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O "selvagem" entre dois tempos: a escrita etnográfica de Couto de Magalhães

The "savage" between two orders of time: the ethnographic writing of Couto de Magalhães

Resumos

O artigo analisa a escrita etnográfica de Couto de Magalhães, exposta no livro O Selvagem, de 1874. O objetivo deste estudo é demonstrar a existência conflituosa, no livro de Magalhães, de duas linguagens etnográficas distintas, que implicam em duas formas de representação da historicidade indígena, assim como sugerem duas modalidades de ação política. Este artigo tem como hipótese que a coexistência dessas duas linguagens etnográficas indica o esforço de Couto de Magalhães em revitalizar o debate etnográfico que havia se estruturado, desde a década de 1840, no IHGB.

etnografia; temporalidade; nação


The present article analyses Couto de Magalhães’ ethnographic writing in his book entitled "O Selvagem" that was published in 1874. The aim of this study is to demonstrate the existance of two distinct and conflictuous ethnographic languages in Magalhães’ book, which accounts for two different models for representing the indigenous historicity and suggests the existence of two political action modalities. The existence of these distinct ethnographic languages is hypothesized here as an evidence of Couto de Magalhães’ efforts to revitalize the ethnographic debate that had been performed at the IHGB since the 1840’s.

ethnography; temporality; nation


ARTIGOS

O "selvagem" entre dois tempos: a escrita etnográfica de Couto de Magalhães

The "savage" between two orders of time: the ethnographic writing of Couto de Magalhães

Rodrigo Turin

Professor Adjunto do Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Av. Pasteur, 458, CEP 22290-240 – Rio de Janeiro – RJ, rodrigoturin@gmail.com

RESUMO

O artigo analisa a escrita etnográfica de Couto de Magalhães, exposta no livro O Selvagem, de 1874. O objetivo deste estudo é demonstrar a existência conflituosa, no livro de Magalhães, de duas linguagens etnográficas distintas, que implicam em duas formas de representação da historicidade indígena, assim como sugerem duas modalidades de ação política. Este artigo tem como hipótese que a coexistência dessas duas linguagens etnográficas indica o esforço de Couto de Magalhães em revitalizar o debate etnográfico que havia se estruturado, desde a década de 1840, no IHGB.

Palavras-chave: etnografia, temporalidade, nação

ABSTRACT

The present article analyses Couto de Magalhães’ ethnographic writing in his book entitled "O Selvagem" that was published in 1874. The aim of this study is to demonstrate the existance of two distinct and conflictuous ethnographic languages in Magalhães’ book, which accounts for two different models for representing the indigenous historicity and suggests the existence of two political action modalities. The existence of these distinct ethnographic languages is hypothesized here as an evidence of Couto de Magalhães’ efforts to revitalize the ethnographic debate that had been performed at the IHGB since the 1840’s.

Keywords: ethnography, temporality, nation

I.

Os usos da categoria selvagem, na formação do discurso etnográfico no Brasil oitocentista, foram conformados dentro de um processo de disciplinarização, no qual tanto a história como a etnografia estavam sendo constituídas como campos de saberes relativamente autônomos.1 1 A concepção de discurso aqui adotada vincula-se à definição estabelecida por Foucault, a qual envolve tanto princípios de organização externos, formados por instituições e práticas, como princípios internos de coerência e de restrição dos sujeitos enunciantes. Estudar o discurso etnográfico, portanto, envolve tanto a análise dos "processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos discursos" que configuravam uma forma de saber sobre a alteridade, assim como a reconstrução de sua formação dispersa e descontínua. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2011. Para uma definição de discurso etnográfico e sua relação com o discurso histórico, conferir DUCHET, Michèle. Les Partages des Savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: La Découvert, 1984. Sobre a formação dos discursos histórico e etnográfico no Brasil oitocentista, conferir GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, p.5-27, 1998; TURIN, Rodrigo. A ‘obscura história’ indígena: o discurso etnográfico no IHGB (1840-1870). In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.86-113; KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Império do Brasil: a etnografia do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005. (História, Tese de doutorado). Relacionados, por um lado, com esse processo mais amplo de disciplinarização e de reestruturação conceitual e, por outro, com as questões de ordem política específicas ao segundo reinado,2 2 MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. os usos do termo selvagem podem servir como um caminho privilegiado para a compreensão dos embates travados pelos letrados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no que diz respeito à elaboração de uma ordem do tempo.3 3 HARTOG, François. Régimes d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. A produção desse discurso etnográfico no IHGB, materializada em textos diversos como programas, dissertações e memórias, direcionou-se ao esclarecimento de dois problemas principais. Primeiro, uma busca pela especificidade histórica das populações indígenas. Interessava desvendar quais eram suas origens, seus parentescos, suas divisões, em que estado se encontravam quando da chegada dos portugueses. Todos esses pontos tinham por fim estabelecer um juízo definitivo sobre a questão fundamental: se esses grupos que aqui se encontravam tinham sempre permanecido num estado de natureza ou, ao contrário, eram formas decaídas de civilizações anteriores. Para além da superficialidade do espaço, procurava-se reconstruir a profundidade do tempo. Um segundo problema que norteou os trabalhos etnográficos, decorrente do primeiro, dizia respeito à possibilidade ou não de se catequizar a população que ainda habitava o território, e qual seria o melhor método a se adotar.4 4 Essa orientação que guiou a formação do discurso etnográfico no IHGB pode ser visualizada através dos preceitos definidos por seus dirigentes e sócios mais atuantes. Januário da Cunha Barboza, por exemplo, Secretário Geral do instituto, em sessão realizada em 4 de fevereiro de 1839, leu para os sócios presentes seis questões que deveriam orientar as discussões da casa. Dessas seis questões, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito às populações indígenas e as duas outras versavam sobre o processo de colonização portuguesa. Os problemas levantados em relação aos primitivos habitantes do Brasil detinham-se nos seguintes pontos: as causas de sua «espantosa extinção»; o que se deveria concluir sobre sua história, ao momento da descoberta do Brasil; se essa população era formada somente por grupos nômades, «e no primeiro grau da associação», ou se era descendente de alguma «das grandes nações do resto da América», guardando traços dessas civilizações; qual seria o melhor método para se colonizar os índios (se conviria seguir o sistema dos Jesuítas); e, por fim, se a introdução dos africanos teria prejudicado a civilização dos índios do Brasil. BARBOSA, Januário da Cunha. RIHGB, Rio de Janeiro, t.I, p.61, 1839. Nesses debates, alimentados por tópicos como autoridade, progresso, decadência, liberdade, entre outros, diferentes representações do tempo foram formuladas.

Cabe ressaltar, portanto, que o discurso etnográfico oitocentista era concebido, pelos próprios sócios do IHGB, como um modo específico de escrita da história. À etnografia caberia trazer à visibilidade novamente aquilo que os indígenas, por si sós, não poderiam resgatar através de uma memória: seu passado. Graças a um exercício comparativo-genealógico, as palavras tupi-guaranis, uma vez gramaticalizadas, vinham se colocar ao lado de línguas como o fenício, o egípcio, o grego. Operação que, pelo jogo contínuo de semelhanças e diferenças, tinha por efeito inserir uma profundidade temporal no que, até então, era apenas voz.5 5 CERTEAU, Michel de. Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.211-242, 2002; GOODY, Jack. La raison graphique: la doméstication de la pensée sauvage. Paris: Minuit, 1979. Nessa tarefa, toda uma luta de representações foi deflagrada, já que dependia do valor desse passado a legitimação dos juízos sobre a assimilação ou a exclusão dessas populações de um projeto de história nacional. Apesar de alguns poucos posicionamentos que associavam um certo primitivismo (não evolucionista) com a defesa da catequese, o debate etnográfico, em meados do século XIX, teve como característica marcante uma polarização.6 6 Para John Monteiro essa polarização manifestava-se, antes, como uma oposição entre tapuias, considerados bárbaros e agressivos, e os tupis, compreendidos como os indígenas "mansos"; os tupis seriam "históricos", porque em boa parte já exterminados, e os tapuias contemporâneos. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas, Unicamp, 2001, p.10 (Histó ria, Tese de livre docência); Ver também KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Império do Brasil, p.114. De um lado, existiam autores que buscavam defender a catequese provando que as sociedades indígenas eram formas decaídas de civilizações anteriores. De outro, especialmente com Varnhagen, procurava-se provar a incapacidade dos selvagens de sair de seu estado de natureza.7 7 TURIN, Rodrigo. Entre ‘antigos’ e ‘selvagens’: notas sobre os usos da comparação no IHGB. Revista de História, São Paulo, edição especial, p.131-146, 2010.

Seja defendendo a exclusão dos indígenas de um processo civilizador, seja promovendo sua inclusão hierarquizada, autores como Varnhagen, Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Joaquim Norberto, entre outros, recorreram a certos pressupostos comuns. Os conceitos que delimitavam os contornos da alteridade indígena, como religião, trabalho, propriedade e liberdade, eram os mesmos conceitos através dos quais esses letrados buscavam definir sua identidade, fazendo valer uma visão e uma divisão do mundo social. Para a maioria dos sócios do IHGB, a formulação de um discurso etnográfico se dava por meio de um esquema conceitual cuja efetividade estava centrada em sua capacidade de incluir a alteridade indígena, de forma hierarquizada, ao corpo da nação. O par conceitual civilizado/selvagem, tal como usado por esses letrados, restaurava assim a funcionalidade de uma outra oposição: cristãos/pagãos. O que estava por trás desses conceitos opostos assimétricos, como bem salientou Koselleck, era uma experiência temporal pautada na ideia da conversão.8 8 KOSELLECK, Reinhart. A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p.191-231. Ver do mesmo autor ‘Progress’ and ‘Decline’. An apendix to the history of two concepts. In: The practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. Stanford: Stanford University Press, p.218-235, 2002. Assim como o pagão representava um cristão em potencial, o selvagem também poderia ser compreendido como um ainda não civilizado. Contudo, essa condição expressa pela sentença ainda não, longe de indicar qualquer processo evolutivo, pautado em uma naturalização do tempo, caracterizava-se antes pela possibilidade de uma salvação. Como salientou Gonçalves de Magalhães em seu testemunho sobre os conflitos sociais ocorridos no Maranhão, o que estava em jogo era a possibilidade de uma passagem repentina, portanto uma conversão, do selvagem ao estado civilizado.9 9 MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Memórias da Balaiada. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.23, p.7-66, março 1989. Gonçalves de Magalhães recorre a essa experiência no Maranhão em seu estudo etnográfico apresentado ao IHGB, onde afirma ter visto selvagens, "apenas sahidos dos nossos matos, vestidos um dia à nossa maneira, afazerem-se de repente aos nossos costumes"; MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Os indígenas do Brasil perante a História. RIHGB, São Paulo, t.XXIII, p.65, 1860. Do mesmo modo, interessava identificar o selvagem não como um ser condenado ao estado de natureza, mas como um decaído. Caberia à etnografia resgatar do passado indígena os traços tanto de uma civilização anterior, similares àquelas encontradas no México, como também resquícios da revelação divina, que haviam sido apagadas pelo esquecimento. Pode-se dizer, em suma, que o discurso etnográfico promovido por esses letrados acionava como elemento estrutural um tempo da salvação.10 10 FABIAN, Johannes. Time and the Other: how anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 2002. Essa temporalidade, de caráter inclusivo, permitiria dar um lugar às populações indígenas dentro da construção do Império do Brasil; mais do que isso, legitimaria também o papel desses letrados como agentes missionários dessa civilização cristã a ser realizada nos Trópicos.

No caso de Varnhagen, especificamente, o esquema conceitual não produzia a incorporação do indígena ao corpo da nação, mas sim uma separação. No entanto, devem-se ressaltar dois pontos: primeiro, que para provar seu argumento Varnhagen se via constrangido a fazer uso dos mesmos conceitos e métodos compartilhados pelos demais sócios do IHGB; segundo, a separação estabelecida entre selvagens e civilizados não se dava por critérios naturais, de caráter evolucionista, mas por uma justificativa específica: o triunfo da civilização cristã em terras americanas. O objetivo de Varnhagen era demonstrar que os selvagens que habitavam o território brasileiro eram descendentes dos antigos Cários e que, longe de poderem ser considerados os habitantes naturais do Brasil, não passavam de invasores.11 11 CEZAR, Temístocles. Anciens, modernes, sauvages, et l’écriture de l’histoire au Brèsil au XIX siècle: le cas de l’origine des Tupis. Anabases, n.8, p.43-65, 2008. De todo modo, o que estava por trás dessa reconstrução etnográfica de Varnhagen era a definição do conceito de civilização cristã. Ao contrário de autores como Gonçalves de Magalhães, para quem os conceitos de civilização e de religião eram naturais a todo ser humano, para Varnhagen o conceito de civilização era um produto eminentemente histórico, devendo a civilização cristã ser entendida como uma herança, a qual seus herdeiros deveriam preservar a ferro e fogo. O Estado brasileiro, enquanto herdeiro dessa tradição legada pela colonização portuguesa, não deveria deixar seduzir-se por falsas ideias românticas que pintavam um indígena idealizado, mas fazer prevalecer, antes, a civilização cristã contra a selvageria. A tese por ele sustentada em L’Origine Touranienne des Américains Tupis-Caribes et des Anciens Egyptiens, já na década de 1870, representava um último e tardio lance na tentativa legitimar sua posição frente aos sócios do IHGB.12 12 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. L’Origine Touranienne des Américains Tupis-Caribes et des Anciens Egyptiens. Indiquée principalement par la philologie comparée: traces d’une ancienne migration em Amérique, invasion du Brésil par les Tupis, etc. Vienne: Librairie I. et R. de Faesy & Frick, 1876. Sobre a etnografia de Varnhagen, cf. OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os índios bravos e o Sr. Visconde: os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolpho de Varnhagen. Belo Horizonte, UFMG, 2000. (História, Dissertação de mestrado); e PUNTONI, Pedro. O senhor Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István. (org.) Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p.633-675; CEZAR, Temistocles. A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.) Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.29-41. As regras do jogo, no entanto, já estavam mudando; e a recepção de sua obra por autores que se lançavam no campo letrado a partir do último terço do século XIX, como Sílvio Romero, seria severamente marcada por essas mudanças.

O ocaso desse debate etnográfico imperial, contudo, pode ser melhor observado através da obra de um outro autor: o general Couto de Magalhães. Como procurarei mostrar, seu texto é marcado pela convivência do que se pode denominar de diferentes linguagens etnográficas. Com isso quero dizer que Couto da Magalhães faz uso tanto daqueles mesmos conceitos e métodos que caracterizavam o discurso etnográfico do IHGB, como também acrescenta a eles uma série de outros conceitos e problemas que apontam para outro modelo de análise que, a partir de década de 1870, iria se tornar hegemônico nos textos etnográficos. Nesse sentido, sua obra torna-se um marco importante para compreendermos um momento de transição de um espaço intelectual e conceitual a outro; de um campo de discussão bem delimitado, tendo seu centro organizador no IHGB, para uma fragmentação do discurso etnográfico, quando diferentes agentes e instituições imprimem novas configurações ao debate. O esforço de Couto de Magalhães em, de certa forma, re-atualizar o programa etnográfico do IHGB, deflagra não apenas o esgotamento daquela tradição (à qual se filiava), como também indica um novo quadro conceitual de cuja legitimidade, retirada de uma circulação internacional de ideias, ele procurava se apropriar.

A tensão que caracteriza seu texto pode ser percebida pelo modo como ele situa seu objeto. O selvagem, ali, transita entre um tempo natural, de caráter evolucionista, e um tempo marcado por aquele esquema conceitual presente no IHGB, como se o autor buscasse promover uma conciliação impossível entre o indígena degradado e o homem primitivo.13 13 John Monteiro ressaltou, em sua tese de livre docência, como Couto de Magalhães mantinha "um pé na ciência da época e outro no idealismo pró-índio". MONTEIRO, John. Entre o Gabinete e o Sertão, p.152. Maria Helena Machado, igualmente, salientou que o autor partia "de uma abordagem evolucionista e monogenista-católica e acompanhando a voga do nativismo indianista dos românticos". MACHADO, Maria Helena. Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da história nacionalista do século XIX. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.14, n.25, p.63-80, 2000. Graças a essa tensão, sua obra recebeu diferentes classificações, seja como uma empreitada evolucionista – e, nesse sentido, pôde ser absorvida nos quadros do Museu Nacional –, seja como mais um capítulo da etnografia romântica e seus sonhos genealógicos, como acusaria Sílvio Romero.14 14 ROMERO, Sílvio. Etnografia brasileira: estudos críticos sobre Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Teófilo Braga e Ladislao Netto. Rio de Janeiro: Alves, 1888. De qualquer forma, é justamente por essa plurivocidade que seu texto se mostra significativo para uma reflexão sobre as experiências do tempo no Brasil oitocentista.15 15 Importante ressaltar que não estou afirmando que essas duas linguagens etnográficas traduzem uma oposição entre "antigo" e "moderno". O esquema conceitual presente no debate etnográfico do IHGB, entre as décadas de 1840 e 1870, é igualmente "moderno", na medida em que promoveu a historicização daqueles pares opostos conceituais de tradição bíblica. Mais do que classificar e reduzir essas duas linguagens etnográficas à antinomia "antigo" e "moderno", busco compreender como se fazem presentes nestes textos etnográficos diferentes "texturas do tempo". RAO, Velcheru Narayana; SHULMAN, David e SUBRAHMANYAM, Sanjay. Textures du temps: écrire l’histoire en Inde. Paris: Seuil, 2004.

II.

Nascido em 1837, bacharel formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, José Vieira Couto de Magalhães ocupou, na década de 1860, os cargos de presidente das províncias de Goiás, Mato Grosso e Pará. Em 1868, ele fundava a Empresa de Navegação a Vapor do Rio Araguaia e, em 1875-76, obtinha do governo imperial a concessão da linha férrea da Minas and Rio Railway Ltd. Em 1876, publicava o livro O Selvagem, cuja produção fora encomendada pelo próprio imperador, tendo em vista a Exposição Universal do Centenário da Independência dos Estados Unidos, ocorrida na Filadélfia. Filiado ao partido liberal de São Paulo, teve um papel de destaque no projeto de modernização do Brasil imperial. Um ano depois de assumir a presidência da província de São Paulo, renuncia por não apoiar o regime republicano. Monarquista convicto até a morte, Couto de Magalhães pode ser caracterizado como um indivíduo que procurou revitalizar o projeto político do Segundo Reinado em meio à crise que se instalou após a década de 1860.16 16 Para os dados biográficos, cf. MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário íntimo. Organização de Maria Helena P. T. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Eu não pretendo, com essa sequência de dados biográficos, reduzir o livro de Couto de Magalhães a um mero reflexo de sua posição social, como uma voz representante de uma classe ou como fruto de seus interesses e aspirações políticas e econômicas. Ainda que todos esses elementos sejam causas singulares eficientes da produção da obra,17 17 RINGER, Fritz. A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São Paulo: Edusp, 2004, p.71-96. o que eu procurarei destacar aqui é sua inserção no debate etnográfico configurado em torno do IHGB. O fato de ele fazer parte da elite imperial e sua obra ter sido encomendada por D. Pedro II não seria suficiente, por si só, para a compreensão de seu texto. Afinal, todos os autores que atuaram no debate etnográfico desde a década de 1840 se enquadrariam nessa condição de elite e parte deles também escreveu sob encomenda direta do Imperador, como é o caso de Gonçalves Dias.18 18 DIAS, Gonçalves. O Brasil e a Oceania. RIHGB, t. XXX, 1867. A pertença a essa condição social não é garantia da homogeneidade dos textos, ainda que não estejam dela desvinculados. No entanto, para os fins do presente estudo, é importante ressaltar a posição de Couto de Magalhães como defensor do projeto político do Segundo Reinado pois, como já foi dito, a especificidade de sua investigação etnográfica se concentra, justamente, no objetivo de re-atualizar a tradição na qual se insere. O que eu procuro sugerir, portanto, é que seu texto deve ser entendido como uma tentativa tardia de revitalização do debate etnográfico imperial, guardando certos traços e valores que conformavam sua identidade. A adoção de expressões e linguagens científicas próximas a perspectiva evolucionista não implicou, de modo algum, a renúncia daqueles pilares que sustentavam o discurso etnográfico no IHGB.

III.

O livro O Selvagem é composto por duas partes distintas. Na primeira, Couto de Magalhães apresenta um "Curso de língua Tupí viva ou Nheengatú", cujo objetivo, esclarece o autor, é permitir que "todas as pessoas, que saibam lêr e que estiverem em contacto com o selvagem, possam ensinar ao mesmo selvagem a fallar o portuguez".19 19 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Advertencia. In: O Selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876. A segunda parte, intitulada "Origens, costumes e Região Selvagem", é apresentada como uma tentativa de sistematização antropológica, onde o autor procurou transformar toda sua experiência nos sertões em conhecimento científico. Esta segunda parte havia sido apresentada, originalmente, em sessão do IHGB, em 1874.

A ordem de exposição de seu estudo etnográfico segue do geral (o homem americano) ao particular (o selvagem no Brasil, suas línguas, constituição física, família e religião, regiões onde habita). O que estrutura esta ordem expositiva é a necessidade de estabelecer as origens desse homem americano como condição para qualificar os selvagens que ainda habitavam o território nacional. Portanto, ele vai do "aparecimento do homem na Terra" aos movimentos migratórios dos indígenas nos sertões. Novamente, aqui, vemos como a investigação etnográfica enraíza-se em uma articulação temporal. No entanto, esta articulação temporal diferencia-se daquela estruturada no debate etnográfico que vinha ocorrendo no IHBG desde a década de 1840. A busca das origens, em Couto de Magalhães, filia-se a um esforço de classificação que não mais se restringe a uma genealogia filológica, na qual se privilegia elementos que hoje chamaríamos de culturais, mas abrange um modelo formal cujos critérios são universais e naturais. É em relação a essa articulação temporal que abordarei o texto de Couto de Magalhães, na tentativa de posicioná-lo frente ao debate etnográfico oitocentista.

Ao ler a segunda parte de sua obra, nos deparamos com algumas afirmações a este respeito. Logo no início de seu texto, ele situa o estudo do homem como vinculado às transformações geológicas: "Aquelles que estudam as diversas revoluções por que tem passado a terra, desde o periodo em que fazia parte da grande nebulosa que se decompôz no systema solar, até nossos dias, ficarão convencidos de que os phenomenos que nós denominamos vitaes estão intimamente ligados a taes revoluções".20 20 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.1. O "homem", assim, não é apresentado como um objeto autônomo. Para chegar a ele, faz-se necessário antes associá-lo ao processo de formação da Terra e, dentro desse processo, ao surgimento dos "phenomenos vitaes". O quadro de trabalho é colocado dentro de uma cronologia que extrapola os limites do tempo dos homens. Estes só haveriam aparecido na "época ternaria". Estas considerações, como Couto de Magalhães iria reconhecer depois, implicavam uma necessária revisão dos textos bíblicos:

Contando-se o tempo pela vida dos patriarchas tal qual ella foi escripta por Moisés, Adão e Eva não existiram a mais de cinco mil annos. Os textos do Velho Testamento hebraico devem ser revistos porque, pela fórma por que estão traduzidos, elles envolvem um erro que destroe pelos fundmentos toda a theoria da revelação immediata, do pecado original, e da redempção; por que, assentando-se todas ellas no facto da creação daquela famillia á cinco mil annos, fica a revelação destruida com a existencia de gerações humanas por muitos milhares de annos antes de Adão e Eva, povoando já todos os valles da terra, inclusive os da America.21 21 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.39.

É importante destacar desde já que Couto de Magalhães não está preocupado em atacar ou mesmo desqualificar o texto bíblico. As considerações científicas trazidas por ele a respeito da antiguidade do homem na terra visam apenas revisar o testamento hebraico, e não desmenti-lo.22 22 Como destaca Manoel Salgado Guimarães, referindo-se ao trabalho arqueológico do dinamarquês Ramus Nyerup, do início do século XIX, esta perspectiva de uma expansão da cronologia clássica estava longe de ser aceita sem contestações. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Para reescrever o passado como história: o IHGB e a Socidade dos Antiquários do Norte. In: HEIZER, Alda e VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. (org.) Ciência, civilização e Império nos Trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.11. Para uma visão mais geral desse processo, cf. ROSSI, Paolo. Os sinais do tempo. São Paulo: Companha das Letras, 1992; e SCHNNAP, Alain. La conquête du passé: aux origines de l’archéologie. Paris: Éditions Carré, 1993. Inclusive, o problema não estaria no próprio Testamento, senão em sua tradução. Entre a autoridade da linguagem científica por ele adotada - pautada em descobertas geológicas e em um novo campo de abordagem arqueológica enquanto autônoma à cultura filológica - e a autoridade dos textos bíblicos, não haveria uma necessária antinomia. A coexistência desses modelos será analisada adiante. O que interessa apontar, por enquanto, é a presença mesma desse aparato discursivo que inseria o estudo do homem numa agenda contígua às ciência naturais.

Assim como existiria uma ordem natural de desenvolvimento do globo terrestre e de seus fenômenos vitais, da mesma forma haveria etapas de desenvolvimento inerentes à história humana. "A anthropologia demonstra que o homem physico passou sempre de um periodo mais atrazado para um mais adiantado; a historia demonstra a mesma cousa a respeito do homem moral".23 23 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.24. Há um mesmo sentido, portanto, tanto para o físico quanto para o moral. Estabelecida essa lei de desenvolvimento, o autor tem à sua disposição uma grade formal na qual pode dispor e classificar seu objeto. Mais especificamente, Couto de Magalhães adota como critérios de classificação as idades da pedra e dos metais.24 24 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.9. Além desses critérios, ele faz uso igualmente de outras etapas vinculadas à produção: "A philosophia e a historia ensinam, que o homem em relação a industria alimentar foi primeiramente caçador e pescador, depois pastor, e só depois de haver percorrido esses dous periodos é que foi agricultor".25 25 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.29. Esses critérios de classificação, retirados em grande parte da tradição iluminista escocesa, lhe permite ao mesmo tempo criar e resolver problemas referentes ao desenvolvimento dos indígenas brasileiros.26 26 WOKLER, Robert. Anthropology and conjectural history in the Enleightenment. In: FOX, Christopher; PORTER, Roy e WOKLER, Robert. (org.) Inventing human science: Eighteenth-Century domains. Berkeley: University of California Press, 1995. "Nossos selvagens", ele se indaga, "que já eram agricultores, não tinham sido pastores; como explicar estes factos?"27 27 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.23. Sua resposta, já que não pode haver exceção às regras, vem da dedução lógica de que "o Brazil só possuio os seus selvagens por via de emigração, e que esta deveu ter tido lugar depois que esses homens haviam transposto em outra região o primeiro periodo da civilisação ou barbaria humana".28 28 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.26. A história dos indígenas, portanto, poderia ser reconstruída agora não apenas através de uma investigação genealógica, por meio da comparação de línguas, mas também como fruto de deduções lógicas e conjecturais, uma vez que sua existência temporal estaria submetida a regras universais de desenvolvimento.

Ao adotar esse esquema interpretativo, Couto de Magalhães não estaria mais tratando apenas da obscura história dos indígenas. Ao recorrer a essa vertente do pensamento antropológico, ele opera em relação a uma linha temporal única e, acima de tudo, natural. Como diria Joseph-Marie Degérando - uma figura importante nessa tradição -, estudar os povos selvagens torna-se, a partir de então, também um modo de "esclarecer os pontos obscuros de nossa história primitiva".29 29 DEGÉRANDO, Joseph-Marie. Introduction aux mémoires. In: COPANS, Jean e JAMIN, Jean. Aux origines de l’anthropologie française: les mémoires de la Societé des observateurs de l’homme en l’an VIII. Paris: Jean Michel Place, 1994, p.58. Cf. HARTOG, François. Du parallèle à la comparaison. In: Anciens, modernes, sauvages. Paris: Galaade, 2005, p.197-220. Nas palavras de Couto de Magalhães:

E si é verdadeira a theoria de que o homem pensou da mesma fórma, qualquer que fosse a sua raça, enquanto esteve no período de barbarismo que termina-se com a fundição dos primeiros metaes, a historia do pensamento da raça americana, n’esse periodo, não é só a de uma porção da humanidade; é a de toda a humanidade, em periodo idêntico.30 30 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.152.

A unidade psíquica do homem, base para essa formulação que tomava corpo em meados do século XIX, reduz a diferença graças ao vetor temporal. Na medida em que haveria uma natureza humana fundamentalmente igual, baseada em sua unidade psíquica, e que ela seguiria leis universais de desenvolvimento, todas as sociedades estariam vinculadas a um mesmo plano evolutivo.31 31 Como destaca John Zammito, com a obra de Locke e sua vasta difusão entre os círculos letrados do século XVIII, uma visão "sensualista" do desenvolvimento cognitivo humano foi estendida ao seu desenvolvimento histórico. "By framing the question of human consciousness as the ‘history of human understanding’, Locke initiated a general temporalization of human faculties". "There was, decisively, a convergence from both conceptual poles, nature and (human) history, toward a synthetic middle ground. Nature came increasingly to be conceived as temporalized (e.g. Buffon), while human history presumed a measure of ‘universality’ if only to encompass the profound ‘otherness’ that this variety presented to the observer". ZAMMITO, John. Kant, Herder, and the birth of Anthropology. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p.225-229. Contudo, por alguma misteriosa razão, nem todos os grupos humanos se encontravam em um mesmo estágio de desenvolvimento. Mas era justamente essa coexistência que tornava possível reconstruir conjenturalmente a história da humanidade, graças ao método comparativo.32 32 STOCKING, George. Race, culture and evolution. Chicago: Chicago University Press, 1984, p.26. É tendo em vista esse plano intelectual que Couto de Magalhães exclama: "Que imenso museo vivo não possuimos para preparar a historia do pensamento primitivo da humanidade!".33 33 MAGALHÃES, José Viera Couto de. O Selvagem, p.153. Sua vasta experiência em viagens pelo interior do Brasil transforma-se, a partir daí, em uma enriquecedora viagem ao passado. Deslocar-se no espaço é também deslocar-se no tempo. A observação presente da vida selvagem proporciona uma visão da história do homem – não mais aquela visão construída através da historiografia romântica com sua cor local, mas da história não escrita, que antecedia os registros conscientes da humanidade. Essa perspectiva de trabalho colocaria, assim, a autópsia como um componente retórico fundamental para a escrita etnográfica.

Afirmei acima que esse esquema reduzia a diferença na medida em que singularizava o homem e o situava em uma mesma ordem temporal, com suas etapas necessárias de desenvolvimento.34 34 Essa singularização, necessário ressaltar, se dava essencialmente no plano psíquico, pois era tendo como a priori a unidade psíquica do homem que se poderia reconstruir, dentro dessa tradição de evolucionismo social da qual Couto de Magalhães parece mais se aproximar, as etapas de desenvolvimento. Havia, é claro, a ideia de que, devido a certos fatores, certos povos ficariam retidos em estágios de desenvolvimento; o que não implicava que, na origem, eles não tivessem compartilhado uma mesma origem e as mesmas capacidades psicológicas. Como afirma Stocking: "In the beginning, black savages and white savages had been psychologically one. But while white savages were busily acquiring superior brains in the course of cultural progress, dark-skinned savages had remained back near the beginning. Although united in origin with the rest of mankind, their assumed inferiority of culture and capacity now reduced them to the status of missing links in the evolutionary chain". STOCKING, George W. Victorian anthropology. New York: Free Press, 1987, p.185. É possível, contudo, inverter essa afirmação. Se, por um lado, esse selvagem deixa de ser indagado acerca de sua própria historicidade (a obscura história indígena), integrando, agora, as origens de nossa própria história – o que reduziria a diferença; por outro lado, talvez seja mais correto dizer que esse quadro de análise instaura uma outra diferença. Essa nova diferença pode ser qualificada como uma alocronia, para usar o termo proposto por Johannes Fabian.35 35 FABIAN, Johannes. Time and the other, p.33. Na medida em que o passado indígena deixa de ser um enigma em si mesmo e passa a representar o passado único da humanidade, ele não apenas vem a compartilhar de um mesmo plano evolutivo, mas, acima de tudo, é-lhe atribuído um distanciamento temporal. Ou seja, o fato de ele estar presente à observação não significa mais que ele possa ser considerado um contemporâneo. O que torna significativa sua presença é a possibilidade de representar um ausente: o passado do próprio observador. É nesse sentido que Fabian fala da "negação da contemporaneidade" como um pressuposto do pensamento antropológico moderno. Reinhart Koselleck, em suas investigações acerca do tempo histórico, denominou essa experiência de "simultaneidade do não contemporâneo".36 36 KOSELLECK, Reinhart. Modernidade: sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade. In: Futuro passado, p.267-303. Dessa nova experiência temporal surge a possibilidade do viajante moderno poder comparar os tempos, o seu e o do objeto observado, sem esconder a satisfação de tomar consciência de seu próprio lugar. É essa experiência da viagem que se faz presente em Magalhães:

Ahi o vapor, passando por entre as numerosas aldêas de indios que ainda andam nús, apresenta em contraste os dois extremos da cadêa humana: a raça mais civilisada que usa d’esse primeiro agente agente do progresso, e o homem nú, imagem viva da primeira rudeza e barbaridade selvagem de nossos maiores. 37 37 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.181.

É esta concepção de uma imagem viva do passado da humanidade, disponível ao observador, o que passa a qualificar o selvagem e sua alteridade temporal.

O que interessa destacar de tudo isso é o fato de Couto de Magalhães operar com uma linguagem que remete à naturalização do tempo. Sua indagação deixa de se dirigir apenas ao passado específico das sociedades indígenas. Não seria mais possível, nessa perspectiva, estabelecer o indígena como um ser decaído de uma condição originária, tal como o fizeram autores como Von Martius, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e Joaquim Norberto.38 38 Como ressaltou Kodama: "Diferentemente do princípio evolucionista, a discussão dos letrados no Império do Brasil tomavam outra vertente, seguida por Martius, que como vimos, preferia afirmar a decadência dos povos indígenas. Como os trabalhos de etnografia de Martius indicavam, assim como uma escrita da História do Brasil parecia exigir, a interpretação que os estudos etnográficos realizados dentro do Instituto insistiam no tema da decadência das nações indígenas. Assim como a pergunta do imperador indicava, a questão a ser investigada pela etnografia dosíndios do Brasil já estava traçada, antes mesmo de começar a ser feita". KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Império do Brasil, p.148. Essa tese da decadência, como preocupação central ao debate etnográfico no IHGB, também foi destacada por MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e historiadores. Para uma discussão sobre a tese decadentista e os debates sobre a historicidade indígena, cf. TURIN, Rodrigo. A ‘obscura história’ indígena. Agora, sob a categoria de primitivo, o selvagem passava a ser encarado como o representante da origem da humanidade; um presente que traduzia enquanto passado para o observador. Afinal, a categoria de primitivo, como lembra Fabian, não se qualifica pelo seu conteúdo; não designa nenhuma sociedade em particular. Ela deve ser entendida, assim com os termos antigo e moderno, como uma categoria formal e essencialmente temporal.39 39 FABIAN, Johannes. Time and the other, p.77. Para uma análise das categorias antigo e moderno como categorias temporais, conferir HARTOG, François. Anciens, modernes, sauvages.

IV.

Cabe agora perguntar, no entanto, até que ponto esse evolucionismo de Couto de Magalhães se realizava em todas as suas consequências? Até onde ia essa naturalização do tempo histórico? Mais importante: em que medida sua abordagem representava de fato uma quebra com o debate etnográfico que se instalara desde a década de 1840 no IHGB? Antes de analisar essas questões, é necessário deixar claro que não existe o evolucionismo enquanto um corpo de premissas homogêneas. Não é possível, por exemplo, identificá-lo simplesmente com a obra de Darwin e seus efeitos. Mesmo antes do aparecimento de A Origem das Espécies, os tópicos que norteavam uma abordagem evolucionista já circulavam em diferentes autores.40 40 STOCKING, George. Victorian anthropology, p.110-144. Para esta questão, conferir também BLANCKAERT, Claude. La nature de la societé: organicisme et sciences sociales au XIX siècle. Paris: L’Harmattan, 2005, p.44. Quando essas ideias se difundiram em meados do século XIX, operou-se, inclusive, a apropriação de certos nomes como antecedentes ou precursores. Um exemplo clássico disso é a leitura que se fez de Buffon, instituindo-o como referência para o estabelecimento de uma história natural do homem, através da qual se estudava sua distribuição geográfica e classificava-o de acordo com seu lugar na escala evolucionária da civilização.41 41 BLANCKAERT, Claude. Buffon and the natural history of man. History of the Human Sciences, v.6, n.1, p. 13-50, 1993. Além disso, se tomarmos o evolucionismo no seu sentido mais amplo, envolvendo a naturalização do tempo e o estabelecimento de critérios que permitem classificar etapas de desenvolvimento, teríamos que levar em consideração os diferentes modos como essas ideias gerais receberam configurações específicas em tradições intelectuais distintas.42 42 Pode-se, por exemplo, comparar quando e como essas ideias foram desenvolvidas na Inglaterra, na França e na Alemanha. Para uma análise desses três casos, conferir, respectivamente: STOCKING, George. Victorian anthropology; BLANCKAERT, Claude. On the origins of the french ethnology. In: STOCKING, George. (ed.) Bones, bodies and behavior: essays on biological anthropology. Madison: University of Wisconsin Press, 1988; ZAMMITO, John Kant, Herder and the Birth of anthropology. Para estudos sobre as diferentes recepções do evolucionismo no Brasil, conferir DOMINGUES, Heloisa M. Bertol, SÁ, Magali Romero e GLICK, Thomas. (org.) A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003; assim como TURIN, Rodrigo. "Tipos", "primitivos" e "decadentes": escrita etnográfica, secularização e tempo histórico no Museu Nacional. In: NEVES, Maria Lucia Pereira das et al. (org.) Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2011. Este é o caso de Magalhães, em cujo texto estão presentes referências as mais diversas, desde menções a Darwin e outros cientistas contemporâneos, como categorias de proveniências distintas (e mesmo distantes), como as classificações formuladas no iluminismo escocês. Mais do que tentar classificar a perspectiva evolucionista de Couto de Magalhães em função de escolas pré-determinadas, interessa aqui analisar de que modo sua escrita engendra uma textura temporal própria a partir de referências intelectuais distintas.

O que vale destacar, com esse objetivo, é a relação que esse pensamento evolucionista, em suas linhas gerais, estabeleceu com a tradição da antropologia bíblica. Como afirma George Stocking, os evolucionistas procuravam desenvolver uma explicação naturalística para as manifestações especificamente humanas que, até então, eram atribuídas a uma origem divina. "They are asked to show that language, science, religion, morality, and law – and by extension, other divinely ordained institutions such as human marriage – had grown up naturally as part of man’s development from savagery to civilization".43 43 STOCKING, George. Victorian anthropology, p.149. A formação desse discurso esteve vinculada a uma severa crítica às concepções que se baseavam em algum elemento transcendente à sociedade. A moral e a religião eram colocadas como objetos a serem esclarecidos, frutos do processo evolutivo, e não como sua causa. A religião, assim, não era mais o ponto do qual se partia, mas antes o que precisava ser explicado.

Com esse esquema, como já foi ressaltado, o selvagem assume uma nova posição. Ele não se situa mais nas margens da história humana como um ser degradado, com sua própria historicidade – a qual necessitaria ser reconstruída através de uma investigação genealógica. Ele era agora incorporado dentro de uma lógica imanente e secularizada do desenvolvimento humano, sendo considerado um "sobrevivente" (survival).[44] Essas diferentes concepções temporais implicavam, igualmente, atitudes filantrópicas distintas. Enquanto que a tradição bíblica estava pautada na ideia de conversão, o evolucionismo assume como forma de ação social a ideia de reforma. Entre as muitas diferenças que caracterizam esses dois modelos, cabe, por enquanto, destacar apenas uma: na conversão, o selvagem estaria sempre pronto para a salvação; na reforma, o homem primitivo ainda não estava preparado para a civilização. Na primeira, temos uma relação temporal inclusiva; na segunda, uma relação temporal exclusiva.45 45 FABIAN, Johannes. Time and the other, p.26. Importante ressaltar que é este tipo de ordenação conceitual evolucionista que estava por trás de uma série de juízos que começavam então a se difundir no Brasil à época em que Magalhães lançou seu livro; e seu uso por parte de autores como Nina Rodrigues, Sílvio Romero, José Veríssimo, Euclides da Cunha, entre outros, estava estreitamente vinculado a um posicionamento crítico frente à sociedade imperial e à tradição letrada constituída em torno do IHGB, à qual Couto de Magalhães sempre esteve ligado.46 46 Segundo Nina Rodrigues, "nós temos atualmente uns dois mil anos de avanço sobre o negro e não é uma lacuna que se possa vencer de um salto". RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil. Brasília: UNB, 2004, p.300; juízo semelhante emitiria CUNHA, Euclides da. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. In: Os Sertões. Edição Crítica organizada por Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.248. Para uma análise de emergência dessa nova geração e sua experiência de marginalização política, cf. ALONSO, ngela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

Voltemos agora ao texto de Couto de Magalhães e ao modo como está configurado ali uma textura temporal própria, cuja tensão entre ordenações conceituais distintas procura-se aqui explicitar. Uma primeira consideração a ser feita diz respeito ao papel que Couto de Magalhães atribui à Providência. Em uma passagem, na qual procura defender a miscigenação do indígena com o branco, ele não faz uso de argumentos naturalistas, mas atribui um desígnio divino como garantia da ordem vital: "Deus organisou a vida com leis tão sábias e inflexiveis, que não é possivel suppôr-se que taes cruzamentos fossem fecundos, si a Providência Divina não tivesse em vista um melhoramento e um progresso na especie".47 47 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.98. Se há uma ordem do tempo e um sentido de desenvolvimento da humanidade, eles não são devidos a uma dinâmica intrínseca a sua constituição, cuja analogia com o organismo era paradigmática a esse tipo de raciocínio;48 48 BLANCKAERT, Claude. La nature de la societé. são regidos, antes, por um desígnio divino, que transcende a natureza dos corpos e da sociedade. Sua atitude etnográfica tomava como pressuposto essa condição:

Por muito rude e barbara que á primeira vista, pareça uma instituição qualquer de um povo, ella deve ser estudada com respeito. As instituições fundamentaes dos povos, qualquer seja o gráo de civilisação ou barbaria, são o resultado necessario das leis eternas de moral e justiça que Deus creou na consciencia humana, leis que no fundo são as mesmas no selvagem ou no homem civilisado, embora susceptiveis de manifestações diversas, segundo o gráo de adiantamento a que cada um tem chegado.49 49 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.131.

Como vimos acima, Couto de Magalhães, ao adotar a ordem do tempo vinculado à geologia, não buscava desqualificar a referência bíblica, mas apenas revisá-la. Seu argumento era de que, como estavam traduzidas, as afirmações da Bíblia, comparadas às descobertas científicas, iam contra a teoria da criação, a revelação e a redenção. Portanto, longe de negar a revelação e a ordem divina em favor de uma postura científica secularizada, seu objetivo é tentar conciliá-las. Esta atitude de revisão e conciliação é a marca de seu pensamento antropológico.

Também podemos identificar essa atitude através do uso que ele faz do conceito de civilização. Logo na Introdução, quando apresenta a origem e o objetivo do seu texto, ele deixa claro o sentido com o qual emprega a palavra: "No grande concurso, que se vai abrir em Philadephia, ha uma secção para sciencias; nessa, merecerão por certo especial atenção aquellas obras que se referirem ao homem americano, e aos esforços feitos pelas raças conquistadoras para chama-lo à communhão da civilisação cristã".50 50 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XVIII. Em outra passagem, na qual ele retoma a oposição entre assimilação e extermínio, também vem especificado a que tipo de civilização sua afirmativa se refere: "A experiencia de todos os povos, e a nossa propria, ensinam que no momento em que se consegue que uma nacionalidade barbara entenda a lingua da nacionalidade christã que lhe está em contacto, aquella se assimila á esta".51 51 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XXXII. Como foi dito anteriormente, o conceito de civilização que informava a agenda etnográfica do IHGB desde a década de 1840 identificava-se essencialmente com o cristianismo. A religião, aqui, não era entendida como uma mera etapa do desenvolvimento psíquico da humanidade, sendo substituída, posteriormente, por uma visão positiva e científica. Enquanto que no quadro evolucionista o sentimento religioso diz respeito a um desvio da razão em seu processo de desenvolvimento, para os letrados do IHGB religião (cristã) e civilização eram conceitos interdependentes.52 52 Para uma análise da relação do evolucionismo com a religião, conferir STOCKING, George. Victorian anthropology, p.188-197; e KUPER, Adam. The invention of primitive society: transformations of myth. New York: Routledge, 1997, p.76-91. Daí a dificuldade de Couto de Magalhães em conciliar a teoria da revelação, que considerava necessário revisar, com seu esquema de interpretação evolutivo. Se, por um lado, ele afirmava a sequência necessária que ia do politeísmo ao monoteísmo, ele não deixava de sugerir, entretanto, uma estreita semelhança entre o sentimento religioso do indígena e do civilizado:

Creio que não necessito de outros factos para demonstrar, que os pobres selvagens tributavam a seus deuses sentimentos tão puros de gratidão como aquelles que nós os christãos tributamos ao nosso Deus. Na oração que nos foi ensinada por Christo, o modo de exprimir nossa relação fundamental para com o Creador é a palavra pai. Elles empregam o nome de mãi; em que é que isto expressa a ausencia absoluta de idéa de gratidão para com o Creador, como pretenderam os portuguezes e sobretudo os hespanhóes?53 53 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.125.

Além do sentimento religioso, que seria, paradoxalmente, diferente, mas igual, o juízo que ele tece a respeito da língua dos indígenas também expressa sua característica ambiguidade: "Pelo lado da perfeição ella é admiravel; suas fórmas grammaticaes, embora em mais de um ponto embrionarias, são comtudo tão engenhosas que, na opinião de quantos a estudaram, póde ser comparada ás mais celebres".54 54 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XXXVI. Embrionária e perfeita, documento de em período de "aglutinação" e ao mesmo tempo comparável às mais célebres, a língua selvagem, mecanismo de sua decomposição, reflete a situação temporal instável em que Couto de Magalhães coloca seu objeto.

A escrita etnográfica de couto de Magalhães situa-se, portanto, entre oposições, na tentativa de conciliá-las. Entre uma concepção da religião como erro da razão e outra como revelação (entre Locke e Lafitau), ou entre uma língua embrionária e outra perfeita, Magalhães procura encontrar seu lugar. Essas ambiguidades que caracterizam sua escrita, fruto do encontro de duas linguagens etnográficas distintas que implicam duas formas de temporalidades, podem ser igualmente observadas no modo como ele entende o papel social da etnografia.

V.

O que fica mais evidente ao leitor de O Selvagem é o caráter pragmático da obra, explicitado já na primeira frase do prefácio: "Eu não escrevi este livro, amigo leitor, por ambição de gloria litteraria, e sim com a de ser util, concorrendo com uma pedra para o edificio de grandeza de nossa patria".55 55 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.VII. É tendo em vista sua utilidade, e não seu valor científico, que ele roga ao leitor que julgue seu livro. É evidente o artifício retórico aí presente, com sua modéstia afetada. Ainda assim, esta vinculação direta entre a sua investigação etnográfica e a ação social apresenta-se como o elemento central para compreendermos sua escrita. O grande objetivo pragmático de seu livro era oferecer argumentos científicos que validassem o projeto de inclusão dos indígenas, inserindo-os como uma possível saída para a crise de mão-de-obra que se instalava no império desde a década de 1850.56 56 Essa relação entre a demanda de mão de obra e a política indigenista foi analisada por CUNHA, Manoela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.133-154. No entanto, como ressaltou recentemente Vânia Moreira, não "existem boas razões empíricas ou teóricas para se concordar em que o indigenismo imperial tenha ficado aprisionado a um horizonte utilitarista", no qual apenas "discutiram-se os "meios" sem se debater os "fins" da política indigenista". MOREIRA, Vânia. O ofício do histriador e os índios: sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, p.58, 2010. Para uma análise das diferentes posições que se fizeram presentes no indianismo literário, de Gonçalves Dias a José de Alencar, frente a essa política indigenista, conferir TREECE, David. Exilados, aliados e rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.

Em diferentes passagens, como a já citada acima, Couto de Magalhães ressalta as alternativas que se colocam ao homem civilizado diante dos selvagens: "O constante testemunho da historia demonstra que por toda parte, e em todos os tempos em que uma raça barbara se poz em contacto com uma raça civilisada, esta se vio forçada ou a extermina-la, ou a ensinar-lhe sua lingua".57 57 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.VII. Entre estas alternativas, ele não nutre dúvidas: é papel do homem civilizado trazer os selvagens aos cômodos da sociabilidade. Portanto, Couto de Magalhães herda e dá continuidade aos pólos do debate etnográfico do IHGB, organizado entre os defensores da catequese e os partidários da exclusão dos indígenas.58 58 Vale notar, contudo, que Couto de Magalhães não atribui a Varnhagen a posição de opositor à catequese. Dentro de sua atitude conciliatória, ele procura desenhar a posição dos letrados do IHGB como homogênea. "Se é certo que um membro do Instituto sustenta a barbara opinião, de que a raça selvagem do Brasil deve ser exterminada á ferro e fogo, opinião que nunca vi manifestada em nenhum dos escriptos d’aquelle eminente brasileiro, não é menos certo que tal opinião é singular; e que todos os esforços da associação hão sido dirigidos até o presente no sentido de estudal-a; é esse o primeiro passo para assimilá-la á nossa sociedade". MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.183-184. As justificativas para essa posição são duas: uma utilitária e outra moral. No que diz respeito aos ganhos práticos, ele destaca a conquista de "duas terças partes do nosso território", a aquisição de "mais de um milhão de braços aclimatados", o controle de "nossas comunicações interiores" e, por fim, a prevenção de "grande effusão de sangue humano, e talvez despezas colossaes".59 59 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XIII. Ele se dá o trabalho, inclusive, de calcular os prováveis custos com que o Estado deveria arcar caso optasse por uma política de extermínio. Quanto à justificativa moral, Couto de Magalhães associa o papel civilizador com a missão catequética: "Promover isto: seria tambem promover a realização daquelle sublime mandato que Christo confiou a todo povo cristão diante de um povo barbaro"; e cita, em seguida, as palavras do Evangelho: "Ide á aquelles que jazem sentados nas sombras e trevas da morte, e dirigi seus passos pela estrada da paz".60 60 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XLII.

O papel histórico que é confiado ao homem branco civilizado, portanto, filia-se a um papel teológico, o da conversão. Do mesmo modo que os demais letrados do IHGB, Couto de Magalhães associa o ato de civilizar com a missão catequética. Mas como realizá-las? Novamente, aqui, a referência bíblica faz-se presente: "Quando Deus quiz propagar o christianismo não se satisfez que os apostolos o pregassem no dialecto syro-chaldaico que fallavam: fez baixar sobre elles o Espirito-Santo, afim de que podessem fallar todas as linguas".61 61 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.119. Essa apropriação que Magalhães faz das Escrituras dirige-se ao âmago de sua proposta catequética. Seu programa para a civilização dos índios baseava-se em três pilares: a) as colônias militares espalhadas pelo território nacional, b) os intérpretes que promoveriam a comunicação entre selvagens e civilizados, e c) os missionários, que promoveriam a conversão dos indígenas (entendida no sentido mais amplo, de inclusão à civilização cristã, e não apenas à crença na palavra divina). Segundo ele, o Brasil já teria o primeiro e o terceiro elementos, faltando apenas organizar as condições para a formação do segundo. Era nos intérpretes que ele depositava toda sua esperança catequética.

Fica evidente, então, o quanto Couto de Magalhães compartilhava da tradição etnográfica do IGHB, adotando como premissa básica a conversão linguística, da escrita e pela escrita. E assim como os demais letrados do IHGB, ele encontrava no exemplo jesuíta um modelo a ser seguido de perto. Ao destacar a incrível eficácia dos missionários jesuítas, que "em menos de cincoenta annos, tinham amansado quasi todos os selvagens da costa do Brazil", ele aponta que seu "segredo unico foi assentar a sua catechese na base do interprete, base esquecida pelos catechistas modernos, que por isso tão pouco hão conseguido".62 62 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XXXVIII. Couto de Magalhães enfatizava, assim, que o único modo de converter o selvagem seria o aprendizado de sua língua para, através dela, transmitir os conceitos e valores da civilização cristã. É dentro desta perspectiva que a primeira parte de seu livro é produzida, oferecendo uma gramática bastante instrumental para que pudesse ser usada por qualquer um que entrasse em contato com os selvagens.

Como já foi ressaltado, uma diferença essencial entre o quadro evolucionista e a antropologia bíblica diz respeito à forma de ação social a que estão vinculadas. Faz parte da linguagem evolucionista, em suas diferentes vertentes, a ideia de reforma da sociedade. Conceber a sociedade como um processo evolutivo determinado por leis imanentes, em analogia com os fenômenos vitais, implica em legitimar certos agentes sociais, os cientistas, sociólogos e antropólogos, a agirem como médicos do social.63 63 BLANCKAERT, Claude. La nature de la societé, p.61. Segundo o autor, era intenção dos organicistas do século XIX por um fim à Revolução Francesa, demonstrando que a sociedade, assim como a natureza, não dá saltos. A analogia entre a sociedade e a natureza tinha por consequência a naturalização da política. Essa bio-política, de que nos fala Foucault, seria a expressão maior de um regime antropológico que tomava a vida, em seu aspecto autogestor, como paradigma de inteligibilidade do social.64 64 FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil, 2004. Caberia a esses reformadores da sociedade a manutenção de seu equilíbrio orgânico. Junto a essa visão organicista, a naturalização do tempo impunha à ação social certas limitações. Os primitivos não estariam mais sujeitos a uma ação filantrópica de cunho cristão. O distanciamento temporal que marcava sua condição implicava uma distância de ordem natural, e não mais arbitrária. O arbitrário é expulso desse regime discursivo. Não se poderia, com um simples voluntarismo, fazer os selvagens saltarem da idade da pedra à revolução industrial. Daí a ideia que se torna lugar comum no pensamento evolucionista, de que era tarefa da ciência arquivar, o mais rápido possível, todos os traços existentes dessas sociedades antes que elas fossem extintas do globo. A constituição de um grande arquivo da humanidade vinha acompanhada do pressuposto do desaparecimento inevitável de parte dessa mesma humanidade.

Em contraste com isso, a perspectiva da conversão caracteriza-se por um caráter eminentemente inclusivo, fundamentado num tempo da salvação. Os outros, aqui, eram vistos como candidatos à salvação. Esse modelo, que qualifica o cristianismo com uma religião de expansão e que garantia, teoricamente, seu triunfo antes mesmo de sua realização, esteve presente, por exemplo, na justificativa teológica da ocupação espanhola na América e sua tutela em relação aos povos indígenas.65 65 PAGDEN, Anthony. Dispossessing the barbarian: the language of Spanish Thomism and the debate over the property rights of the American Indians. In: PAGDEN, Anthony. (org) The languages of political theory in early-modern Europe. New York: Cambridge University Press, 1990, p.79-88. Vale dizer, assim, que se essa perspectiva é inclusiva, ela é também essencialmente hierárquica. Classificações como cristãos novos ou convertidos não indicam apenas uma pertença; são marcas que garantem uma distinção. Poderíamos entender esse esquema dentro daquilo que Louis Dumont denomina de incorporação hierárquica.66 66 DUMONT, Louis. Homo hierarchicus, Le système des castes et ses implications. Paris: Gallimard, 1966. Do mesmo autor: O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Ao contrário da perspectiva evolucionista, espelho de um liberalismo que concebe uma luta de todos contra todos (struggle for life), a antropologia bíblica é essencialmente holista, enquanto hierárquica: o cristão (civilizado) não apenas se opõe ao pagão (selvagem), mas também o engloba através de sua ética universal da conversão à civilização cristã.

O que caracteriza a escrita etnográfica de Couto de Magalhães, como já dissemos, é a sua ambigüidade, seu esforço em situar o selvagem entre dois tempos. O mesmo vale para a posição que ele assume quanto à incorporação das populações indígenas. Fiel à perspectiva evolucionista, ele afirma que o selvagem ainda se encontra na idade da pedra e suas necessidades coincidem com esse estágio de evolução. Devido à "inflexivel lei da selecção natural", o selvagem estaria mesmo condenado à extinção, cabendo ao estudioso a coleção das "curiosas paginas de uma litteratura que d’aqui a alguns annos terá desapparecido".67 67 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.146. Contudo, Magalhães dá um tom bastante peculiar a essa condição. Enquanto que no evolucionismo o distanciamento temporal é uma distinção de ordem natural, e não arbitrária, Couto de Magalhães, em diferentes passagens, sugere que esse distanciamento deveria ser entendido como um problema de educação, e portanto social: "Aqui no Brasil as raças mestiças não apresentam inferioridade alguma intellectual; talvez a proposição contraria seja a verdadeira, se levarmos em conta que os mestiços são pobres, não recebem educação, e encontram nos prejuizos sociaes uma barreira forte contra a qual tem de lidar antes de fazer-se a si uma posição".68 68 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.102. Ou, ainda:

Mas, dizem, o indio é preguiçoso, estupido, bebado, traiçoeiro e máu.

Coitados! elles não têm historiadores; os que lhes escrevem a historia ou são aquelles que, a pretexto de religião e civilisação, querem viver á custa de seu suor, reduzir suas mulheres e filhas á concubinas; ou são os que os encontram degradados por um systema de catechese, que, com mui raras excepções, é inspirada pelos moveis de ganancia ou da libertinagem hypocrita, e que dá em resultado uma espécie de escravidão que, fosse qual fosse a raça, havia forçosamente de produzir a preguiça, a ignorancia, a embriaguez, a devassidão e mais vicios que infelizente acompanham o homem quando se degrada.69 69 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.189.

A exemplo do que já afirmaram autores como Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias, o autor de O Selvagem acaba por culpar os maus tratos e a má previdência dos conquistadores pelo caráter estacionário das populações indígenas. Diante desta situação de imprudência legada pelo período colonial, Couto de Magalhães, fazendo eco aos apelos dos demais letrados do IHGB, reclama uma atitude mais cristã frente ao que restou dos selvagens brasileiros:

Em nossa situação de raça conquistadora, nós que tomamos o solo a esses infelizes, e que os vamos dia a dia apertando mais para os sertões, temos o dever, como christãos, de arrancal-os da barbarie sanguinolenta em que vivem, para trazel-os á communhão do trabalho e da sociedade em que vivemos.70 70 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.187.

A despeito das possíveis limitações que a condição de primitivo acarretaria, ele não deixa de nutrir a expectativa de incorporação das populações indígenas à civilização. Fiel, agora, aos preceitos catequéticos da conversão linguística que se fizeram hegemônicos no debate etnográfico do IHGB, ele sentencia: "Desde que o selvagem possue, com a intelligencia da lingua, a possibilidade de comprehender o que é civilização, elle a absorve tão necessariamente como uma esponja absorve o liquido que se lhe põe em contacto".71 71 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.XXXII. Ou, como gostava de afirmar: "Domesticar os selvagens ou fazer com que elles nos entendam, o que é a mesma cousa".72 72 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O Selvagem, p.VIII.

Artigo recebido em: 08/08/2011

Aprovado em: 12/12/2011

  • 1 A concepção de discurso aqui adotada vincula-se à definição estabelecida por Foucault, a qual envolve tanto princípios de organização externos, formados por instituições e práticas, como princípios internos de coerência e de restrição dos sujeitos enunciantes. Estudar o discurso etnográfico, portanto, envolve tanto a análise dos "processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos discursos" que configuravam uma forma de saber sobre a alteridade, assim como a reconstrução de sua formação dispersa e descontínua. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2011.
  • Para uma definição de discurso etnográfico e sua relação com o discurso histórico, conferir DUCHET, Michèle. Les Partages des Savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: La Découvert, 1984.
  • Sobre a formação dos discursos histórico e etnográfico no Brasil oitocentista, conferir GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, p.5-27, 1998;
  • TURIN, Rodrigo. A ‘obscura história’ indígena: o discurso etnográfico no IHGB (1840-1870). In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.). Estudos sobre a escrita da história Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.86-113; KODAMA, Kaori. Os filhos da brenhas e o Império do Brasil: a etnografia do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005. (História, Tese de doutorado).
  • 2 MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987.
  • 4 Essa orientação que guiou a formação do discurso etnográfico no IHGB pode ser visualizada através dos preceitos definidos por seus dirigentes e sócios mais atuantes. Januário da Cunha Barboza, por exemplo, Secretário Geral do instituto, em sessão realizada em 4 de fevereiro de 1839, leu para os sócios presentes seis questões que deveriam orientar as discussões da casa. Dessas seis questões, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito às populações indígenas e as duas outras versavam sobre o processo de colonização portuguesa. Os problemas levantados em relação aos primitivos habitantes do Brasil detinham-se nos seguintes pontos: as causas de sua «espantosa extinção»; o que se deveria concluir sobre sua história, ao momento da descoberta do Brasil; se essa população era formada somente por grupos nômades, «e no primeiro grau da associação», ou se era descendente de alguma «das grandes nações do resto da América», guardando traços dessas civilizações; qual seria o melhor método para se colonizar os índios (se conviria seguir o sistema dos Jesuítas); e, por fim, se a introdução dos africanos teria prejudicado a civilização dos índios do Brasil. BARBOSA, Januário da Cunha. RIHGB, Rio de Janeiro, t.I, p.61, 1839.
  • 5 CERTEAU, Michel de. Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.211-242, 2002;
  • GOODY, Jack. La raison graphique: la doméstication de la pensée sauvage. Paris: Minuit, 1979.
  • 6 Para John Monteiro essa polarização manifestava-se, antes, como uma oposição entre tapuias, considerados bárbaros e agressivos, e os tupis, compreendidos como os indígenas "mansos"; os tupis seriam "históricos", porque em boa parte já exterminados, e os tapuias contemporâneos. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas, Unicamp, 2001, p.10 (Histó
  • 8 KOSELLECK, Reinhart. A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p.191-231.
  • 10 FABIAN, Johannes. Time and the Other: how anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 2002.
  • 12 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. L’Origine Touranienne des Américains Tupis-Caribes et des Anciens Egyptiens. Indiquée principalement par la philologie comparée: traces d’une ancienne migration em Amérique, invasion du Brésil par les Tupis, etc. Vienne: Librairie I. et R. de Faesy & Frick, 1876. Sobre a etnografia de Varnhagen, cf. OLIVEIRA, Laura Nogueira. Os índios bravos e o Sr. Visconde: os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolpho de Varnhagen. Belo Horizonte, UFMG, 2000.
  • (História, Dissertação de mestrado); e PUNTONI, Pedro. O senhor Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István. (org.) Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p.633-675;
  • CEZAR, Temistocles. A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.) Estudos sobre a escrita da história Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.29-41.
  • 13 John Monteiro ressaltou, em sua tese de livre docência, como Couto de Magalhães mantinha "um pé na ciência da época e outro no idealismo pró-índio". MONTEIRO, John. Entre o Gabinete e o Sertão, p.152. Maria Helena Machado, igualmente, salientou que o autor partia "de uma abordagem evolucionista e monogenista-católica e acompanhando a voga do nativismo indianista dos românticos". MACHADO, Maria Helena. Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da história nacionalista do século XIX. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.14, n.25, p.63-80, 2000.
  • 14 ROMERO, Sílvio. Etnografia brasileira: estudos críticos sobre Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Teófilo Braga e Ladislao Netto. Rio de Janeiro: Alves, 1888.
  • 16 Para os dados biográficos, cf. MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Diário íntimo. Organização de Maria Helena P. T. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 17 RINGER, Fritz. A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São Paulo: Edusp, 2004, p.71-96.
  • 19 MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Advertencia. In: O Selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876.
  • 22 Como destaca Manoel Salgado Guimarães, referindo-se ao trabalho arqueológico do dinamarquês Ramus Nyerup, do início do século XIX, esta perspectiva de uma expansão da cronologia clássica estava longe de ser aceita sem contestações. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Para reescrever o passado como história: o IHGB e a Socidade dos Antiquários do Norte. In: HEIZER, Alda e VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. (org.) Ciência, civilização e Império nos Trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.11.
  • Para uma visão mais geral desse processo, cf. ROSSI, Paolo. Os sinais do tempo. São Paulo: Companha das Letras, 1992;
  • 26 WOKLER, Robert. Anthropology and conjectural history in the Enleightenment. In: FOX, Christopher; PORTER, Roy e WOKLER, Robert. (org.) Inventing human science: Eighteenth-Century domains. Berkeley: University of California Press, 1995.
  • 29 DEGÉRANDO, Joseph-Marie. Introduction aux mémoires. In: COPANS, Jean e JAMIN, Jean. Aux origines de l’anthropologie française: les mémoires de la Societé des observateurs de l’homme en l’an VIII. Paris: Jean Michel Place, 1994, p.58. Cf. HARTOG, François. Du parallèle à la comparaison. In: Anciens, modernes, sauvages. Paris: Galaade, 2005, p.197-220.
  • 31 Como destaca John Zammito, com a obra de Locke e sua vasta difusão entre os círculos letrados do século XVIII, uma visão "sensualista" do desenvolvimento cognitivo humano foi estendida ao seu desenvolvimento histórico. "By framing the question of human consciousness as the ‘history of human understanding’, Locke initiated a general temporalization of human faculties". "There was, decisively, a convergence from both conceptual poles, nature and (human) history, toward a synthetic middle ground. Nature came increasingly to be conceived as temporalized (e.g. Buffon), while human history presumed a measure of ‘universality’ if only to encompass the profound ‘otherness’ that this variety presented to the observer". ZAMMITO, John. Kant, Herder, and the birth of Anthropology. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p.225-229.
  • 32 STOCKING, George. Race, culture and evolution. Chicago: Chicago University Press, 1984, p.26.
  • 34 Essa singularização, necessário ressaltar, se dava essencialmente no plano psíquico, pois era tendo como a priori a unidade psíquica do homem que se poderia reconstruir, dentro dessa tradição de evolucionismo social da qual Couto de Magalhães parece mais se aproximar, as etapas de desenvolvimento. Havia, é claro, a ideia de que, devido a certos fatores, certos povos ficariam retidos em estágios de desenvolvimento; o que não implicava que, na origem, eles não tivessem compartilhado uma mesma origem e as mesmas capacidades psicológicas. Como afirma Stocking: "In the beginning, black savages and white savages had been psychologically one. But while white savages were busily acquiring superior brains in the course of cultural progress, dark-skinned savages had remained back near the beginning. Although united in origin with the rest of mankind, their assumed inferiority of culture and capacity now reduced them to the status of missing links in the evolutionary chain". STOCKING, George W. Victorian anthropology. New York: Free Press, 1987, p.185.
  • 41 BLANCKAERT, Claude. Buffon and the natural history of man. History of the Human Sciences, v.6, n.1, p. 13-50, 1993.
  • 42 Pode-se, por exemplo, comparar quando e como essas ideias foram desenvolvidas na Inglaterra, na França e na Alemanha. Para uma análise desses três casos, conferir, respectivamente: STOCKING, George. Victorian anthropology; BLANCKAERT, Claude. On the origins of the french ethnology. In: STOCKING, George. (ed.) Bones, bodies and behavior: essays on biological anthropology. Madison: University of Wisconsin Press, 1988;
  • ZAMMITO, John Kant, Herder and the Birth of anthropology. Para estudos sobre as diferentes recepções do evolucionismo no Brasil, conferir DOMINGUES, Heloisa M. Bertol, SÁ, Magali Romero e GLICK, Thomas. (org.) A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003;
  • assim como TURIN, Rodrigo. "Tipos", "primitivos" e "decadentes": escrita etnográfica, secularização e tempo histórico no Museu Nacional. In: NEVES, Maria Lucia Pereira das et al. (org.) Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2011.
  • 46 Segundo Nina Rodrigues, "nós temos atualmente uns dois mil anos de avanço sobre o negro e não é uma lacuna que se possa vencer de um salto". RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil. Brasília: UNB, 2004, p.300; juízo semelhante emitiria CUNHA, Euclides da. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. In: Os Sertões. Edição Crítica organizada por Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.248. Para uma análise de emergência dessa nova geração e sua experiência de marginalização política, cf. ALONSO, ngela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • 52 Para uma análise da relação do evolucionismo com a religião, conferir STOCKING, George. Victorian anthropology, p.188-197; e KUPER, Adam. The invention of primitive society: transformations of myth. New York: Routledge, 1997, p.76-91.
  • 56 Essa relação entre a demanda de mão de obra e a política indigenista foi analisada por CUNHA, Manoela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In: História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.133-154.
  • No entanto, como ressaltou recentemente Vânia Moreira, não "existem boas razões empíricas ou teóricas para se concordar em que o indigenismo imperial tenha ficado aprisionado a um horizonte utilitarista", no qual apenas "discutiram-se os "meios" sem se debater os "fins" da política indigenista". MOREIRA, Vânia. O ofício do histriador e os índios: sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, p.58, 2010.
  • Para uma análise das diferentes posições que se fizeram presentes no indianismo literário, de Gonçalves Dias a José de Alencar, frente a essa política indigenista, conferir TREECE, David. Exilados, aliados e rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.
  • 64 FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil, 2004.
  • 65 PAGDEN, Anthony. Dispossessing the barbarian: the language of Spanish Thomism and the debate over the property rights of the American Indians. In: PAGDEN, Anthony. (org) The languages of political theory in early-modern Europe. New York: Cambridge University Press, 1990, p.79-88.
  • 66 DUMONT, Louis. Homo hierarchicus, Le système des castes et ses implications. Paris: Gallimard, 1966.
  • 1
    A concepção de discurso aqui adotada vincula-se à definição estabelecida por Foucault, a qual envolve tanto princípios de organização externos, formados por instituições e práticas, como princípios internos de coerência e de restrição dos sujeitos enunciantes. Estudar o discurso etnográfico, portanto, envolve tanto a análise dos "processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos discursos" que configuravam uma forma de saber sobre a alteridade, assim como a reconstrução de sua formação dispersa e descontínua. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2011. Para uma definição de discurso etnográfico e sua relação com o discurso histórico, conferir DUCHET, Michèle. Les Partages des Savoirs: discours historique, discours ethnologique. Paris: La Découvert, 1984. Sobre a formação dos discursos histórico e etnográfico no Brasil oitocentista, conferir GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, p.5-27, 1998; TURIN, Rodrigo. A ‘obscura história’ indígena: o discurso etnográfico no IHGB (1840-1870). In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.).
    Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.86-113; KODAMA, Kaori.
    Os filhos da brenhas e o Império do Brasil: a etnografia do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005. (História, Tese de doutorado).
  • 2
    MATTOS, Ilmar.
    O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987.
  • 3
    HARTOG, François. Régimes d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.
  • 4
    Essa orientação que guiou a formação do discurso etnográfico no IHGB pode ser visualizada através dos preceitos definidos por seus dirigentes e sócios mais atuantes. Januário da Cunha Barboza, por exemplo, Secretário Geral do instituto, em sessão realizada em 4 de fevereiro de 1839, leu para os sócios presentes seis questões que deveriam orientar as discussões da casa. Dessas seis questões, todas devidamente aprovadas, quatro diziam respeito às populações indígenas e as duas outras versavam sobre o processo de colonização portuguesa. Os problemas levantados em relação aos primitivos habitantes do Brasil detinham-se nos seguintes pontos: as causas de sua «espantosa extinção»; o que se deveria concluir sobre sua história, ao momento da descoberta do Brasil; se essa população era formada somente por grupos nômades, «e no primeiro grau da associação», ou se era descendente de alguma «das grandes nações do resto da América», guardando traços dessas civilizações; qual seria o melhor método para se colonizar os índios (se conviria seguir o sistema dos Jesuítas); e, por fim, se a introdução dos africanos teria prejudicado a civilização dos índios do Brasil. BARBOSA, Januário da Cunha. RIHGB, Rio de Janeiro, t.I, p.61, 1839.
  • 5
    CERTEAU, Michel de. Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.211-242, 2002; GOODY, Jack.
    La raison graphique: la doméstication de la pensée sauvage. Paris: Minuit, 1979.
  • 6
    Para John Monteiro essa polarização manifestava-se, antes, como uma oposição entre tapuias, considerados bárbaros e agressivos, e os tupis, compreendidos como os indígenas "mansos"; os tupis seriam "históricos", porque em boa parte já exterminados, e os tapuias contemporâneos. MONTEIRO, John Manuel.
    Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Campinas, Unicamp, 2001, p.10 (Histó ria, Tese de livre docência); Ver também KODAMA, Kaori.
    Os filhos da brenhas e o Império do Brasil, p.114.
  • 7
    TURIN, Rodrigo. Entre ‘antigos’ e ‘selvagens’: notas sobre os usos da comparação no IHGB. Revista de História, São Paulo, edição especial, p.131-146, 2010.
  • 8
    KOSELLECK, Reinhart. A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos. In:
    Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p.191-231. Ver do mesmo autor ‘Progress’ and ‘Decline’. An apendix to the history of two concepts. In:
    The practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. Stanford: Stanford University Press, p.218-235, 2002.
  • 9
    MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Memórias da Balaiada.
    Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.23, p.7-66, março 1989. Gonçalves de Magalhães recorre a essa experiência no Maranhão em seu estudo etnográfico apresentado ao IHGB, onde afirma ter visto selvagens, "apenas sahidos dos nossos matos, vestidos um dia à nossa maneira, afazerem-se de repente aos nossos costumes"; MAGALHÃES, D. J. Gonçalves de. Os indígenas do Brasil perante a História.
    RIHGB, São Paulo, t.XXIII, p.65, 1860.
  • 10
    FABIAN, Johannes. Time and the Other: how anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 2002.
  • 11
    CEZAR, Temístocles. Anciens, modernes, sauvages, et l’écriture de l’histoire au Brèsil au XIX siècle: le cas de l’origine des Tupis.
    Anabases, n.8, p.43-65, 2008.
  • 12
    VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. L’Origine Touranienne des Américains Tupis-Caribes et des Anciens Egyptiens. Indiquée principalement par la philologie comparée: traces d’une ancienne migration em Amérique, invasion du Brésil par les Tupis, etc. Vienne: Librairie I. et R. de Faesy & Frick, 1876. Sobre a etnografia de Varnhagen, cf. OLIVEIRA, Laura Nogueira.
    Os índios bravos e o Sr. Visconde: os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolpho de Varnhagen. Belo Horizonte, UFMG, 2000. (História, Dissertação de mestrado); e PUNTONI, Pedro. O senhor Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István. (org.) Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003, p.633-675; CEZAR, Temistocles. A retórica da nacionalidade de Varnhagen e o mundo antigo: o caso da origem dos tupis. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. (org.)
    Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.29-41.
  • 13
    John Monteiro ressaltou, em sua tese de livre docência, como Couto de Magalhães mantinha "um pé na ciência da época e outro no idealismo pró-índio". MONTEIRO, John. Entre o Gabinete e o Sertão, p.152. Maria Helena Machado, igualmente, salientou que o autor partia "de uma abordagem evolucionista e monogenista-católica e acompanhando a voga do nativismo indianista dos românticos". MACHADO, Maria Helena. Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da história nacionalista do século XIX.
    Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.14, n.25, p.63-80, 2000.
  • 14
    ROMERO, Sílvio.
    Etnografia brasileira: estudos críticos sobre Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Teófilo Braga e Ladislao Netto. Rio de Janeiro: Alves, 1888.
  • 15
    Importante ressaltar que não estou afirmando que essas duas linguagens etnográficas traduzem uma oposição entre "antigo" e "moderno". O esquema conceitual presente no debate etnográfico do IHGB, entre as décadas de 1840 e 1870, é igualmente "moderno", na medida em que promoveu a historicização daqueles pares opostos conceituais de tradição bíblica. Mais do que classificar e reduzir essas duas linguagens etnográficas à antinomia "antigo" e "moderno", busco compreender como se fazem presentes nestes textos etnográficos diferentes "texturas do tempo". RAO, Velcheru Narayana; SHULMAN, David e SUBRAHMANYAM, Sanjay.
    Textures du temps: écrire l’histoire en Inde. Paris: Seuil, 2004.
  • 16
    Para os dados biográficos, cf. MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    Diário íntimo. Organização de Maria Helena P. T. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 17
    RINGER, Fritz.
    A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São Paulo: Edusp, 2004, p.71-96.
  • 18
    DIAS, Gonçalves. O Brasil e a Oceania. RIHGB, t. XXX, 1867.
  • 19
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Advertencia. In:
    O Selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876.
  • 20
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.1.
  • 21
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.39.
  • 22
    Como destaca Manoel Salgado Guimarães, referindo-se ao trabalho arqueológico do dinamarquês Ramus Nyerup, do início do século XIX, esta perspectiva de uma expansão da cronologia clássica estava longe de ser aceita sem contestações. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Para reescrever o passado como história: o IHGB e a Socidade dos Antiquários do Norte. In: HEIZER, Alda e VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. (org.)
    Ciência, civilização e Império nos Trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2000, p.11. Para uma visão mais geral desse processo, cf. ROSSI, Paolo.
    Os sinais do tempo. São Paulo: Companha das Letras, 1992; e SCHNNAP, Alain.
    La conquête du passé: aux origines de l’archéologie. Paris: Éditions Carré, 1993.
  • 23
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.24.
  • 24
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.9.
  • 25
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.29.
  • 26
    WOKLER, Robert. Anthropology and conjectural history in the Enleightenment. In: FOX, Christopher; PORTER, Roy e WOKLER, Robert. (org.)
    Inventing human science: Eighteenth-Century domains. Berkeley: University of California Press, 1995.
  • 27
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.23.
  • 28
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.26.
  • 29
    DEGÉRANDO, Joseph-Marie. Introduction aux mémoires. In: COPANS, Jean e JAMIN, Jean.
    Aux origines de l’anthropologie française: les mémoires de la Societé des observateurs de l’homme en l’an VIII. Paris: Jean Michel Place, 1994, p.58. Cf. HARTOG, François. Du parallèle à la comparaison. In:
    Anciens, modernes, sauvages. Paris: Galaade, 2005, p.197-220.
  • 30
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.152.
  • 31
    Como destaca John Zammito, com a obra de Locke e sua vasta difusão entre os círculos letrados do século XVIII, uma visão "sensualista" do desenvolvimento cognitivo humano foi estendida ao seu desenvolvimento histórico. "By framing the question of human consciousness as the ‘history of human understanding’, Locke initiated a general temporalization of human faculties". "There was, decisively, a convergence from both conceptual poles,
    nature and (human)
    history, toward a synthetic middle ground. Nature came increasingly to be conceived as temporalized (e.g. Buffon), while human history presumed a measure of ‘universality’ if only to encompass the profound ‘otherness’ that this variety presented to the observer". ZAMMITO, John.
    Kant, Herder, and the birth of Anthropology. Chicago: University of Chicago Press, 2002, p.225-229.
  • 32
    STOCKING, George.
    Race, culture and evolution. Chicago: Chicago University Press, 1984, p.26.
  • 33
    MAGALHÃES, José Viera Couto de.
    O Selvagem, p.153.
  • 34
    Essa singularização, necessário ressaltar, se dava essencialmente no plano psíquico, pois era tendo como
    a priori a unidade psíquica do homem que se poderia reconstruir, dentro dessa tradição de evolucionismo social da qual Couto de Magalhães parece mais se aproximar, as etapas de desenvolvimento. Havia, é claro, a ideia de que, devido a certos fatores, certos povos ficariam retidos em estágios de desenvolvimento; o que não implicava que, na origem, eles não tivessem compartilhado uma mesma origem e as mesmas capacidades psicológicas. Como afirma Stocking: "In the beginning, black savages and white savages had been psychologically one. But while white savages were busily acquiring superior brains in the course of cultural progress, dark-skinned savages had remained back near the beginning. Although united in origin with the rest of mankind, their assumed inferiority of culture and capacity now reduced them to the status of missing links in the evolutionary chain". STOCKING, George W.
    Victorian anthropology. New York: Free Press, 1987, p.185.
  • 35
    FABIAN, Johannes.
    Time and the other, p.33.
  • 36
    KOSELLECK, Reinhart. Modernidade: sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade. In:
    Futuro passado, p.267-303.
  • 37
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.181.
  • 38
    Como ressaltou Kodama: "Diferentemente do princípio evolucionista, a discussão dos letrados no Império do Brasil tomavam outra vertente, seguida por Martius, que como vimos, preferia afirmar a decadência dos povos indígenas. Como os trabalhos de etnografia de Martius indicavam, assim como uma escrita da História do Brasil parecia exigir, a interpretação que os estudos etnográficos realizados dentro do Instituto insistiam no tema da decadência das nações indígenas. Assim como a pergunta do imperador indicava, a questão a ser investigada pela etnografia dosíndios do Brasil já estava traçada, antes mesmo de começar a ser feita". KODAMA, Kaori.
    Os filhos da brenhas e o Império do Brasil, p.148. Essa tese da decadência, como preocupação central ao debate etnográfico no IHGB, também foi destacada por MONTEIRO, John Manuel.
    Tupis, Tapuias e historiadores. Para uma discussão sobre a tese decadentista e os debates sobre a historicidade indígena, cf. TURIN, Rodrigo. A ‘obscura história’ indígena.
  • 39
    FABIAN, Johannes.
    Time and the other, p.77. Para uma análise das categorias antigo e moderno como categorias temporais, conferir HARTOG, François.
    Anciens, modernes, sauvages.
  • 40
    STOCKING, George.
    Victorian anthropology, p.110-144. Para esta questão, conferir também BLANCKAERT, Claude.
    La nature de la societé: organicisme et sciences sociales au XIX siècle. Paris: L’Harmattan, 2005, p.44.
  • 41
    BLANCKAERT, Claude. Buffon and the natural history of man.
    History of the Human Sciences, v.6, n.1, p. 13-50, 1993.
  • 42
    Pode-se, por exemplo, comparar quando e como essas ideias foram desenvolvidas na Inglaterra, na França e na Alemanha. Para uma análise desses três casos, conferir, respectivamente: STOCKING, George.
    Victorian anthropology; BLANCKAERT, Claude. On the origins of the french ethnology. In: STOCKING, George. (ed.)
    Bones, bodies and behavior: essays on biological anthropology. Madison: University of Wisconsin Press, 1988; ZAMMITO, John
    Kant, Herder and the Birth of anthropology. Para estudos sobre as diferentes recepções do evolucionismo no Brasil, conferir DOMINGUES, Heloisa M. Bertol, SÁ, Magali Romero e GLICK, Thomas. (org.)
    A recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003; assim como TURIN, Rodrigo. "Tipos", "primitivos" e "decadentes": escrita etnográfica, secularização e tempo histórico no Museu Nacional. In: NEVES, Maria Lucia Pereira das et al. (org.) Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2011.
  • 43
    STOCKING, George.
    Victorian anthropology, p.149.
  • 44
    Isso pode ficar claro se confrontarmos as atitudes comparativas de Lafitau e a de Tylor. Enquanto o primeiro buscava comparar os costumes dos selvagens para encontrar ali uma religião originária e, assim, provar sua pertença a uma origem e a uma natureza humana comum, fruto da criação e da revelação, Tylor, por sua vez, tomava como a priori a unidade psíquica do homem para então construir seus "comparáveis". Para Lafitau, a unidade do humano seria uma conclusão a ser buscada, enquanto para Tylor uma condição para a reconstrução antropológica.
  • 45
    FABIAN, Johannes.
    Time and the other, p.26.
  • 46
    Segundo Nina Rodrigues, "nós temos atualmente uns dois mil anos de avanço sobre o negro e não é uma lacuna que se possa vencer de um salto". RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil. Brasília: UNB, 2004, p.300; juízo semelhante emitiria CUNHA, Euclides da. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. In: Os Sertões. Edição Crítica organizada por Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.248. Para uma análise de emergência dessa nova geração e sua experiência de marginalização política, cf. ALONSO, ngela.
    Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • 47
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.98.
  • 48
    BLANCKAERT, Claude.
    La nature de la societé.
  • 49
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.131.
  • 50
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XVIII.
  • 51
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XXXII.
  • 52
    Para uma análise da relação do evolucionismo com a religião, conferir STOCKING, George.
    Victorian anthropology, p.188-197; e KUPER, Adam.
    The invention of primitive society: transformations of myth. New York: Routledge, 1997, p.76-91.
  • 53
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.125.
  • 54
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XXXVI.
  • 55
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.VII.
  • 56
    Essa relação entre a demanda de mão de obra e a política indigenista foi analisada por CUNHA, Manoela Carneiro da. Política indigenista no século XIX. In:
    História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.133-154. No entanto, como ressaltou recentemente Vânia Moreira, não "existem boas razões empíricas ou teóricas para se concordar em que o indigenismo imperial tenha ficado aprisionado a um horizonte utilitarista", no qual apenas "discutiram-se os "meios" sem se debater os "fins" da política indigenista". MOREIRA, Vânia. O ofício do histriador e os índios: sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, p.58, 2010. Para uma análise das diferentes posições que se fizeram presentes no indianismo literário, de Gonçalves Dias a José de Alencar, frente a essa política indigenista, conferir TREECE, David. Exilados, aliados e rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.
  • 57
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.VII.
  • 58
    Vale notar, contudo, que Couto de Magalhães não atribui a Varnhagen a posição de opositor à catequese. Dentro de sua atitude conciliatória, ele procura desenhar a posição dos letrados do IHGB como homogênea. "Se é certo que um membro do Instituto sustenta a barbara opinião, de que a raça selvagem do Brasil deve ser exterminada á ferro e fogo, opinião que nunca vi manifestada em nenhum dos escriptos d’aquelle eminente brasileiro, não é menos certo que tal opinião é singular; e que todos os esforços da associação hão sido dirigidos até o presente no sentido de estudal-a; é esse o primeiro passo para assimilá-la á nossa sociedade". MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.183-184.
  • 59
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XIII.
  • 60
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XLII.
  • 61
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.119.
  • 62
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XXXVIII.
  • 63
    BLANCKAERT, Claude.
    La nature de la societé, p.61. Segundo o autor, era intenção dos organicistas do século XIX por um fim à Revolução Francesa, demonstrando que a sociedade, assim como a natureza, não dá saltos.
  • 64
    FOUCAULT, Michel.
    Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil, 2004.
  • 65
    PAGDEN, Anthony. Dispossessing the barbarian: the language of Spanish Thomism and the debate over the property rights of the American Indians. In: PAGDEN, Anthony. (org)
    The languages of political theory in early-modern Europe. New York: Cambridge University Press, 1990, p.79-88.
  • 66
    DUMONT, Louis.
    Homo hierarchicus, Le système des castes et ses implications. Paris: Gallimard, 1966. Do mesmo autor: O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • 67
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.146.
  • 68
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.102.
  • 69
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.189.
  • 70
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.187.
  • 71
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.XXXII.
  • 72
    MAGALHÃES, José Vieira Couto de.
    O Selvagem, p.VIII.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
    Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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