. Quero aqui referir-me a uma tradição da África ocidental que tenho podido estudar repetidamente no curso de muitos anos,2 2 TURCO, A. Strutture di legittimità nella territorializzazione malinkê del'Alto Niger (Rep. di Guinea). In: CASTI, E. & TURCO A. (org.). Culture dell.alterità. Il território africano e le sue rappresentazioni. Milano : Unicopli, 1998; TURCO, A. Legitimité et pouvoir: à la recherche de l.espace politique dans l.Afrique mandingue. In: PITTE, J.R. & SAGUIN, A.L. (org.). Geographie et liberte. Mélanges em hommage à Paul Claval. Paris: L.Harnattan, 1999. Expresso aqui um agradecimento às muitas pessoas que me ajudaram a compreender as concepções mandingas e as estreitas conexões que elas desenvolvem com a territorialidade: kumatigi, donso e séréwa, dugutigi, dugukolotigi, almami ( iman de aldeia), moba. Todos os estudiosos, os estudantes europeus e africanos que trabalharam comigo nas aldeias, ocupam um lugar especial em minha lembrança. Laye Camara, ao meu lado por um decênio no Mandê, foi um autêntico mediador cultural. O fio condutor da jali, a palavra musicada, acompanhou esta minha experiência de pesquisa: a partir das gesta de Fodé Kaba cantadas por griot de Kolda, em Casamance (Senegal, 1983), passando por aquelas do reino de Kong interpretadas por músicos jula na longa noite de um casamento Senufo a Kohrogo (Costa do Marfim, 1986), para terminar com aquelas apocalípticas da destruição de Kansala cantadas por griot de Gabu e por suas duas mulheres (Guiné Bissau, 2005). Em Kolda estava com Candida Ciaccio; em Kohrogo com Miriam Odd Ambrosetti: dedico este estudo às memórias delas e à de Falaye Oularé, dugutigi de Dalafilany (Guiné Conakry), mestre de saberes básicos tradicionais. aquela mandê, raciocinando sobre os modos de constituição do significado da violência organizada, e em especial da guerra justa, com particular atenção às configurações do poder em relação à territorialidade. Na tradição mandê o tema da guerra, estreitamente entrelaçado com a política e daí ao perfil civil do homem mandingo, é bastante presente e sutilmente elaborado. O fato bélico é declinado nas suas muitas lapidações e por isso se desenvolve não só como discurso sobre a "arte da guerra" e a tipologia dos conflitos com as relativas técnicas defensivas e ofensivas,3 3 Merece atenção: BAH, T.M. Architecture militaire traditionnelle et poliocétique dans le Soudan Occidental du XVII à la fin du XIX siècle. Yaoundé: CLE/ACCT, 1985. mas propõe ainda o mais amplo quadro da função social da atividade guerreira4 4 A atividade guerreira, de fato, torna-se o cerne de uma verdadeira formação social que, na perspectiva já indicada por J. Goody, atribui à política um papel de mediação entre a atividade de produção e a atividades de destruição (GOODY, J. Technology, Tradition and the State in Africa. Cambridge: Cambridge UP, 1971). e dos relacionamentos entre kelè e hera, a guerra e a paz. Um relevo particular assume, nesta rica perspectiva, o horizonte ideológico da autoridade, niyamokoya: niyamoko é aquele - moko, a pessoa - que vem antes, que está diante. Esse se repercute em cheio sobre as problemáticas polemológicas e, a partir da reflexão sobre "espírito guerreiro", constrói um verdadeiro e próprio "discurso sobre a guerra" que se coloca frente ao cerne da natureza do conflito armado e explora as condições de possibilidades da sua legitimação.

1. A tradição mandê

"Tradição mandê" significa neste estudo o conjunto dos traços culturais, materiais e simbólicos, relativos ao povo mandingo, espalhados sobre uma vasta área da África ocidental estendida sobre as bacias da Gâmbia, do Alto Senegal, do Alto e Médio Níger (fig. 1). Os critérios de definições de tal tradição são necessariamente fluidos. Sem dúvida se podem assinalar os dois resumos mais recentes realizados por J. Jansen,5 5 JANSEN, J. Epopée, histoire, société. Paris: Karthala, 2001, p.10 e seg. quer dizer a língua6 6 À família mandê pertencem diversas línguas, entre as quais lembro o Malinkê, o Bambara e o Jula. e uma produção narrativa (oral) concernente à Sundiata e a sua epopéia. A estes critérios se acrescenta aqui um outro, referente à territorialidade mandê, e mais precisamente as lógicas que inspiraram e sustentaram a transformação material, simbólica e organizativa do território hoje habitado pelos mandingas. A formação de uma territorialidade mandê repousa sobre princípios e práticas bastante complexas, mas fazem distinção entre si - e são neste local de importância central - os processos de construção política do espaço, que indicamos com o termo resumido de mansaya (da mansa, soberano). O espaço político mandingo tem o seu modelo auroral no reino de Sundiata (Mandê, Manden, Manding) que as fontes árabes medievais indicam como Mall, Mali, Melli, 7 7 Mali equivale linguisticamente a Mandê, uma vez que tem o mesmo som do termo com o qual os Peul designam o Mandê na língua deles, o pulaar. do qual origina a denominação de "Império do Mali". É já no seio daquele que as tradições indicam como duguba, a grande (ba) casa de todos os mandingas,8 8 Duguba quer dizer ainda "terra mãe" dado ao duplo significado de "ba" adjetivo (grande) e substantivo (mãe): uma ambivalência não desprezível. que venham articular-se os canais institucionais voltados à assegurar a circulação legítima do poder, ordenáveis em duas grandes famílias (Tab. 1). A primeira, regida por princípios hierárquicos, diz respeito ao conjunto dos dispositivos que atribuem à autoridade um valor decrescente de um vértice a uma base. As principais instituições hierárquicas do Mandê dizem respeito à esfera familiar (fasiya), com a esfera política (mansaya), com a esfera escravista (jonya) e por fim com a esfera de casta (nyamakalaya). Sobre as três primeiras temos meios de retornar a seguir; quanto à nyamalakaya, ela codifica o ordenamento da sociedade de castas, marcadas por graus de distinção, especialização profissional, endogamia.9 9 No âmbito das classes livres, horon, a camada superior (os homens da terra, os camponeses: simplesmente bamana - ou seja bambara - em Segu) acompanha-se aquela inferior nyamakala, composta em castas destinadas à prática dos ofícios ( numu, aqueles que trabalham o metal; karanké, aqueles que trabalham as peles; kulé, aqueles que trabalham materiais vegetais; maabo, os tecelões) ou ao exercício da palavra: musicada ( jali) ou somente dita, cantada (fina). A elas se opõe, no conjunto, a classe jon, escravos cujas condições, por outro lado, varia com o modo de aquisição e com a posição de ascendência no estado de escravidão. Se bem que relativamente autônomas no perfil delas, estas classes entretêm relações extremamente complexas, seja do ponto-de-vista funcional ou social e político. Por outro lado, se é verdade que a supremacia horon é inegável, e protegida pelos valores da horonya, não é certo que a liberdade assegure aos nyamakala uma posição social superior aos jon se recorda-se que estes últimos, contrariamente aos primeiros, podem fazer tudo aquilo que fazem os horon, e dedicar-se então, se os seus senhores desejarem, não só às atividades agrícolas, mas ainda ao comércio e até mesmo ao ofício das armas (prática institucionalizada em grau máximo em Segu, como se verá).De qualquer forma, nyamakala e jon participam das características comuns da sociedade mandinga, assumem como referência superior o horizonte axiológio horon, caracterizado por um conjunto de valores morais entre os quais destacam-se o ardor no combate, o sentido da honra, a discrição, o respeito às convenções no comportamento em público, a altivez do próprio jamu, o nome de clã.


A homologia indica por sua vez o conjunto dos dispositivos que organizam a sociedade a partir da de instâncias de igualitarismo. A ordem homológica, que se exprime em diversas instituições sociais, tem as funções essenciais de amenizar as tendências particularistas e, por tabela, as lenticularizações territoriais, que a ordem hierárquica impulsiona ao contrário de afirmar. Nas diversas formas que pode assumir, o particularismo ressalta a prevalência dos interesses econômicos, políticos, ideológicos de um grupo ou de uma instituição sobre outras. Tudo isso traz consigo o perigo grave de uma explosão do Mandê que, traído nos valores comunitários que lhe há proporcionado a gênese e inspirado o desenvolvimento, 10 10 É o espírito que regula o Gbara, ou seja, a assembléia constituinte dos clãs mandingas que se realizou na planície de Kurukanfuga, nas cercanias de Kangaba. É importante observar como a fixação mandinga aos valores comunitários vêm reafirmada no momento próprio no qual a cultura mansal atinge o seu ápice com Sundiata, que não por acaso assume o jamu de Keita, "aquele que pega todas as coisas", e, por conseguinte, o senhor de tudo (DIETERLEN, G. Myth e et organisation sociale au Sudan français. Journal de la Société dês Africanistes, v.1-2, p.40, 1955). vem confiado às forças destrutivas da violência e da guerra, e deixa por fim de existir como duguba, quer dizer como construção geográfica unitária.

Ao modelo auroral do Mandê malinês, conectam-se experiências hist óricas multiformes que estão a testemunhar em síntese dois eixos de desenvolvimento do pensamento e da prática política mandê, caracterizadas de uma forte tensão dialética.

i. O primeiro eixo coloca em jogo a dupla fasiya/mansaya, o que quer dizer a legitimação das práticas concretas de governo através de princípios de caráter exclusivamente político (mansaya) ou por meio do exercício de uma autoridade do tipo familiar (fa, pai). O percurso de legitimação fasiya visa a disciplinar a aprovação e o uso da terra (e por extensão, de todos os recursos naturais: contudo, não só agrícolas, mas também pastorais, cinegéticas, haliêuticas, florestais). Trata-se de uma instância reguladora voltada a afirmar um direito originário sobre o espaço natural, entendido este como superfície que contém, de forma efetiva ou potencial, os meios destinados a garantir a subsistência e a reprodução física e social da coletividade estabelecida. É um direito originário, no sentido que ele não depende de nenhum outro direito precedente ou superior, mas se fundamenta pura e simplesmente sobre a ocupação primitiva do espaço o qual, todavia, deve fazer imperativamente em seguida a uma prática qualquer de transformação, seja ela material ou simbólica.11 11 Sobre este ponto, bastante delicado, remeto a: TURCO, A. Astres et désastres: voyage dans la conflictualité pastorale autour du Parc Transfrontalier de la W (Burkina Faso-Bénin-Niger). Ponts, v.4, 2004. Enquanto originário, portanto, o direito fasiya é imprescritível e exclusivo, isto é, não usurpável; além disso, ele passa a fazer parte integrante dos mecanismos de controle social, que obrigam a conservação do bem fundiário em benefício da coletividade - familiar ou também de cada aldeia (tabanca em crioulo bissau-guineense); so (em malinkê) ou tabanc reticular (sokun) - excluindo a norma livre. O percurso de legitimação mansaya, visa por seu lado a dotar o território de qualidade política e a garantir-lhe a organização. Este percurso não ignora os valores da fasiya, ao contrário os atrai: além disso, reconhece-lhes o estatuto de corpus regulativo pré-existente e, de algum modo, eminente, como acabamos de ver. Contudo, a mansaya exige uma sua autonomia própria que realiza, parece, em virtude de dois procedimentos fundamentais. O primeiro diz respeito com a criação ex novo de um direito que tem por objeto qualquer coisa que antes não existia: é a fundação do lugar político, o mara propriamente dito, em virtude da guerra - como a miúdo na experiência mandingo - ou por outra via (aliança, submissão, protetorado). Afirma-se assim uma espécie de correspondência funcional entre dois atos originários: um concerne à apropriação da terra em um espaço natural, substancialmente anecumênico, como veremos no parágrafo sucessivo; o outro diz respeito à instauração da territorialidade política a partir de uma geografia substancialmente pré-política.12 12 O "lugar político" organiza-se em estruturas que possam assumir fisionomias estatais ou imperiais e, portanto, mais ou menos complexas do ponto de vista administrativo. A estas formações geográficas antes inexistentes que marcam exatamente a qualidade política do território - se bem que de maneira não exclusiva - ,se conectam estreitamente com outras, de natureza econômica: trata-se dos circuitos de troca, que dizem respeito seja ao comércio de curta-média, ou de média-longa ou de longuíssima distância (transaariano, transoceânico). Na realidade, as estruturas mercantis são em certa medida a origem mesma do processo que impulsiona no sentido de tornar autônoma a função política na sociedade mandinga. Elas se alimentam dos influxos do Islam e tornam-se fundamentais para o funcionamento e a reprodução das estruturas mansais. Pode-se ver a este respeito os grandes afrescos de: MAUNY, R. Tableau géografique de l.Ouest africain au Moyen Age. Dakar: IFAN, 1961; PERSON, Y. Samory. Une révolution dyula. Dakar: IFAN, 1968-1975 (principalmente T. I. cap. III e IV.). Mudando de perspectiva, temos uma breve síntese em: STEWART, M.H. The role of the manding in the hinterland trade of the Western Sudan: a linguistic and cultural analysis. Bulletin de l.I.F.A.N., T. 41, sér.B, 2, 1979. O segundo procedimento, consecutivo ao primeiro, consiste no entender e no praticar a autonomia não já como desunião, renegamento, oposição e de qualquer modo competição com a fasiya, porém como proclamação de independência e de intangibilidade das duas esferas de legitimidade. Nestas condições, a fasiya vem não só respeitada, mas verdadeiramente garantida nas suas exigências da nova ordem institucional: não por acaso, em uma tradição proveniente diretamente do mandê malinês, o novo mansaya presta uma homenagem simbólica ao dugukolotigi, o "senhor da terra", para marcar a diferença dos papéis.13 13 PERSON, Y. Samory, p.85; o A. lembra como as vezes é o próprio .senhor da terra. que preside a cerimônia de entronização (p. 67). De fato, a coexistência destes dois percursos de legitimação fundase sobre o mútuo reconhecimento de âmbitos de regulação que não possam reciprocamente insidiar-se porque os campos sociais ao qual se aplicam são constitutivamente diferentes e, por assim dizer, não comparáveis.14 14 Se tivermos em conta as várias e, às vezes, contrastantes tendências que caracterizaram a geografia política do Mandê a partir da crise do Mali, compreende-se como na realidade as coisas não são assim simples e as relações entre fasiya e mansaya nem sempre são nítidas e cooperativas. É assim que as duas fontes de legitimidade hierárquica devem ser consideradas como arquétipos entre os quais, nas circunstâncias locais e históricas, se estabelece um equilíbrio que se nutre de ambigüidade e amiúde de livres misturas. A autoridade fasiya, assim, pode ser invocada para reforçar uma legitimidade mansaya sempre afligida pela precariedade institucional. Por sua vez, a autoridade mansaya pode servir para enfraquecer uma fasiya que, sendo muito forte, tende a fazer coincidir as duas ordens de legitimação em seu exclusivo benefício. Fica, todavia, sublinhado como ambas as ordens de legitimação não são monolíticas; ao contrário, cada uma delas apresenta internamente fortes potencialidades flutuantes. Em particular quando estas assumem a forma do conflito, criam-se as condições típicas nas quais fasiya e mansaya perdem as suas respectivas caracterizações e tendem a anular-se uma a outra.

ii. O segundo eixo de desenvolvimento coloca em jogo a dupla farinya/ faamaya, o que significa um exercício do poder político baseado sobre a sabedoria (fa, padre) ou então sobre a força (fanga).15 15 Não tomo aqui em consideração a conotação almamial da autoridade que, no último Mandê pré-colonial, indica uma componente religiosa do poder de matriz islâmica ( al-iman, o guia): Samory recebe sucessivamente o título de kelétigi (líder), faama e por fim lalmami. Daquele momento em diante (1874), tornando-se o chefe supremo dos exércitos jula, ele não toma mais parte diretamente dos combates. (PEROZ, M.E. Au Sudan français: souvenirs de guerre et de mission. Paris: Calmann Lévy, 1889, p.398 seg. ). Com efeito, a autoridade do mansaya, com o seu poder específico exercitado pelo mansa, instaura por excelência a dimensão política na vida social: é a prerrogativa real, plena e autônoma, que consagra o Senhor (ma, como senhor) no entrecruzamento de evocações legitimadoras ambivalentes, cujo alvo é em direção ao conjunto das qualidades que a pessoa deve reunir para poder aspirar ao altíssimo cargo (ma, como homem), e por outro em direção à referência suprema das responsabilidades e dos poderes, ou seja Deus (make, o Ser Supremo). E, todavia, a autoridade mansaya pode sofrer derivações ao longo da evolução da história, como repetidamente dito, e assumir conotações controversas.16 16 CISSOKO, S.M. Formations sociales et Etat en Afrique pré-coloniale: approche historique. Présence Africaine, v.127/128, 1983 Aquela farin descende dos ancestrais (fa, pai) e o código que a identifica é a sabedoria, própria dos avós. A autoridade faama, ao contrário, associando-se à força (contração de fangama, aquele que é dotado de força) fia-se mais na eficácia do despotismo do que na virtude do consenso, fruto de uma persuasão gerada do agir de acordo com a justiça.

A dissolução do Mali (século XVII) contribuiu para criar um período de graves perturbações na África Ocidental, vinculado, sobretudo, ao progressivo sucesso do tráfico de escravos de matriz européia e ao conseq üente deslocamento dos fluxos mercantis que abandonam os circuitos meridianos e se organizam geograficamente no sentido dos paralelos. 17 17 Sobre esta diversão e os seus efeitos econômicos políticos e territoriais pode-se ver: TURCO, A. Geografie della complessità in África. Interpretando il Senegal. Milano: Unicopli, 1986 (Em especial cap. 5 e 7). No extremo Oeste do Mandê, digamos entre os contrafortes setentrionais do Fouta Djalon e as bacias dos rios Casamance e Gâmbia, a nova situação leva à consolidação do Gabu,18 18 Que a tradição diz fundado em torno de 1240 por Tiramaghan, primo de Sundiata e certamente o mais poderoso entre os chefes ( kelètigi) do Mansa. um reino que parece reunir e defender a hereditariedade da cultura mansal produzida e custodiada pelo Mali, preservando-a o quanto possível de vestígio oposto, quer dizer, do tipo faamaya e do tipo farinya.19 19 Da robusta bibliografia sobre o Gabu quero realçar ao menos: CARREIRA, A. Mandingas de Guiné Portuguesa. Bissau: CEGP, 1947; CAROÇO, J.V. Monjur o Gabu e sua história. Bissau: CEGP, 1948; MANÉ, M. Contribuition à l'histoire du Kaabu dês origines au XIX s. Bulletin de l.IFAN, T. 40, ser. B, 1, 1978; Ethiopiques, 28, 1981 (Número especial dedicado ao .Colloque international sur les traditions orales du Gabou.); NIANE, D.T. Histoire des mandingues de l'Ouest. Paris: Karthala, 1989. Sobre as formações políticas mandê do extremo oeste africano veja-se: QUINN, C.A. The mandingo kingdoms of Senegambia. Evanston: Northwestern University Press, 1972. Entre os trabalhos em língua italiana sobre o Mandê ocidental ressalto: BELLAGAMBA, A. Ricordati di ieri. Torino: L.Harmattan Italia, 2000. (Fig.2)


No restante do Mandê, ao contrário, observa-se uma regressão em direção a situações de tipo decididamente faamaya, como a Segu à qual retornaremos, ou então, no oposto, em direção a formas pré-políticas de organização social e territorial. Esta tendência ao retorno na direção da fasiya não coloca porém de tudo fora do jogo as dinâmicas de tipo mansaya: de fato, emergem apesar disso estruturações mais francamente políticas ainda que de modesto valor, seja em termos de população, que de superfície (confederações de aldeias, chefferies). Neste contesto de reorganização econômico-mercantil em escala sub-continental, na qual a violência organizada si afirma como forma privilegiada da produção de escravos para o tráfico, nasce e se difunde o kafo, quer dizer a estrutura política mais característica do Mandê pós malinês.20 20 Kafo significa reunião, conselho e, por extensão, área submetida a uma única autoridade política. A opinião de Y. Person sobre a natureza do kafo é motivada e convincente: trata-se de um verdadeiro Estado.21 21 PERSON, Y. Samory, T. 1, especialmente cap. II. Esta estrutura territorial, todavia, tanto no plano interno quanto no externo, apresenta aspectos equivocados. No plano interno, sobretudo, seja o nascimento seja o funcionamento realizam-se no rastro de um indeslindável emaranhado fasiya/mansaya.22 22 Ver, para se ter uma idéia, a análise de: SAMAKÉ, M. Kafo et pouvoir lignager chez les Banmana. L.hégémonie gonkòròbi dans les Cendugu. Cahiers d.Etudes Africaines, p.331-354, 1988. O kafo surge sobre base familiar, da hegemonia de uma linhagem ou de um clã sobre outros. Neste sentido, ele é um jamana.23 23 Jama significa grupo, multidão, aglomeração de pessoas, reuniões, assembléia, não dissociadas do lugar ocupado: por extensão, portanto, gente, povo, mas também região, país. Jamana indica, por conseqüência, o território sobre o qual vivem reunidas as gentes de..., o povo de...: quer dizer famílias e linhagens pertencentes ao mesmo clã ou a outros clãs aliados com aquele dominante. Os membros deste último como aqueles dos clãs aliados, reconhecem-se pelo respectivo jamu, por isso mesmo o nome de origem do clã: Keita, o jamu de Sundiata e, portanto, do clã real, é evidentemente o mais prestigioso. De fato, na percepção e na expressão comum os dois termos terminam por serem usados indiferentemente. Basta pensar, pelo que diz respeito ao Alto Níger, que todos os jamana especificados na nossa pesquisa de campo,24 24 TURCO, A. Strutture di legittimità nella territorializzazione malinkê del'Alto Niger. figuram na lista do capitão M.E.Peroz quais kafo existentes na época do primeiro império de Samory, digamos na assinatura do tratado de Bisandugu entre a França e o Almami (1887). De resto, a emergência da função política no kafo comporta necessariamente a passagem do sistema regulador fasiya àquele mansaya. Este último, todavia, é freqüentemente muito frágil para reivindicar uma completa autonomia, motivo pelo qual é condenado a conviver, de formas variáveis, com o primeiro. Só quando, de vez em quando, um líder, um kelétigi particularmente valoroso, arrojado e às vezes visionário, como no caso do Samory (Fig.3), reafirma com a guerra e a conquista territorial os valores da política e as suas instâncias de funcionamento, mansaya e fasiya reassumem os papéis distintos que são próprios deles.25 25 Como observa Y. Person, "o conquistador não tinha em mira a subversão da ordem antiga... [a sua obra] dirigia-se, sobretudo, aos Mandinga e ele queria edificá-la respeitando os valores tradicionais que se encarnavam no kafo" (PERSON, Y., Samory, T. II, p.1018). Os mesmos dugukunnasigi, representantes dos kelétigi instalados (sigi) nas novas unidades submetidas, não tinham poder algum na gestão política dos kafo, mas se limitavam a garantir algumas específicas competências imperiais (ordem pública, liberdade das relações comerciais) e a fiscalizar o correto cumprimento dos compromissos assumidos pelos kafotigi no ato da submissão (por exemplo, cultivo do "campo do Almami" e contribuição alimentar, envio dos contingentes militares anuais, organização do recrutamento em massa no caso de invasão).


2. Estatutos ambíguos da violência organizada: a donsoya

No Mandê a violência organizada atinge a sua importância social e o seu perfil cultural na marca geral da ambigüidade. Esta pode ser enxergada como pistas de uma mimese, um jogo tenaz de refração entre o exercício brutal e o exercício disciplinado da força. Como primeiro exemplo, citarei sem dúvida aquele do donso, figura social estratégica do Mandê que condensa uma ambivalência entre o mais arcaico, historicamente persistentes e espacialmente difusos. O donso é o caçador, um ícone universal e elevado da prática social e também do imaginário coletivo mandingo, sem dúvida pré-existente ao duguba e, aliás, essencial protagonista da sua constituição. Ele apresenta alguns traços caracter ísticos: é forte, é corajoso, sabe manejar as armas, é um personagem consciente das suas habilidades e da sua força que, todavia - ou talvez próprio por isto - não as pratica gratuitamente, dir-se-ia, mas as endere ça à obtenção de um resultado. A força e a habilidade não se exprimem em uma violência cega e destrutiva, mas se conjugam para dar curso a operações reflexivas e por princípio moral realizar qualquer coisa de benéfico. Parece isto o nervo de uma construção axial da cultura mandê, com uma faceta dupla. A primeira diz respeito à consciência que existe qualquer coisa que se pode chamar "mal absoluto" - encarnado, por exemplo, por criaturas não humanas, pré-humanas ou sobrenaturais - e que este mal absoluto se exprime freqüentemente como violência cega, como subjugação injustificada, como castigo excessivo, desproporcional à culpa. A segunda faceta, por seu lado, entrelaça-se com a primeira e apresenta um conteúdo eminentemente geográfico. O mal absoluto, de fato, em seguida o exercício irrefletido da força que configura a violência bruta, reina sobre um mundo que é anecumênico, sobre o espaço selvagem. É esta uma das conotações do wula, designador bastante complexo que encerra no seu horizonte semântico a idéia central que se trata da superfície terrestre ainda não marcada pela ação humana, ainda fora da atividade domesticadora do homem e por isso em definitivo ainda não investida do processo de territorialização. Na realidade wula é sim um espaço natural, mas o seu estatuto conceitual e jurídico varia em função da localização. Integrado no dugu (o assentamento), wula é apropriado: pertence ao so, à aldeia, é submetido a um controle simbólico serrado (é reconhecido, denominado), é investido de práticas de uso também mais intensas, ainda que debilmente reificadoras. Pensa-se a wula como o espaço que circunda a aldeia onde são localizados os locais dos rituais (floresta sagrada, por exemplo), aonde se vai à caça e a pesca, onde se procura as ervas medicinas, onde se vai colher os frutos da mata e da submata, onde se leva os animais para pastar, enfim onde se vai buscar a lenha, sem a qual a vida do so não seria nem mesmo concebível. Em suma, wula como parte do nodu26 26 Nodu é o território externo à aldeia sobre o qual esta última exercita a sua plena jurisdição: é no nodu que, entre outros, desenvolve-se a agricultura, principal atividade mandinga, sobre o séné, quer dizer o conjunto dos campos cultivados ou em repouso. é um território para todos os efeitos, que constitui, entre outros, essencial garantia para a estabilidade do so enquanto superfície de reserva para o crescimento demográfico e as expansões agrárias. Contudo, se ao contrário está localizado fora do nodu, Wula acaba sendo simples espaço, pura extensão natural. É necessário distinguir ainda aqui dois significados semânticos do designador. O primeiro propõe wula como espaço limítrofe de indeterminada jurisdição, que poderia ser por isso integrado no nodu ou então apropriado no quadro da criação de um novo dugu e, pó fim, da criação de um sokun. O segundo evoca wula como grande extensão vazia, como natureza hostil, impenetrável: é o espaço verdadeiramente selvagem, sentido como longínquo, sombrio, temível.27 27 Nas diversas zonas do Mandê encontram-se no posto de wula (wa) ou ao lado dele, outras designações como: dan, fodo ( foro), kongo (e derivados, como kongo-kolo, o espaço selvagen, e kongo-kolo-ba).

No momento em que o homem se achega ao wula para transformá-lo através de operações de tipo simbólico, material ou então organizativo, a violência muda seus traços, sofre o mesmo efeito do processo civilizatório pelo qual o espaço se transforma em território, e se torna um fator da metamorfose de wula em dugu (lugar habitado, assentamento, e, por extensão, território). Neste contexto, a habilidade e a força do caçador resultam perfeitamente inseridas no projeto de domesticação do mundo selvagem do qual o homem mandinga se sente investido. E mais: o donso representa a parte mais consistente daquele processo civilizatório do mundo que é o destino histórico do povo mandinga e que Sudiata exprimirá ao seu nível máximo com a criação do Império. É ao caçador, de fato, que nas pegadas do Mansa Ba, cabe explorar os novos espaços, impelir-se nas temíveis profundidades do wula, entrar corajosamente em contato com as forças obscuras que levam o mal (incompreensível e injustificável) e tornar-se sabiamente forte, com o fito de não deixar-se derrotar por ele e, pelo contrário, distanciá-lo, construindo uma espécie de "terra sem mal" onde a violência vem dominada e onde, em seguida, a disciplina da força vem através do seu emprego justificado.28 28 De fato, tudo aquilo que é externo ao dugu é permeado de uma força misteriosa, .mágica., razão pela qual não se pode afastar da aldeia sem possuir de alguma forma o princípio desta energia (JOHNSON, J.W. The epic of Son-Jara, a West African Tradition. Bloomington: 1986, p.9 e seg. ). É este o grande reconhecimento que Naré Maghan Konaté, o padre de Sundiata, tributa aos moké Traoré, os caçadores por antonomásia, dizendo-lhes: .I Dansoko, I Dansoko. (Vós, que percorreis dan, o epaço selvagem!). J. JANSEN. Epopée, histoire, société, p.114. Moké é o antepassado legendário da origem do jamu.

Nota-se um ulterior complexo de valores que conota o caçador. Este, de fato, não é só exímio no uso das armas, não só pratica a arte da guerra, mas encarna também o espírito dela. O donso na verdade é o depositário da antiga e nobre arte cinegética: um donko, um saber fazer, uma técnica. Mas ele é ainda o depositário de um valiosíssimo donni, o conhecimento profundo, que se conecta novamente enquanto tal às formas codificadas da palavra malinesa, a lada, e talvez ainda mais àquelas esotéricas da kuma koro ba, a grande palavra (kuma) antiga. Estas formas de conhecimento não são evidentemente dizíveis e aparecem ligadas a dois aspectos do comportamento e da vida mesma do donso. O primeiro diz respeito, ainda uma vez com a territorialidade, da qual o caçador é um artífice. Ele conhece wula, o perscruta, o percorre, apropria-se dos seus segredos, o organiza em localidades que cadastra nas características deles e consigna a uma denominação completa, ou seja, que nomeia o campo referencial, simbólico e performativo. A atividade cognitiva na verdade começa com o fixar as referências que consentem o mapeamento mental do wula, e portanto os discurso sobre o wula, e os deslocamentos no seu interior. No domínio simbólico, ademais, ela recolhe os segredos das entidades sobrenaturais que habitam o wula e preserva o inventário dos lugares de culto. Enfim, a apropriação intelectual do espaço produz as informações práticas necessárias à caça. Em suma, retirando-o do estado selvagem, o donso consegue integrar wula não só no universo dos cultos, mas igualmente nas atividades produtivas e nos circuitos da reprodução social. É assim que se desenha uma verdadeira geografia cinegética na qual os lugares entrelaçam a trama dos movimentos dos homens e dos animais, associados a técnicas e instrumentos caso a caso apropriados:29 29 No Alto Níger, os tipos de caças mais freqüentes têm nomes giralisi e karobemasi (de curto raio de ação), watama e lampanatama (de longas distâncias), felé (a grande expedição de caça). balé, às margens dos rios e em geral os locais de bebedouros dos animais; binyoro e fuá, clareiras com relvas mais ou menos cerradas (bowé em pular) onde os animais caçados vão se refugiar; tu, a floresta densa; kotu, a floresta com túneis formados pelas árvores ao longo dos cursos de água e nas depressões úmidas; yeren, o manto florestal ralo. Graças ao donso, o território conquista um novo significado semântico, torna-se um "operador social", e a geografia codifica a si mesma não só denotativamente, como fundo e suporte da atividade humana, mas também conotativamente como dispositivo capaz de mudar "a natureza da natureza" e em seguida, por isso mesmo, de mudar a natureza da violência.30 30 Os Traoré são os primeiros ocupantes das regiões de Kiri, Gagara, Do, que se tornarão em seguida o centro do império de Sundiata. Como lembra Y.T. Cissé, isso vale ao clã títulos como o já lembrado dan soko (aqueles que penetram no espaço selvagem: dan, como dito, é a brousse), dan sira (caminho), dan suba (taumaturgos), dan ba (mães). CISSÉ, Y.T. Notes sur lês sociétés de chasseurs malinké. Journal de la Société dês Africanistes, p.175, 1964.

O segundo aspecto diz respeito a dimensão cooperativa da atividade cinegética pela qual, além do valor individual, é a estabilidade institucional e a duração no tempo que contam. E é aqui que se insere a função da ton. Em vias de princípio no Mandê a ton é um "corpo regulamentado", para usar a expressão de Delafosse,31 31 DELAFOSSE, M. Haut-Sénégal-Niger. Paris: Maisonneuve et Larose. T. III, p.119. estranho à parentela, que age sobre a competência. Esta pode ser de tipo mágico-sagrado e dar corpo a verdadeiras e próprias sociedades secretas.32 32 Sobre este tema remeto a: ZAHAN, D. Sociétés d.initiation bambara. Le N.domo, le Koré. Paris: Mouton, 1960. Ela pode ser também de um tipo que por apresentar conteúdos iniciáticos, poder-se-ia dizer profissional. Neste caso o saber fazer não se conquista por direito de nascimento, como no sistema nyamakala evocado mais acima, mas nele ingressa através do livre aprendizado ao qual todos, em linha geral, possam participar, desde que dotados das necessárias qualidades. Instituição universal do Mandê, a donsoton apresenta características localmente diferenciadas. No Alto Níger guineano, por exemplo, ela é organizada ao nível de dugu, mas às vezes também ao nível de sokun, e contém aspectos iniciáticos que justificam de qualquer modo o termo com o qual vem usualmente indicada em língua francesa: confrérie (confraria). Tornam-se caçadores depois de um período de aprendizado, durante o qual o aprendiz, donso karandé, não pode caçar só, mas acompanhado do seu mestre, o caçador experimentado donso karamo. A aprendizagem pode durar um longo tempo e é encerrada a critério do mestre. Os donso karamo escolhem entre os seu pares o donso kun, o chefe da ton, caçador particularmente hábil, generoso, capaz de evitar os conflitos de interesses, imparcial e, sobretudo, dotado de um poder místico que ele exercita sobre o wula para propiciar a caça e afastar os perigos do espaço anecumênico. O donso kun fica na função enquanto a assembléia dos donso karamo reconhecer-lhe as qualidades pelas quais foi originariamente escolhido. Ele exercita as suas prerrogativas de vários modos: aconselha, concede permissão para sair à caça, assegura com a sua oração e os seus poderes sobrenaturais a prosperidade para a ton e para cada um de seus membros. Em roca, tem direito ao respeito dos donso e a uma parte da caça, em geral o pescoço do animal. O donso kun, enfim, guia a cerimônia anual de abertura da caça, da qual só podem participar os membros da ton. A cerimônia é dedicada ao irmão de Sundiata, Manden Bori, o primeiro e mais eminente dos donso, a quem se pede ajuda e proteção.33 33 No universo cultual alto-nigerino reencontram-se, portadoras dos valores de união e de purificação, Sanen e Kontron (Kondolon), as divindades do panteão cinegético estudadas à escala do Mandê por: CISSÉ, Y.T. La confrérie des chausseurs Manlinké et Bambara. Ivry: Nouvelles du Sud: 1994. Uma ulterior figura do donsoton alto-nigerino é o donso kemo, representante da confraria junto à aldeia e seu portavoz nas reuniões que concernem ao wula. Finalmente, alguns donsoton possuem o seu séréwa, que pode ser ou não caçador, encarregado de narrar as crônicas da ton e os feitos de cada um dos caçadores, de cantar os louvores da donsaya, de animar as vigílias fúnebres em honra de um donso karamo.

Através da iniciação aos mistérios da caça, à aprendizagem das técnicas, à participação na vida da ton, ao compartilhamento dos valores da donsaya34 34 O juramento de iniciação, entre outros, compromete-se a respeitar a filiação da Sanen e Kontron e, portanto, a irmandade da donsoton acima de todas as outras (CISSÉ, Y.T. Notes sur lês sociétés de chasseurs malinké, p.182). O donso alto-nigerino, por seu lado, compromete-se .a servir Kondolon antes de seu pai. e, naturalmente, à concreta prática cinegenética, o donso conquista consciência do seu status social, cujas raízes aprofundam-se seja na tradição mítica, seja na histórica. Os grandes do Manden, a começar pelo Bori, são heróis de caça: Sundiata pode exaltar entre os seus muitos títulos, aquele prestigioso de simbon, grande caçador, sem dúvida, pertecente à ordem instituída por seu avô, Mamadi-Kani; Tiramanghan, o mítico fundador do Gabu, é um Traoré, o clã dos caçadores, um dos dezesseis que dão origem ao Mandê malinês; Biton Kulibaly, o fundador do mais tardio reino de Segu, é por sua vez um donso, destinado a tornar-se ma fa donso, caçador de homens e, isto é, guerreiro.35 35 KESTELOOT, L. Le myth et l.histoire dans la formation de l'Empire de Ségou. Dakar: IFAN, 1980, p.527 e 580 seg. Mas o donso não tem somente um ponto de referência mítico. Ele tem sido o elemento mais eficaz e incisivo dos exércitos mandê, elite guerreira forjada através da fidelidade incondicional ao mansa, não menos que através da honra no combate, valores que o consideram toti, homem livre, valente e leal, incomparavelmente superior ao sofa, ainda que fiel e destemido soldado, porém, escravo.

3. Estatutos ambíguos da violência organizada: dunya-mara, uma cosmopolis mandinga?

A metamorfose da violência acompanha, portanto, a transformação do espaço em território e a passagem de Wula para dugu. Mas antes ainda, ela parece um fator constitutivo de dunya - o mundo terrestre como tal36 36 Com outro valor semântico, dunya, é "este mundo" que se opõe ao além, lakira, o outro mundo. - o elemento que acompanha o seu nascimento, a parteira que permite a individualização de wula, o mundo dos homens, de qualquer coisa que o precedeu e que era evidentemente um universo pré- humano.37 37 A elaboração provavelmente mais completa, ao menos na África Ocidental, do conceito de um mundo colocado à disposição dos homens, está presente na cultura baulé onde o espaço natural, expresso com o designador blo, vem a exercer um papel de interface entre uma anterioridade mundana pré-humana e um "depois" no qual o mundo humaniza-se graças ao processo de territorialização (TURCO, A. Terra ebúrnea. Il mito, il luogo, la storia in África. Milano: Unicopli, 1999).

Em sua pesquisa sobre kumaba mandinga, S. Camara enfrenta o tema da gênesi deste mundo que não é certamente humano, mas que é, no entanto, disposto para acolher o homem secundando-o e, aliás, exigindo dele ação. No seu último livro,38 38 CAMARA, S. Les verger de l'aube. Bordeaux: Confluences, 2001. referente aos percursos iniciatórios do mandê senegalês-guineense, o nascimento do mundo é visto não tanto como uma "criação",39 39 Como aquela, célebre, do mito narrado por: DIETERLEN, G. Myth e et organisation sociale au Sudan français. mas antes como um parto: as forças presentes são difíceis de definir-se, nem se sabe em realidade porque nunca as dinâmicas da mudança se ativam para unir-se às formações do mundo humano sub specie de dunya, cujas entranhas tocará depois de proceder à individualização dos vários espaços: wula, dugu, mara. Mas aquilo que a cosmogonia descrita por Camara relata é justamente um sofrimento que acompanha o parto do mundo, no qual parecem entrela-çar-se os percursos instituidores da ordem de uma parte através da palavra e de outra exatamente através da violência.

Se é verdade que o campo da vida (balokena) vem inseminado da palavra, ele, todavia, produz atos (p.35 e s.). É assim que, no arcano depósito das possibilidades que precedem o mundo, um movimento gerado pela capacidade de sentimento (a compaixão, o amor sincero...) enquanto abre a extensão na sua vacuidade primordial, coloca a distinção crucial entre o universo dos "símbolos", que traz consigo a luz, e aquele das "coisas", marcado pela opacidade e, portanto, falso. No formar-se da extensão - um termo geográfico primordial40 40 Que, todavia, no mundo pré-humano tem um antecedente no fuulu faala, o espaço que não é ainda expandido (S. Câmara, op. cit., p. 148). No mito narrado por G. Dieterlen (p.43,) a expansão é orientada pelos quatro pontos cardeais: Klebi (Oeste), Koro (Leste), Kanaga (Norte), Worodugu (Sul). - acompanham as primeiras articulações entre a vila celeste (santosu), a vila terrestre (dugumasu) e a vila de meio (talanteemasu). Mas é a denominação, a enunciação dos dugurentogolu, os nomes verdadeiros e secretos, que "irrigam o lugar vago das existências que virão" e preparam balokena.

A palavra é, portanto, o não giratório princípio ordenador da extensão que se dispõe a tornar-se dunya e, portanto, wula. Permanece, no entanto, neste percurso, o inaudito sofrimento do parto do mundo que será humano, a enfrentar-se desditoso das pulsões, a angustiante, a incessante refração dos estados emotivos nos quais se materializa (a compaixão, o amor, a luz, a água...). De qualquer maneira, a violência da gênese prefigura aquela que acompanhará os eventos que ocorrerão no novo mundo e as configurações que ele virá a assumir - ou seja, a história e a geografia do homem - já que elas serão, em última instância, os resultados de uma ingente "luta dos desejos", destinada a subverter incessantemente cada poder mundano.

A tradição apenas evocada sugere que a violência é uma necessidade cosmogônica, inerente ao nascimento do mundo terrestre. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer, ela acompanha cada nascimento e, particularmente, cada determinação geográfica destinada a articular dunya e a refletir e manter o agir humano, a ação social. O problema apresenta-se com particular acuidade quando se trata de instaurar a mansaya e, com ela, o que a reflete e lhe dá substância, ou seja mara, o lugar político. Reapresenta-se aqui o problema que já foi dos estóicos, de realizar cosmospolis, estabelecendo uma conexão entre a ordem do universo (cosmos) e aquela da polis, ou seja, o espaço político.41 41 TURCO, A. The Spaces of post-modernity: Reading the Readings. Bollettino della Società Geográfica Italiana, v.2, 2004. Tentarei indicar como dunya-mara esta cosmópole mande, convocando ainda a violência como instrumento deste novo disciplinamento geográfico do mundo. É de novo a epopéia de Sundiata que oferece a chave de leitura mais côngrua a respeito do raciocínio que estamos aqui desenvolvendo. E é a belíssima tradição de Wa Kamisoko, traduzida e apresentada por Y.T. Cissé, que explica a necessidade da política, como observa perspicazmente C. Maillassoux.42 42 CISSÉ. Y.T. & KAMISOKO, W. La grande geste du Mali des origins à la foundation de l'Empire. Paris: Kartala, 1988. A citação está em: MEILLASSOUX, C. Anthropologie de l'esclavage. Paris: PUF, 1998, p.143 seg. , surpreendentemente, todavia, parece que o autor aceita a tese que o Mali não tivesse sobrevivido ao seu fundador. Sundiata enfrenta o problema da segurança do Mandê pré-malinês, onde portanto vigoram os procedimentos legitimadores da ação pública de tipo fasiya. A questão é espinhosíssima a partir do momento que se trata de um lado de preservar a liberdade do Mandê das perseguições de Somaoro Kanté, soberano dos Sosso, de outro de extirpar o flagelo do banditismo. Este último se direciona não tanto à açambarcagem de bens, mas de preferência à captura de pessoas para venderem como escravas no quadro do tráfico transaariano. O fato é que, conforme um processo registrado pelo Sudão desde o século X,43 43 CUOQ, J.M. Recueil des sources árabes concernant l'Afrique occidentale du VIII au XVIe siècle. Paris: CNRS, 1975, p.69. o rapto e a venda de prisioneiros é feito não contra "estrangeiros", mas mesmo no interior do Mandê e também, anonimamente, entre habitantes da mesma aldeia e membros da mesma família. Sundiata realiza uma aliança entre todas as dugutigiya mandingas (confederação de aldeias, chefferies pré-mansais) - tradicionalmente especificadas em trinta - e dá combate a Samaoro, destroçando-lhe os exércitos na batalha de Kirina (1235). O Mandê mansal, ou seja, a constituição política do espaço mandinga nasce de um ato de violência organizada, e está aí o sentido da expressão "Kelé lê ka Mandé lo" : é sobre a guerra que se edificou o Mandê. as, como já na domesticação de wula, trata-se não de uma viol ência cega, mas sim de um uso refletido da força para fins positivos: Sundiata é o líder de uma horoya kelé, de uma guerra defensiva e por isso justa. É em seguida à se-nko (a vitória) contra Somaoro, precisamente, que Sundiata pede aos seus pares de elege-lo soberano de uma federação estável de dugutigiya, com a finalidade de garantir a paz e de eliminar o banditismo escravista, ou seja a forma mais odiosa de siakelé (a guerra étnica, a guerra civil), de dugulenkelé (a guerra entre coletividades estabelecidas, entre aldeias), ou até mesmo de fadenkelé (a guerra intestina).44 44 Propriamente a guerra dos filhos ( den) do mesmo pai ( fa): a guerra familiar. Evocamos aqui uma dialética intra-linhagem que se registra tipicamente no quadro da senaya (poligamia) mandinga. Trata-se de uma dialética que acaba por assumir um papel de grande importância nos relacionamentos familiares e, por extensão, sociais: aquela entre fadenya e badenya. A primeira faz referências as relações entre irmãos, precisamente filhos ( den) de um mesmo pai ( fa), mas de mães diferentes: trata-se de relações que evocam competitividade, rivalidade e, por extensão, conflito. A segunda, ao contrário, faz referência às relações entre irmãos filhos de uma mesma mãe ( ba) e de um mesmo pai e são afeiçoados ao entendimento e à harmonia. Fica bem evidente, que esta dialética projeta-se sobre o plano geográfico em uma multiplicidade de escalas e, partindo do lu (a residência da família extensa), investe toda a estruturação hierárquica: não só com aquela fasiya, portanto, mas também com aquela mansaya. Ela é portadora de tensões e impulsões à mudança que seriam dever da função ordenatória das instituições mandingas de levarem a cabo na presença de uma certa margem de flutuação. Todavia, J. Jansen observou como entre fadenya e badenya nem sempre a oposição é clara: uma pode transformar-se na outra, por exemplo, quando se trata de fazer causa comum contra um parente mais longínquo (primo) (JANSEN, J. The younger Brother and the Stranger. Cahiers d.Etudes Áfricaines, 4, 1996, p. 659-688). Por outro lado, a correspondência entre badenya e harmonia não é de maneira alguma absoluta, já que o demba (o núcleo familiar formado por uma mulher e os respectivos filhos), é sempre o lugar onde se manifesta a rivalidade entre kodo (primogênito) e doko (caçula). Cito ainda o fato de que para complicar o quadro intervém a biranya, que corresponde à parentela por aliança, por ser ela importante no desenvolvimento das relações sociais. "Você afastou a guerra de nossas casas, por isto renunciamos ao nosso poder e te proclamamos niyamoko": assim Kamisoko (p.42) narra os propósitos dos dugutigi. É o ato de nascimento do Mandê mansal e, com ele, do mara. Mara é in primis uma forma de poder. Ele evoca não somente uma capacidade, mas também um direito e um compromisso responsável, intimamente ligado à educação, quanto um poder de comando consciente das suas prerrogativas e dos seus limites. No pensamento político mandinga mara exprime a idéia de poder certo mais complexa, tanto mais que o termo não só evoca uma qualidade pessoal ou institucional, mas torna-se um designador geográfico no momento no qual indica um território político: mais especificamente, o território político de Sundiata e, por extensão, do mansa. Mara, portanto, é o poder político na sua expressão institucional mais alta, cujas condições de exercício são por isso mesma aquelas mais disciplinadoras. Ao mesmo tempo, ele identifica-se com o âmbito espacial do seu próprio exercício, o que produz dois efeitos importantes. O primeiro consiste no afirmar uma qualidade especificamente política do território independentemente da existência de outros poderes que eventualmente se exerçam sobre o mesmo: é a essência mesma da dialética fasiya/mansaya da qual falamos no primeiro parágrafo. A segunda diz respeito àquilo que com uma expressão ratzeliana chamarei o Raumsinn, o senso do espaço mandê. Este confia-se de boa vontade na sua expressão pré-imperial (e, portanto, de muitas maneiras pré-política), a uma figurativização por pontos (os so, as aldeias), mais ou menos nitidamente ligados por linhas que conduzem as relações mais variadas (confederações, alianças, trocas), mas privado de extensão superficial: de início, como disse Wa Kamisoko, o reino de Sundiata vai "do rio Woyo-Wayan-Ko, ao pé do fromager di Kouroussa" (p.281-3). Configura-se pura e simplesmente como um espaço vetorializado, percorrido por uma linha de força que o representa e o descreve: do curso d.água à arvore. Com a criação do império o espaço deixa de ser puramente linear e conquista a área de sua consistência. Por um lado, trata-se de uma área isótropa, investida na sua integridade do poder mansal. Por outro lado, assume o aspecto de uma extensão delimitada por toda parte - ao Norte, ao Sul, a Leste e a Oeste, ressalta ainda Kamisoko - denominado, organizado em estruturas que têm status diferentes e diferentes funcionalidades: domínios da coroa, províncias, estados vassalos. Permanece intacta a alta função do rio Níger como fator simbólico de estruturação do Mandê: il Mansa Ba não é somente um matigi, senhor dos homens, mas é também um jitigi, senhor da água.45 45 É através de sua autoridade sobre a água que o Mansa, por não ser um kumatigi, um senhor da palavra, acaba sendo intimamente permeado dos poderes desta última. De fato existe um paralelismo entre a palavra e a água como grandes princípios que modelam o mundo: o Níger, o grande rio que fundamenta a geografia dos mandingas, dá ao mesmo tempo sentido a história deles graças ao gênio que o habita, Faro, aquele que se enuncia e por isso mesmo senhor do ko, aquilo que vem dito.

A mansaya concretizando-se no mara exprime o poder na sua plenitude política: ele é hereditário e distingue-se por sua moderação, a sua sensibilidade às tradições e a sua preocupação pela justiça. O Mansa Ba, respeitoso da legitimidade fasiya e das prerrogativas a ela associadas impregna-se do Mandê e confere-lhe o status de mara, um território superdotado, de algum modo, uma vez que não sofre mas usufrui da autoridade do soberano. De fato, o mara é um espaço de paz e de securança, mas também a substância de uma geografia próspera, um lugar onde o tráfico de escravos que afligia a sociedade pré-malinês não existe mais ( e isto é considerado como um elemento decisivo de civilização), onde os circuitos comerciais foram reativados e estabilizados, e onde, enfim, pode-se dedicar àquela que é por excelência a atividade mandê, ou seja, o cultivo da terra. É assim que Sundiata, que reina do alto de seu trono sobre um império rico e forte, sabe escutar a humilde exortação de um velho sábio que lhe diz: "Mande derrubar as árvores, transforme a floresta em campos cultivados, e só então tornar-se-á um verdadeiro rei".46 46 DELAFOSSE, M. Haut-Sénégal-Niger, T. II, 1972, p.182-3. É a essência mesma da passagem do estado de natureza ao artificial humano, em virtude do qual um rei torna-se autêntico rei porque derrota a precariedade, cria as condições de estabilidade para o seu povo e pode instituir derrota a os ordenamentos que acompanharão o desenvolvimento civil. Sobre esta que representa a mais importante forma de reificação na geografia subsaariana, se fecha a fisionomia conceitual do mara. A restauração das práticas culturais é o sinal definitivo de uma grandeza que pode ser somente de quem reina sobre o espaço político:47 47 Não por acaso o Mansa enumera entre os seus títulos aquele de sanogo, cultivador, .uma vez que a personalidade daquele que não cultiva ou não sabe cultivar é incompleta..(KONARÉ, O. La notion de pouvoir dans l.Afrique traditionnelle et l.aire culturelle manden em particulier. In: AKINJOGBIN, I.A. et al. Le concept de pouvoir em Afrique. Paris: Unesco, 1986, p.146). aquele que afasta a carência, o desastre da fome, colocandose como um construtor de perenidade. Se o Mandê é eterno, é porque il maratigi faz-se seu guardião.

4. Segou: da tègereya à kelètigya

À luz de tudo isso que foi dito, se pode avaliar plenamente o significado cultural, histórico e geográfico do reino de Segu (fig. 4). Digamos que, já a partir do século XVII e, além disso, em medida crescente no curso do século XVIII, a demanda praticamente inexaurível por escravos para o comércio atlântico cria em toda a África ocidental uma regressão da vida política e, em especial, uma degradação do espaço político com o afirmar-se da violência organizada, seguida da guerra real, como instrumento central da produção escravagista para o tráfico.48 48 Descrevi este processo relativamente aos estados wolof em: TURCO, A. Geografie della complessità in África, p. 139 seg. e 220 seg. No Mandê pós malinês, composto no vale central do Níger por aldeias isoladas (so) e por pequenas dugutigiya, o tráfico escravista europeu criou uma condição geral de instabilidade e de insegurança para os mandigas, em singular correspondência com o que ocorria no Mandê pré-mansal com o tráfico transaariano de matriz árabe-islâmica. Tanto em um como no outro caso, os fins da captura de seres humanos para vender, desencadeiam o banditismo (tègereya)49 49 De tegere, bandido, chamado também jado em Segu. nas suas duas formas de jodoya e de soboli.50 50 BAZIN, J. Guerre et servitude à Segou. In: MEILLASSOUX (dir.) L'esclavage em Afrique précoloniale. Paris: Maspero, 1975, p.146 seg. A primeira diz respeito ao pequeno banditismo, individual ou de grupos isolados que se formam por uma ação e depois se dissolvem. A segunda, ao contrário, é obra de uma ton, como se designa a Segu, um bando consistente (algumas dezenas) de bandidos às ordens de um chefe (tontigi) que exercitam permanentemente a atividade predatória. Maamari Kulibali, apelidado Biton, uma vez solitário donso, trona-se exatamente um tontigi que, graças ao sucesso das suas ações violentas e à astúcia das quais dá prova,51 51 Biton provoca de fato elementos de tensão, estende-se em direção a situações de conflito, após apresentase como pacificador. Veja-se o conto narrado por: BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d.Etat. In: BAZIN, J. & TERRAY, E. Guerres de lignages et guerres d'Etats en Afrique. Editions des Archives Contemporaines, 1982, p.326-7; e também: BAZIN, J. La production d'un récit historique. Cahiers d.Etudes Africaines, v.1-4, 1979. vê crescer a sua força (trata-se de fanga, a força bruta, a mera capacidade de coerção) e acaba estabelecendo um poder estatal (fanga ke): Biton assume o título de faama e estabelece a sua residência em Segukoro (a velha Segu). Nasce assim, em torno de 1720, o reino de Segu, do qual Mungo Park descreverá alguns traços característicos por volta do fim do Setecentos.52 52 PARK, M. Viaggio verso il cuore dell'Africa. Firenze: La Casa Usher, 1990, specialmente cap. XXII. (e.o. 1799). Um século depois, a fase expansiva se detém: os exércitos de Segu são batidos por Peul do Maasina, que sprimem o reino dos seus territórios orientais. Uma nova dinastia, com o chefe Ngolo Jará, assume o poder e o manterá até a chegada das armadas jihadistas tuculeur de Omar, em 1861.53 53 De fato, os príncipes Ngolsi continuarão a inspirar uma resistência à dominação de Omar, a ponto que, em 1890, o coronel L. Archinard, pôs em fuga as armadas de Madani - filho de Ahmadou e, portanto, neto de Omar - conquista Segu e dá um efêmero poder ao faama bambara Keké Mari.


A afirmação da faamaya de Biton, conquanto "regulamenta" o problema da tègereya - e veremos de que modo especialíssimo - não faz mais que afastar para o exterior a atividade predatória, instaurando uma condição bélica contínua, uma kelé permanente que justifica para Segu, segundo J. Bazin a denominação de "Estado guerreiro".54 54 BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d'Etat. E também: ROBERTS, R.L. Warriors, Merchants and Slaves: The State and the Economy in the Middle Niger Valley, 1700-1914. Stanford: Stanford University Press, 1987. A famaya de Segu é qualquer coisa de bastante diverso da mansaya de Sundiata. No entanto, como observa Meillassoux, Biton - e depois dele Ngolo - chegam à cena pública do nada, não têm uma afiliação de clã que os nobilitem ou ao menos que os legitimem de alguma forma às pretensões de comando. Ser sem passado condena, de qualquer maneira, a ser sem futuro: como observa S. Bagayogo,55 55 BAGAYOGO S. Lieux et théorie du pouvoir dans le monde mandé: passé e present. Cahiers dês Sciences Humaines, v.4, 1989. se a mansaya é hereditária (recebe-se e pode-se transmitir), a faamaya é conquistada: isto faz com que as dinastias de Segu tenham débeis fontes de legitimação, porque na morte de cada faama o pretendente à sucessão deve demonstrar a própria sebbaya (potência).

Além disso, este vir do nada representa de per si uma ruptura da tradição, uma derrota a princípio socialmente forte da ancianidade. O primado de moba (ancião, sábio) vem substituído por novos valores: aquele da força física e do ardor no combate, que não são certamente os velhos a possuírem, mas os kamalen, os jovens reunidos na ton.

Biton, de outra parte, não combate o banditismo, mas o pratica. Se o elimina não o faz da maneira de Sundiata, decreta-o pura e simplesmente ilegal, mas obtendo dos so e das dugutigiya que desejem ser protegidas das incursões dos seus tonden (os pertencentes do seu bando) um direito de compensação, nisongo. É o medo da ação predatória que compele, portanto, as coletividades mandingas a reconhecerem a autoridade do faama; e este medo será jogado contra eles, uma vez que a ameaça de um ato predatório sempre possível serve para impedir cada veleidade de insubordinação. Com o passar do tempo, os tributos pagos às dinastias de Segu a título de nisongo tornam-se sempre menos consistente. Em compensação, aumentam outros tipos de obrigações, entre estas o envio de efetivos em caso de guerra. E é aqui que se insere a questão crucial dos jon, e do peso que no todo a jonya assume no reino. A passagem, se assim se pode dizer, do banditismo interno ao banditismo internacional, comporta a institucionalização da kelé como fundamento de um específico modo de produção estatal em Segu. A guerra é feita para fazer prisioneiros a se transformar em escravos. Segundo a reconstrução de J. Bazin, cada kelètigya (expedição guerreira) "produz" certa (importante) quantidade de escravos:56 56 São os marfalajon, os "escravos feitos por fuzis". Estes vão ao faama em um número variável de dois terços (2/3) à metade, enquanto o restante permanece com aqueles que participaram da expedição bélica. Os jon que vão abastecer o tesouro real tomam por sua volta três destinações principais: i) a venda, efetuada diretamente pelo faama a mercadores de passagem (Jula, Mauri, os habitantes da Mauritânia), ou então nas aldeias maraka, que funcionam como centros mercadores,57 57 Os Maraka são propriamente os mercadores (ou intermediários) muçulmanos, frequentemente, mas não necess áriamente, de etnia Soninké. As suas aldeias - chamadas exatamente maraka - funcionam como praças especializadas, sobretudo, para venda dos jon. ou então enviam através de rios grupos em direção às grandes praças comerciais como Bamako, Kangaba e Kankan; ii) a redistribuição, que segue canais diversos (o grupo familiar, a rede clientelista - sobretudo jali, conselheiros, mori, ou seja sábios islâmicos encarregados de cuidar da baraka do soberano) - enfim, a unidade encarregada de assegurar a produção agrícola destinada a satisfazer as exigências das cortes e, máxime, dos foroba-jon, os escravos públicos, ou seja aqueles a serviço das coroa; iii) por fim, os escravos atribuídos exatamente ao foroba-jon. Destinados a reforçar os exércitos reais, eles constituem na realidade a verdadeira força do faama, tornado assim a nova ton, a ton-jon que substitui a originária ton bandida. Entre os foroba-jon vêem afinal escolhidos os temíveis sofa, o corpo especial encarregado da guarda do palácio.

O Estado guerreiro e o modo de produção que o substancia, projetam-se no solo com uma específica organização territorial. No entanto, as fronteiras do reino são indeterminadas e móveis, em relação à força da qual o faama pode dispor para assegurar o seu poder. No interior do reino então, mais que uma estruturação de tipo administrativo, afirma-se um ordenamento funcional das aldeias. Se o coração da bamanaya (a sociedade bambara) é o faama, o eixo geográfico do sistema é obviamente Segu, a sede do soberano. Em redor da capital encontram-se aldeias onde são aquarteladas as guarnições dos escravos, e por isso, chamadas ton-jon. Cada um destas aldeias ton-jon é circundada de pequenas aldeias de cultura (cikédugu), habitadas da horon e da jon (incluindo as mulheres, jonmuso), encarregados dos aprovisionamentos. Vêem também as aldeias maraka, já mencionadas, algumas das quais, particularmente importantes como Sansanding, têm marakadugu como satélites (Togu, Busen) e têm também os seus específicos cikédugu. Aldeias mais destacadamente políticas, além disso, e disseminadas em todo o coração do reino, são os dendugu (literalmente: aldeias dos filhos) onde são estabelecidos os princípios da linhagem real. Lembramos enfim as aldeias cujos chefes são especificamente designados pelo faama como seus representantes e que exercem assim certo poder sobre assentamentos circundantes.

A importância crescente dos jon no âmbito da bamanaya, o aperfeiçoamento da kelé como máquina produtiva que pode contar com dispositivos territoriais sempre mais funcionais, não fazem senão aumentar o mal-estar coletivo e a desagregação das instituições mandingas. Em um reino no qual a guerra é "o destino de cada cèfarin", de cada homem corajoso, livre ou escravo que seja, o soberano torna-se Kelè Mansa, um polemarco;58 58 A frente do qual a faamaya bambara chega a conceber figuras redutivas como o deliké mansa (suplicante) ou até mesmo como o mansamuso (mulher). (BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d'Etat, p.325). o espaço político declina no âmbito da exibição e de exercício de um poder exclusivamente fanga. A legitimação fasiya, frente a qual até mesmo Samory mostrará respeito, vem colocada de fato fora do jogo da faamaya bambara que negligenciando o mútuo reconhecimento das fontes de legitimação, esvazia o código mansal do núcleo mais resistente que por séculos garantiu a força e a durabilidade da política.

5. Entre guerra e poder: a territorialidade como instância moral

No horizonte cultural mandê, o discurso sobre a guerra impacta-se com uma força e uma complexidade realmente notável. É no signo da violência, ainda que disciplinada, que se produz os grandes eventos e particularmente aqueles destinados a criar os quadros territoriais nos quais o homem mandinga pode conduzir serenamente a sua existência individual e desenvolver plenamente o próprio destino histórico. Dunya, o mundo terrestre, especifica-se progressivamente como casa do homem em primeiro lugar enquanto wula, depois enquanto dugu, finalmente enquanto mara: o Mandê é o lugar onde, precisamente, estas três configurações do espaço geográfico fundem-se harmoniosamente.

Uma problemática cosmopolitana reverbera-se no pensamento político e na concreta prática social mandê. No seio desta problemática define- se processualmente a idéia que existe um exercício da violência, e por extensão uma prática bélica, destinados a - e indispensáveis para - fundarem uma territorialidade civil. A torção à qual esta idéia vem submetida é dupla, ideológica e histórica. É sim verdade, com efeito, que existem guerras que podem "facilmente" definir-se "justas" (a guerra defensiva horoya kelé, a guerra conduzida para prevenir os conflitos civis); é igualmente verdadeiro, todavia, que também uma kelè desencadeada por motivos expansionistas, do momento que se resolve pela difusão da ordem Mandê - e, portanto, em uma ampliação daquela precios íssima qualidade geográfica da superfície terrestre que é o mara - acaba por ser ideologicamente legitimada. Historicamente de resto - e estamos na segunda torção - viu-se como a autoridade faamaya pode erigir a ordem em valor absoluto - e a submissão total no seu corolário eminente.59 59 É por isto que se diz que, com o fim dos Kulibali, não existem mais homens livres em Segu e que todos os habitantes do reino são jon do faama. O Estado de Segu aparece, portanto, como uma espécie de comunidade familiar imensa, com um núcleo de homens livres . a família real . e uma massa desproporcional de jon, geridos no interesse de todos pelo faama: "a servidão de Estado como uma servidão privada generalizada". (BAZIN, J. Guerre et servitude à Segou, p.165-6).

No Mandê, uma cesura precisa distingue aquele que detém o poder e aquele que dele é privado: o primeiro, fangatigi ou maratigi que seja, não só possui um atributo, mas sobretudo é legitimamente habilitado a exercitar um poder; o segundo, por seu lado - fangatan, maratan - é certamente desprovido do poder, mas, mais radicalmente, não tem título para o seu legítimo exercício.60 60 Tigi (que pode contrair-se em ti) é o senhor, possuidor, detentor e exprime uma indicação geral de comando: tan é o despossuído. Por outro lado, a titularidade do tigi não esgota completamente a instância profundamente moral contida nas express ões que indicam o poder. Este último, de fato, pode ser exercitado por quem tem direito no "modo justo", ou então com abuso. Em tal caso o poder é sancionado por uma marca negativa enquanto diagoya (coercitivo), diugu (errado), dialan (estéril). Compete à política, em definitivo, mediar entre os usos mais ou menos abertamente instrumentais a que se presta o discurso sobre a guerra, para impedir, em última instância, que a territorialidade venha a ser reabsorvida além cosmópole, em direção as configurações mais primitivas e temíveis do mundo humano.

Artigo recebido em 10/09/2005. Aprovado em 15/11/2005.

  • 2 TURCO, A. Strutture di legittimitŕ nella territorializzazione malinkę del'Alto Niger (Rep. di Guinea). In: CASTI, E. & TURCO A. (org.). Culture dell.alteritŕ. Il território africano e le sue rappresentazioni. Milano : Unicopli, 1998;
  • TURCO, A. Legitimité et pouvoir: ŕ la recherche de l.espace politique dans l.Afrique mandingue. In: PITTE, J.R. & SAGUIN, A.L. (org.). Geographie et liberte Mélanges em hommage ŕ Paul Claval. Paris: L.Harnattan, 1999.
  • 3 Merece atençăo: BAH, T.M. Architecture militaire traditionnelle et poliocétique dans le Soudan Occidental du XVII ŕ la fin du XIX sičcle. Yaoundé: CLE/ACCT, 1985.
  • 4 A atividade guerreira, de fato, torna-se o cerne de uma verdadeira formaçăo social que, na perspectiva já indicada por J. Goody, atribui ŕ política um papel de mediaçăo entre a atividade de produçăo e a atividades de destruiçăo (GOODY, J. Technology, Tradition and the State in Africa. Cambridge: Cambridge UP, 1971).
  • 5 JANSEN, J. Epopée, histoire, société. Paris: Karthala, 2001, p.10 e seg.
  • 10 É o espírito que regula o Gbara, ou seja, a assembléia constituinte dos clăs mandingas que se realizou na planície de Kurukanfuga, nas cercanias de Kangaba. É importante observar como a fixaçăo mandinga aos valores comunitários vęm reafirmada no momento próprio no qual a cultura mansal atinge o seu ápice com Sundiata, que năo por acaso assume o jamu de Keita, "aquele que pega todas as coisas", e, por conseguinte, o senhor de tudo (DIETERLEN, G. Myth e et organisation sociale au Sudan français. Journal de la Société dęs Africanistes, v.1-2, p.40, 1955).
  • 11 Sobre este ponto, bastante delicado, remeto a: TURCO, A. Astres et désastres: voyage dans la conflictualité pastorale autour du Parc Transfrontalier de la W (Burkina Faso-Bénin-Niger). Ponts, v.4, 2004.
  • 12 O "lugar político" organiza-se em estruturas que possam assumir fisionomias estatais ou imperiais e, portanto, mais ou menos complexas do ponto de vista administrativo. A estas formaçőes geográficas antes inexistentes que marcam exatamente a qualidade política do território - se bem que de maneira năo exclusiva - ,se conectam estreitamente com outras, de natureza econômica: trata-se dos circuitos de troca, que dizem respeito seja ao comércio de curta-média, ou de média-longa ou de longuíssima distância (transaariano, transoceânico). Na realidade, as estruturas mercantis săo em certa medida a origem mesma do processo que impulsiona no sentido de tornar autônoma a funçăo política na sociedade mandinga. Elas se alimentam dos influxos do Islam e tornam-se fundamentais para o funcionamento e a reproduçăo das estruturas mansais. Pode-se ver a este respeito os grandes afrescos de: MAUNY, R. Tableau géografique de l.Ouest africain au Moyen Age. Dakar: IFAN, 1961; PERSON, Y. Samory. Une révolution dyula. Dakar: IFAN, 1968-1975 (principalmente T. I. cap. III e IV.). Mudando de perspectiva, temos uma breve síntese em: STEWART, M.H. The role of the manding in the hinterland trade of the Western Sudan: a linguistic and cultural analysis. Bulletin de l.I.F.A.N., T. 41, sér.B, 2, 1979.
  • 15 Năo tomo aqui em consideraçăo a conotaçăo almamial da autoridade que, no último Mandę pré-colonial, indica uma componente religiosa do poder de matriz islâmica (al-iman, o guia): Samory recebe sucessivamente o título de kelétigi (líder), faama e por fim lalmami. Daquele momento em diante (1874), tornando-se o chefe supremo dos exércitos jula, ele năo toma mais parte diretamente dos combates. (PEROZ, M.E. Au Sudan français: souvenirs de guerre et de mission. Paris: Calmann Lévy, 1889, p.398 seg.
  • 16 CISSOKO, S.M. Formations sociales et Etat en Afrique pré-coloniale: approche historique. Présence Africaine, v.127/128, 1983
  • 17 Sobre esta diversăo e os seus efeitos econômicos políticos e territoriais pode-se ver: TURCO, A. Geografie della complessitŕ in África. Interpretando il Senegal. Milano: Unicopli, 1986 (Em especial cap. 5 e 7).
  • 19 Da robusta bibliografia sobre o Gabu quero realçar ao menos: CARREIRA, A. Mandingas de Guiné Portuguesa. Bissau: CEGP, 1947;
  • CAROÇO, J.V. Monjur o Gabu e sua história Bissau: CEGP, 1948;
  • MANÉ, M. Contribuition ŕ l'histoire du Kaabu dęs origines au XIX s Bulletin de l.IFAN, T. 40, ser. B, 1, 1978;
  • Ethiopiques, 28, 1981 (Número especial dedicado ao .Colloque international sur les traditions orales du Gabou.); NIANE, D.T. Histoire des mandingues de l'Ouest Paris: Karthala, 1989.
  • Sobre as formaçőes políticas mandę do extremo oeste africano veja-se: QUINN, C.A. The mandingo kingdoms of Senegambia Evanston: Northwestern University Press, 1972.
  • Entre os trabalhos em língua italiana sobre o Mandę ocidental ressalto: BELLAGAMBA, A. Ricordati di ieri Torino: L.Harmattan Italia, 2000.
  • 28 De fato, tudo aquilo que é externo ao dugu é permeado de uma força misteriosa, .mágica., razăo pela qual năo se pode afastar da aldeia sem possuir de alguma forma o princípio desta energia (JOHNSON, J.W. The epic of Son-Jara, a West African Tradition. Bloomington: 1986, p.9 e seg.
  • 30 Os Traoré săo os primeiros ocupantes das regiőes de Kiri, Gagara, Do, que se tornarăo em seguida o centro do império de Sundiata. Como lembra Y.T. Cissé, isso vale ao clă títulos como o já lembrado dan soko (aqueles que penetram no espaço selvagem: dan, como dito, é a brousse), dan sira (caminho), dan suba (taumaturgos), dan ba (măes). CISSÉ, Y.T. Notes sur lęs sociétés de chasseurs malinké. Journal de la Société dęs Africanistes, p.175, 1964.
  • 31 DELAFOSSE, M. Haut-Sénégal-Niger. Paris: Maisonneuve et Larose. T. III, p.119.
  • 33 No universo cultual alto-nigerino reencontram-se, portadoras dos valores de uniăo e de purificaçăo, Sanen e Kontron (Kondolon), as divindades do panteăo cinegético estudadas ŕ escala do Mandę por: CISSÉ, Y.T. La confrérie des chausseurs Manlinké et Bambara. Ivry: Nouvelles du Sud: 1994.
  • 35 KESTELOOT, L. Le myth et l.histoire dans la formation de l'Empire de Ségou. Dakar: IFAN, 1980, p.527 e 580 seg.
  • 37 A elaboraçăo provavelmente mais completa, ao menos na África Ocidental, do conceito de um mundo colocado ŕ disposiçăo dos homens, está presente na cultura baulé onde o espaço natural, expresso com o designador blo, vem a exercer um papel de interface entre uma anterioridade mundana pré-humana e um "depois" no qual o mundo humaniza-se graças ao processo de territorializaçăo (TURCO, A. Terra ebúrnea. Il mito, il luogo, la storia in África. Milano: Unicopli, 1999).
  • 38 CAMARA, S. Les verger de l'aube. Bordeaux: Confluences, 2001.
  • 41 TURCO, A. The Spaces of post-modernity: Reading the Readings. Bollettino della Societŕ Geográfica Italiana, v.2, 2004.
  • 42 CISSÉ. Y.T. & KAMISOKO, W. La grande geste du Mali des origins ŕ la foundation de l'Empire. Paris: Kartala, 1988.
  • A citaçăo está em: MEILLASSOUX, C. Anthropologie de l'esclavage Paris: PUF, 1998, p.143 seg.
  • 43 CUOQ, J.M. Recueil des sources árabes concernant l'Afrique occidentale du VIII au XVIe sičcle. Paris: CNRS, 1975, p.69.
  • 44 Propriamente a guerra dos filhos (den) do mesmo pai (fa): a guerra familiar. Evocamos aqui uma dialética intra-linhagem que se registra tipicamente no quadro da senaya (poligamia) mandinga. Trata-se de uma dialética que acaba por assumir um papel de grande importância nos relacionamentos familiares e, por extensăo, sociais: aquela entre fadenya e badenya. A primeira faz referęncias as relaçőes entre irmăos, precisamente filhos (den) de um mesmo pai (fa), mas de măes diferentes: trata-se de relaçőes que evocam competitividade, rivalidade e, por extensăo, conflito. A segunda, ao contrário, faz referęncia ŕs relaçőes entre irmăos filhos de uma mesma măe (ba) e de um mesmo pai e săo afeiçoados ao entendimento e ŕ harmonia. Fica bem evidente, que esta dialética projeta-se sobre o plano geográfico em uma multiplicidade de escalas e, partindo do lu (a residęncia da família extensa), investe toda a estruturaçăo hierárquica: năo só com aquela fasiya, portanto, mas também com aquela mansaya. Ela é portadora de tensőes e impulsőes ŕ mudança que seriam dever da funçăo ordenatória das instituiçőes mandingas de levarem a cabo na presença de uma certa margem de flutuaçăo. Todavia, J. Jansen observou como entre fadenya e badenya nem sempre a oposiçăo é clara: uma pode transformar-se na outra, por exemplo, quando se trata de fazer causa comum contra um parente mais longínquo (primo) (JANSEN, J. The younger Brother and the Stranger. Cahiers d.Etudes Áfricaines, 4, 1996, p. 659-688).
  • 47 Năo por acaso o Mansa enumera entre os seus títulos aquele de sanogo, cultivador, .uma vez que a personalidade daquele que năo cultiva ou năo sabe cultivar é incompleta..(KONARÉ, O. La notion de pouvoir dans l.Afrique traditionnelle et l.aire culturelle manden em particulier. In: AKINJOGBIN, I.A. et al. Le concept de pouvoir em Afrique. Paris: Unesco, 1986, p.146).
  • 50 BAZIN, J. Guerre et servitude ŕ Segou. In: MEILLASSOUX (dir.) L'esclavage em Afrique précoloniale. Paris: Maspero, 1975, p.146 seg.
  • 51 Biton provoca de fato elementos de tensăo, estende-se em direçăo a situaçőes de conflito, após apresentase como pacificador. Veja-se o conto narrado por: BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d.Etat. In: BAZIN, J. & TERRAY, E. Guerres de lignages et guerres d'Etats en Afrique. Editions des Archives Contemporaines, 1982, p.326-7;
  • e também: BAZIN, J. La production d'un récit historique. Cahiers d.Etudes Africaines, v.1-4, 1979.
  • 52 PARK, M. Viaggio verso il cuore dell'Africa. Firenze: La Casa Usher, 1990, specialmente cap. XXII. (e.o. 1799).
  • 54 BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d'Etat. E também: ROBERTS, R.L. Warriors, Merchants and Slaves: The State and the Economy in the Middle Niger Valley, 1700-1914. Stanford: Stanford University Press, 1987.
  • 55 BAGAYOGO S. Lieux et théorie du pouvoir dans le monde mandé: passé e present. Cahiers dęs Sciences Humaines, v.4, 1989.
  • 1
    Tradução de Francisco Vinhosa, a quem o autor agradece.
  • 2
    TURCO, A. Strutture di legittimità nella territorializzazione malinkê del'Alto Niger (Rep. di Guinea). In: CASTI, E. & TURCO A. (org.).
    Culture dell.alterità. Il território africano e le sue rappresentazioni. Milano : Unicopli, 1998; TURCO, A. Legitimité et pouvoir: à la recherche de l.espace politique dans l.Afrique mandingue. In: PITTE, J.R. & SAGUIN, A.L. (org.).
    Geographie et liberte. Mélanges em hommage à Paul Claval. Paris: L.Harnattan, 1999. Expresso aqui um agradecimento às muitas pessoas que me ajudaram a compreender as concepções mandingas e as estreitas conexões que elas desenvolvem com a territorialidade:
    kumatigi, donso e
    séréwa, dugutigi, dugukolotigi, almami (
    iman de aldeia),
    moba. Todos os estudiosos, os estudantes europeus e africanos que trabalharam comigo nas aldeias, ocupam um lugar especial em minha lembrança. Laye Camara, ao meu lado por um decênio no Mandê, foi um autêntico mediador cultural. O fio condutor da
    jali, a palavra musicada, acompanhou esta minha experiência de pesquisa: a partir das gesta de Fodé Kaba cantadas por
    griot de Kolda, em Casamance (Senegal, 1983), passando por aquelas do reino de Kong interpretadas por músicos
    jula na longa noite de um casamento Senufo a Kohrogo (Costa do Marfim, 1986), para terminar com aquelas apocalípticas da destruição de Kansala cantadas por
    griot de Gabu e por suas duas mulheres (Guiné Bissau, 2005). Em Kolda estava com Candida Ciaccio; em Kohrogo com Miriam Odd Ambrosetti: dedico este estudo às memórias delas e à de Falaye Oularé,
    dugutigi de Dalafilany (Guiné Conakry), mestre de saberes básicos tradicionais.
  • 3
    Merece atenção: BAH, T.M.
    Architecture militaire traditionnelle et poliocétique dans le Soudan Occidental du XVII à la fin du XIX siècle. Yaoundé: CLE/ACCT, 1985.
  • 4
    A atividade guerreira, de fato, torna-se o cerne de uma verdadeira formação social que, na perspectiva já indicada por J. Goody, atribui à política um papel de mediação entre a atividade de produção e a atividades de destruição (GOODY, J. Technology,
    Tradition and the State in Africa. Cambridge: Cambridge UP, 1971).
  • 5
    JANSEN, J.
    Epopée, histoire, société. Paris: Karthala, 2001, p.10 e seg.
  • 6
    À família mandê pertencem diversas línguas, entre as quais lembro o Malinkê, o Bambara e o Jula.
  • 7
    Mali equivale linguisticamente a Mandê, uma vez que tem o mesmo som do termo com o qual os Peul designam o Mandê na língua deles, o pulaar.
  • 8
    Duguba quer dizer ainda "terra mãe" dado ao duplo significado de "ba" adjetivo (grande) e substantivo (mãe): uma ambivalência não desprezível.
  • 9
    No âmbito das classes livres, horon, a camada superior (os homens da terra, os camponeses: simplesmente bamana - ou seja bambara - em Segu) acompanha-se aquela inferior
    nyamakala, composta em castas destinadas à prática dos ofícios (
    numu, aqueles que trabalham o metal;
    karanké, aqueles que trabalham as peles;
    kulé, aqueles que trabalham materiais vegetais;
    maabo, os tecelões) ou ao exercício da palavra: musicada (
    jali) ou somente dita, cantada (fina). A elas se opõe, no conjunto, a classe jon, escravos cujas condições, por outro lado, varia com o modo de aquisição e com a posição de ascendência no estado de escravidão. Se bem que relativamente autônomas no perfil delas, estas classes entretêm relações extremamente complexas, seja do ponto-de-vista funcional ou social e político. Por outro lado, se é verdade que a supremacia horon é inegável, e protegida pelos valores da
    horonya, não é certo que a liberdade assegure aos
    nyamakala uma posição social superior aos jon se recorda-se que estes últimos, contrariamente aos primeiros, podem fazer tudo aquilo que fazem os
    horon, e dedicar-se então, se os seus senhores desejarem, não só às atividades agrícolas, mas ainda ao comércio e até mesmo ao ofício das armas (prática institucionalizada em grau máximo em Segu, como se verá).De qualquer forma,
    nyamakala e jon participam das características comuns da sociedade mandinga, assumem como referência superior o horizonte axiológio
    horon, caracterizado por um conjunto de valores morais entre os quais destacam-se o ardor no combate, o sentido da honra, a discrição, o respeito às convenções no comportamento em público, a altivez do próprio
    jamu, o nome de clã.
  • 10
    É o espírito que regula o Gbara, ou seja, a assembléia constituinte dos clãs mandingas que se realizou na planície de Kurukanfuga, nas cercanias de Kangaba. É importante observar como a fixação mandinga aos valores comunitários vêm reafirmada no momento próprio no qual a cultura mansal atinge o seu ápice com Sundiata, que não por acaso assume o jamu de Keita, "aquele que pega todas as coisas", e, por conseguinte, o senhor de tudo (DIETERLEN, G.
    Myth e et organisation sociale au Sudan français. Journal de la Société dês Africanistes, v.1-2, p.40, 1955).
  • 11
    Sobre este ponto, bastante delicado, remeto a: TURCO, A.
    Astres et désastres: voyage dans la conflictualité pastorale autour du Parc Transfrontalier de la W (Burkina Faso-Bénin-Niger). Ponts, v.4, 2004.
  • 12
    O "lugar político" organiza-se em estruturas que possam assumir fisionomias estatais ou imperiais e, portanto, mais ou menos complexas do ponto de vista administrativo. A estas formações geográficas antes inexistentes que marcam exatamente a qualidade política do território - se bem que de maneira não exclusiva - ,se conectam estreitamente com outras, de natureza econômica: trata-se dos circuitos de troca, que dizem respeito seja ao comércio de curta-média, ou de média-longa ou de longuíssima distância (transaariano, transoceânico). Na realidade, as estruturas mercantis são em certa medida a origem mesma do processo que impulsiona no sentido de tornar autônoma a função política na sociedade mandinga. Elas se alimentam dos influxos do Islam e tornam-se fundamentais para o funcionamento e a reprodução das estruturas mansais. Pode-se ver a este respeito os grandes afrescos de: MAUNY, R.
    Tableau géografique de l.Ouest africain au Moyen Age. Dakar: IFAN, 1961; PERSON, Y. Samory.
    Une révolution dyula. Dakar: IFAN, 1968-1975 (principalmente T. I. cap. III e IV.). Mudando de perspectiva, temos uma breve síntese em: STEWART, M.H.
    The role of the manding in the hinterland trade of the Western Sudan: a linguistic and cultural analysis. Bulletin de l.I.F.A.N., T. 41, sér.B, 2, 1979.
  • 13
    PERSON, Y. Samory, p.85; o A. lembra como as vezes é o próprio .senhor da terra. que preside a cerimônia de entronização (p. 67).
  • 14
    Se tivermos em conta as várias e, às vezes, contrastantes tendências que caracterizaram a geografia política do Mandê a partir da crise do Mali, compreende-se como na realidade as coisas não são assim simples e as relações entre
    fasiya e
    mansaya nem sempre são nítidas e cooperativas. É assim que as duas fontes de legitimidade hierárquica devem ser consideradas como arquétipos entre os quais, nas circunstâncias locais e históricas, se estabelece um equilíbrio que se nutre de ambigüidade e amiúde de livres misturas. A autoridade
    fasiya, assim, pode ser invocada para reforçar uma legitimidade
    mansaya sempre afligida pela precariedade institucional. Por sua vez, a autoridade
    mansaya pode servir para enfraquecer uma
    fasiya que, sendo muito forte, tende a fazer coincidir as duas ordens de legitimação em seu exclusivo benefício. Fica, todavia, sublinhado como ambas as ordens de legitimação não são monolíticas; ao contrário, cada uma delas apresenta internamente fortes potencialidades flutuantes. Em particular quando estas assumem a forma do conflito, criam-se as condições típicas nas quais
    fasiya e
    mansaya perdem as suas respectivas caracterizações e tendem a anular-se uma a outra.
  • 15
    Não tomo aqui em consideração a conotação almamial da autoridade que, no último Mandê pré-colonial, indica uma componente religiosa do poder de matriz islâmica (
    al-iman, o guia): Samory recebe sucessivamente o título de
    kelétigi (líder), faama e por fim lalmami. Daquele momento em diante (1874), tornando-se o chefe supremo dos exércitos
    jula, ele não toma mais parte diretamente dos combates. (PEROZ, M.E.
    Au Sudan français: souvenirs de guerre et de mission. Paris: Calmann Lévy, 1889, p.398 seg. ).
  • 16
    CISSOKO, S.M.
    Formations sociales et Etat en Afrique pré-coloniale: approche historique. Présence Africaine, v.127/128, 1983
  • 17
    Sobre esta diversão e os seus efeitos econômicos políticos e territoriais pode-se ver: TURCO, A.
    Geografie della complessità in África. Interpretando il Senegal. Milano: Unicopli, 1986 (Em especial cap. 5 e 7).
  • 18
    Que a tradição diz fundado em torno de 1240 por Tiramaghan, primo de Sundiata e certamente o mais poderoso entre os chefes (
    kelètigi) do Mansa.
  • 19
    Da robusta bibliografia sobre o Gabu quero realçar ao menos: CARREIRA, A.
    Mandingas de Guiné Portuguesa. Bissau: CEGP, 1947; CAROÇO, J.V.
    Monjur o Gabu e sua história. Bissau: CEGP, 1948; MANÉ, M.
    Contribuition à l'histoire du Kaabu dês origines au XIX s. Bulletin de l.IFAN, T. 40, ser. B, 1, 1978; Ethiopiques, 28, 1981 (Número especial dedicado ao .Colloque international sur les traditions orales du Gabou.); NIANE, D.T.
    Histoire des mandingues de l'Ouest. Paris: Karthala, 1989. Sobre as formações políticas mandê do extremo oeste africano veja-se: QUINN, C.A.
    The mandingo kingdoms of Senegambia. Evanston: Northwestern University Press, 1972. Entre os trabalhos em língua italiana sobre o Mandê ocidental ressalto: BELLAGAMBA, A.
    Ricordati di ieri. Torino: L.Harmattan Italia, 2000.
  • 20
    Kafo significa reunião, conselho e, por extensão, área submetida a uma única autoridade política.
  • 21
    PERSON, Y.
    Samory, T. 1, especialmente cap. II.
  • 22
    Ver, para se ter uma idéia, a análise de: SAMAKÉ, M.
    Kafo et pouvoir lignager chez les Banmana. L.hégémonie gonkòròbi dans les Cendugu. Cahiers d.Etudes Africaines, p.331-354, 1988.
  • 23
    Jama significa grupo, multidão, aglomeração de pessoas, reuniões, assembléia, não dissociadas do lugar ocupado: por extensão, portanto, gente, povo, mas também região, país.
    Jamana indica, por conseqüência, o território sobre o qual vivem reunidas as gentes de..., o povo de...: quer dizer famílias e linhagens pertencentes ao mesmo clã ou a outros clãs aliados com aquele dominante. Os membros deste último como aqueles dos clãs aliados, reconhecem-se pelo respectivo
    jamu, por isso mesmo o nome de origem do clã: Keita, o
    jamu de Sundiata e, portanto, do clã real, é evidentemente o mais prestigioso.
  • 24
    TURCO, A.
    Strutture di legittimità nella territorializzazione malinkê del'Alto Niger.
  • 25
    Como observa Y. Person, "o conquistador não tinha em mira a subversão da ordem antiga... [a sua obra] dirigia-se, sobretudo, aos Mandinga e ele queria edificá-la respeitando os valores tradicionais que se encarnavam no
    kafo" (PERSON, Y., Samory, T. II, p.1018). Os mesmos
    dugukunnasigi, representantes dos
    kelétigi instalados (sigi) nas novas unidades submetidas, não tinham poder algum na gestão política dos
    kafo, mas se limitavam a garantir algumas específicas competências imperiais (ordem pública, liberdade das relações comerciais) e a fiscalizar o correto cumprimento dos compromissos assumidos pelos
    kafotigi no ato da submissão (por exemplo, cultivo do "campo do Almami" e contribuição alimentar, envio dos contingentes militares anuais, organização do recrutamento em massa no caso de invasão).
  • 26
    Nodu é o território externo à aldeia sobre o qual esta última exercita a sua plena jurisdição: é no
    nodu que, entre outros, desenvolve-se a agricultura, principal atividade mandinga, sobre o
    séné, quer dizer o conjunto dos campos cultivados ou em repouso.
  • 27
    Nas diversas zonas do Mandê encontram-se no posto de
    wula (wa) ou ao lado dele, outras designações como:
    dan, fodo (
    foro),
    kongo (e derivados, como
    kongo-kolo, o espaço selvagen, e
    kongo-kolo-ba).
  • 28
    De fato, tudo aquilo que é externo ao dugu é permeado de uma força misteriosa, .mágica., razão pela qual não se pode afastar da aldeia sem possuir de alguma forma o princípio desta energia (JOHNSON, J.W.
    The epic of Son-Jara, a West African Tradition. Bloomington: 1986, p.9 e seg. ). É este o grande reconhecimento que Naré Maghan Konaté, o padre de Sundiata, tributa aos
    moké Traoré, os caçadores por antonomásia, dizendo-lhes: .I Dansoko, I Dansoko. (Vós, que percorreis dan, o epaço selvagem!). J. JANSEN.
    Epopée, histoire, société, p.114.
    Moké é o antepassado legendário da origem do
    jamu.
  • 29
    No Alto Níger, os tipos de caças mais freqüentes têm nomes
    giralisi e
    karobemasi (de curto raio de ação),
    watama e
    lampanatama (de longas distâncias),
    felé (a grande expedição de caça).
  • 30
    Os Traoré são os primeiros ocupantes das regiões de Kiri, Gagara, Do, que se tornarão em seguida o centro do império de Sundiata. Como lembra Y.T. Cissé, isso vale ao clã títulos como o já lembrado dan soko (aqueles que penetram no espaço selvagem:
    dan, como dito, é a
    brousse),
    dan sira (caminho),
    dan suba (taumaturgos),
    dan ba (mães). CISSÉ, Y.T. Notes sur lês sociétés de chasseurs malinké.
    Journal de la Société dês Africanistes, p.175, 1964.
  • 31
    DELAFOSSE, M.
    Haut-Sénégal-Niger. Paris: Maisonneuve et Larose. T. III, p.119.
  • 32
    Sobre este tema remeto a: ZAHAN, D.
    Sociétés d.initiation bambara. Le N.domo, le Koré. Paris: Mouton, 1960.
  • 33
    No universo cultual alto-nigerino reencontram-se, portadoras dos valores de união e de purificação, Sanen e Kontron (Kondolon), as divindades do panteão cinegético estudadas à escala do Mandê por: CISSÉ, Y.T.
    La confrérie des chausseurs Manlinké et Bambara. Ivry: Nouvelles du Sud: 1994.
  • 34
    O juramento de iniciação, entre outros, compromete-se a respeitar a filiação da Sanen e Kontron e, portanto, a irmandade da donsoton acima de todas as outras (CISSÉ, Y.T.
    Notes sur lês sociétés de chasseurs malinké, p.182). O donso alto-nigerino, por seu lado, compromete-se .a servir Kondolon antes de seu pai.
  • 35
    KESTELOOT, L.
    Le myth et l.histoire dans la formation de l'Empire de Ségou. Dakar: IFAN, 1980, p.527 e 580 seg.
  • 36
    Com outro valor semântico,
    dunya, é "este mundo" que se opõe ao além,
    lakira, o outro mundo.
  • 37
    A elaboração provavelmente mais completa, ao menos na África Ocidental, do conceito de um mundo colocado à disposição dos homens, está presente na cultura
    baulé onde o espaço natural, expresso com o designador
    blo, vem a exercer um papel de interface entre uma anterioridade mundana pré-humana e um "depois" no qual o mundo humaniza-se graças ao processo de territorialização (TURCO, A.
    Terra ebúrnea. Il mito, il luogo, la storia in África. Milano: Unicopli, 1999).
  • 38
    CAMARA, S.
    Les verger de l'aube. Bordeaux: Confluences, 2001.
  • 39
    Como aquela, célebre, do mito narrado por: DIETERLEN, G.
    Myth e et organisation sociale au Sudan français.
  • 40
    Que, todavia, no mundo pré-humano tem um antecedente no fuulu faala, o espaço que não é ainda expandido (S. Câmara, op. cit., p. 148). No mito narrado por G. Dieterlen (p.43,) a expansão é orientada pelos quatro pontos cardeais: Klebi (Oeste), Koro (Leste), Kanaga (Norte), Worodugu (Sul).
  • 41
    TURCO, A.
    The Spaces of post-modernity: Reading the Readings. Bollettino della Società Geográfica Italiana, v.2, 2004.
  • 42
    CISSÉ. Y.T. & KAMISOKO, W.
    La grande geste du Mali des origins à la foundation de l'Empire. Paris: Kartala, 1988. A citação está em: MEILLASSOUX, C.
    Anthropologie de l'esclavage. Paris: PUF, 1998, p.143 seg. , surpreendentemente, todavia, parece que o autor aceita a tese que o Mali não tivesse sobrevivido ao seu fundador.
  • 43
    CUOQ, J.M.
    Recueil des sources árabes concernant l'Afrique occidentale du VIII au XVIe siècle. Paris: CNRS, 1975, p.69.
  • 44
    Propriamente a guerra dos filhos (
    den) do mesmo pai (
    fa): a guerra familiar. Evocamos aqui uma dialética intra-linhagem que se registra tipicamente no quadro da
    senaya (poligamia) mandinga. Trata-se de uma dialética que acaba por assumir um papel de grande importância nos relacionamentos familiares e, por extensão, sociais: aquela entre
    fadenya e
    badenya. A primeira faz referências as relações entre irmãos, precisamente filhos (
    den) de um mesmo pai (
    fa), mas de mães diferentes: trata-se de relações que evocam competitividade, rivalidade e, por extensão, conflito. A segunda, ao contrário, faz referência às relações entre irmãos filhos de uma mesma mãe (
    ba) e de um mesmo pai e são afeiçoados ao entendimento e à harmonia. Fica bem evidente, que esta dialética projeta-se sobre o plano geográfico em uma multiplicidade de escalas e, partindo do
    lu (a residência da família extensa), investe toda a estruturação hierárquica: não só com aquela
    fasiya, portanto, mas também com aquela mansaya. Ela é portadora de tensões e impulsões à mudança que seriam dever da função ordenatória das instituições mandingas de levarem a cabo na presença de uma certa margem de flutuação. Todavia, J. Jansen observou como entre
    fadenya e
    badenya nem sempre a oposição é clara: uma pode transformar-se na outra, por exemplo, quando se trata de fazer causa comum contra um parente mais longínquo (primo) (JANSEN, J.
    The younger Brother and the Stranger. Cahiers d.Etudes Áfricaines, 4, 1996, p. 659-688). Por outro lado, a correspondência entre
    badenya e harmonia não é de maneira alguma absoluta, já que o
    demba (o núcleo familiar formado por uma mulher e os respectivos filhos), é sempre o lugar onde se manifesta a rivalidade entre
    kodo (primogênito) e
    doko (caçula). Cito ainda o fato de que para complicar o quadro intervém a
    biranya, que corresponde à parentela por aliança, por ser ela importante no desenvolvimento das relações sociais.
  • 45
    É através de sua autoridade sobre a água que o Mansa, por não ser um
    kumatigi, um senhor da palavra, acaba sendo intimamente permeado dos poderes desta última. De fato existe um paralelismo entre a palavra e a água como grandes princípios que modelam o mundo: o Níger, o grande rio que fundamenta a geografia dos mandingas, dá ao mesmo tempo sentido a história deles graças ao gênio que o habita, Faro, aquele que se enuncia e por isso mesmo senhor do
    ko, aquilo que vem dito.
  • 46
    DELAFOSSE, M.
    Haut-Sénégal-Niger, T. II, 1972, p.182-3.
  • 47
    Não por acaso o Mansa enumera entre os seus títulos aquele de sanogo, cultivador, .uma vez que a personalidade daquele que não cultiva ou não sabe cultivar é incompleta..(KONARÉ, O. La notion de pouvoir dans l.Afrique traditionnelle et l.aire culturelle manden em particulier. In: AKINJOGBIN, I.A. et al.
    Le concept de pouvoir em Afrique. Paris: Unesco, 1986, p.146).
  • 48
    Descrevi este processo relativamente aos estados wolof em: TURCO, A.
    Geografie della complessità in África, p. 139 seg. e 220 seg.
  • 49
    De tegere, bandido, chamado também jado em Segu.
  • 50
    BAZIN, J. Guerre et servitude à Segou. In: MEILLASSOUX (dir.)
    L'esclavage em Afrique précoloniale. Paris: Maspero, 1975, p.146 seg.
  • 51
    Biton provoca de fato elementos de tensão, estende-se em direção a situações de conflito, após apresentase como pacificador. Veja-se o conto narrado por: BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d.Etat. In: BAZIN, J. & TERRAY, E.
    Guerres de lignages et guerres d'Etats en Afrique. Editions des Archives Contemporaines, 1982, p.326-7; e também: BAZIN, J.
    La production d'un récit historique. Cahiers d.Etudes Africaines, v.1-4, 1979.
  • 52
    PARK, M.
    Viaggio verso il cuore dell'Africa. Firenze: La Casa Usher, 1990, specialmente cap. XXII. (e.o. 1799).
  • 53
    De fato, os príncipes Ngolsi continuarão a inspirar uma resistência à dominação de Omar, a ponto que, em 1890, o coronel L. Archinard, pôs em fuga as armadas de Madani - filho de Ahmadou e, portanto, neto de Omar - conquista Segu e dá um efêmero poder ao faama bambara Keké Mari.
  • 54
    BAZIN, J.
    Etat guerrier et guerres d'Etat. E também: ROBERTS, R.L. Warriors,
    Merchants and Slaves: The State and the Economy in the Middle Niger Valley, 1700-1914. Stanford: Stanford University Press, 1987.
  • 55
    BAGAYOGO S.
    Lieux et théorie du pouvoir dans le monde mandé: passé e present. Cahiers dês Sciences Humaines, v.4, 1989.
  • 56
    São os marfalajon, os "escravos feitos por fuzis".
  • 57
    Os Maraka são propriamente os mercadores (ou intermediários) muçulmanos, frequentemente, mas não necess áriamente, de etnia Soninké. As suas aldeias - chamadas exatamente maraka - funcionam como praças especializadas, sobretudo, para venda dos
    jon.
  • 58
    A frente do qual a
    faamaya bambara chega a conceber figuras redutivas como o
    deliké mansa (suplicante) ou até mesmo como o
    mansamuso (mulher). (BAZIN, J.
    Etat guerrier et guerres d'Etat, p.325).
  • 59
    É por isto que se diz que, com o fim dos Kulibali, não existem mais homens livres em Segu e que todos os habitantes do reino são jon do faama. O Estado de Segu aparece, portanto, como uma espécie de comunidade familiar imensa, com um núcleo de homens livres . a família real . e uma massa desproporcional de jon, geridos no interesse de todos pelo faama: "a servidão de Estado como uma servidão privada generalizada". (BAZIN, J.
    Guerre et servitude à Segou, p.165-6).
  • 60
    Tigi (que pode contrair-se em ti) é o senhor, possuidor, detentor e exprime uma indicação geral de comando: tan é o despossuído.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Recebido
      10 Set 2005
    Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: variahis@gmail.com