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As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana

The wars of independence, social practices, and the elite code in nineteenth-century America: readings from Bolivar's correspondence

Resumos

Produzido entre os anos de 1799 e 1830, o epistolário de Simón Bolívar permite vincular a escrita de cartas, a memória e a historiografia. Este artigo pretende alcançar dois objetivos: 1) expor o projeto narrativo epistolar, considerando os vínculos citados; 2) avaliar as práticas sociais que possibilitaram, simultaneamente, a formação de uma comunidade afetiva entre oficiais, a partilha de um código de elite e a construção de uma memória para as nascentes repúblicas sul-americanas.

Simón Bolívar; epistolário; memória; código de elite


Produced between 1799 and 1830, Simón Bolívar's epistolary allows to tie the writing of letters, the memory and the historiography. This article intends to reach two objectives: 1) to display the narrative epistolar project, to considering the cited bonds; 2) to evaluate the social practices that make possible, simultaneously, the formation of an affective community between officers, the allotment of a elite code and the construction of a memory for the rising South American republics.

Simón Bolívar; epistolary; memory; elite code


DOSSIÊ: HISTÓRIA DAS AMÉRICAS: POLÍTICA E CULTURA

As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana* * Autora convidada.

The wars of independence, social practices, and the elite code in nineteenth-century America: readings from Bolivar's correspondence

Fabiana de Souza Fredrigo

Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Goiás. Doutora em História pela UNESP-Franca fabianafredrigo@yahoo.com.br

RESUMO

Produzido entre os anos de 1799 e 1830, o epistolário de Simón Bolívar permite vincular a escrita de cartas, a memória e a historiografia. Este artigo pretende alcançar dois objetivos: 1) expor o projeto narrativo epistolar, considerando os vínculos citados; 2) avaliar as práticas sociais que possibilitaram, simultaneamente, a formação de uma comunidade afetiva entre oficiais, a partilha de um código de elite e a construção de uma memória para as nascentes repúblicas sul-americanas.

Palavras-chave: Simón Bolívar, epistolário, memória, código de elite

ABSTRACT

Produced between 1799 and 1830, Simón Bolívar's epistolary allows to tie the writing of letters, the memory and the historiography. This article intends to reach two objectives: 1) to display the narrative epistolar project, to considering the cited bonds; 2) to evaluate the social practices that make possible, simultaneously, the formation of an affective community between officers, the allotment of a elite code and the construction of a memory for the rising South American republics.

Key words Simón Bolívar, epistolary, memory, elite code

Escrever sobre qualquer tema exige o recolhimento daquele que escreve a um universo interior e particular que nem sempre precisa ser dividido. Escrever pode ser o meio usado para compreender a si mesmo. Na medida em que expõe seus projetos e angústias, aquele que escreve patrocina um auto-exame e, nesse sentido, qualquer escrita tem como primeiro avalista o seu próprio autor. Em suma, a escrita oferece a possibilidade de um acerto de contas consigo mesmo, que pode ou não extrapolar as fronteiras do universo individual.

No caso do ofício de redigir cartas, há um acréscimo de complexidade no ato de produzir um texto, simplesmente, porque escrever cartas impõe a necessidade de falar de si para outrem. A carta é, sobretudo, conversa com um ausente, que se faz presente na comunicação. A partilha é condição imposta à relação entre remetente e destinatário. Um missivista cuidadoso escreve para si, mas tem em seu horizonte o outro. Ao eleger um outro, o remetente quer alcançar a partilha e a compreensão. Em circunstâncias específicas, quer também convencer seu interlocutor e edificar um personagem por meio das missivas.

De forma dedicada e delicada, Simón Bolívar lidou com a sua correspondência porque esteve entre seus objetivos oferecer à posteridade um personagem: o homem público irretocável, desprovido de vida privada. De imediato, a localização desse desejo no epistolário, bem como das estratégias narrativas que tentavam executá-lo, impõe uma relação cristalina entre a escrita de cartas, um projeto de memória e a historiografia.1 1 O epistolário de Simón Bolívar conta com 2.815 cartas, divididas em sete tomos. Essas missivas eram apenas parte de um acervo maior, mas que se perdeu. Não se possui o número exato de cartas escritas pelos companheiros de Bolívar, mas, sem dúvida, nenhum outro hispano-americano, à época das lutas de independência, escreveu tanto como esse general venezuelano, isso considerando o volume de cartas do qual se tem conhecimento. A coletânea utilizada foi a organizada por Vicente Lecuna, o mesmo que cuidaria da restauração da Casa Natal do Libertador na Venezuela e que se tornaria o guardião mais empedernido da documentação e da memória do Libertador. Teve-se acesso à segunda edição das Cartas del Libertador, publicada entre os anos de 1964 e 1969. O cruzamento entre a memória individual e coletiva, ambas captadas no interior do epistolário, permite compreender como o missivista constrói-se para si, para seu grupo e para a posteridade. No curto espaço de um artigo, buscar-se-á tratar dessas relações anunciadas, atentando, particularmente, para o universo das práticas sociais e do código de elite, ambos fixados numa ambiência precisa, a das guerras de independência.

A historiografia venezuelana concedeu um lugar de destaque a Simón Bolívar e, para tanto, manteve suas análises sobre a emancipação inexoravelmente vinculadas à biografia dessa liderança. Essa vinculação não só explicava o desastre que sucedeu à emancipação como amenizava a decepção popular e exigia a coesão nacional. Em tempos de construção de uma identidade nacional, a figura combativa de Simón Bolívar tinha o poder de anunciar que era sempre legítimo lutar pela liberdade e que, a despeito da ação corrosiva das oligarquias, a sobrevivência e a melhor organização da república dependeriam de uma luta incessante e gloriosa. A explicação histórica, que entrelaçaria a vida de Simón Bolívar ao processo de emancipação, durou até o início da década de 1970.

Acrescente-se que a historiografia subordinou-se excessivamente às primeiras edições de documentos, herdadas do século XIX e de caráter bolivariano, posto que os partidários de Simón Bolívar responsabilizaramse pelas compilações. Todo esse quadro reforçou uma interpretação do processo de independência que se apoiava na enumeração das batalhas. Dessa maneira, a historiografia instaurava uma história política marcada pelo belicismo. Por conta do anterior, uma historiografia venezuelana que se ocupasse dos aspectos econômicos e sociais do processo de emancipação era novidade na década de setenta do século XX. Aliás, mais do que novidade, essa abordagem ainda arriscava os primeiros passos, perdida em meio à extensa documentação e às hipóteses ensaístas.2 2 CARRERA-DAMAS, Gérman. Cuestiones de historiografia venezoelana. Venezuela: Universidad Central de Caracas, 1964.

A relação construída entre Simón Bolívar e o destino da América conferiria sentido a um viés historiográfico que se arraigaria político-culturalmente na Venezuela e alcançaria o restante da América Latina. A narrativa sobre a vida de Bolívar condensaria e exemplificaria os caminhos trilhados por parte da América do Sul no decorrer do processo de emancipação. Depois da vida de glória e honra, conquistada nos campos de batalha, Bolívar conheceria a doença, as tentativas de assassinato e a detração política, nascida, não raro, dos círculos que, em algumas outras circunstâncias, tinham-no apoiado. Esse é o enredo das várias biografias escritas sobre o "Libertador” (alcunha concedida a Simón Bolívar em vida e imortalizada pelo culto). Ele irrompe no auge de suas vitórias como César, Napoleão e termina os seus dias como Quixote.3 3 É interessante acrescentar que todos esses personagens aparecem na correspondência bolivariana. O objetivo do missivista é julgar, mesmo que implicitamente, tais atores e comparar a atuação (histórica e/ou literária e/ou legendária) deles com a sua própria.

A convicção, que a memória histórica atribui a Bolívar sempre que relata o seu juramento de libertar a América no Monte Sacro, deslinda em amargura no fim de seus dias. Mais do que isso, à convicção une-se o guerreiro imbatível e imortal. Bolívar tinha uma tarefa, um destino: libertar a América e lhe impor ordem. Nesse meio tempo, teve também de salvála, não mais dos espanhóis, mas dos interesses das próprias oligarquias. Nesse roteiro, a América, espelho da vida do próprio Bolívar, não teria outro caminho que não o de acompanhá-lo da glória ao desengano; parte do continente conheceria a breve glória da libertação para, depois, desaguar no conflito e na separação. Está dada a correlação. Bolívar e o gênio da América formariam uma só alma, exatamente como o general anunciara em suas cartas.

O "personagem” Bolívar, aquele que passou a ser conhecido dos latinoamericanos, encerra em sua vida a história da América do Sul e, ao fazer isso, indica o final trágico deste continente, previsto em tempos imemoriais. Não é por obra do acaso que o senso comum guarda a máxima da América ingovernável – esse é um dos trechos mais disseminados e repetidos da extensa correspondência desse americano. É com prazer masoquista que se insiste no diagnóstico que Bolívar fizera perto da morte: querer governar a América era arar no mar. Descontextualizada, essa máxima atribui lógica à seguinte sentença: a América terminou mal porque começou mal. Esse era um roteiro previamente concebido, para o qual não havia escapatória. Avaliações desse tipo querem naturalizar a idéia de que a América nasceu sob o estigma do erro e da catástrofe. Com o nascimento maculado por um pecado original (a conquista e, logo em seguida, a colonização cruenta e exploratória), nada seria mais "natural” do que a sua constante renúncia à modernidade – embora dessa modernidade ainda guardasse carência e ressentimento.

Para Nikita Harwich, Simón Bolívar é um tema aprisionado num "labirinto historiográfico”.4 4 HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia. Iberoamericana, v.3, n.10, p.7-22, 2003. A conclusão de Carrera-Damas, anunciada na década de sessenta do século XX, foi reforçada por Harwich mais de quarenta anos depois: Bolívar transformara-se num tipo de personagem histórico capaz de servir a distintos perfis heróicos; era o nome apropriado para consolidar um culto que extrapolaria as fronteiras historiográficas. Lidar com a historiografia produzida a seu respeito exige anos de dedicação, investigando distintas versões. Depois de identificado como herói romântico por excelência, marcado pela defesa do ideário liberal e do pan-americanismo, vinculado ao conservadorismo por seu cesarismo e adotado pelos revolucionários em nome de seu desejo social mudancista, atualmente, em especial na Venezuela, o que se busca é a síntese em torno do homem que há muito se tornou personagem. A síntese seria exatamente o resultado da junção entre a versão oficial, cultivadora da imagem do super-homem, e a versão radical, cultivadora do ideal revolucionário social.5 5 HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia.

Importante é destacar que, quando se compara o epistolário bolivariano às escritas históricas a respeito de Simón Bolívar e da independência, percebe- se que, ao contrário do que se pode deduzir inicial e superficialmente, a historiografia nem construiu o mito sozinha e nem conseguiu encarcerálo. Fundamental é ter em vista que o missivista Simón Bolívar fez de sua pena, entre outras, a sua arma e foi participante ativo de sua construção heróica. O epistolário ora expõe os conflitos do homem, ora explicita seus desejos de sobreviver à história, de um modo especial; de um modo que o fizesse ser lembrado como o maior entre todos os outros generais por ter abdicado de sua vida privada pela liberdade da América. A historiografia, no momento em que legitimou o culto, o fez também porque tinha de conviver e dialogar com os esforços do ator histórico que deixara um testamento em cada uma de suas missivas.

Era difícil o dilema colocado às escritas da História: a centralidade de Simón Bolívar na independência era inquestionável; assim, cabia pensar de que maneira o ator histórico e o processo poderiam construir em conjunto uma versão do passado que se aproximasse das exigências da construção da nação. Um pacto foi assumido e, por conta dele, a historiografia transformou o testemunho bolivariano em sinônimo da verdade, afastando-se, com certa recorrência, da crítica à fonte. Vale reforçar que o culto extrapolou as fronteiras da historiografia, prova cabal de que a memória construída pelo ator histórico por meio de suas cartas se viu legitimada por práticas sociais.

As práticas sociais permitiram a circulação e a gestão da memória construída pelo ator histórico e, quando permitiram isso, tornaram-na fundadora de uma ação político-cultural, que ainda se afirma na Venezuela contemporânea. Em virtude disso, interessa expor e refletir sobre algumas das práticas sociais que engendraram a bricolagem de uma memória coletiva que concederia a Simón Bolívar um lugar referencial na memória latino-americana. A ocorrência de práticas sociais muito dependia da ambiência criada por Simón Bolívar, liderança essencial das repúblicas ainda em formação no século XIX. Em meio à guerra, o general era quem dava o tom de ordenação àquele mundo americano, ao menos nas repúblicas em que ajudara a libertar.6 6 Bolívar cruzou os Andes mais de uma vez e liderou tropas no território que compreendia os antigos vice-reinados da Nova Granada e do Peru. Atualmente, esses territórios estariam cobertos pelos seguintes países: Colômbia, Panamá, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. BELLOTTO, Manuel Lello; CORRÊA, Ana Maria Martinez (orgs.) Simon Bolívar: política. São Paulo: Ática, 1983. Por esse motivo, os conflitos advindos desse desejo de ordem são fundamentais para compreender a atuação de Simón Bolívar; atuação que moldaria visões particulares de América. Nesse sentido, caberá expor a ambiência – o teatro da guerra – para cuidar dos conflitos que interfeririam na formação de um código intra-elite que ressonaria, adiante, na construção da identidade americana. Interessa expor esse mundo diverso e seus códigos. Importa apresentar o universo particular que a correspondência permite captar e traçar, um mundo que possui seu lugar, ou melhor, que possui "lugares”. Conforme sugerido, a correspondência bolivariana ocupou um lugar que a constituiu, o lugar contemporâneo ao missivista, bem como alcançou um lugar que a instituiu, a memória social e política da sociedade latino-americana.

Para traçar a ambiência, o primeiro destaque deve ser o da importância conferida à guerra. Essa importância não esteve relacionada apenas ao fato da ocorrência da guerra e de sua escolha como melhor método para cortar os laços com a Espanha. Antes disso, Simón Bolívar explicitava, com muita certeza, que a guerra e sua perenidade eram fundamentais para a América. Observada assim, conclui-se que a guerra assumia, na leitura de Bolívar e seus companheiros, um caráter formativo. Para os oficiais graduados, a elite da qual o general fazia parte, a guerra era mais do que uma necessidade ditada pelos acontecimentos.

Atento aos problemas nada fáceis apresentados à América do Sul, de colonização espanhola, Bolívar sabia bem que os desentendimentos não terminariam com o estabelecimento da paz externa. Ao contrário, desentendimentos e desavenças seriam aprofundados a partir da inexistência da guerra externa que, no final das contas, era o que concedia liga e coesão interna às distintas e famintas elites locais. O seu discurso sobre as diferentes perspectivas trazidas por essas também diferentes tipificações da guerra revela que a autoridade e a legitimidade que Bolívar buscava alcançar e conservar, além de estratégia necessária à sua sobrevivência política, era um meio de garantir estabilidade ao território americano. Ainda, do mesmo modo, era preciso considerar a guerra como importante mecanismo regulador das tensões étnicas e sociais da América.7 7 REINATO, Eduardo José. El Quijote de los Andes: Bolívar e o imaginário da independência na América – 1810-1830. Goiânia: Editora da UCG, 2000.

A miragem desses prismas revela que a guerra é elemento central para desvendar o personagem-missivista, pois era por meio dos conflitos e das vitórias que os sucediam que Bolívar equacionava sua prática, retirava sua autoridade e definia sua cosmogonia. O trecho da carta em seqüência é exemplo do discurso que se tornaria recorrente a partir de 1822. A guerra externa como fator de coesão e o medo do futuro tornam-se uma preocupação constante de Bolívar, talvez, porque, a partir de 1821, os territórios a serem libertados não tinham tanta certeza se queriam mesmo a liberdade:8 8 Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). 2.ed. Caracas: Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1965, Tomo III, R.920, p.350-351. Original. A década de vinte do século XIX marcou a expansão do movimento de independência para o vice-reinado do Peru. É necessário ter claro que o apoio à causa da independência nas regiões da América do Sul foi heterogêneo, fosse da parte dos setores da elite criolla, fosse da parte da população. Anos de guerra dividiram opiniões que, cindidas pelas dificuldades dos conflitos, eram profundamente voláteis. Vivas aos republicanos podiam se tornar vaias, dependendo da tropa que invadisse o território. Por um lado, a população queria sobreviver àqueles que considerava tão opressores quanto os espanhóis, por outro, as elites, na iminência de rebeliões étnicas, recorriam à ordem realista, a qual afiançavam o poder de controlar os rebeldes. Especialmente no Peru, as dificuldades enfrentadas pelo exército patriota foram imensas e aparecem em destaque no epistolário.

Quanto mais penso em nossa situação, mais me persuado de que devemos ter vizinhos temíveis que nos obriguem à reunião e à concentração em torno de nossos próprios interesses. Quando nos dilatarmos pela expansão que nos proporcionará a liberdade, a paz e a segurança, nossos mais cruéis perigos se multiplicarão. Então, vamos experimentar a verdadeira guerra e a verdadeira anarquia reunidas em massa para nos arrebatar o triunfo da liberdade e os sacrifícios. Eu temo amigo, o futuro adiante: mais horrível me parece o porvir do que o passado. Invada-se desse sentimento doloroso pelo qual padeço com essa consideração, e evitaremos por essa antecipação alguma quantidade de agudos pesares. Ao menos, não seremos culpados pela imprevisão.9 9 Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). Tomo III, R.920, p.350-351. Original. Como expõe o próprio Lecuna, na introdução às Cartas del Libertador, foi longo o caminho para a coleta e publicação do epistolário de Simón Bolívar. As cartas, presentes na coletânea organizada por esse pesquisador, foram retiradas de coletâneas anteriores, de publicações em jornais, em livros e em folhetos (missivas, desde então, fragmentadas); de doações de familiares próximos a Bolívar e aos seus companheiros; de rascunhos existentes em arquivos, nesse caso, sem data e sem destinatário. Enfim, a coletânea organizada por Lecuna representa o esforço de coleta documental, considerando fontes dispersas e diversas. Em virtude disso, o pesquisador entendeu ser necessária a qualificação das cartas, de acordo com a sua procedência. Do mesmo modo, considerou-se importante manter a qualificação utilizada e, por esse motivo, constam, na referência às fontes, as seguintes nomeações: "original”, "rascunho” e "cópia”. (Para permitir maior fluência ao texto, as missivas foram traduzidas pela autora)

A guerra é a força-motriz, é o que permite a liga entre os contemporâneos. A guerra lhes dá um porquê, a guerra lhes estabelece honrarias, a guerra lhes forma a consciência, a guerra lhes apresenta dificuldades, ganhos e perdas. Foram as dificuldades cotidianas da guerra e a visibilidade do inimigo, o espanhol, que permitiram o estabelecimento de uma comunidade afetiva entre Simón Bolívar e os seus oficiais. Embora tivesse de ser educado para aceitar a simbologia e os valores republicanos, o povo10 10 Expressão usada recorrentemente no mundo hispânico no século XIX. O pueblo comportava uma unidade que devia aprender a ser republicana e amar a nação. Tomado como um ator único (do qual apenas os inimigos da nação não faziam parte), o povo era considerado como oprimido e sem capacidade de expressão, tendendo a imprimir o caos às suas ações. Nas análises contemporâneas, a acepção amorfa "massas” veio substituir a de "povo”. GUERRA, François-Xavier. Modernidad y independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. 3a.ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p.351. se via excluído da comunidade de oficiais. Aliás, o povo, do qual faziam parte as tropas compulsoriamente recrutadas, vez ou outra, expressava o seu descontentamento com a ordem republicana, expondo seu desejo de voltar a submeter-se à Espanha. Nesse momento, quando a guerra era uma necessidade real a ser enfrentada, o código que unia os cidadãos fazia da morte uma experiência passível de ser suportada mediante a presença efetiva do morto na memória da posteridade. Escrita por Bolívar ao pai de um companheiro de armas que sucumbiu à guerra, a carta, em seqüência, permite perceber como o general considerava a morte em combate uma honraria e, mais do que isso, como queria estabelecer por meio da morte uma ponte que ligasse as ações no presente à legitimidade futura:

Cidadão Luís Girardot:

Temeria causar-lhe a mais cruel dor ao participar a morte de seu ilustre filho, se eu não estivesse persuadido de que o Senhor aprecia mais a glória que cobre as grandes ações de sua vida, do que uma frágil existência. É verdade que quanto mais a vida do coronel Atanásio Girardot tivesse se prolongado, mais insígnias acrescentariam à sua glória, e mais benefícios à liberdade da pátria. Sua perda é daquelas pelas quais deve sempre se chorar. Mas a causa sagrada pela qual ele pereceu deve suspender a dor, tanto para pensar em seus grandes feitos, como em respeito que se deve às suas cinzas imortais. Elas viverão no coração de todos os americanos, enquanto a honra nacional for a lei de seus sentimentos e enquanto a sólida glória tenha atrativo para as almas nobres. A carreira de Girardot e sua morte excitarão, ainda na posteridade mais remota, a emulação de todos os que aspirarem ao preço do valor, e sentirem em seu peito o fogo divino com que se busca a glória própria, e de sua amada pátria.

As armas americanas devem honrar-se de que nelas tenha militado o virtuoso Girardot e a causa da liberdade pela qual os maiores homens têm combatido, nunca foi sustentada com mais honra do que nos campos famosos onde Girardot triunfou sobre os tiranos.11 11 Carta para Luís Girardot. Valencia, 05/10/1813. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), 2.ed., 1964, Tomo I, R.66, p.94-95. Retirado de Gaceta de Caracas, nº 8, quinta-feira, 14/10/1813

Essa carta, além de enviada para o pai do coronel Girardot, foi publicada na Gaceta de Caracas, numa quinta-feira, no dia 14/10/1813. Atanásio Girardot não era um representante dos llaneros, nem dos indígenas ou exescravos. Oficial colombiano, filho de um comerciante francês e de mãe nascida no departamento de Antióquia, Girardot morreu durante a Batalha de Bárbula, em Carabobo, no dia 30/09/1813. As ações de Bolívar, que visaram estabelecer o culto aos distintos patriotas e guardar a memória do referido coronel, merecem ser narradas. No mesmo dia da morte de Atanásio, de seu Quartel General em Valencia, Bolívar expediu um decreto-lei para honrar a memória do oficial. No artigo terceiro vigia que "seu coração seria levado em triunfo para a capital de Caracas, onde seria recebido pelos libertadores e depositado no mausoléu que se ergueria na Catedral Metropolitana”. Para cumprir essa disposição, uma procissão cívico-religiosa saiu de Valencia no dia 10/10/1813. No trajeto, o cortejo interrompia a marcha quando chegava a algum departamento que possuísse uma capela e, então, iniciava uma missa. No dia 14/10/1813, a procissão chegou a Caracas. Bolívar tinha se adiantado à comitiva e já aguardava a entrega da urna com o coração de Girardot. De Antímano, um lugar muito próximo a Caracas, onde, na véspera, a urna tinha sido guardada, o cortejo seguiu para a Catedral. Na Catedral em Caracas, realizou-se um solene funeral e depositou-se temporariamente o coração de Girardot, pois era esperado o término da construção da Capela da Santíssima Trindade, lugar de devoção da família Bolívar.

Registre-se que a importância desse ato simbólico fica reforçada pelo contexto do ano de 1813. Foi nesse ano que Bolívar declarou a guerra de morte12 12 Tática adotada por Bolívar que, no entanto, já era utilizada pelos espanhóis. Consistia no extermínio total do inimigo. Nesse contexto, os prisioneiros de guerra não eram poupados para uma possível troca. O decreto da guerra de morte foi assinado em Trujillo, em 15/07/1813 por Simón Bolívar e seu secretário, Pedro Briceño Méndez. aos espanhóis e, mais adiante, em maio de 1814, estabeleceu a Ordem dos Libertadores. A adoção da guerra de morte exigiu que Bolívar criasse justificativas para tal ato. Estabelecer o contato entre a população e os patriotas "honradamente” mortos em campo de batalha foi o meio simbólico escolhido para conferir a dose certa de teatralidade à política, o que poderia outorgar maior legitimidade e aceitação aos seus decretos. A morte aos espanhóis e realistas era justificada diante da morte dos filhos da América; os jovens valorosos e honrados republicanos. Nesse sentido, fica evidente que o objetivo do cerimonial era o de aproximar a população da causa republicana; era o de convencer os diferentes grupos sociais da importância de seu apoio à empreitada da elite criolla. A necessidade de edificar valores republicanos entre a população para conseguir seu apoio ao exército patriota demonstra que a aprovação ao rompimento brusco e radical com a Espanha não foi conseguida imediata e integralmente.

Cerimônias oficiais, decretos, comemorações de vitórias tornaram-se rituais e práticas sociais constantes nos lugares por onde Bolívar passava. As cartas que seguem são ilustrativas do quanto essa constância, diante das dificuldades da guerra, tornou-se uma necessidade. Logo após a morte de Girardot, Bolívar escrevia para Antonio Narino, explicando-lhe porque tinha instituído a Ordem dos Libertadores:

Desejoso de distinguir aqueles militares, que com sacrifícios e esforços extraordinários contribuíram muito para o feliz êxito da campanha que libertou a Venezuela, e que fariam a glória dos maiores heróis da terra, instituí a Ordem dos Libertadores.13 13 Carta para Antonio Narino. Caracas, 04/05/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.93, p.130. Cópia.

Após batalhas importantes, as recepções a Simón Bolívar assumiram a mesma teatralidade. Preparar tais recepções tornou-se obrigação dos bolivaristas no comando das províncias. Após a vitória de Boyacá, de acordo com a narração do missivista, assim ele foi recebido nas províncias:

Em seis jornadas cumpri o trajeto de Santa Fé até aqui. Detive-me em alguns lugares mais do que eu pensava para satisfazer os desejos veementes dos povos. Posso dizer que da minha saída até aqui venho em triunfo. Não há testemunho de gratidão, de amor e de confiança que não me tenham dado esses povos com as expressões mais cordiais e mais sinceras de regozijo. Em todo o caminho, grupos de pessoas obstruem a passagem, e as mães com a oferta que têm feito de seus filhos à pátria, têm consagrado outras, tão naturais, tão calmas, que as tenho apreciado mais do que objetos de muito valor. Os arcos triunfais, as flores, as aclamações, os hinos, as coroas ofertadas e postas sob minha cabeça pelas mãos de belas jovens, os festins e mil demonstrações de contentamento, são os menores dos presentes que tenho recebido; o maior e o mais grato a meu coração: as lágrimas, mescladas com a alegria, com que tenho sido coberto, e os abraços com os quais me vejo exposto e sufocado pela multidão.14 14 Carta para Antonio Zea. Q.G. Puente Real, 26/09/1819. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1818-1820), 2.ed., 1964, Tomo II, R.494, p.208-209. Retirada de Yanes y Mendonza, II, p.93.

Bolívar acompanhava de perto a oferenda das recompensas honoríficas, era esse um assunto muito sério para o general. Em sua nada modesta opinião, não era qualquer soldado que merecia honrarias ou distinções, afinal, isso cabia à elite militar, representada pelos criollos. Dessa afirmação anterior, é possível antever que nem o tratamento destinado à tropa e nem o discurso sobre ela seriam muito lisonjeiros.15 15 FREDRIGO, Fabiana de Souza. História e Memória no epistolário de Simon Bolívar. São Paulo/Franca: Universidade Estadual Paulista - Franca, 2005. (História, tese de doutorado). Bolívar deixa muito claro em suas missivas a defesa de si e, evidentemente, na medida em que efetivava a prática da correspondência com um grupo particular (seus iguais, oficiais de elite como ele), esse grupo era também defendido pelo missivista.

Simón Bolívar almejava participar da escolha dos que seriam reverenciados junto dele. Atribuir a si a possibilidade de escolher com quem dividiria honras póstumas era demarcar um espaço de importância superior junto aos companheiros de armas. Enfim, no universo das honrarias, não cabiam representantes comuns. Nesse universo de honrarias, Bolívar condecorava os seus e, quando assim o fazia, atestava a sua própria importância. Desse modo, expõe-se o general como ativo participante na construção de sua figura heróica. Simón Bolívar acreditou que ele podia ser o homem que realizaria um grande feito – a independência da América. Além de acreditar, por meio das cartas, convenceu seus interlocutores e sagrou sua memória para a posteridade. O objetivo que queria alcançar – a imortalidade e a sagração de seus contemporâneos e futuras gerações – manifesta-se habitualmente em sua escrita:

V.E. por seu traço de rara generosidade colocou-me à cabeça do exército que deveria libertar a Venezuela. Este exército, digno dos mais altos olhares, me fez triunfar por seu heroísmo na causa da liberdade.

(...)V.E. propõe-me a admiração da posteridade. Sem dúvida, esses títulos imortais devem recompensar os benfeitores de sua pátria: aí estão as cinzas de Girardot preservadas do esquecimento. O herói, que pereceu no princípio de sua carreira ilustre, deixou de existir tão cedo entre nós, para conseguir uma vida mais duradoura na posteridade. Aí estão o excelentíssimo senhor general de divisão José Félix Ribas, o general de brigada Rafael Urdaneta, o comandante D'Elhuyar, o comandante Elias, o capitão Planes, todo esse exército de granadinos e venezuelanos, que derramando seu sangue para romper as cadeias da opressão, têm feito suas virtudes eternas nas memórias da independência americana.16 16 Carta para o Presidente de Nova Granada, Camilo Torres. Q.G. de Puerto Cabello, 01/02/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.88, p.124. Cópia.

Tenha o Senhor a bondade de fazer com que o general Robira e o coronel Santander persuadam-se da pureza de minhas intenções, e do alto apreço que tenho às suas virtudes e talentos, sem que eu pretenda de modo algum priválos de nenhuma das atribuições que lhes correspondem; que pelo contrário de minha parte estou disposto a ceder, enquanto assim exija a saúde pública, até o ponto de servir como soldado e de obedecer a quem quer que seja, porque eu cifro a minha glória em servir bem e não em mandar, em vencer os inimigos, e em ceder totalmente aos meus concidadãos.17 17 Carta para Rafael Urdaneta. Ocaña, 27/10/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.105, p.143. Original.

Os heróis, assim nomeados na carta endereçada a Camilo Torres, foram mortos em combate. Quando Bolívar os nomeia, também fala de si: as qualidades que atribuiu aos heróis que elegeu eram as mesmas que esperava encontrar em seus companheiros de armas e, mais, eram qualidades que Bolívar não tinha dúvidas de possuir. A morte durante uma batalha realizaria seu desejo de glória, pois lhe facultaria a admiração da posteridade, impedindo o esquecimento. O panteão de heróis, sugestão de Bolívar, objetivava cultivar a memória dos que derramaram seu sangue "para romper as cadeias da opressão”. Observe-se que a glória, objeto de argumentação da segunda carta, residia em saber servir mais do que em mandar. A imagem construída é sempre a do homem em ação, robusto e providencialmente protegido. Morrer ou vencer não faria grande diferença, pois em ambas as opções estariam reservadas ao general a glória, a honra e a memória da posteridade.

Assumida sua importância, a guerra deixa de ser um elemento puramente causal para se tornar o ambiente explicativo das escolhas de Simón Bolívar – escolhas que se remetiam tanto ao projeto de unidade quanto ao tratamento dispensado à elite e às tropas. Suas reflexões nasciam dessa ambiência, por isso, a centralidade da guerra. Atribuir a si glória e honra só era possível mediante uma avaliação positiva de sua atuação na guerra. Mais do que uma avaliação positiva, associar sua persona à glória e à honra e conceder-lhe lugar diferenciado era também labutar por um espaço simbólico, no qual outros generais poderiam caber, instituindo como regra a disputa. Dessa maneira, cada detalhe, de cada escrito, deveria considerar e explicitar a magnanimidade do general Simón Bolívar em relação aos seus interlocutores. Essa magnanimidade era exercida sempre no campo de batalha, desse meio brotava seu vigor e sua respeitabilidade. Assim posto, Bolívar podia partilhar a vitória com os seus amigos generais, desde que ficasse clara a indispensabilidade de sua intervenção na guerra. Sem ele ou sem suas instruções, as batalhas decisórias não se resolveriam a favor dos patriotas.

Consciente ou não, fato é que, ao gerenciar sua memória por meio da correspondência, Bolívar concedia aos seus futuros leitores (biógrafos, historiadores, literatos, entre outros) a possibilidade de participar das lutas de representação.18 18 CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação. In: A História Cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1990, p.29-67. Para herói guerreiro não haveria figura melhor e para uma historiografia iniciante, fundada com o objetivo de explicar e explicitar o rompimento com a ex-metrópole, tornara-se coerente a adoção da narrativa construída pelo personagem. É sabido que, uma vez escolhido o caminho da independência, nada demonstrava melhor o desejo de ruptura do que a guerra:

O sucesso coroará nossos esforços porque o destino da América está fixado irrevogavelmente; o laço que a unia à Espanha está irrevogavelmente cortado: a opinião era toda sua força, por ela se estreitavam mutuamente as partes daquela imensa monarquia: o que antes as enlaçava já as divide: é maior o ódio que nos tem inspirado a península do que o mar que dela nos separa: é mais fácil unir os dois continentes, do que reconciliar os espíritos de ambos os países.19 19 Carta da Jamaica. Kingston, 06/09/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.143, p.215-236. Cópia.

Aprofunde-se uma discussão essencial e decorrente da ambiência: a posição ocupada na guerra consagrou Simón Bolívar como herói americano. Nessa perspectiva, o general ultrapassou as fronteiras da Venezuela, sendo o personagem mais lembrado e associado à defesa e à vitória da independência na América Hispânica. Ao lado dessa referência, não há discussão sobre a unidade americana que não mencione Simón Bolívar. Das inúmeras leituras sobre a América Latina, nenhum tema foi tão candente como o da unidade latino-americana. Acrescente-se ao anterior que, durante longas décadas, refletir sobre a unidade também esteve associado ao desejo de encontrar uma identidade americana.

Apesar de se referir à Venezuela como o solo nativo, Bolívar exprimia em suas cartas o desejo de construir um projeto para a América. No referido projeto, foram consideradas a unidade territorial e política das repúblicas hispano-americanas e a confederação entre os países recém-independentes como instrumentos para a defesa frente às ameaças externas. Embora essas propostas fossem distintas, ambas apontavam para o norte que orientou a opção política de Simón Bolívar: a centralização republicana.

O americanismo de Simón Bolívar, que poderia parecer deslocado na América, era devedor dos parâmetros românticos e liberais europeus. Apesar de se reconhecer a vinculação de Bolívar com o liberalismo e o romantismo europeus, não se considera o projeto de unidade uma idéia fora do lugar, como se ela fosse inadequada à América. Discorda-se dessa posição defendida por aqueles que associam diretamente a impossibilidade do projeto de unidade à desintegração da Grã-Colômbia, em 1831. Na seqüência dessa interpretação, a falência do projeto bolivariano de unidade evidenciaria o desconhecimento de Bolívar de sua América. Seria ele a representação de uma elite que tinha os pés na América e a cabeça na Europa e que, portanto, não podia compreender os homens de seu "solo nativo”. Bolívar e os outros generais que defenderam a unidade da Grã-Colômbia conheciam as dificuldades que enfrentariam bem como tinham informações sobre as diferenças existentes entre Nova Granada, Venezuela e Quito.

Há que se perceber a unidade como um projeto que nasceria do vazio de poder decorrente do processo de separação da Espanha. É certo que tanto o federalismo quanto a unidade tinham a sua razão de existir no contexto das independências, do mesmo modo como a unidade e a defesa de um executivo forte completavam-se no interior do ideário bolivariano. Se o federalismo parece menos artificial porque as regiões internas à América historicamente tiveram como centro a distante coroa espanhola e estabeleceram pouco contato entre si, desenvolvendo o localismo, a unidade era formulada como uma política necessária que respondia às urgências da guerra e das ameaças externas. É certo que as diversidades regionais refletiam o desafio da unidade.

Admite-se que o projeto de unidade, avaliado a posteriori, deriva de um desejo de centralidade que escapava às possibilidades da época, mas é certo que esse desejo de centralidade não pode ser tomado como um elemento esdrúxulo ao cálculo político daquele momento. O sentimento de abandono provocado pela invasão napoleônica, pelas abdicações reais e pela opção de rompimento com a Espanha, as guerras, a insegurança física e a instabilidade exigiram que a unidade fosse considerada como um elemento capaz de tornar as repúblicas hispano-americanas um agrupamento estável e governável.

O "americanismo” bolivariano é devedor dos parâmetros românticos e liberais europeus, mas considerar esse dado não é o mesmo que atribuir a Bolívar o desconhecimento da América. Pelo contrário, ao traduzir tais parâmetros pelos quais se vê definitivamente influenciado, o general os reinventa e demonstra que, o que não conhece em seu continente, é de seu interesse conhecer.20 20 FREDRIGO, Fabiana de Souza. O Brasil no epistolário de Simón Bolívar: uma análise sobre o desconhecimento entre as Américas. História Revista: Revista do Departamento de História e do Programa de Mestrado em História, Goiânia, v. 8, n. 1/2, p.89-115, jan./dez. 2003. As missivas possibilitam acompanhar a lucidez de Bolívar quanto à questão da unidade. Como se sabe, o projeto da Grã-Colômbia foi responsabilidade de Bolívar e ele nada prezava mais do que essa unidade. Apesar disso, suas interpretações indicavam a clareza quanto aos problemas que dificultavam a continuidade dessa união. Numa longa carta a O'Leary, escrita em 1829, Bolívar defendia suas opiniões e demonstrava-se capaz de avaliá-las e modificá-las diante de uma realidade desordenada:

O atual governo da Colômbia não é suficiente para ordenar e administrar suas extensas províncias. O centro se encontra muito distante de suas extremidades. Neste trânsito debilita-se a força e a administração central carece de meios proporcionais à atenção de que necessitam suas zonas remotas. Eu observo isso a cada instante. Não há prefeito, não há governador que deixe de se revestir de autoridade suprema e, na maior parte das vezes, por necessidades urgentes. Poderia se dizer que cada departamento é um governo diferente do nacional, modificado pelas localidades e pelas circunstâncias particulares do país, ou de caráter pessoal. Tudo isso depende de um todo que não é compacto. A relação estabelecida por nosso laço social está muito longe de uniformizar, estreitar e unir as partes distintas do estado. Sofremos com ele, sem poder remediar o desconcerto, e sem uma nova organização o mal fará progressos perigosos. O Congresso Constituinte terá que eleger uma das resoluções, as únicas que lhe restam neste estado de coisas:

1. A divisão da Nova Granada e Venezuela;

2. A criação de um governo vitalício e forte.

No primeiro caso a divisão destes países deve ser perfeita, justa e pacífica. Assim que for declarada, cada parte se reorganizará a seu modo e tratará separadamente dos interesses comuns e das relações mútuas. Eu creio que a Nova Granada deve ficar íntegra, para que possa se defender ao Sul dos peruanos e para que Pasto não venha a ser seu câncer. Venezuela deve ficar igualmente íntegra, tal como se encontrava antes da união. Por mais que se queira evitar este evento, tudo conspira para cumpri-lo. Muitos inconvenientes ele tem em si mesmo, mas quem pode resistir ao império das paixões e dos interesses mais imediatos? Eu não vejo maneira de suavizar as antipatias locais e de abreviar as distâncias enormes. Em meu conceito, são esses os grandes obstáculos que se opõem à formação de um governo e um estado só. Sempre cairemos neste obstáculo, e toca a nosso valor franquear-lhe alguma resolução. Formem-se dois governos ligados contra os inimigos comuns, e conclua-se um pacto internacional que garanta as relações recíprocas: o demais virá com o tempo, que é pródigo em recursos.

Enquanto tínhamos de manter a guerra, parecia e quase se pode dizer que foi conveniente a criação da república da Colômbia. Sucedida a paz doméstica, e com ela novas relações, nos desiludimos deste laudável projeto, ou melhor, deste ensaio, [pois ele] não promete as esperanças que havíamos imaginado. Os homens e as coisas gritam pela separação, porque a falta de razão de cada um compõe a inquietude geral. Ultimamente mesmo a Espanha deixou de nos ameaçar, o que confirma mais e mais que a união não é necessária, uma vez que esta tinha outro fim que era a concentração de forças contra a metrópole.21 21 Carta para Daniel F. O'Leary. Guayaquil, 13/09/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829- 1830), 2.ed., 1969, Tomo VII, R.2.563, p.310-316. Retirada de Blanco y Azpurua, XIII, p.629.

Encampada a unidade como um projeto, o que se pode dizer é que Bolívar queria fazer frente às forças centrífugas que colocavam em xeque o lugar da América no concerto das nações. O que se quer reforçar é que a escolha de Bolívar pela unidade e pela centralização nasceu de sua experiência na guerra e não de suas reflexões acerca do romantismo e do liberalismo europeus, por mais que o romantismo e o liberalismo lhe fornecessem elementos para avaliar a realidade.

Ainda que ciente da força das elites locais e da acomodação das populações nativas às mesmas, Bolívar não deixou que a concepção de pátria como lugar de nascimento lhe turvasse o foco, fato que lhe permitiu conceber a Grã-Colômbia como um projeto viável. Sem dúvida, o anterior colaborou para que ele fosse visto como um herói capaz de ultrapassar as fronteiras de sua terra natal. Em suas avaliações sobre a guerra, Bolívar demonstrava saber que a paz e o futuro de Nova Granada dependiam da bonança em outros lugares da América. Desse modo, seus projetos de unidade que, numa primeira leitura, poderiam parecer deslocados, na realidade, mostravam-se como condição para a sobrevivência política das ex-colônias espanholas. É essa condição que o obriga a participar e liderar a guerra de independência no vice-reinado do Peru, ao menos assim ele se justifica:

Tenho além disso a apreensão íntima de que a minha marcha a Lima possa ser vista por meus inimigos com maus olhos. Houve um Bonaparte, e nossa própria América teve três césares. Esses perniciosos exemplos prejudicam a opinião atual sobre meu respeito, pois ninguém se convence de que tendo seguido a carreira militar como eles, não me encontre animado por sua odiosa ambição. Já os meus três colegas San Martín, O'Higgins e Itúrbide têm provado sua má sorte por amarem a liberdade e, por isso mesmo, não quero que uma leve suspeita me faça padecer como eles. O desejo de terminar a guerra na América me impele para o Peru, e me rechaça, ao mesmo tempo, o amor à minha reputação; por sorte que flutuo e não decido nada, porque os dois motivos opostos me combatem com igual força. Entretanto, me inclino a pensar que se é indispensável, o amor à pátria vencerá, como dizem os antigos.22 22 Grifo de Bolívar. Carta para Riva Agüero. Guayaquil, 13/04/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823), Tomo III, R.929, p.366. Original.

Suponho que o Senhor pense que nos retirar do Peru é coisa fácil e sem perigo; minha resposta é a mesma de sempre: ao perder-se o Peru se perde todo o sul da Colômbia, e que receberemos os inimigos nos llanos de Neiva, se pudermos. Este refrão eu repito mil vezes, porque mil vezes ao dia recebo novas provas de minha convicção. No Peru, uma vitória põe fim à guerra na América, e na Colômbia nem quatro [vitórias alcançam o mesmo objetivo].23 23 Carta para Santander. Trujillo, 16/03/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), 2.ed., 1966, Tomo IV, R. 1.076. Original.

Assim, as referências à unidade americana e às guerras de independência necessariamente evocam Bolívar. Dessa maneira, o posto de herói continental é facilmente atrelado à figura do general. Entende-se que a evocação recorrente a Bolívar, a ponto de ele alcançar status de herói latinoamericano, está vinculada à vitória de seu discurso epistolar, entre outros. Em particular, nas cartas, Bolívar aparecia como a liderança maior, mesmo quando, humildemente, oferecia-se como soldado. Algumas passagens do epistolário demonstram como a intenção de se colocar acima dos que lhe podiam fazer frente tornou-se o meio de patrocinar a vitória na luta representacional que a posteridade evocaria. A esse respeito, as quatro missivas a seguir são esclarecedoras:

De todo modo, teremos tropas suficientes para destruir os godos.24 24 Referência lingüística comum à época para denominar os espanhóis na América. Desde então, eu nada creio em seus reforços, seus movimentos, mas seja o que for, eu estou pronto para tudo. Nada me fará parar até que eu me encontre com eles, pois estou animado pelo demônio da guerra e em curso para acabar com essa luta de um modo ou de outro. Parece que o gênio da América e o do meu destino meteram-se em minha cabeça. Por outro lado, estou cheio das esperanças mais lisonjeiras, porque até agora tudo se realiza conforme meus desejos.25 25 Carta para Sucre. Huaráz, 09/06/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.105, Retirada de Blanco y Azpurua, p.162-165.

A sua glória e a de Sucre são imensas. Se eu conhecesse a inveja, os invejaria. Eu sou o homem das dificuldades, o Senhor o homem das leis e Sucre o homem da guerra. Creio que cada um deve estar contente com o seu lote, e a Colômbia com os três. Feliz da mãe que não deixa de ter um filho que lhe sirva de apoio, ainda que o mais velho a abandone como sua ingratidão o aconselha: a ingratidão de filho se entende.26 26 Carta a Santander. Lima, 09/02/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.167, p.251-253. Original.

Eu sou o homem das dificuldades e não mais: não estou bem senão entre os perigos combinados com as armadilhas; mas não no tribunal e nem na tribuna;que me deixem seguir a minha diabólica inclinação e no fim terei feito o bem que posso.27 27 Carta a Santander. La Paz, 08/09/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.274, p.436-437. Original.

[...] Pasto era um sepulcro nato para nossas tropas. Eu estava desesperado para triunfar e só por honra retornei a esta campanha. Tenha entendido que foi a minha intimação que produziu a capitulação, pois nada se sabia nem se podia saber sobre a batalha de Sucre, nem se tem sabido até o [dia] 1º. Por isso mesmo, não quero que atribuam a Sucre o sucesso de minha capitulação: primeiro porque bastante glória lhe resta, e segundo, porque é verdade, e muito verdade, que estavam resolutos a entregar-se sem nada saber de Sucre; e me parece que será muito oportuno que se faça na Gaceta um preâmbulo de nossas glórias respectivas.28 28 Simón Bolívar designara Sucre para iniciar a campanha do Sul, após a reconquista da Venezuela em 1821. Desse modo, Sucre chegou antes de Bolívar a Guayaquil, território que deveria ser incorporado à Nova Granada. Entre agosto e novembro de 1821, Sucre cuidou, junto com a "Legião Albión”, da defesa da área contra os realistas. Em maio de 1822, a Batalha de Pichincha, vencida por Sucre, retirava do território de Guayaquil as tropas realistas, que foram se alocar em Quito. Em dezembro de 1821, Bolívar saíra de Bogotá para ir ao Peru, com o objetivo de conquistar o Sul por meio de uma campanha em duas frentes. Quito, Lima e Pasto, regiões que deveriam ser libertadas, possuíam muitos contingentes realistas, inclusive a população apoiava esses exércitos. De início, a entrada de Bolívar foi relativamente tranqüila, posto que Sucre já havia limpado da região muitas tropas realistas. A Batalha de Bombona (nos vales de Bombona, na Cordilheira Ocidental, próximos à região de Pasto) se deu neste contexto: Bolívar cuidava da região de Pasto, enquanto Sucre tentava libertar Quito. As tropas espanholas encaminharam-se para Quito, sitiada por Sucre, o que facilitou o trabalho de Bolívar em Pasto. Ao saber que Quito havia se rendido a Sucre, o comandante espanhol em Pasto, García, também rendeu-se a Bolívar e, imediatamente, o vice-rei, Aymerich, entregou-lhe todo o território. A conquista de Pasto se deu e era inegável que os movimentos de Sucre muito contribuíram para a vitória de Bolívar, que chegou a Quito em 16/06/1822, celebrando a vitória com mais uma de suas entradas triunfais. Sucre tinha um maior número de tropas do que eu, e um menor número de inimigos, o país lhe era muito favorável por seus habitantes e pela natureza do terreno, nós, pelo contrário, estávamos no inferno lidando com os demônios. A vitória de Bomboná é muito mais bela que a de Pichincha. A perda de ambos tem sido igual e o caráter dos chefes inimigos muito desigual. O general Sucre, no dia da ação, não conseguiu maiores vantagens do que eu, e sua capitulação não tem lhe dado muito mais vantagens do que a minha, porque, para dizer a verdade, temos nos tornado o baluarte do Sul e ele tem colhido a Cápua de nossas conquistas. Eu creio que com um pouco de delicadeza se pode fazer muita honra a Guardia sem diminuir a divisão de Sucre.

[...] Espero que o Senhor encha a Gaceta de belas coisas, porque, ao fim, a liberdade do Sul inteiro vale muito mais do que aquele que se inspirou no "filho primogênito da glória”. Assim se entende o que se refere a Pasto, que era o [elemento] terrível e difícil desta campanha. Não pode imaginar o que é este país e o que eram esses homens, todos estamos aturdidos com eles. Creio que se tivessem tido chefes numantinos, Pasto teria sido outra Numância, e com isso, adeus, até Quito.29 29 Carta para Santander. Pasto, 08/06/1822. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823),Tomo III, R.845, p.208-209. Original.

As cartas acima evidenciam a luta representacional da persona-missivista com Sucre, especialmente. Mais uma vez, as missivas apresentavam caminhos para a futura composição dos lugares que cada um desses homens-personagens deveriam ocupar na memória de gerações vindouras. Sabe-se que Bolívar divisava Sucre como seu sucessor, há nas cartas menções a esse desejo. No entanto, isso não impedia que Bolívar o visse como um férreo competidor por glórias e honra. Visto dessa maneira, Sucre poderia retirar de Bolívar o posto central no panteão dos heróis da independência. Os fragmentos apresentados manifestam a ocorrência da disputa.

Como se desenvolveu linhas atrás, Bolívar exigia ser visto como o general líder, aquele que estava acima de todos os outros homens de comando das guerras de independência. Tal desejo seria afirmado em construções historiográficas que tenderiam a encarar os homens da independência a partir dos adjetivos que Bolívar lhes concedera. Dessa maneira, a primeira imagem que se formaria das lideranças do processo de emancipação vincular- se-ia à construção de personagens afinadas com o tom que Bolívar lhes dera em sua vasta documentação.30 30 CARRERA-DAMAS, Gérman. El culto a Bolívar: esbozo para un estúdio de la historia de las ideas en la Venezuela. Caracas: Fundação do Instituto de Antropologia y História/ Universidad Central de Venezuela, 1969. Nesse universo, cultivado ainda no decorrer das lutas de independência, Miranda afirmar-se-ia como o precursor, Santander como o senhor das leis, Páez como a liderança llanera, Sucre como o sucessor e Bolívar, acima dos anteriores, como o Libertador.31 31 REINATO, Eduardo José. El Quijote de los Andes, p.38.

A segunda carta, mencionada anteriormente, escrita em 1825 e endereçada a Santander, apresentava, senão uma novidade, uma construção retórica diferenciada: Bolívar dava a si mesmo o adjetivo de "homem das dificuldades” e a Sucre facultava a qualificação de "homem da guerra”. Em muitas outras passagens das missivas, Bolívar atribuía-se a qualificação que havia dado a Sucre, qual seja, a de "homem da guerra”. Na carta citada, Bolívar colocava-se como alguém tomado pelo "demônio da guerra”, uma guerra que deveria ser resolvida para que o general seguisse seu destino, caso contrário, o "gênio da América” não lhe abandonaria. Então, está claro que, apenas por conta da comparação, houve a necessidade da distinção: o general ficava com o posto de "homem das dificuldades” e Sucre, seu competidor que devia ser subordinado, aparecia como o "homem da guerra”.

Fundamental é perceber que um "homem das dificuldades” caberia em qualquer lugar, embora, em outras cartas, Bolívar afirmasse que o seu lugar estava eleito entre "os perigos” advindos da ação, sempre associada ao campo de batalha e, por conseguinte, à guerra. Todavia, comparativamente, o "homem das dificuldades” tinha atribuições e qualitativos superiores, servia a inúmeras tarefas: resolvia as intrigas entre companheiros, podia ser o presidente de distintas repúblicas, mesmo que efetivamente não fosse afeiçoado à prática administrativa, e comandava importantes e decisivas batalhas. Assim, o "homem das dificuldades”, indubitavelmente, superava o "homem da guerra”, ou melhor, o justapunha. O que se quer dizer é que Bolívar enquadrava em seu perfil todos os outros, daí a expressão que utilizava. Importante que se guarde que tais diferenças aparecem apenas por meio da comparação, uma vez que a guerra era o que definia o cotidiano dos atores históricos e, portanto, era ela o fundamento que deveria ordenar ações e posições dos homens que nela se viam envolvidos.

A guerra caracterizou e deu visibilidade ao processo de independência na América. Não há como duvidar dessa premissa. Primeiro, a elite criolla descobriu a possibilidade de utilizar a guerra como um elemento de união interna e, segundo, percebeu que poderia usar sua experiência como um meio capaz de encaminhar a América rumo ao Ocidente. Ambos os processos ocorreram numa seqüência com objetivo de garantir a ordem frente aos conflitos étnicos e políticos bem como de estabelecer uma imagem da América que fosse confiável e promissora, tanto interna quanto externamente. Nem mesmo no fim da vida, Simón Bolívar desistiu de encarar a força – e, portanto, a guerra que lhe dava expressão – como meio importante para a produção de acontecimentos políticos favoráveis. O exército continuava sendo seu castelo inexpugnável e a solidez de um governo devia, necessariamente, atrelar-se à atitude belicosa. Mesmo sem estar animado do espírito da conquista, a atitude belicosa era o seu elemento definidor:

Eu não estou animado do espírito de conquista. Trato de conservar o exército, porque sem ele não poderei obter paz honrosa e duradoura. Não duvide de que a medida de enviar ministros às cortes estrangeiras é por si só insuficiente quando se trata de obter o reconhecimento da independência. Só a estrutura e a solidez do governo e sua atitude belicosa podem arrancar o reconhecimento de nossa soberania das potências de primeira e segunda ordem. A Espanha só cede à força.32 32 Carta para Estanislao Vergara. Popayán, 06/02/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829- 1830), Tomo VII, R.2.378, p.66-67. Original.

Heroísmo, glória, honra e virtude, alcançados por meio da morte no campo de batalha ou pela invencibilidade nesse mesmo local, eram elementos valorativos europeus, inundados pelo romantismo e utilizados nas cartas de Bolívar como um meio para construir sua memória e para proteger a si e a seus homens da traição política de outros setores, particularmente dos que defendiam os realistas. Menos por serem elementos do imaginário romântico europeu e mais por serem a possibilidade de coesão intra-elite, glória e honra foram necessárias à narrativa de Simón Bolívar.

Expostos à guerra, os generais cuidavam para que algo lhes desse sentido à vida, uma vez que os percalços da guerra podiam turvar a utopia de uma América independente, aceita como filha legítima do Ocidente e, ainda, civilizada e próspera. O que poderia conferir sentido à vida e ao mundo desses homens, de sua própria perspectiva, era a vitória, coroada por glórias e honras. Por esse motivo, Bolívar confidenciava que essas eram as suas fraquezas, que não foram abandonadas nem mesmo por conta do desengano provocado pela impossibilidade da "perfeição social”. Mesmo num momento em que suas missivas já tinham se acostumado a um tom pessimista e desolador, Bolívar retomava o tom ardente de outros tempos, quando o tema era a honra e a glória:

O Senhor sabe que a guerra e a honra são as minhas fraquezas e, por isso mesmo, não duvidará de que farei todos os meus esforços para que o amor da pátria e o desejo das vitórias ocupem o vazio que nos deixará a bela quimera da perfeição social. Essa quimera, o Senhor disse, é muito sedutora, mas o doloroso quadro de nossos desenganos vale também mais que uma quimera e mil esperanças. A história do mundo nos diz que a comoção dos povos submete-se a uma ordem forte e estável. O Senhor viu essa revolução da França, a maior coisa que a vida humana presenciou, esse colosso das mais sedutoras ilusões, pois tudo isso caiu ao término de oito anos de experiências dolorosas.33 33 Carta para Rafael Arboleda. Bogotá, 29/07/1828. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (jul.1827- 1828), 2.ed., 1968, Tomo VI, R.2.159, p.391-392. Cópia.

As comemorações das grandes batalhas, as procissões cívico-religiosas, os decretos que estabeleciam a memória e o culto aos mortos ilustres representavam a delicada construção de um universo que possibilitasse aos homens dedicados a tal empresa conferir sentido às suas vidas e à sua obra. Evidentemente, havia nessas escolhas mais do que altruísmo. Não era possível negar a realidade cruel e negativa da guerra, era possível apenas diminuir seu impacto, invertendo seu simbolismo: ao invés da devastação, seria interessante enxergar a guerra por meio das dádivas que ela podia oferecer, dádivas como a honra e a glória, canais dignos para uma consagração eterna. Esse subterfúgio era fácil de ser construído pela elite, o mesmo não ocorria entre a população, daí decorre o esforço cívico pedagógico dos republicanos para edificar seus valores entre os "incivilizados”.

De qualquer modo, a estratégia da elite era astuciosa: por meio de marcos valorativos simbólicos, organizava a ação. Era porque aguardava ser banhada pela honra e pela glória que a elite podia ver a guerra tornar-se palatável e apresentar-se como a promessa para o alcance da independência. Assim era preciso que a guerra fosse avaliada para que esse projeto de poder alcançasse também a legitimidade popular. É primordial que se perceba nessa construção esse esforço de duplo convencimento: primeiro do grupo militar e, depois, da população. Em suas missivas, Bolívar não deixava de indicar aos seus companheiros de armas que era essencial uma narrativa, na qual o vínculo entre a ação criolla e os cidadãos comuns fosse sempre reforçado:

Exmo. Senhor:

Como a Nova Granada fixou sua confiança no exército que V.E. dignou-se a encarregar-me, como a heróica Venezuela excedia-se em esforços inauditos para destruir seus carrascos, na esperança de seus libertadores e como eu encontrava-me separado do exército e do país em que devíamos triunfar ou morrer, [agora] é meu dever apresentar a V.E. um quadro fiel dos sucessos que têm frustrado os planos sublimes que V.E. concebeu para salvar ambas [Venezuela e Nova Granada].

V.E. sabe que ao desaparecer nossa república, ofereci de novo a nossos concidadãos voltar para Nova Granada. Não faltei à minha promessa; e o lugar de nossos primeiros libertadores foi, uma segunda vez, meu asilo, e pela segunda vez achei nela tanta amizade e proteção, quanto estava em suas faculdades conceder-me.

As relíquias do exército venezuelano, sob as ordens do bravo general Urdaneta, vieram à província de Pamplona, para receber ajuda dos irmãos granadinos. Não os receberam então, mas sim os colocaram à sua disposição, que lhes ordenou a marchar para Cundinamarca para reduzir à ordem constitucional aquela província que, dissidente, recusava-se a participar da confederação. Santafé viu em seu recinto seus vencedores, irmãos e amigos; e, para o complemento de sua glória e prosperidade, recebeu em seu seio o governo geral da Nova Granada.

Os povos acolheram os soldados venezuelanos com admiração e ternura, contemplando, naqueles preciosos restos de nosso solo pátrio, alguns heróis, que através de uns cem combates, tinham preservado sua honra, sua vida e sua liberdade para salvar a honra, a vida e a liberdade de seus concidadãos.

Essas relíquias formaram um respeitável corpo com generosos auxílios que nos foram dados pela Cundinamarca: seus filhos engrossaram nossas fileiras; seus tesouros encheram nossas caixas militares, e os ricos uniformes vestiram nossos soldados.34 34 Carta para Camilo Torres. Kingston, 10/07/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.138, p.191-203. Retirada de Blanco y Azpurua, V, p.297.

Nessa carta redigida para Camilo Torres chama atenção a última parte que demonstra um estilo narrativo adotado com freqüência por Bolívar. Escrita do exílio, após a segunda queda da Venezuela, a missiva objetivou narrar os motivos que frustraram a independência desse território, o que levou Bolívar à Jamaica. Aqui interessa perceber como Bolívar vincula o destino dos heróis ao do povo e, nessa construção, a preservação da vida, da honra e da liberdade desses homens só serviria para a mesma honra, liberdade e vida de seus concidadãos, os venezuelanos. Ao aproximar os soldados heróis ao povo, a mensagem é clara: "a minha honra e a minha glória também são de vocês”. Construído dessa maneira, o argumento reforça o desejo de edificar uma comunidade que, ao compartilhar dos mesmos valores, esteja unida pelo interesse comum. Apesar desse esforço, a tríade continuou sendo uma tríade de elite, o que não desestimulou Bolívar a perseguir o coletivo em suas missivas, mesmo que deixasse claro que seus interlocutores privilegiados eram as lideranças do exército patriota.

Enfim, em meio à guerra, um código de elite fundou-se e atuou de forma excludente no que se referia às tropas, em especial às tropas peruanas.35 35 FREDRIGO, Fabiana de Souza. História e Memória no epistolário de Simon Bolívar. Ainda, é importante notar que o exército era a mais importante força institucional que aparecia na narrativa bolivariana, e não é possível crer que isso ocorra apenas porque o missivista assumia-se como general. Não, esse dado é mais representativo do que isso. Em meio à guerra, o exército substituiu a sociedade civil, pairou sobre ela. Com tesouros exauridos pelos gastos com as campanhas, o que restava voltava-se para a sobrevivência física dos homens que estavam no exército, esses eram os verdadeiros e valorosos cidadãos. Assim, a constatação para o missivista era simples e prática: o exército era necessário aos esforços de guerra e, por sua vez, os esforços de guerra eram imprescindíveis à conquista do ideal demiúrgico que acompanhou e persuadiu Simón Bolívar por toda a vida: a liberdade. Daí, o ressentimento posterior e a negatividade atribuída às guerras de independência. Constatada a dificuldade em assegurar e prover a liberdade, a independência passou a ser vista e sentida como a responsável por uma mutilação. Separado o filho da mãe, o que restou foi uma pátria em caos, devorada por irmãos ciumentos.

Na guerra e da guerra emergiram práticas sociais que objetivaram educar o povo. Esse deveria ser republicano e amar a pátria acima de tudo. Quanto a ser soberano, a história era outra. Um povo a ser educado não podia ser soberano, precisava de tutela; de novo, demarcava-se a importância do exército, que, então, pairaria sobre a sociedade. A América não era ingovernável em uma circunstância específica: precisava, antes de tudo, de um tempo para se acostumar à separação dolorosa da metrópole. Simón Bolívar não assistiria à sacralização da nação, morreria antes, acompanhado de poucos partidários, em 1830. Nesse ano, seus planos pareciam ruir: a unidade americana esfacelava-se e as elites locais se devoravam. O general, assim como ele previra, fora feliz na guerra. Nos tempos que poderiam ser de paz, tornou-se exilado na própria terra.

Artigo recebido em 01/04/2007.

  • 2 CARRERA-DAMAS, Gérman. Cuestiones de historiografia venezoelana. Venezuela: Universidad Central de Caracas, 1964.
  • 4 HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia. Iberoamericana, v.3, n.10, p.7-22, 2003.
  • 5 HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia.
  • 6 Bolívar cruzou os Andes mais de uma vez e liderou tropas no território que compreendia os antigos vice-reinados da Nova Granada e do Peru. Atualmente, esses territórios estariam cobertos pelos seguintes países: Colômbia, Panamá, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. BELLOTTO, Manuel Lello; CORRĘA, Ana Maria Martinez (orgs.) Simon Bolívar: política. Săo Paulo: Ática, 1983.
  • 7 REINATO, Eduardo José. El Quijote de los Andes: Bolívar e o imaginário da independęncia na América 1810-1830. Goiânia: Editora da UCG, 2000.
  • 8 Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). 2.ed. Caracas: Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1965, Tomo III, R.920, p.350-351.
  • 9 Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). Tomo III, R.920, p.350-351.
  • 10 Expressăo usada recorrentemente no mundo hispânico no século XIX. O pueblo comportava uma unidade que devia aprender a ser republicana e amar a naçăo. Tomado como um ator único (do qual apenas os inimigos da naçăo năo faziam parte), o povo era considerado como oprimido e sem capacidade de expressăo, tendendo a imprimir o caos ŕs suas açőes. Nas análises contemporâneas, a acepçăo amorfa "massas veio substituir a de "povo. GUERRA, François-Xavier. Modernidad y independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. 3a.ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p.351.
  • 11 Carta para Luís Girardot. Valencia, 05/10/1813. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), 2.ed., 1964, Tomo I, R.66, p.94-95.
  • 13 Carta para Antonio Narino. Caracas, 04/05/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.93, p.130.
  • 14 Carta para Antonio Zea. Q.G. Puente Real, 26/09/1819. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1818-1820), 2.ed., 1964, Tomo II, R.494, p.208-209.
  • 15 FREDRIGO, Fabiana de Souza. História e Memória no epistolário de Simon Bolívar. Săo Paulo/Franca: Universidade Estadual Paulista - Franca, 2005. (História, tese de doutorado).
  • 16 Carta para o Presidente de Nova Granada, Camilo Torres. Q.G. de Puerto Cabello, 01/02/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.88, p.124.
  • 17 Carta para Rafael Urdaneta. Ocańa, 27/10/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.105, p.143.
  • 18 CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliaçăo. In: A História Cultural: entre práticas e representaçőes. Săo Paulo: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1990, p.29-67.
  • 19 Carta da Jamaica. Kingston, 06/09/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.) Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.143, p.215-236. Cópia.
  • 20 FREDRIGO, Fabiana de Souza. O Brasil no epistolário de Simón Bolívar: uma análise sobre o desconhecimento entre as Américas. História Revista: Revista do Departamento de História e do Programa de Mestrado em História, Goiânia, v. 8, n. 1/2, p.89-115, jan./dez. 2003.
  • 21 Carta para Daniel F. O'Leary. Guayaquil, 13/09/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829- 1830), 2.ed., 1969, Tomo VII, R.2.563, p.310-316. Retirada de Blanco y Azpurua, XIII, p.629.
  • 22 Grifo de Bolívar. Carta para Riva Agüero. Guayaquil, 13/04/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823), Tomo III, R.929, p.366. Original.
  • 23 Carta para Santander. Trujillo, 16/03/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), 2.ed., 1966, Tomo IV, R. 1.076. Original.
  • 25 Carta para Sucre. Huaráz, 09/06/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.105, Retirada de Blanco y Azpurua, p.162-165.
  • 26 Carta a Santander. Lima, 09/02/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.167, p.251-253. Original.
  • 27 Carta a Santander. La Paz, 08/09/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.274, p.436-437. Original.
  • 29 Carta para Santander. Pasto, 08/06/1822. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823),Tomo III, R.845, p.208-209. Original.
  • 30 CARRERA-DAMAS, Gérman. El culto a Bolívar: esbozo para un estúdio de la historia de las ideas en la Venezuela. Caracas: Fundaçăo do Instituto de Antropologia y História/ Universidad Central de Venezuela, 1969.
  • 31 REINATO, Eduardo José. El Quijote de los Andes, p.38.
  • 32 Carta para Estanislao Vergara. Popayán, 06/02/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829- 1830), Tomo VII, R.2.378, p.66-67. Original.
  • 33 Carta para Rafael Arboleda. Bogotá, 29/07/1828. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (jul.1827- 1828), 2.ed., 1968, Tomo VI, R.2.159, p.391-392. Cópia.
  • 34 Carta para Camilo Torres. Kingston, 10/07/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.138, p.191-203. Retirada de Blanco y Azpurua, V, p.297.
  • 35 FREDRIGO, Fabiana de Souza. História e Memória no epistolário de Simon Bolívar.
  • *
    Autora convidada.
  • 1
    O epistolário de Simón Bolívar conta com 2.815 cartas, divididas em sete tomos. Essas missivas eram apenas parte de um acervo maior, mas que se perdeu. Não se possui o número exato de cartas escritas pelos companheiros de Bolívar, mas, sem dúvida, nenhum outro hispano-americano, à época das lutas de independência, escreveu tanto como esse general venezuelano, isso considerando o volume de cartas do qual se tem conhecimento. A coletânea utilizada foi a organizada por Vicente Lecuna, o mesmo que cuidaria da restauração da Casa Natal do Libertador na Venezuela e que se tornaria o guardião mais empedernido da documentação e da memória do Libertador. Teve-se acesso à segunda edição das
    Cartas del Libertador, publicada entre os anos de 1964 e 1969.
  • 2
    CARRERA-DAMAS, Gérman.
    Cuestiones de historiografia venezoelana. Venezuela: Universidad Central de Caracas, 1964.
  • 3
    É interessante acrescentar que todos esses personagens aparecem na correspondência bolivariana. O objetivo do missivista é julgar, mesmo que implicitamente, tais atores e comparar a atuação (histórica e/ou literária e/ou legendária) deles com a sua própria.
  • 4
    HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia.
    Iberoamericana, v.3, n.10, p.7-22, 2003.
  • 5
    HARWICH, Nikita. Un héroe para todas las causas: Bolívar en la historiografia.
  • 6
    Bolívar cruzou os Andes mais de uma vez e liderou tropas no território que compreendia os antigos vice-reinados da Nova Granada e do Peru. Atualmente, esses territórios estariam cobertos pelos seguintes países: Colômbia, Panamá, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. BELLOTTO, Manuel Lello; CORRÊA, Ana Maria Martinez (orgs.)
    Simon Bolívar: política. São Paulo: Ática, 1983.
  • 7
    REINATO, Eduardo José.
    El Quijote de los Andes: Bolívar e o imaginário da independência na América – 1810-1830. Goiânia: Editora da UCG, 2000.
  • 8
    Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1821-1823). 2.ed. Caracas: Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1965, Tomo III, R.920, p.350-351. Original. A década de vinte do século XIX marcou a expansão do movimento de independência para o vice-reinado do Peru. É necessário ter claro que o apoio à causa da independência nas regiões da América do Sul foi heterogêneo, fosse da parte dos setores da elite criolla, fosse da parte da população. Anos de guerra dividiram opiniões que, cindidas pelas dificuldades dos conflitos, eram profundamente voláteis. Vivas aos republicanos podiam se tornar vaias, dependendo da tropa que invadisse o território. Por um lado, a população queria sobreviver àqueles que considerava tão opressores quanto os espanhóis, por outro, as elites, na iminência de rebeliões étnicas, recorriam à ordem realista, a qual afiançavam o poder de controlar os rebeldes. Especialmente no Peru, as dificuldades enfrentadas pelo exército patriota foram imensas e aparecem em destaque no epistolário.
  • 9
    Carta para Francisco de Paula Santander. Guayaquil, 14/02/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1821-1823). Tomo III, R.920, p.350-351. Original. Como expõe o próprio Lecuna, na introdução às Cartas del Libertador, foi longo o caminho para a coleta e publicação do epistolário de Simón Bolívar. As cartas, presentes na coletânea organizada por esse pesquisador, foram retiradas de coletâneas anteriores, de publicações em jornais, em livros e em folhetos (missivas, desde então, fragmentadas); de doações de familiares próximos a Bolívar e aos seus companheiros; de rascunhos existentes em arquivos, nesse caso, sem data e sem destinatário. Enfim, a coletânea organizada por Lecuna representa o esforço de coleta documental, considerando fontes dispersas e diversas. Em virtude disso, o pesquisador entendeu ser necessária a qualificação das cartas, de acordo com a sua procedência. Do mesmo modo, considerou-se importante manter a qualificação utilizada e, por esse motivo, constam, na referência às fontes, as seguintes nomeações: "original”, "rascunho” e "cópia”. (Para permitir maior fluência ao texto, as missivas foram traduzidas pela autora)
  • 10
    Expressão usada recorrentemente no mundo hispânico no século XIX. O
    pueblo comportava uma unidade que devia aprender a ser republicana e amar a nação. Tomado como um ator único (do qual apenas os inimigos da nação não faziam parte), o povo era considerado como oprimido e sem capacidade de expressão, tendendo a imprimir o caos às suas ações. Nas análises contemporâneas, a acepção amorfa "massas” veio substituir a de "povo”. GUERRA, François-Xavier.
    Modernidad y independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. 3a.ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p.351.
  • 11
    Carta para Luís Girardot. Valencia, 05/10/1813. Apud: LECUNA, Vicente (Org.)
    Cartas del Libertador (1799-1817), 2.ed., 1964, Tomo I, R.66, p.94-95. Retirado de Gaceta de Caracas, nº 8, quinta-feira, 14/10/1813
  • 12
    Tática adotada por Bolívar que, no entanto, já era utilizada pelos espanhóis. Consistia no extermínio total do inimigo. Nesse contexto, os prisioneiros de guerra não eram poupados para uma possível troca. O decreto da guerra de morte foi assinado em Trujillo, em 15/07/1813 por Simón Bolívar e seu secretário, Pedro Briceño Méndez.
  • 13
    Carta para Antonio Narino. Caracas, 04/05/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.93, p.130. Cópia.
  • 14
    Carta para Antonio Zea. Q.G. Puente Real, 26/09/1819. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1818-1820), 2.ed., 1964, Tomo II, R.494, p.208-209. Retirada de Yanes y Mendonza, II, p.93.
  • 15
    FREDRIGO, Fabiana de Souza.
    História e Memória no epistolário de Simon Bolívar. São Paulo/Franca: Universidade Estadual Paulista - Franca, 2005. (História, tese de doutorado).
  • 16
    Carta para o Presidente de Nova Granada, Camilo Torres. Q.G. de Puerto Cabello, 01/02/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.88, p.124. Cópia.
  • 17
    Carta para Rafael Urdaneta. Ocaña, 27/10/1814. Apud: LECUNA, Vicente (Org.)
    Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.105, p.143. Original.
  • 18
    CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação. In:
    A História Cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1990, p.29-67.
  • 19
    Carta da Jamaica. Kingston, 06/09/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.)
    Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.143, p.215-236. Cópia.
  • 20
    FREDRIGO, Fabiana de Souza. O Brasil no epistolário de Simón Bolívar: uma análise sobre o desconhecimento entre as Américas.
    História Revista: Revista do Departamento de História e do Programa de Mestrado em História, Goiânia, v. 8, n. 1/2, p.89-115, jan./dez. 2003.
  • 21
    Carta para Daniel F. O'Leary. Guayaquil, 13/09/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1829- 1830), 2.ed., 1969, Tomo VII, R.2.563, p.310-316. Retirada de Blanco y Azpurua, XIII, p.629.
  • 22
    Grifo de Bolívar. Carta para Riva Agüero. Guayaquil, 13/04/1823. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1821-1823), Tomo III, R.929, p.366. Original.
  • 23
    Carta para Santander. Trujillo, 16/03/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1824-1825), 2.ed., 1966, Tomo IV, R. 1.076. Original.
  • 24
    Referência lingüística comum à época para denominar os espanhóis na América.
  • 25
    Carta para Sucre. Huaráz, 09/06/1824. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.105, Retirada de Blanco y Azpurua, p.162-165.
  • 26
    Carta a Santander. Lima, 09/02/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.167, p.251-253. Original.
  • 27
    Carta a Santander. La Paz, 08/09/1825. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1824-1825), Tomo IV, R.1.274, p.436-437. Original.
  • 28
    Simón Bolívar designara Sucre para iniciar a campanha do Sul, após a reconquista da Venezuela em 1821. Desse modo, Sucre chegou antes de Bolívar a Guayaquil, território que deveria ser incorporado à Nova Granada. Entre agosto e novembro de 1821, Sucre cuidou, junto com a "Legião Albión”, da defesa da área contra os realistas. Em maio de 1822, a Batalha de Pichincha, vencida por Sucre, retirava do território de Guayaquil as tropas realistas, que foram se alocar em Quito. Em dezembro de 1821, Bolívar saíra de Bogotá para ir ao Peru, com o objetivo de conquistar o Sul por meio de uma campanha em duas frentes. Quito, Lima e Pasto, regiões que deveriam ser libertadas, possuíam muitos contingentes realistas, inclusive a população apoiava esses exércitos. De início, a entrada de Bolívar foi relativamente tranqüila, posto que Sucre já havia limpado da região muitas tropas realistas. A Batalha de Bombona (nos vales de Bombona, na Cordilheira Ocidental, próximos à região de Pasto) se deu neste contexto: Bolívar cuidava da região de Pasto, enquanto Sucre tentava libertar Quito. As tropas espanholas encaminharam-se para Quito, sitiada por Sucre, o que facilitou o trabalho de Bolívar em Pasto. Ao saber que Quito havia se rendido a Sucre, o comandante espanhol em Pasto, García, também rendeu-se a Bolívar e, imediatamente, o vice-rei, Aymerich, entregou-lhe todo o território. A conquista de Pasto se deu e era inegável que os movimentos de Sucre muito contribuíram para a vitória de Bolívar, que chegou a Quito em 16/06/1822, celebrando a vitória com mais uma de suas entradas triunfais.
  • 29
    Carta para Santander. Pasto, 08/06/1822. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1821-1823),Tomo III, R.845, p.208-209. Original.
  • 30
    CARRERA-DAMAS, Gérman.
    El culto a Bolívar: esbozo para un estúdio de la historia de las ideas en la Venezuela. Caracas: Fundação do Instituto de Antropologia y História/ Universidad Central de Venezuela, 1969.
  • 31
    REINATO, Eduardo José.
    El Quijote de los Andes, p.38.
  • 32
    Carta para Estanislao Vergara. Popayán, 06/02/1829. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1829- 1830), Tomo VII, R.2.378, p.66-67. Original.
  • 33
    Carta para Rafael Arboleda. Bogotá, 29/07/1828. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (jul.1827- 1828), 2.ed., 1968, Tomo VI, R.2.159, p.391-392. Cópia.
  • 34
    Carta para Camilo Torres. Kingston, 10/07/1815. Apud: LECUNA, Vicente (Org.).
    Cartas del Libertador (1799-1817), Tomo I, R.138, p.191-203. Retirada de Blanco y Azpurua, V, p.297.
  • 35
    FREDRIGO, Fabiana de Souza.
    História e Memória no epistolário de Simon Bolívar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      01 Abr 2007
    Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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