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O casamento espiritual da beata Josefa do Sacramento: Análise de um processo inquisitorial do século XVIII

The Spiritual Marriage of Blessed Josefa do Sacramento: Analysis of an Eighteenth Century Inquisitorial Process

Resumos

O artigo pretende analisar o processo inquisitorial da beata Josefa do Sacramento, irmã da Ordem Terceira do Carmo, sentenciada pelo Tribunal da Inquisição do Santo Ofício de Lisboa em 1732, sob a acusação de molinismo. Pretende-se: contextualizar o processo mencionado no campo religioso do período; analisar as relações que as irmãs terceiras beatas mantinham com seus confessores e diretores espirituais; analisar os delitos de heresia de que eram acusadas; e analisar o conjunto das práticas religiosas das beatas envolvidas, vinculando-as a modelos de santidade e à literatura mística difundida aos fiéis.

Gênero; Beatas; Ordem Terceira Do Carmo; Molinismo


this article intends to analyse the inquisitorial process of Blessed Josefa do Sacramento, sister of The Third Order of Carmel, judged by the Holy Office of Inquisition of Lisbon in 1732, on charges of molinism. The aim is to contextualize the mentioned process in the religious field of the period as well as to analyse the relationships that blessed third sisters kept with confessors and spiritual directors and the heretical crimes which they were accused of and, finally, to analyse the set of religious practices of the blessed woman involved, linking them to the models of sanctity and the mystical literature widespread to believers.

Gender; Blessed Women; The Third Order Of Carmel; Molinism


Introdução

Em 6 de julho de 1732, entre dezenas de sentenciados pelo Tribunal do Santo Ofício, foram levados ao auto-de-fé realizado na igreja de São Domingos, em Lisboa, três réus acusados de molinismo: o frade carmelita João de Santa Teresa e duas beatas da Ordem Terceira do Carmo, dirigidas espiritualmente pelo mesmo, denominadas Josefa do Sacramento e Teresa Maria de São José (Tavares, 2002TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos, 2 vols. Reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002., t. 1, p.361-362). Em trabalhos dedicados a analisar o impacto das acusações de molinismo na sociedade portuguesa do final do século XVII e do princípio do século seguinte, os documentos inquisitoriais relativos aos três indivíduos citados já foram alvo de atenção, ainda que os historiadores que os analisaram não tenham efetuado uma análise exaustiva de cada fonte, tratando-as ao lado de muitos outros processos (Tavares, 2002TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos, 2 vols. Reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002., t. 1, p.361-365; Bellini, 2006BELLINI, Lígia. Cultura religiosa e heresia em Portugal em Portugal do Antigo Regime: notas para uma interpretação do molinosismo. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXII (2), p.187-203, 2006., p.187-203; 2001, p.13-26). O presente artigo, de modo inverso, baseando-se na metodologia da microanálise aplicada às fontes inquisitoriais (Ribeiro, 2006RIBEIRO, Antonio. O “parto místico”: uma abordagem indiciária.Lusitania Sacra, vol. 2, n. 18, p.451-472, 2006., p.451-472; Ginzburg, 1991aGINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991a., p.9-89; 1991bGINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In: GINZBURG, Carlo. A micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991b. p.203-214., p.143-179; 1991cGINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1991c. p.143-179., p.203-214), procurará, a partir do estudo do processo da beata Josefa do Sacramento, analisar três questões que não foram objeto de particular exame: o círculo de relações formado em torno das beatas e dos respectivos diretores espirituais; os usos do corpo e as relações de gênero estabelecidos pelas beatas e pelos respectivos diretores de consciência; a apropriação muito particular da literatura mística por parte dos referidos agentes, em particularo topos do “casamento místico”. Antes de passar aos aspectos centrais, é importante situar o processo da beata Josefa do Sacramento no contexto das acusações contra as supostas heresias difundidas por Miguel deMolinos, entre as últimas décadas do século XVII e as primeiras do século XVIII.

O teólogo aragonês Molinos (1628-1696) publicou em 1675 um tratado de espiritualidade que alcançou relativo prestígio em Roma, o Guia espiritual. Naquele contexto, a receptividade das ideias de Molinos pode ser explicada, segundo Pedro Tavares, pelo desgaste de um modelo de vida cristã cristalizado na Reforma Católica. De acordo com o referido modelo, o poder libertador da graça divina ficava suplantado pela contabilidade das obras de salvação, conforme a síntese do autor:

Face à indolência da tradição, a um casuísmo frequentemente sem altura, a um áspero ascetismo, tantas vezes insuficientemente endereçado, a uma repetição mecânica das fórmulas tradicionais, há todo um cansaço e insatisfação espiritual, ao encontro da qual vão os novos mestres (...) iam esses mestres ao encontro das necessidades de tantos fiéis que não se reencontravam nos esquemas de boa parte da piedade contra-reformística, e que procuravam propostas religiosas construídas mais na verticalidade do encontro com o divino do que na dimensão de uma ascese repetitiva e mortificante (Tavares, 1995TAVARES, Pedro Vilas Boas. Molinismo e desculpabilização.Via Spiritus, n. 2, p.203-240, 1995., p.213).

Segundo a historiografia, a obra de Molinos não continha erros doutrinais, e estava em conformidade com as diretrizes da mística espanhola do século XVI, baseada na metodização da vida espiritual e das práticas de oração; na ênfase da união contemplativa da alma com o criador, a partir da qual o devoto atingia um estado de quietude interior; no acento dado ao recolhimento em relação ao qual os exercícios ascéticos, a oração vocal e as observâncias exteriores seriam uma etapa preparatória; na valorização da graça inescrutável de Deus em comparação ao cumprimento escrupuloso de rituais e das boas obras por parte dos devotos, etc. (Dias, 1960DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes do sentimento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII), t. 2. Coimbra: Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, 1960., t. 1, p.290-291; Pacho, 2003PACHO, Eulogio, O.C.D. Molinismo. In: BORRIELLO, Luigi; CARUANA, Edmundo; DEL GENIO, Maria Rosaria; SUFFI, N. (Org.). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Loyola, 2003. p.757-759., p.757-759; p.903-905; Tavares, 1994TAVARES, Pedro Vilas Boas. Portugal e a condenação de Miguel de Molinos: impacto e primeiras reações. Via Spiritus, n. 1, p.157-183, 1994., p.157-183). Apesar disso, em 28 de agosto de 1687, Molinos e sua doutrina foram condenados pela Santa Sé, que sintetizou os supostos erros doutrinais em um conjunto de 68 proposições heréticas (Menendez Pelayo, 1967MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. Historia de los heterodoxos españoles, t. 2. Madrid: La Editorial Catolica, 1967., t. 2, p.177-192).

Acompanhando mais uma vez as análises de Tavares, teria ocorrido um deslocamento entre as ideias endossadas por Molinos em seus escritos e o molinismo ou molinosismo definidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Segundo o juízo da Inquisição, a doutrina de Molinos propunha que, “uma vez chegada a alma a uma perfeita contemplação passiva e a uma santa indiferença, possa o corpo estar sujeito a movimentos sensuais, fora da responsabilidade moral pessoal, ou a atos carnais cometidos por violência diabólica” (Tavares, 1995TAVARES, Pedro Vilas Boas. Molinismo e desculpabilização.Via Spiritus, n. 2, p.203-240, 1995., p.218). Assim, Josefa do Sacramento e outros réus sentenciados pelo Santo Ofício foram classificados como “molinistas não porque tenham sido marcados por leituras ou influências conectáveis diretamente com Molinos, mas porque, nas suas desordens morais, apelaram para argumentos desculpabilizantes”, que podiam ser tipificados como erros atribuídos ao teólogo aragonês (Tavares, 1995TAVARES, Pedro Vilas Boas. Molinismo e desculpabilização.Via Spiritus, n. 2, p.203-240, 1995., p.220-221).

O matrimônio espiritual-corporal realizado entre a beata e o frade

Sob o referido pano de fundo, é possível iniciar a análise do processo de Josefa do Sacramento. Em 1º de agosto de 1731, o frade carmelita calçado fr. João de Santa Teresa, vigário provincial da província do Carmo da Corte, apresentou-se ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Com sessenta anos de idade, era natural da Vila da Amieira, no Priorado do Crato, residindo no Convento da Corte. Segundo um estudioso da Ordem do Carmo em Portugal, fr. João de Santa Teresa havia feito a profissão na Ordem carmelita em 15 de agosto de 1710. Tinha publicado duas obras: aDevoção ao Santíssimo Nome de Jesus (Lisboa, 1716) e aDevoção ao Patriarcha S. José (Velasco Bayón, 2001VELASCO BAYÓN, Balbino, O. Carm. História da Ordem do Carmo em Portugal. Lisboa: Paulinas, 2001., p.337-338). Declarou ao Tribunal que assumira há cinco anos e meio a direção espiritual da beata Josefa do Sacramento. “E logo passado meio ano”, confessou o frade, “começou a ter com ela ações torpes, desonestas, provocativas à luxúria, com bom fim e bom ânimo de uma e outra parte, dando-se ósculos, amplexos, tocamentos torpes reciprocamente”.1 1 Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício - Inquisição de Lisboa (PT/TT/TSO-IL/028/02287), processo de Josefa do Sacramento (1731-1733), f. 5. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt; Acesso entre abril e maio de 2013. A ortografia e a pontuação foram atualizados. Doravante, limitar-me-ei a indicar, no corpo do texto, as folhas correspondentes a este processo.

A confissão do frade arrependido fornece minúcias a respeito das relações íntimas mantidas entre o diretor espiritual carmelita e a beata da Ordem Terceira. Na descrição apresentada, motivações espirituais e contato carnal não se apresentavam como elementos incompatíveis; ao contrário, a pureza das motivações neutralizava o pecado que poderia haver na entrega recíproca dos corpos. Segundo o frade, Josefa do Sacramento havia declarado a ele que

Tivera uma representação que a ele seu confessor o tinha unido a si mesma, nu da cintura para cima, ao que ele lhe respondeu que não só da cintura para cima, senão em todo o corpo se deviam considerar unidos, com união espiritual, o que tudo passara no lugar do confessionário (...). E depois da referida ocasião, em dia de São Mateus, ambos tiveram uma cópula imperfeita, mas sem polução de parte alguma, e só com a união das partes pudendas, e acabada esta torpe ação, disse ele à beata que tinha chegado o amor espiritual aonde podia chegar, e que daí para diante se não podia passar a mais sem ser culpa (f. 5B).

Segundo o entendimento do frade, na ocasião em que praticara aqueles atos carnais, não havia ofensa a Deus, mas tão somente na cópula consumada, prática que não chegara a ocorrer entre ambos. Durante a mesma confissão, fr. João de Santa Teresa completou a descrição dos atos torpes e desonestos que reconhecia ter praticado:

A mesma beata, quando pegava no seu membro viril, o achou sempre sem ereção alguma, e ele também lhe punha as mãos sobre os seus peitos, e os metia na sua boca, fazendo a ação que mamava neles; mas nunca pela bondade de Deus nisto houve deleitação alguma; e a mesma Josefa do Sacramento também punha a boca nos peitos dele declarante, fazendo a ação que também mamava neles, o que fizeram por repetidas vezes; e quando uniam as partes pudendas em algumas ocasiões, tanto na dele como na dita beata fazia cruzes; e às vezes sobre as roupas, para o fim de que Deus os conservasse puros no afeto e no efeito; e muitas vezes, estando ambos abraçados postos em pé, com amor e consolação espiritual, estava ele rezando Magnificats, chegando a boca um ao outro com o desejo e fervor de que Nosso Senhor lhe inspirasse as coisas do espírito e as virtudes necessárias para só agradarem a Deus (f. 6).

Como interpretar a descrição acima, em que o frade e a beata aparecem ocupando papéis equivalentes e não dicotômicos, no âmbito das relações carnais? Segundo Lígia Bellini, “o universo conceitual do molinismo criou, para as mulheres do grupo, condições de possibilidade de um papel mais ativo e uma reciprocidade mais equilibrada nas relações sexuais e na religiosidade a elas associada” (Bellini, 2006BELLINI, Lígia. Cultura religiosa e heresia em Portugal em Portugal do Antigo Regime: notas para uma interpretação do molinosismo. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXII (2), p.187-203, 2006., p.202). Em alguns modelos de santidade do período, como Teresa de Ávila, as mulheres podiam transcender as limitações impostas pela tradição cristã ao seu gênero, e assumir uma representação varonil (Weber, 1990WEBER, Alison. Teresa of Avila and the Rhetoric of Femininity. Princeton: Princeton University Press, 1990., p.19-20). Sem considerar por enquanto as possibilidades abertas aos usos e às representações do corpo feminino no âmbito de tais práticas religiosas, gostaria de seguir de imediato uma outra pista. As relações carnais mantidas entre a beata Josefa do sacramento e o frade João de Santa Teresa inspiravam-se no modelo do matrimônio ou desposório espiritual, consagrado na tradição cristã ocidental.

A expressão “desposório espiritual” aparece referida na confissão de fr. João de Santa Teresa. Outros detalhes aparecem na confissão da beata Josefa de Sacramento (f. 5C). Em 9 de agosto de 1731, declarou ao Santo Ofício que era “terceira do hábito de Nossa Senhora do Carmo”, cristã-velha, solteira, com 46 anos de idade, “filha de Manoel Pereira, oleiro, e Antônia Francisca, natural de Miranda do Corvo, Bispado de Coimbra, e moradora na Calçadinha do Carmo” em Lisboa (f. 6). Segundo confessava a própria beata, a iniciativa da união corporal e mística partira dela própria:

Depois de comungar, estando dando graças a Deus, lhe veio ao pensamento, propondo-se-lhe na sua vontade e no seu coração fazer com o dito padre seu confessor um desposório espiritual, e propondo-lhe o que se lhe tinha representado, o dito padre aceitou os desposórios, e os fizeram na casa donde ela assiste, estando o dito padre sentado em uma cadeira e ela, digo eles, deram a mão um ao outro de que se ajuntavam como esposo e esposa para se unirem mais com Deus, e o servirem por aquele modo e o não ofenderem nas cousas e ações que por eles passassem, e já neste tempo tinham eles toda a união das partes pudendas, mas depois do desposório o fizeram com mais frequência (f. 9).

Sem ânimo de pecar e destituídos de inclinação para a luxúria, segundo declaravam, o par formado pelo diretor espiritual e pela beata intensificou as manifestações recíprocas de afeto após a cerimônia do desposório. De acordo com a confissão de Josefa do Sacramento, “ele lhe chamava filha, mãe e irmã e esposa, e ela o chamava pai, filho, irmão e esposo” (f. 9). Em outro fragmento do processo, a beata declarou que “dizia ao Padre Fr. João de Santa Teresa que o amava tanto como se fosse Nosso Senhor Jesus Cristo” (f. 74). É interessante observar como, na segunda parte doGuia espiritual, em que Molinos tratava das qualidades e das práticas necessárias ao diretor de consciência ou “padre espiritual”, o teólogo aragonês recomendava explicitamente a tais sacerdotes evitarem tratar por “filhas” as mulheres que confessavam, “porque é perigosíssimo, porque é Deus muito zeloso e tão amoroso o título”. Além disso, Molinos advertia que “o confessor ou pai espiritual não deve nunca visitar as filhas espirituais, nem ainda [em caso] de enfermidade, se não for chamado por parte da enferma” (Tavares, 2002TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos, 2 vols. Reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002., t. 2, p.31). Fica aqui confirmada a hipótese de Tavares a respeito da distância existente entre as ideias de Molinos e as acusações de molinismo feitas pela Inquisição aos réus.

Apresentando-se novamente ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 11 de agosto de 1731, Josefa do Sacramento forneceu ao inquisidor Antônio Ribeiro de Abreu detalhes do que foi designado aqui por união corporal e mística. Segundo a beata,

Quando ambos se uniam corporalmente com o fim do amor de Deus, lhe dizia que a união lha havia de ser de todo o corpo, boca com boca, testa com testa, peitos com peitos, braços com braços, e as partes pudendas na mesma forma, ficando assim como duas pedras unidas uma com outra, assim lhe dizia o mesmo padre (f. 14-15).

A entrega mútua dos corpos parecia propiciar a infusão de virtudes transmitidas pelo confessor e diretor espiritual à beata dirigida, conforme o depoimento prestado por esta em 14 de agosto de 1731:

O mesmo padre dizia que o seu corpo era dela e o corpo dela declarante do mesmo padre; e assim ia especificando as partes pudendas e desonestas dos mesmos corpos, entregando a cada um o corpo do outro, e lhe dizia que desejava infundir-lhe todas as virtudes se muitas houvera, e chegando a sua boca a dela lhe bafejava, protestando sempre querê-la virtuosa, que só para Deus a queria e procurava (f. 40).

É importante assinalar que, não obstante a máxima aproximação corporal, em que cada parte do corpo de um ficava pertencendo ao outro, ocorrendo uma espécie de apropriação física do corpo alheio, tanto a beata como o confessor carmelita declararam repetidas vezes a inexistência da cópula nas referidas uniões. No exame a que foi submetida em 24 de novembro de 1731, Josefa do Sacramento declarou o seguinte às autoridades do Santo Ofício:

Ela e o padre fr. João de Santa Teresa por algumas vezes se deitavam na cama nus, e por algumas vezes o dito padre estava deitado sobre o corpo dela declarante, e em outro ela sobre o do dito padre, e sempre com as partes pudendas unidas, tendo ele o seu membro viril encostado ao seu vaso natural mas sem ereção e só estendido ao comprido, no que ela achava deleite (...), e unindo-se nos peitos com grande afeto e ternura para se unirem os corações e tomavam os peitos um do outro com grande suavidade, e o padre Fr. João na tal ação dizia o que sentia o espírito sentia o corpo, e a ela lhe estava lembrando a consolação de São João Evangelista reclinado no peito de Cristo (f. 83).

Analisando o processo do religioso capuchinho italiano fr. Alexandre de Múrcia, também condenado pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa sob a acusação de molinismo, que tinha declarado aos inquisidores que “uma das suas confessadas tivera união física com a humanidade de Cristo”, Pedro Tavares assinala que

Essa apropriação de termos da teologia mística fora da sua acepção alegórica específica, a sua utilização indevida – como se via mais este caso -, corria o risco de se alargar, à medida que o apelo e procura dos caminhos de santidade se generalizava, nomeadamente explorando as virtualidades do duplo e acessível veículo da confissão e da direção espiritual, no seu uso e no seu abuso. A “carnalização” desses termos era um risco permanente, permitindo caucionar desordens morais, sob cor e pretexto de virtude (Tavares, 1995TAVARES, Pedro Vilas Boas. Molinismo e desculpabilização.Via Spiritus, n. 2, p.203-240, 1995., p.238-239).

Para o autor, a apropriação dos termos da teologia mística para a prática de desvios morais se explica a partir do “laxismo” de clérigos e leigos na sociedade portuguesa de fins do século XVII e princípios do século XVIII, que os tornava incapazes de cumprir “o programa ascético-moral da Igreja”. No que diz respeito aos clérigos, era flagrante a incapacidade “para lidarem intimamente, no confessionário, com os delicados problemas da vida e da moral sexual” (Tavares, 1996TAVARES, Pedro Vilas Boas. Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e XVIII (alguns dados, problemas e sugestões). Via Spiritus, n. 3, p.163-215, 1996., p.225). No que tange aos leigos, havia uma busca, “incauta e impreparada”, da contemplação, uma forte aspiração pelos modelos e pelas práticas da vida religiosa das ordens regulares, processo que o autor designa como “mimetismo do claustro” (Tavares, 1996TAVARES, Pedro Vilas Boas. Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e XVIII (alguns dados, problemas e sugestões). Via Spiritus, n. 3, p.163-215, 1996., p.168-170). Em contraste, os leigos tinham dificuldades em conciliar “as obrigações de estado com esse modelo ‘beato’ de piedade, e uma fácil entrega – ‘indiscreta’ – a grandes ambições espirituais, por parte de quem não tinha suficiente base de preparação espiritual”. No que tange especificamente às mulheres de condição mais humilde, como a beata Josefa do Sacramento aqui analisada, “viam na santidade uma forma de ‘ganhar o seu pão’ e se afirmar socialmente” (Tavares, 1996TAVARES, Pedro Vilas Boas. Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e XVIII (alguns dados, problemas e sugestões). Via Spiritus, n. 3, p.163-215, 1996., p.182; p.189).

O autor citado parece lamentar a inexistência de uma recepção mais adequada da literatura mística e dos modelos de santidade originados nas ordens regulares, os quais estariam longe de serem alcançados pelos leigos. Sendo correta a leitura aqui proposta, tal ideia incorreria na crítica formulada por Carlo Ginzburg, a respeito de uma História da Cultura concebida à maneira tradicional:

Com muita frequência ideias ou crenças originais são consideradas, por definição, produto das classes superiores, e sua difusão entre as classes subalternas um fato mecânico de escasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse, enfatiza-se presunçosamente a ‘deterioração’, a ‘deformação’ que tais ideias ou crenças sofreram durante o processo de transmissão (Ginzburg, 2006GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p.12).

Outra possível chave de leitura: a apropriação heterodoxa da literatura mística

Partindo de uma concepção antropológica da religião como “sistema de símbolos” (Geertz, 1978GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p.104), não parece muito producente insistir na visão das barreiras ou desníveis culturais no âmbito de uma determinada sociedade. Assim, pode ser mais útil analisar as vivências religiosas de beatas e de outras mulheres leigas segundo as trocas e apropriações efetuadas a partir da literatura mística então disponível. Evidentemente, tal corpus literário não se encontrava imediatamente disponível a maior parte das mulheres portuguesas do período, quer pela dificuldade de acesso físico às obras, quer pela ausência de capacidade de leitura. Não quer dizer que uma beata como Josefa do Sacramento, que em 3 de outubro de 1731 declarou ao Tribunal do Santo Ofício que “não sabe ler nem escrever”, não pudesse manipular signos e códigos (f. 79). Para crer nisso, seria necessário deixar de lado os contatos e alianças estabelecidos com o próprio diretor espiritual, como também os conhecimentos obtidos no círculo de beatas e irmãs terceiras da Ordem do Carmo, conforme será visto no momento oportuno. A historiografia tem mostrado o impacto exercido pelas beatas leigas sobre os agentes eclesiásticos, mesmo que tais mulheres carecessem de maior instrução formal (Jordán Arroyo, 2011JORDÁN ARROYO, Maria V. Sonhar a História: risco, criatividade e religião nas profecias de Lucrecia de León. Bauru: Edusc, 2001.; Mott, 1993MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.). O próprio Santo Ofício não acreditava na “ignorância” de Josefa do Sacramento, quando esta declarava não haver pecado nas uniões corporais que praticara: “nem também lhe pode servir de qualidade excusante a sua rusticidade e ignorância, à qual se não pode considerar nem presumir em culpas tais e tão enormes” (f. 113). Inversamente, seria razoável reconhecer na beata em análise alguma capacidade de manipulação e de conhecimento dos modelos de santidade e da literatura de espiritualidade do período, ainda que tais usos por vezes se afastassem daqueles legitimados pela Igreja.

Pretende-se aqui propor uma interpretação do processo inquisitorial da beata Josefa do Sacramento que vá além das soluções apontadas por Pedro Villas-Boas Tavares, que qualificou como “laxismo” e “despreparo” a conduta de que era acusada. Na medida em que a beata da Ordem Terceira do Carmo e o respectivo diretor espiritual pautavam seus encontros por comportamentos quase ritualizados, é factível supor que fossem inspirados por modelos de devoção difundidos no período, derivados da literatura mística. Evidentemente, tais modelos eram lidos de forma heterodoxa pela leiga e pelo frade. No que tange ao corpus da literatura mística, adquire importância para a compreensão do caso em análise os escritos produzidos entre os séculos XIII e XIV no norte da Europa por leigas que habitualmente viviam em comunidades, conhecidas como beguinas. Hadewijch de Brabant, por exemplo, assim se dirigiu às companheiras de sua comunidade:

Possa Deus fazê-las saber, minhas filhas, quem ele é e como ele trata os que lhe servem, especialmente suas servas, como ele as consome dentro de si mesmo. Das profundezas de sua sabedoria, ele lhes ensinará e com que maravilhosa suavidade quem ama vive naquele a quem ama e de tal modo permeia o outro que ambos já não saberão distinguir-se um do outro. Eles se possuirão reciprocamente em mútuas delícias, a boca na boca, o coração no coração, o corpo no corpo, a alma na alma, enquanto uma única natureza divina fluirá através dos dois e ambos se tornarão um só (Cavalcanti, 2005CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O Cântico dos Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções. São Paulo: Edusp, 2005., p.136, grifos meus).

A passagem grifada corresponde aproximadamente à fórmula do ritual seguido nos encontros da beata Josefa do Sacramento com o frade. Com uma diferença essencial: enquanto que nos escritos da mística do século XIII a linguagem amorosa era aplicada à união das mulheres com Deus, no processo inquisitorial em análise a linguagem e os rituais descreviam os encontros de uma mulher leiga com um ministro de Deus, que por definição devia guardar a castidade e se abster de contatos íntimos com as suas dirigidas. A valorização da humanidade de Cristo na espiritualidade da Baixa Idade Média conferiu uma dignidade inédita ao corpo humano, antes visto apenas como fonte de pecado. Para as místicas daquela época, “o corpo é menos um obstáculo do que um veículo para alcançar em sua magnitude a união mística” (Cavalcanti, 2005CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O Cântico dos Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções. São Paulo: Edusp, 2005., p.143; Bynum, 1994BYNUM, Caroline Walker. Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. New York: Zone Books, 1994., p.181-238; Vauchez, 1995VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental – séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p.125-160). Esta análise conduz a uma frase atribuída pela beata Josefa do Sacramento ao frade João de Santa Teresa, conforme foi visto mais acima: “o que sentia o espírito sentia o corpo”. Segundo uma outra intérprete do corpus da literatura mística da Baixa Idade Média, “as pulsões eróticas, a união mística implicam uma sublimação da carne mas, ao mesmo tempo, um retorno à carne. Em suma, a carnalidade sempre está presente, por rejeição ou por aceitação sublimada” (Guglielmi, 2008GUGLIELMI, Nilda. Ocho místicas medievales (Italia, siglos XIV y XV). Buenos Aires: Minoy Dávila, 2008., p.129).

A literatura mística de princípios do período moderno também adotou a linguagem amorosa repleta de elementos eróticos para compreender o estado de união da alma com Deus, como será visto mais adiante. Partindo das premissas já expostas, é o momento de analisar o topos que parece estruturar as práticas de união corporal e espiritual que a beata Josefa do Sacramento mantinha com o confessor: o matrimônio místico ou desposório espiritual. Segundo os especialistas, a representação do amor de Deus à alma dos fiéis por meio da linguagem nupcial provém do judaísmo. “A incorporação do Cântico dos Cânticos à Escritura forneceu simultaneamente ao cristianismo e ao judaísmo expressiva legitimação para o uso da linguagem sexual e matrimonial para descrever as relações entre Deus e seu povo” (Matter, 1999MATTER, E. Ann. Mystical Marriage. In: SCARAFFIA, Lucetta; ZARRI, Gabriella. Women and Faith: Catholic Religious Life in Italy from Late Antiquity to the Present. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1999. p.31-41., p.31). Na epístola aos Efésios, Paulo utilizou a “imagem esposo-esposa para caracterizar a relação Cristo-Igreja” (Possanzini, 2003POSSANZINI, Stefano. Matrimônio espiritual. In: BORRIELLO, Luigi; CARUANA, Edmundo; DEL GENIO, Maria Rosaria; SUFFI, N. (Org.). Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Loyola, 2003. p.683-685., p.683). No princípio do século IX, o bispo Amalarius de Metz prescrevia às mulheres atraídas ao estado monástico o ideal de castimonia, segundo o qual a esposa de Cristo se dedicaria exclusivamente ao Senhor que escolhera servir: “ela deve entender que, uma vez inscrita na milícia do Senhor, ela nunca pode seguir novamente seu próprio conselho ou se envolver em negócio secular ou desfrutar a companhia de homens ou conversar com familiares, exceto por razões inevitáveis” (McNamara, 1998McNAMARA, Jo Ann Kay. Sisters in Arms: Catholic Nuns through Two Millennia. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1998., p.148). Hildegard de Bingen, a influente abadessa do século XII, “realmente vestia suas freiras como esposas quando elas se adiantavam para receber a comunhão” (Bynum, 1994BYNUM, Caroline Walker. Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. New York: Zone Books, 1994., p.134). O rito de consagração das freiras à vida monástica foi “deliberadamente modelado sobre a liturgia do casamento, e cada detalhe seu acentua a interpretação literal do casamento da virgem com Cristo” (Graziano, 2004GRAZIANO, Frank. Wounds of Love: The Mystical Marriage of Saint Rose of Lima. Oxford: Oxford University Press, 2004., p.216). O topos do casamento místico foi incorporado às hagiografias de Santa Catarina de Sena, Santa Rosa de Lima, entre outras santas de fins da Idade Média e princípios do período moderno, recebendo igualmente tratamento iconográfico em diversos templos portugueses (Matter, 1999MATTER, E. Ann. Mystical Marriage. In: SCARAFFIA, Lucetta; ZARRI, Gabriella. Women and Faith: Catholic Religious Life in Italy from Late Antiquity to the Present. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1999. p.31-41., p.31-41; Graziano, 2004GRAZIANO, Frank. Wounds of Love: The Mystical Marriage of Saint Rose of Lima. Oxford: Oxford University Press, 2004., p.219-226; Bastos, 2011BASTOS, Isabel da Conceição Ribeiro Soares. Iconografia de esposas místicas na pintura portuguesa. Análise de casos. Dissertação (Mestrado em História da Arte Portuguesa) - Universidade do Porto. Porto, 2011., p.14-89). No período moderno, a vida professa das freiras é comumente descrita como um matrimônio espiritual, que principiava com a troca de anéis e com outros rituais no momento da profissão solene (Silva, 2011SILVA, Ricardo Manuel Alves da. Casar com Deus: vivências religiosas e espirituais femininas na Braga moderna. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Minho. Braga, 2011., p.352-364).2 2 À parte a vida religiosa claustral feminina, na Idade Média o “casamento espiritual” também designava um vínculo matrimonial “em que as relações sexuais foram canceladas pelo consentimento de ambas as partes por razões de piedade”. A casta coabitação de cônjuges que se proclamavam ascetas comportava uma série de variações: “a referência à castidade matrimonial não significa necessariamente que a castidade absoluta era observada no casamento. Pode apenas significar que o casal pratica fidelidade conjugal (...). Pode também significar que durante períodos prolongados de penitência da Igreja, a continência sexual era observada. Ou poderia também de fato significar que o casal em questão concordou em abster-se perpetuamente de relações sexuais” (ELLIOTT, 1993, p.3-5).

Sem dúvida alguma, as representações do matrimônio ou desposório espiritual que mais se aproximam aos usos observados pela beata Josefa do Sacramento e pelo seu confessor derivam da literatura mística produzida nos séculos XVI e XVII. Sem procurar esgotar o tema e seguindo apenas uma sequência cronológica, pode-se referir o Orto do Esposo, manuscrito produzido por volta de 1385 no mosteiro de Alcobaça. Segundo a análise de Mário Martins,

O próprio título desta obra enraíza na imagética bíblica do Cântico dos Cânticos: ‘Hortusconclusus sóror measponsa’. Ou então: ‘Veniardilectus meus in hortumsuum’. E assim por diante. Quer dizer: ‘Jardim fechado és, irmã minha esposa’. E a frase que segue: ‘venha o meu amado par ao seu jardim’. Ora, a esposa significa alma. É esta o horto, jardim e pomar, onde se recreia o amado, que é Cristo, como Deus se recreava antigamente no paraíso Terreal (Pimentel, 2009PIMENTEL, Antonio Marcos Gonçalves. O monge, a irmã e o Orto do Esposo. Niterói: Ed. UFF, 2009., p.197).

Em seguida, no âmbito do contexto de recepção dos Cânticos mais diretamente ligado ao processo inquisitorial em análise, figura o Boosco deleitoso, livro de mística impresso em Portugal em 1515:

– Levanta-te, amiga, minha esposa, e vem-te ao paaçocelistrial...

Quando a minha alma ouviu estas tam graciosas e tam doces palavras do Senhor Deus e do seu amado Jesu Cristo, foi toda derretida com mui ardente amor, e respondeu com grande prazer enesta guisa:

– Fremoso e aposto és tu, meu amado; tira-me depos ti, e eu correrei em odor dos teus inguentos; porque, assi como deseja o cervo as fontes das águas, assi desejo a ti, meu Senhor Deus. Grande sede e grande desejo hei de ti, senhor Deus, fonte viva (Magne, 1950MAGNE, Augusto (Ed.). Boosco deleitoso. Rio de Janeiro: INL, 1950., p.339;Bastos, 2011BASTOS, Isabel da Conceição Ribeiro Soares. Iconografia de esposas místicas na pintura portuguesa. Análise de casos. Dissertação (Mestrado em História da Arte Portuguesa) - Universidade do Porto. Porto, 2011., p.21).

Uma referência incontornável é representada pela obra de Santa Teresa d’Ávila conhecida como Conceitos do Amor de Deus. Redigida entre 1560 e 1570, constitui um comentário do livro dos Cânticos.3 3 SANTA TERESA DE JESUS. Obras completas. São Paulo: Loyola, 2008, p.843. O vínculo tanto da beata como do frade à Ordem do Carmo, de que a santa castelhana foi reformadora, justifica a particular importância da obra para a análise do processo em pauta. OsCânticos atribuídos a Salomão principiam com os versículos em que a esposa se dirige ao seu amado esposo: “aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca: porque os teus peitos são melhores do que o vinho, flagrantes como os mais preciosos bálsamos” (Figueiredo, 1821FIGUEIREDO, Antônio Pereira de, padre (Trad.). A sancta Bíblia: contendo o Velho e o Novo Testamento. Londres: Na Oficina de B. Bensley, 1821., p.586). Diante desta passagem, a santa de Ávila fez o comentário seguinte:

Pois, Senhor meu, não Vos peço outra coisa nesta vida a não ser que me beijeiscom o beijo da Vossa boca (...). E que não haja nada que me impeça de dizer, Deus meu e glória minha, com sinceridade, que mais valem os teus peitos do que o vinho.

Quando esse Esposo riquíssimo a quer enriquecer e regalar mais, converte-a tanto em Si que ela, como alguém que desmaia devido a um grande prazer e contentamento, tem a impressão de estar suspensa naqueles braços divinos e encostada àquele sagrado lado e àqueles peitos divinos. Ela não sabe mais que gozar, sustentada por aquele leite divino que o esposo vai criando para ela, melhorando-a para poder regalá-la e para que ela mereça cada dia mais. (Santa Teresa de Jesus, 2008, p.865-867, grifos no original).

Os trechos grifados correspondem a versículos do livro dos Cânticos. A presença simultânea nesta obra, nos comentários de Santa Teresa e no processo inquisitorial do topos discursivo da união de bocas, braços e peitos é muito significativa. As duas primeiras forneceram possivelmente os modelos devocionais para as práticas heterodoxas seguidas pela beata e pelo frade. Mas talvez tenham ocorrido outras influências. É importante assinalar que o uso da linguagem erótica e conjugal para representar as relações entre o Esposo divino e a esposa espiritual estava muito difundido na literatura espiritual do período moderno (Lavrin, 2008LAVRIN, Asunción. Brides of Christ: Conventual Life in Colonial Mexico. Stanford: Stanford University Press, 2008., p.90-96). Cronologicamente mais próxima do processo inquisitorial em análise, pode ser mencionada a obraDesposórios do espírito celebrados entre o divino Amante e a sua amada esposa, a venerável madre sóror Mariana do Rosário. Várias passagens do livro do frade agostiniano fundamentam-se diretamente no modelo dosCânticos: “coroemos este discurso da grande caridade da Esposa do Senhor Soror Mariana, com dizer dela, que como a outra Esposa dos Cantares chegou a amar de sorte, que adoeceu de amor”. 4 4 D’ALMADA, Fr. Antonio de, O.S.A. Desposórios do espírito celebrados entre o divino amante e a sua amada esposa a venerável madre sóror Marianna do Rosario, religiosa de veo branco no Convento do Salvador da cidade de Évora (...). Lisboa: Na Oficina de Miguel Lopes Ferreira, 1694, p.63.

Em algumas partes do processo inquisitorial da beata Josefa do Sacramento, é possível identificar práticas que se aproximam de uma leitura não alegóricado livro dosCânticos e dos Conceitos do Amor de Deus da santa de Ávila, fundadora do Carmelo Descalço, entre outras exposições menos influentes do matrimônio espiritual. Frade carmelita da Observância, frei João de Santa Teresa com muita probabilidade conhecia ambos os escritos, e pode ter lido e comentado passagens dos mesmos à beata.5 5 Frei Luis de León, da Ordem de Santo Agostinho, traduziu e comentou em castelhano os Cânticos, o que lhe valeu pena de prisão e destruição da obra. Somente foi autorizada a publicação em 1580 de uma versão em latim da mesma LEÓN, 2013. O confessor carmelita e a beata da Ordem Terceira, à primeira vista, haviam se identificado ao esposo e à esposa dos cantares de Salomão, entregando-se a práticas que se afastavam da mortificação corporal que predominava no período. “Unindo-se nos peitos com grande afeto e ternura para se unirem os corações”, esperavam agradar a Deus por meio da união física (f. 83). É significativo apontar que em várias partes do processo, ambos os envolvidos insistiam não haver consumado relações sexuais convencionais, praticando apenas a união corporal já descrita. A crer nos testemunhos dos réus, não haviam formalmente violado os votos de castidade assumidos por ambos: frei João de Santa Teresa em 1710, quando professara como religioso carmelita; Josefa do Sacramento cerca de 30 anos antes, quando aos 15 anos “fez voto de castidade, e depois foi perseguida com grandes estímulos na carne, com complacência e deleites na sua parte pudenda e com diferença havia de tais deleites aos que tinha com o dito seu diretor espiritual” (f. 50).6 6 Havia diferença no caráter dos votos de ambos. O voto assumido por fr. João de Santa Teresa era solene, e marcava o ingresso formal no estado regular. O voto da beata era simples, porque não implicava a entrada na clausura, mas apenas o compromisso de viver em castidade no século. Se para os réus tinha algum significado alegar a inexistência de cópula carnal, para o Santo Ofício este ponto era pouco relevante:

Perguntada como podia ela entender que obrava bem com o dito padre se assentava e conhecia não podia ter com ele cópula carnal, e as torpíssimas ações que confessava praticar entre si pouco se diversificam da mesma cópula.

Disse que como a boa tenção e o amor espiritual sempre era o mesmo entre ambos, por isso nunca conheceu culpa e só tinha algum remorso (f.41-41v.).

Há outros elementos no processo inquisitorial que indicam a circulação de leituras dos Cânticos e da literatura de espiritualidade que se baseava no mesmo. Fr. João de Santa Teresa era sobrinho da madre Teresa Maria de São José, da qual tinha sido também diretor espiritual. Apesar da denominação que aparece sempre associada ao seu nome no processo inquisitorial, Teresa Maria de São José não era uma freira que vivia na clausura, mas sim outra beata da Ordem Terceira do Carmo que exercia ascendência sobre um grande número de devotos, seculares e regulares. Foi sentenciada com penas graves no auto de fé realizado em Lisboa em 6 de julho de 1732, o mesmo que punira fr. João de Santa Teresa e Josefa do Sacramento, tendo aquela na ocasião a idade de 66 anos. Em um momento anterior, o frade carmelita também havia feito um “desposório espiritual” com a sua tia: “fazia-lhe cruzes sobre o peito, rezavam juntos várias orações, comemorações, o Magnificat,elouvores a Deus para ‘confundir o Demónio’, e chegavam a boca um ao outro para ela ‘lhe inspirar coisas do espírito’” (Tavares, 2002TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos, 2 vols. Reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002., p.363-364).

No processo de Josefa do Sacramento aparecem detalhes das uniões que a beata Teresa Maria de São José havia mantido com o mencionado religioso do Carmo. Em 25 de setembro de 1731, este confessou ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa que

Com o mesmo fim espiritual e sem conhecimento de pecado, com a beata Josefa do Sacramento fez o mesmo que com a madre Teresa, e também com o fim espiritual da parte dela, e sem conhecimento de pecado, e tudo se fazia à imitação da madre Teresa e de sua doutrina com as mesmas circunstâncias, e ele lhe disse por duas vezes que tudo praticara ele e a madre Teresa, e ambos [os] dois deitados na cama nus, de quatro anos e meio a esta parte se deitavam na cama e se uniam em todos os membros dos seus corpos; e como ele contava todas as circunstâncias à beata Josefa do Sacramento, que passava com a madre Teresa (f. 5f).

As confissões de Josefa do Sacramento e de fr. João de Santa Teresa, mais as acusações e sentença do Santo Ofício, apontavam para o papel de liderança assumido pela beata Teresa Maria de São José no âmbito do grupo molinista: “levantando-se a madre Teresa com a opinião bem estabelecida, não só na Corte mas por todo o Reino, da sua santidade, como mestra da mentira, introduzindo seita de perdição, admitindo e facilitando torpezas debaixo da capa de virtude” (f. 114). Além de Josefa do Sacramento, de fr. João de Santa Teresa e mais outro sobrinho sacerdote, o padre Antônio Pires, um numeroso círculo se formou em torno da terceira carmelita Teresa Maria de São José. Segundo a confissão de Josefa do Sacramento, “todos se tratam intimamente entre si e como filhos espirituais da madre Teresa, a qual chamam de mãezinha” (f. 26). Os seguidores de Teresa Maria de São José, inclusive os eclesiásticos, costumavam beijar as mãos da beata, um gesto que sugere reverência e submissão. No pormenor, os detalhes do “desposório espiritual” mantido entre o sobrinho confessor e a tia beata ajustam-se, em linhas gerais, às descrições vistas no início do artigo. Segundo a confissão de Josefa do Sacramento: “disse mais que o padre fr. João de Santa Teresa lhe dizia da madre Teresa, quando estavam deitados na cama, eram como se fossem duas pedras, umas vezes ele em cima dela e outras ela em cima dele, unindo-se com perfeita correspondência em todas as partes dos seus corpos, e que ela o apertava consigo muito, e então ele se achava melhor no seu espírito” (f. 88).

Em outra altura do processo, percebem-se indiretamente indícios de leituras da mística quinhentista, seguindo as mesmas diretrizes daquelas examinadas mais acima. Ou seja, os topoi daquele corpus literário são reinterpretados em um sentido material e carnal, aplicando-se aos membros íntimos da beata Teresa Maria de São José e do respectivo confessor. Segundo Josefa do Sacramento, fr. João de Santa Teresa “estando deitado na cama com a dita sua tia, e com união nas partes pudendas de ambos, chamavam as mesmas partes o seu bichinho, que era a dele, e o seu ortinho [sic], que era a dela; e que estava o bichinho dentro do ortinho” (f. 15). Tais passagens podem ser apropriações dos versículos 2,9-8 e 4,12 dosCânticos.

Quando analisou vários casos de mulheres vinculadas a ordens terceiras, que tinham sido processadas pelo Santo Ofício português no contexto da Restauração, Laura de Mello e Souza assinalou a particular apropriação da literatura mística presente em tais casos:

O aspecto mais intelectualizado, abstrato e filosófico, tributário da escolástica, tornava-se ininteligível para elas. Aprendendo o lado mais sensível, que a vida religiosa moderna trouxera para o cotidiano, as beatas vivenciam-no à sua maneira, dando-lhe quase sempre os contornos mais concretos próprios às categorias do pensamento e da cultura popular (Souza, 1993SOUZA, Laura de Mello E. Religião popular e política: do êxtase ao combate. In: SOUZA, Laura de Mello E. Inferno Atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.105-124., p.108).

De fato, nas confissões de Josefa do Sacramento, o topos do desposório espiritual foi interpretado de uma maneira muito peculiar, enfatizando o contato corporal dos “esposos”, a visão fragmentada do corpo, em que cada parte devia estar unida a outra correspondente, para garantir a eficácia do ritual, preservando-se apenas a formalidade dos votos de castidade. Além disso, as imagens do horto e outras provenientes da tradição dos Cânticos são identificadas às partes “baixas” do corpo, aproximando-se do sistema de imagens do “corpo grotesco” analisada por um autor (Bakhtin, 1987BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. UnB, 1987., p.265-322).

Sem deixar de lado a análise acima, é possível também interpretar o processo da beata Josefa do Sacramento a partir da perspectiva produzida pelos estudos das relações de gênero e do corpo feminino. De acordo com tal perspectiva, desde o século XII, a literatura mística produzida por mulheres atribuía um caráter material à humanidade de Cristo, valorizando a ingestão da sua carne através da eucaristia, evitando o consumo de outros alimentos, atribuindo às chagas de Cristo uma função materna de lactação (Bynum, 1994BYNUM, Caroline Walker. Fragmentation and Redemption: Essays on Gender and the Human Body in Medieval Religion. New York: Zone Books, 1994., p.119-179). No que diz respeito especificamente ao topos do matrimônio espiritual, a virgem de Siena declarou em uma carta que “falha na fidelidade ao esposo quem dedica a outra pessoa o amor devido a Deus. E tu és uma esposa (de Cristo). Foi no dia da circuncisão que o Filho de Deus nos desposou, dando o anel da sua carne como sinal para a humanidade inteira”.7 7 SANTA CATARINA DE SENA. Cartas completas. São Paulo: Paulus, 2005, p.171. Na hagiografia de Raymond de Cápua, o prepúcio de Cristo foi substituído por um anel invisível (Matter, 1999MATTER, E. Ann. Mystical Marriage. In: SCARAFFIA, Lucetta; ZARRI, Gabriella. Women and Faith: Catholic Religious Life in Italy from Late Antiquity to the Present. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1999. p.31-41., p.38). No período moderno, o caráter material da humanidade de Cristo aparece nos casos de “parto místico” analisados por Ribeiro, que envolviam beatas portuguesas do século XVII vinculadas a ordens terceiras (Ribeiro, 2006RIBEIRO, Antonio. O “parto místico”: uma abordagem indiciária.Lusitania Sacra, vol. 2, n. 18, p.451-472, 2006., p.451-472). No processo de Josefa de Sacramento, a materialidade de Cristo não aparece apenas na identificação do esposo espiritual ao confessor fr. João de Santa Teresa, mas também no uso que fazia da imagem de Cristo: “em uma ocasião, estando deitada na cama abraçando-se com a imagem do Senhor Crucificado, sentiu alguma destilação que do seu corpo [descia?] ao vaso natural, e dando-se disto conta à madre Teresa, ela lhe disse que não fizesse aquilo, porque era faltar à reverência ao Senhor” (f. 67).

Na confissão que apresentou em 6 de agosto de 1731, Josefa do Sacramento revelou às autoridades da Inquisição que, “com algum remorso na consciência” sobre o que havia praticado com o seu diretor espiritual, “se foi confessar no jubileu da Porciúncula à Igreja de São Francisco a um religioso da mesma Ordem, o qual lhe disse que vinha errada, que a tinham enganado, que viesse ao Santo Ofício confessar suas culpas” (f. 11). Aos 16 de agosto de 1731, a beata carmelita apresentou uma versão diferente sobre o momento que a levou a denunciar fr. João de Santa Teresa: “fazendo uma ausência, o dito padre seu diretor, se foi confessar com um padre da Companhia a São Roque, e dando-lhe conta de algumas coisas que havia já entre ela e o dito padre diretor, o confessor lhe estranhou e lhe disse que ambos estavam metidos no inferno” (f. 46). Segundo a versão da beata, a desconfiança em relação ao desposório espiritual praticado com o diretor espiritual a levara a buscar outros confessores, que finalmente revelaram a situação de pecado em que vivia. Teresa Maria de São José, a “mãezinha”, condenou a troca de confessores.

Além disso, é perceptível no processo a existência de outras tensões entre as beatas. Josefa do Sacramento mostrou-se interessada em seguir passo a passo o desposório espiritual realizado entre fr. João de Santa Teresa e Teresa Maria de São José, respectivamente o seu “pai” e a sua “mãe” espirituais. Segundo se depreende da cronologia do processo, fr. João de Santa Teresa confessava e “desposava” simultaneamente as duas beatas, com as quais formava uma espécie de triângulo amoroso, corporal e espiritual. Josefa do Sacramento declarou também que não dava contas a Teresa Maria de São José do que praticava com o sobrinho desta, “por recear que ela lhe fizesse reparo nelas e lhe tirasse a direção de seu padre espiritual” (f. 48). Cinco dias antes, Josefa do Sacramento havia declarado que “a mesma madre Teresa lhe mandou suspender as comunhões em algum tempo, mandando-lhe que comungasse um dia, outro não, e tudo seu diretor espiritual por ela mandado executava, entrando ela em desconsolação por a madre Teresa a não deixar comungar todos os dias”. Nesta passagem, é evidente a inversão das relações entre diretor e dirigida, na medida em que “madre Teresa” controlava as ações do seu sobrinho e confessor.

Infelizmente, não há espaço aqui para aprofundar a análise das ações da beata Teresa Maria de São José, a chamada “madre Teresa”. A partir deste e de outros documentos da Inquisição de Lisboa, espera-se dar continuidade à análise aqui principiada, que buscará mapear com mais detalhes o círculo formado em torno da “mãezinha” e as crenças da mesma. Mais de uma vez, utilizava imagens do cotidiano para expressar temas espirituais ou falar de sentimentos. Depois de criticar Josefa do Sacramento por haver procurado outro confessor, a “madre” Teresa lhe disse “que as almas que não estavam em um lugar só e andavam procurando muitos confessores, que eram cavalos desbocados que nunca medravam” (f. 46). Quando Josefa lhe comunicou que “tinha alguns estímulos na carne e ânimo para a luxúria”, Teresa respondeu que não fizesse caso daquilo, que não era nada e era coisa do tempo, que as árvores também arrebentavam, e os brutos também tinham sensitivo da mesma luxúria a seus tempos” (f. 28).

Para a Inquisição, o desposório espiritual não passava de uma simulação, de uma prática que servia para tirar a culpa dos desvios morais dos envolvidos. Na sentença de Teresa Maria de São José, a ré foi condenada por molinismo e falsa santidade, “praticando ações torpíssimas como boas e meritórias, que como tais persuadia a outras pessoas, e por se fingir santa, com favores extraordinários de Deos, e presunção de ter pacto com o Demônio. Em consequência, era-lhe sentenciada a pena de açoutes, reclusão a arbítrio nos cárceres do Santo Ofício, e degredo de dez anos para a Ilha de S. Tomé” (Tavares, 2002TAVARES, Pedro Vilas Boas. Beatas, inquisidores e teólogos, 2 vols. Reação portuguesa a Miguel de Molinos. Tese de Doutorado em História - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2002., p.362).

Com relação à beata Josefa do Sacramento, ainda que tivesse se apresentado à Inquisição “com muitos bons sinais de arrependimento e sincera confissão de suas culpas”, o Tribunal considerou a ré uma das “principais sequazes” de Teresa Maria de São José, “e uma das almas mais santas que ela reputava”. Finalmente, o inquisidor Antônio Ribeiro de Abreu foi de parecer que “dos sobreditos fatos, não resulta contra a ré presunção veemente de viver apartada de nossa santa fé, porque além de que nesta matéria diminua muito a suspeita a propensão natural que tem a nossa natureza para a luxúria, esta ré foi persuadida e provocada para os ditos atos pelo padre Fr. João de Santa Teresa” (f. 114).

A Inquisição desconsiderou, portanto, que a iniciativa do desposório tinha partido da beata. Esta foi finalmente condenada a abjurar de veemente suspeita da fé em 6 de julho de 1732, no auto de fé realizado no Convento de São Domingos em Lisboa, sendo também degredada por cinco anos para o Reino do Algarve. Em 16 de janeiro de 1733, requereu ao Conselho Geral do Santo Ofício o perdão da pena de degredo, tendo em vista o estado de desamparo e de doença em que se encontrava, mas a documentação não esclarece se Josefa do Sacramento teve êxito neste pedido.

Conclusão: papéis de gênero e legitimação do uso do corpo

No núcleo dos estudos que focam as relações de gênero, situa-se em lugar de destaque a crítica ao binarismo e ao naturalismo da oposição entre o homem e a mulher, a coisificação desta, a percepção de que as diferenças entre os gêneros derivam da cultura e o questionamento do patriarcalismo como princípio universal estruturante das relações sociais (Scott, 2008SCOTT, Joan Wallach. Género e historia. México: Universidad Autónoma de la Ciudad de México: Fundo de Cultura Económica, 2008., p.48-74;Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; Bourdieu, 2005BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2005.; Laqueur, 2001LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.). A partir de tais pressupostos é que se pode situar a análise feminista voltada para o livro do Cântico dos Cânticos. No importante volume organizado por Athalya Brenner, deixam-se de lado as leituras alegóricas que pautaram durante séculos a Teologia ocidental, segundo a qual o diálogo entre Sulamita e o seu amante seria uma representação figurada do matrimônio espiritual entre a Igreja e Cristo ou entre Deus e a alma individual. Ao lado de outros estudiosos das Escrituras, as autoras feministas partem do princípio de que os Cânticos representam o amor físico entre uma mulher e um homem.A preferência da crítica feminista por aquele livro em particular está no fato de se distanciar dos valores patriarcais que perpassam o conjunto da Bíblia.8 8 A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional: Paulus, 1995. Nos Cânticos, uma mulher é a protagonista, é ela quem toma a iniciativa de buscar o amante. Além das relações de igualdade e de reciprocidade que pautam os contatos entre a mulher e o homem, destaca-se no livro dos Cânticos uma visão do sexo muito distinta daquela propagada pelo magistério da Igreja. Naquela, o desejo sexual é manifestado clara e alegremente, sem nenhuma culpa ou condenação. As autoras concluem a abordagem mostrando como o livro dos Cânticos pode contribuir para a percepção do peso da subcultura feminina nas sociedades tradicionais. Nos demais livros da Bíblia, que focam a vida pública, tal subcultura se mostra praticamente ausente, o que não ocorre nos Cânticos que privilegia o cotidiano da casa (Brenner, 2000BRENNER, Athalya (Org.). Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000.).

Nos gestos produzidos pela beata Josefa do Sacramento e pelo seu diretor espiritual, que possivelmente tomaram o livro dos Cânticos e os respectivos comentadores como modelos, podem ser percebidos diversos elementos apontados pela análise feminista: o protagonismo da beata – que confessa ter tomado a inciativa do matrimônio espiritual;o afeto que sente no contato físico;a reciprocidade dos gestos e das posições assumidas entre ela e o confessor por ocasião do ritual; o caráter indissolúvel existente entre o corporal e o espiritual nas relações que mantinham. A respeito da linguagem amorosa das místicas medievais, Jacques Dalarun propôs que “não se trata de um discurso espiritual que esconderia uma realidade sexual senão de um discurso sexual que fala de realidades espirituais” (Guglielmi, 2008GUGLIELMI, Nilda. Ocho místicas medievales (Italia, siglos XIV y XV). Buenos Aires: Minoy Dávila, 2008., p.132). O argumento sustentado ao longo do texto caminha exatamente na mesma direção, ao propor o livro dosCânticos como modelo das práticas da beata e do frade. Assim, pode não ter havido simplesmente “laxismo” ou desvios sexuais justificados por uma leitura inadequada da literatura mística, mas sim a leitura de modelos devocionais a partir de uma ótica que não condenava o contato corporal, que colocava o corpo e o espírito no mesmo plano, como a recente análise das feministas tem revelado. Para a elaboração desta leitura heterodoxa dos modelos devocionais, foi decisiva a ação de um grupo de mulheres beatas da Ordem Terceira do Carmo. A apropriação particular de que foram objeto o Cântico dos Cânticos e a literatura mística por ele inspirada ampliou a possibilidade do uso do corpo para aquele grupo de mulheres.

Assim, por trás das etiquetas “molinismo” e “molinosismo” podem-se ocultar realidades muito distintas daquelas assumidas pelo Tribunal do Santo Ofício. Além da punição dos membros do clero, a ação da Inquisição de Lisboa se orienta para a desarticulação de uma rede em que mulheres leigas assumiam que protagonismo no campo religioso, invertendo a posição de subordinação que deviam guardar face ao clero (Bethencourt, 2004BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das letras, 2004., p.203-257; Paiva, 1992PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas: o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra: Minerva, 1992., p.183-226). No que tange ao controle da autonomia das mulheres, a ação repressiva dos inquisidores se assemelha aos processos movidos por estes contra os alumbrados em Castela. A partir de 1520, diversas beatas foram consideradas suspeitas de alumbradismo, sob a acusação de priorizarem apenas o contato pessoal com Deus, desprezando os rituais, a oração vocal e os sacramentos. Em Toledo, mulheres como Maria de Santo Domingo e Isabel de la Cruz haviam se tornado lideranças para fiéis e membros do clero, discutindo em círculos domésticos a Bíblia e outras obras de devoção (Bataillon, 1996, p.166-190;Weber, 1990WEBER, Alison. Teresa of Avila and the Rhetoric of Femininity. Princeton: Princeton University Press, 1990., p.22-28). Ao desafiarem os poderes da Igreja e veicularem interpretações distintas daquelas que a instituição eclesiástica consagrava, as beatas Josefa do Sacramento e Teresa Maria de São José tornaram-se alvos particulares de investigação e punição em Portugal de princípios do século XVIII.

Agradecimentos

Agradeço à Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Professora Associada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por ter acolhido a primeira apresentação ao público deste trabalho no Simpósio Temático que organizou para o Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Florianópolis, 2013).

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  • 1
    Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício - Inquisição de Lisboa (PT/TT/TSO-IL/028/02287), processo de Josefa do Sacramento (1731-1733), f. 5. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt; Acesso entre abril e maio de 2013. A ortografia e a pontuação foram atualizados. Doravante, limitar-me-ei a indicar, no corpo do texto, as folhas correspondentes a este processo.
  • 2
    À parte a vida religiosa claustral feminina, na Idade Média o “casamento espiritual” também designava um vínculo matrimonial “em que as relações sexuais foram canceladas pelo consentimento de ambas as partes por razões de piedade”. A casta coabitação de cônjuges que se proclamavam ascetas comportava uma série de variações: “a referência à castidade matrimonial não significa necessariamente que a castidade absoluta era observada no casamento. Pode apenas significar que o casal pratica fidelidade conjugal (...). Pode também significar que durante períodos prolongados de penitência da Igreja, a continência sexual era observada. Ou poderia também de fato significar que o casal em questão concordou em abster-se perpetuamente de relações sexuais” (ELLIOTT, 1993ELLIOTT, Dyan. Spiritual Marriage: Sexual Abstinence in Medieval Wedlock. Princeton: Princeton University Press, 1993., p.3-5).
  • 3
    SANTA TERESA DE JESUS. Obras completas. São Paulo: Loyola, 2008, p.843.
  • 4
    D’ALMADA, Fr. Antonio de, O.S.A. Desposórios do espírito celebrados entre o divino amante e a sua amada esposa a venerável madre sóror Marianna do Rosario, religiosa de veo branco no Convento do Salvador da cidade de Évora (...). Lisboa: Na Oficina de Miguel Lopes Ferreira, 1694, p.63.
  • 5
    Frei Luis de León, da Ordem de Santo Agostinho, traduziu e comentou em castelhano os Cânticos, o que lhe valeu pena de prisão e destruição da obra. Somente foi autorizada a publicação em 1580 de uma versão em latim da mesma LEÓN, 2013LEÓN, Fr. Luís de, O.S.A. Cântico dos cânticos. Petrópolis: Vozes, 2013..
  • 6
    Havia diferença no caráter dos votos de ambos. O voto assumido por fr. João de Santa Teresa era solene, e marcava o ingresso formal no estado regular. O voto da beata era simples, porque não implicava a entrada na clausura, mas apenas o compromisso de viver em castidade no século.
  • 7
    SANTA CATARINA DE SENA. Cartas completas. São Paulo: Paulus, 2005, p.171.
  • 8
    A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional: Paulus, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2015
  • Aceito
    24 Mar 2015
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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