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“Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade!”: Produção e circulação de poesias no Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do século XX

“How Many Poets Lost Forever, How Many Rhymes Fated into Oblivion of Humanity!”: Production and Circulation of Poetry in Rio de Janeiro in the Late 19th Century and Early 20th Century

Resumos

Este artigo elege como locus de observação a cidade do Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do XX. Nele busca-se analisar a produção e circulação de algumas poesias compostas por pessoas com pouca ou nenhuma educação formal e os possíveis usos e funções que seus autores conferiram a seus poemas.

História; Poesia; Rio De Janeiro


This article elects the city of Rio de Janeiro in the late 19th and early 20th centuries as locus of observation. It analyzes the production and circulation of poetries composed by people with little or any formal education. Also, it analyzes possible uses and functions that the authors gave to their poetries.

History; Poetry; Rio De Janeiro


As palavras que servem de título a este artigo foram tomadas de empréstimo de João do Rio. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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,p. 96) 1 1 Esta obra é uma reunião das crônicas e reportagens publicadas pelo autor entre 1904 e 1907, na Gazeta de Notícias e na revistaKosmos. Em 1908, João do Rio as reeditou em livro, com o título A Alma Encantadora das Ruas, pela editora Garnier. No seu A alma encantadora das ruas, este cronista definiu o Brasil como um país “essencialmente poético”, no qual não havia um cidadão, “mesmo maluco, que não tenha feito versos”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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,p. 92) No caso específico do Rio de Janeiro, afirmava ele, o grande empório das formas poéticas eram “o armazém, o ferro velho, a aduana, o belchior”, (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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,p. 76) pois a poesia brotava nas “classes mais heterogêneas”, de tal maneira que “a câmara regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as escolas grosas de nefelibatas, a cadeia fornadas de elegíacos”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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,p. 102)

Uma cidade com muitos poetas: esta é a imagem do Rio de Janeiro de inícios do século XX que o cronista transmite ao leitor, embora na sua visão estas poesias e seus autores estivessem destinados ao “olvido da humanidade”, porque deles quase não se tinha registros.

De fato, a poesia brotava em vários espaços da sociedade carioca, só que dependendo dos seus autores e receptores, ela emergia revestida de diferentes funções e usos e circulava por meio de diferentes suportes materiais.

Nos meios letrados, a preferência por versos vinha acompanhada da ideia de símbolo de status. Desta forma, quem escrevia poesias se tinha “na conta de um ser privilegiado e que se faz respeitar. Cada soneto que publica ou cada conto que assina eleva-o do solo mais um palmo”. (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 440)

Poetas literários,2 2 A expressão “poetas literários” será utilizada neste artigo para denominar os poetas de formação letrada e diferenciá-los dos “poetas de rua”. conhecidos ou neófitos no gênero, publicavam suas obras em jornais, folhetos e livros. Parte destes poemas surgiu nas repúblicas onde residiam os estudantes das faculdades de Direito e Medicina. Nelas, estes rapazes encontraram as condições necessárias para se destacar como um grupo que desenvolveu um ethos peculiar, cujas manifestações mais visíveis foram a literatura e a boêmia. (CANDIDO, 1985CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985., p.p. 147-157) Foi nelas, também, que os poetas-estudantes encontraram seu público receptor e crítico, fechando um circuito que acentuava seu caráter de exceção em relação ao restante da sociedade, que só era abandonado quando, após formados bacharéis, inseriam-se na vida “séria” e procuravam apagar as marcas de ligação com as poesias que produziram na juventude. (CAMILO, 1997CAMILO, Vagner.Risos entre Pares: poesia e humor românticos. São Paulo: Edusp, 1997., p. 38)

Isto não significa dizer que todos eles tenham se desligado totalmente do hábito adquirido nos tempos de academia. Vários deles continuaram a escrever poesias e, em alguns casos, lançando mão da mesma verve brincalhona e bem humorada dos tempos de estudantes. Ocorreu com Olavo Bilac que, quando trabalhava na Secretaria do Governo do Estado do Rio, chegou a escrever um ofício em versos que diziam:

Niterói, 10 de janeiro,

Saúde e fraternidade.

Demita-se o tesoureiro

Por falta de assiduidade.

E lavre-se a portaria,

O decreto ou o alvará,

Que entrega a Tesouraria

Ao poeta Luís Murat.

(EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.388)

Nos jornais, as poesias apareciam associadas a diversas situações tais como felicitar aniversários natalícios; galantear leitoras; homenagear personagens ou episódios; tecer comentários sobre a reputação alheia nas colunas “A pedidos”; lançar palpites de jogo do bicho; satirizar a política e seus representantes ou fazer propagandas de produtos. (EDMUNDO, 200EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003.6, p.571)

No caso da publicação por meio de folhetos e livros, pode-se dizer que a poesia, assim como outros gêneros literários, foi beneficiada pela expansão do mercado editorial pela qual passou o Rio de Janeiro desde as últimas décadas do século XIX, a despeito do alto índice de alfabetização de sua população. (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação. Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.)

Se inicialmente o livro foi visto como uma mercadoria associada à erudição e acessível a poucos leitores endinheirados, aos poucos ele se transformou num produto ao qual consumidores de diferentes origens sociais e poderes aquisitivos puderam ter acesso, assim como passou a ser vinculado a outras qualidades e possibilidades de uso.

O processo de popularização do livro foi fruto das ações perpetradas por editores, que investiram em transformações materiais para reduzir os preços dos exemplares, privilegiando as edições em brochuras e o ecletismo literário para atingir o maior número possível de consumidores.

Com isto, desde fins da década de 1850 o carioca assistiu ao crescimento progressivo de livrarias nas quais eram oferecidos desde livros para crianças e adultos de ambos os sexos, até peças de teatro, romances, poesias e manuais de utilidade.3 3 Embora parte destas publicações tivesse como alvo o público feminino, a publicação de “livros para homens”, oferecendo poesias eróticas e obscenas, ocupou um lugar nada desprezível naquele mercado. (EL FAR, 2004) Apenas para que se tenha ideia desta expansão, podemos mencionar que, entre 1859 e 1880, 124 negociantes de livros estavam estabelecidos no Rio e se apresentavam como “mercadores de livros”, “lojas de livros”, “armazéns de livros”, “livrarias”, “lojas de livreiros – antiquários” e “livreiros – antiquários e alfarrabistas”. 4 4 Para estas informações foram consultados os exemplares do Almanack Laemmert de 1859 a 1880. Disponível em: http://www-apps.crl.edu/brazil/almanak; Acesso em: 29 jan. 2015.

Parte significativa desta publicação era anunciada como “popular” ou para o “povo”, embora tais expressões não indicassem um gênero literário específico naquele contexto. De acordo Alessandra El Far, os livros ditos “populares” foram obras produzidas a baixo custo que, ao “invés de delimitar, segmentar, restringir, tinham o propósito de estabelecer um comércio capaz de ampliar, extrapolar, superar as fronteiras econômicas e sociais”. (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação. Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 80)

As transformações materiais que levaram à produção destas publicações baratas, acessíveis a diferentes gostos, que João do Rio pejorativamente denominou “literatura sarrabulhenta”, (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 47) contribuíram para a ampliação do público consumidor de literatura da época. Com isto, tanto os leitores abastados, que frequentavam as finas livrarias da Rua do Ouvidor, quanto os de menor poder aquisitivo, que afluíam às livrarias menos “nobres”, localizadas nas ruas da Quitanda, Uruguaiana, Sete de Setembro, S. José, Assembleia, Carmo, Rosário e Ourives, podiam adquirir os livros de sua preferência para ler solitariamente ou “escutar” em leituras em voz alta e comunitárias. 5 5 A leitura em voz alta e comunitária era uma das mais importantes formas de circulação e apropriação de textos na sociedade brasileira oitocentista.

Além de comercializadas em livrarias, as brochuras baratas podiam ser adquiridas diretamente de vendedores ambulantes, que compunham uma “chusma incontável que todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe aos morros, percorre os subúrbios, estaciona nos lugares de movimento”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p.29)

Mas, para além das poesias assinadas por indivíduos de formação letrada, veiculadas nos periódicos ou passíveis de serem adquiridas em livrarias ou por meio de vendedores ambulantes, outras tantas foram produzidas por indivíduos que dispunham de pouca ou nenhuma educação formal, e circularam de boca em boca por espaços de sociabilidade, tais como ruas, botequins, casas de pastos, cortiços e serestas, ou em locais de convivência forçada, como as cadeias.

Estes poetas de rua, tais como os poetas literários, tomavam como fonte de inspiração temas que faziam parte do cotidiano do cotidiano de pessoas comuns, como eles próprios, e compunham quadrinhas também permeadas por um tom satírico e brincalhão. Desta maneira, pode-se dizer que versos revestidos de sentidos mágicos, obscenos, eróticos, políticos ou irônicos, atrelados a comportamentos solitários ou comunitários, encontravam-se em disponibilidade para serem apropriados livremente pelos mais diversos sujeitos.

O que vimos procurando sublinhar é que a difusão da poesia impressa não decretou o fim da transmissão de poesias por meio da oralidade, que continuou a ocupar espaço significativo numa sociedade majoritariamente analfabeta, embora elas e seus agentes produtores tenham recorrentemente sido reputados excêntricos ou de “obtusa ingenuidade”, pelos indivíduos que faziam parte do mundo das letras. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 25)

Este artigo elege como locus de observação a cidade do Rio de Janeiro, no período que abrange de fins do século XIX e início do XX. Nele, busca-se analisar a produção e circulação de poesias compostas por pessoas comuns, de pouca ou nenhuma formação letrada, e os possíveis usos e funções que seus autores e receptores a elas conferiram, um tema que vem despertando a atenção da academia nas últimas décadas, em diferentes áreas de conhecimento, dentre elas a História. (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação. Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.; WISSENBACH, 2002WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002.; ABREU, 1997ABREU, Márcia. Entre a oralidade e a escrita: um estudo dos folhetos de cordel nordestinos. E.L.O, Algarve, n. 3, p.p. 1-7, 1997.)

O corpus documental selecionado é composto por registros fragmentados e dispersos que são, na sua maioria, indiretos e comprometidos com a visão de mundo de sujeitos que não faziam parte dos mesmos segmentos sociais dos autores e receptores das poesias que aqui serão privilegiadas, os quais projetaram sobre os mesmos suas avaliações parciais e muitas vezes preconceituosas. Em função desta especificidade, estes documentos serão lidos nas suas entrelinhas, para que deles se possa vislumbrar um quadro mais amplo sobre diferentes formas de circulação, apropriação e resignificação, que apontam para as dinâmicas entre os níveis “popular” e “erudito” no campo da cultura, pensados nas suas interelações recíprocas, num processo constante de circularidade. (GINZBURG, 1989GINZBURG, Carlo, Mitos, emblemas e sinais.Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.)

Como dito anteriormente, as transformações pelas quais a palavra impressa passou no Rio de Janeiro, a partir de meados do século XIX, não significaram a exclusão das práticas de oralidade do seu cotidiano. Ao contrário, o mundo oral e o escrito, o falado e o impresso conviveram, e a poesia veiculada na forma de canção é um dos testemunhos (mas não o único!) deste fenômeno.6 6 É necessário esclarecer que a música não será objeto das investigações deste artigo e que ela aqui aparece como um suporte material que permitiu a transmissão de poesias entre segmentos sociais com pouca ou nenhuma educação formal, para os quais a oralidade era parte constitutiva de suas experiências cotidianas. Neste sentido, e apesar de estar consciente de que o “binômio melodia/texto é a forma mais indicada para se ter como referência” ao lidar com testemunhos históricos dessa natureza, é preciso considerar também, tal como observado por Vinci de Moraes, que as formulações poéticas neles não ocupam um lugar menor e que elas muitas vezes “concedem mais indicações e caminhos que as estritamente musicais”, bem como “indícios importantes para compreender não somente a canção, mas também parte da realidade que gira em torno dela”. (VINCI DE MORAES, 2000, p. 215)

Luiz Edmundo observou que, ao adentrar o século XX, o Rio de Janeiro era uma cidade na qual não se compreendia “lua no céu sem seresta, sem viola e sem cantigas”, (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.167) de tal forma que, quando a

urbe adormece, por ermas ruas e revéis caminhos, andam grupos de seresteiros, a cantar. Em grupos numerosos, lá vão eles ferindo violões, cavaquinhos, bandurras e bandolins, os chapéus desabados no sobrolho, nos bolsos dos paletós, frascos da branca, ou de vinhaça. Andam léguas e léguas, assim a tocar, a cantar, até que venha a luz do dia. [grifo no original] (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.166)

Elegendo a seresta como um dos locais de disseminação da música, Luiz Edmundo ainda diria que havia dois grupos de seresteiros: os chorões e os cantores de modinhas. Dentre os primeiros, que se sobressaíam pelo uso de instrumentos “gemedores” que tocavam canções “lamuriosas”, não era raro encontrarem-se músicos e intérpretes de nomeada e até mesmo premiados pelo Conservatório de Música. O segundo grupo era composto por cantadores de modinhas e tocadores de violão, sem formação em música, que se distinguiam pela sonoridade da voz, (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 166-167) e atualizavam seu repertório adquirindo “brochuras, que se vendem até pelas portas dos engraxates, a cavalo, num barbante”. (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.453)

Parte deste repertório, ao qual se refere este memorialista, circulava de forma impressa por meio de cancioneiros que se tornaram muito comuns no Rio de Janeiro, a partir dos anos 1860.

Os cancioneiros eram publicações lítero-musicais que continham letras de canções e, mais raramente, partituras.7 7 A presença de poucas partituras nos cancioneiros talvez se explique pelo fato de que elas tinham um nicho de mercado próprio, explorado pelos inúmeros editores de música que se estabeleceram no Rio de Janeiro desde os anos 1840. (SOUZA, 2013) As poesias neles compiladas eram tanto de escritores conhecidos quanto anônimos, embora a presença da poesia de autoria desconhecida nem sempre fosse vista com bons olhos por alguns literatos. Sobre ela diria Silvio Romero, na sua advertência aos Cantos populares do Brasil, ser de pouca importância e exígua, tanto que lhe reservou a última e menor parte da sua compilação. (ROMERO, 1883, p. VI)

‘A publicação de cancioneiros no Rio de Janeiro foi parte de um fenômeno mais amplo. Em Portugal, França e Itália, estas edições já existiam havia algum tempo e, lá como aqui, revelaram tanto o interesse romântico pelos cantos populares, quanto uma tendência à divulgação da música através do teatro e pela veiculação de obras “populares” para um público ampliado. (MENCARELLI, 2003MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, industria e diversidade cultural no Rio de Janeiro (1868-1908). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003., p.256) 8 8 Todas as informações sobre cancioneiros foram coligidas em MENCARELLI (2003) e FERLIN (2006).

Pesquisas recentes vêm demonstrando que a quantidade de edições destas publicações em disponibilidade no Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século XIX, foi significativa. Raros foram os cancioneiros que tiveram uma única edição, sendo que alguns tiveram muitas delas, como ocorreu com o Trovador de esquina ou repertório do capadócio, editado 15 vezes, e o Cancioneiro popular de modinhas brasileiras que, até onde se sabe, teve 25 edições, o que indica a popularidade deste tipo de publicação. Mesmo os editores mais elitizados, que se especializaram na publicação de livros caros e escritos por autores consagrados, como Garnier e Laemmert, não abriram mão de explorar esta fatia do mercado e publicaram, respectivamente, a Cantora brasileira (1878) e o Cantor de modinhas brasileiras (1895). (MENCARELLI, 2003MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, industria e diversidade cultural no Rio de Janeiro (1868-1908). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003., p.p. 261-171)

O comércio destes cancioneiros parece ter sido tão lucrativo que houve editor que imprimiu mais de um deles, como foi o caso de J.G. de Azevedo, que publicou Lyra do trovador, Serões fluminenses e Trovador brasileiro. Mas parece ter sido Pedro da Silva Quaresma quem mais investiu neste tipo de publicação a ponto de organizar a Biblioteca dos Trovadores, composta por 10 volumes intitulados Cancioneiro Popular, Lira Brasileira, Choros de Violão, Trovador Moderno, Trovador Marítimo, Cantor de Modinhas, Lira de Apolo, Lira Popular, Trovador de Esquina e Serenatas. (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 453 e FERLIN, 2006FERLIN, Uliana. A polifonia das modinhas.Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro na passagem do século XIX ao XX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006., p.17)

Luiz Edmundo nos legou informações importantes sobre o perfil dos frequentadores das livrarias da cidade, que provavelmente foram alguns dos consumidores destes cancioneiros. Além de homens e mulheres das elites, que afluíam às elegantes livrarias do Garnier e do Laemmert, onde podiam adquirir a Cantora brasileira ou a Cantora de modinhas brasileiras para alegrar seus saraus e reuniões de salão, outros fregueses preferiam as livrarias localizadas no entorno da Rua do Ouvidor. Diferentemente da outra, esta era uma freguesia

perguntona, espalhafatosa, vozeiruda, que arranca notas de dois e cinco mil réis do fundo de lenços de chita, muito sujos, armados em carteiras, para comprar as brochurinhas, postas em capas de espavento, não raro aos empurrões, aos gritos, o violão de baixo do braço, ou experimentando flautas, oboés, cavaquinhos... (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.454)

A julgar pelas palavras de Luiz Edmundo, pessoas comuns e músicos de oitiva, que carregavam seus violões a tiracolo, eram assíduos frequentadores de livrarias. Havia mesmo ocasiões em que a mais famosa delas, a de Pedro da Silva Quaresma já aqui citada, enchia-se

(...) de rapazelhos de calças abombachadas, grandes cabeleiras, lenços no pescoço e chapéu abanado, pardo-vascos, negros crioulos, brancos, amadores do assunto, em bandos rumorosos, desbastando pilhas de brochuras. (...) É o Chico Chaleira do Morro do Pinto, é o Trinca Espinhas da Travessa da Saudade, no Mangue, o Chora na Macumba, o Janjão da Polaca, o Espanta Coió, toda uma legião de cantores, de seresteiros, de sereneiros, a flor da vagabundagem carioca, essência, sumo, nata da ralé (...) [grifos no original] (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p.454)

Nesta passagem, Luiz Edmundo se remete a uma parcela da população carioca tradicionalmente vista como desordeira e perigosa, a “nata da ralé”, isto é, os capoeiras ou capadócios, como também eram conhecidos. Sua descrição destes personagens coincide com a de outros contemporâneos. No seu Festas e Tradições Populares, Mello Moraes Filho referiu-se aos capoeiras como jovens que usavam “chapéus de palha ou de feltro, cujas abas reviravam, segundo convenção”. (MORAES FILHO, 2002MELLO MORAES FILHO, A. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002., p. 328)

No trecho aqui reproduzido, Luiz Edmundo também cita nomes de alguns dos membros desta “flor da vagabundagem carioca” e define o grupo como composto por “pardo-vascos, negros crioulos, brancos”, nos legando um registro do perfil étnico e social que a capoeira passou a ter a partir da década de 1870 quando, além de escravos, passou a ser uma prática comum entre libertos e brancos livres. (PIRES, 2001PIRES Antonio Liberac C. S. Movimentos da cultura afrobrasileira: a formação histórica da capoeira contemporânea (1890-1950). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2001.)

Além de capoeiras, muitos destes rapazes eram também seresteiros e rufiões, como foi o caso de Manduca da Praia, que foi tudo isto ao mesmo tempo. Manduca era um “cabra” de cabeleira encaracolada, que lhe caía sobre “a testa marrom”, que andava “como um marreco, rebolando o traseiro, agitando o abombachado das calças”, (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 232) sempre usando um

paletó de um só botão, fechando em baixo, calças de linho, brancas, duras à força de goma e de trincal, faixa e o luxo de umas botinas inteiriças, das de elástico, das chamadas “reiúnas” de “sarto arto” e sempre furiosamente engraxadas. No pescoço, lenço de faille azul... Relógio com chatelaine de cabelo no bolso da calça e um chapeuzinho três pancadas, batido em toldo de barraca, sobre a linha dos olhos. (EDMUNDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 232)

Ao descrever a figura de Manduca, Luiz Edmundo acentuava elementos tais como o lenço ao pescoço e o “chapeuzinho três pancadas”, informações estas que são reiteradas por Melo Moraes Filho que dedicou a Manduca algumas páginas do seu Festas e tradições populares, no capítulo intitulado “Tipos das ruas”, por meio das quais ficamos conhecendo um pouco mais sobre este personagem.

Capoeirista era o Manduca, e dos valentes, só que não fazia parte de nenhuma malta, exercendo a “capoeira por sua conta e risco”. (MORAES FILHO, 2002MELLO MORAES FILHO, A. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002., p. 333) Sua fama de bravura era conhecida a ponto de ter sido mencionada no jornal O Paiz, que o definiu como “metido a valente”, embora não passasse de “um vagabundo”. 9 9 O Paiz. “Reduto abandonado”, 17 de novembro de 1904, nº 7.345, p. 02. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba. Vagabundagem e capoeiragem mais uma vez aparecem relacionadas, como se fossem sinônimos, deixando entrever a imagem que a república construiu para os capoeiras, como sendo indivíduos apartados do mundo do trabalho o que, por sua vez, justificava a repressão aos mesmos.

Morador da Cidade Nova, Manduca possuía uma banca de peixe, na Praça do Mercado, na qual negociava e ganhava o suficiente tanto para tratar-se “com regalo”, quanto para ficar conhecido como “homem de negócio”. (MORAES FILHO, 2002MELLO MORAES FILHO, A. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002., p. 333) Levando em conta estas informações, podemos sugerir que, diferentemente do que afirmara o jornal O Paiz, Manduca, assim como tantos outros homens livres pobres que agenciavam seus próprios negócios, era um trabalhador que possuía habilidades para contabilizar e administrar ganhos monetários, embora não se tenha informação de que ele soubesse ler e escrever o que, todavia, não é de todo improvável. Se a alfabetização era prerrogativa do mundo das elites, não se deve esquecer que ela também “ligava-se direta ou indiretamente às sociabilidades existentes no mundo das cidades, entretidas entre escravos, forros, negros nascidos livres [e] brancos pobres”, (WISSSENBACH, 2002SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2003., p., 113) ampliando-se para além dos segmentos tradicionalmente alfabetizados.

Foram ainda os lucros auferidos com seu trabalho que permitiram a Manduca usufruir de uma renda que, ao longo do Império, lhe garantiu o direito de votar na Freguesia de S. José. (MORAES FILHO, 2002MELLO MORAES FILHO, A. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002., p. 332) Este é um dado importante pois, ser votante numa sociedade em que 80% da população encontravam-se à margem dos processos eleitorais formais, não era algo trivial e transformava alguns homens livres pobres, como Manduca, em indivíduos que podiam exercer alguns direitos de cidadania. (MENEZES, 1996MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis:desclassificados da modernidade – protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890/1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996., p. 51)

Além de capoeira e trabalhador, Manduca era um apaixonado por música, tanto que andava com “o violão sempre na unha”, pronto para cantar “com chiste” os versos da “solfa gaiata do Ai ladrãozinho”, que diziam:

Esse teu lábio de coral

(Tem dó!)

Dá-me um beijinho

Não te pode fazer mal

(Um só!)

(MORAES FILHO, 2002MELLO MORAES FILHO, A. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002., p. 230)

Os versos de Ai ladrãozinho! eram de autoria de Catulo da Paixão Cearense que, antes de ficar famoso e ter poesias publicadas em cancioneiros, popularizou-se compondo letras de canções para serem entodas com melodias já consagradas entre a população. No caso de Ai ladrãozinho!, a música por ele utilizada foi o tango brasileiro Brejeiro, de Ernesto Nazaré. (EDUMDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 171)

Catulo da Paixão Cearense, por sua vez, era de uma condição social e financeira que o aproximava dos boêmios e desordeiros da cidade, tanto que ao longo de sua carreira ele se empenhou em deles diferenciar-se, por não desejar “ser confundido com os capadócios, os vagabundos de violão em punho que eram perseguidos por sua condição social duvidosa, desordeiros, desempregados e pobres”. (FERLIN, 2006FERLIN, Uliana. A polifonia das modinhas.Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro na passagem do século XIX ao XX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006., 110) A despeito disto, suas poesias se tornaram populares entre uma parcela da população que ele próprio desconsiderava, a ponto de ser uma das preferidas de Manduca.

Parte desta produção poética, que não chegou aos prelos, além de intrinsecamente ligada ao autor, forma e local em que era composta, tinha seu ponto forte na transmissão oral, (EDUMDO, 2006EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003., p. 167) notadamente entre indivíduos para os quais a canção era importante não apenas nos momentos de lazer e sociabilidade, mas também nos de trabalho, sendo o caso de um tatuador de nome Madruga, exemplar neste sentido.

Madruga exercia seu ofício nas Ruas da Conceição e S. Jorge. Nelas, ele atendia vendedores ambulantes, operários, soldados, criminosos, rufiões e meretrizes, e se envolvia em questões que o levaram várias vezes à cadeia. Era também nas ruas, nos momentos em que marcava os corpos de seus clientes, que ele compunha modinhas satíricas e versos, muito versos, como estes que diziam “Venha quanto antes d. Elisa/Enquanto o Chico Passos não atiça/Fogo na cidade...”, embora para grande parte dos indivíduos letrados não se pudesse chamar tais versos de poesia. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 19)

Sobre esta produção poética que circulava de boca em boca, João do Rio chamou atenção para o fato de que ela ensejava o plágio, como ocorreu com um “gatuno” da Casa de Detenção que lhe disse que os versos da modinha A cor morena, eram de um amigo seu, (RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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RIO, s/d, p. 94) ou ainda como alardeava um certo Antônio, detento por crime de ferimentos nesta mesma cadeia, que se intitulava autor da modinha Nasci para te Amar.

As considerações de João do Rio denotam seu pouco apreço pelas práticas de oralidade e sua preocupação em relação a um direito relativamente novo - o do autor sobre sua criação – que, embora tenha alimentado querelas (judiciais ou não) em torno da questão da propriedade literária ao longo do século XIX, só começou a se desenhar no Código Penal de 1890. (NEVES, 2004NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Do privilégio à propriedade literária: a questão da autoria no Brasil Imperial (1808-1861). In: Anais Eletrônicos do I Seminário sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro: FCRB, 2004. Disponível em: www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/luciabastosneves.pdf.
www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/l...
) Em contextos de oralidade, porém, a questão da autoria não tinha o mesmo peso que possuía para a cultura letrada. O processo de memorização de um texto ou poema não significava decorar fielmente as palavras, mas reter a estrutura das narrativas. Assim, ao reproduzir versos “decorados”, o declamador seguia os passos fundamentais do enredo, que apresentava à sua maneira e com suas palavras, o que levava à modificação recorrente das poesias, que emergiam como fruto de criação coletiva. (ABREU, 1997ABREU, Márcia. Entre a oralidade e a escrita: um estudo dos folhetos de cordel nordestinos. E.L.O, Algarve, n. 3, p.p. 1-7, 1997., p. 4)

Sobre estes poetas das ruas e suas poesias temos outras informações, que nos chegaram por meio de algumas reportagens feitas e publicadas por João do Rio. Nas duas semanas que passou na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, entrevistando presos, ele coletou uma série de poemas originalmente compostos para serem cantados, os quais os detentos lhe enviaram escritos em papéis repletos de erros de ortografia, enchendo seus bolsos do que pejorativamente denominou “quadras penitenciárias”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 96) A julgar pelas informações de João do Rio, pode-se dizer que estes poetas tinham certo domínio da escrita, embora seu forte fosse a palavra oral, tanto que ao escrever seus versos demonstravam pouco traquejo com as regras da língua culta.

Chamou a atenção do cronista que a maior parte daqueles detentos preferisse colocar suas iniciais, ao invés do nome, nos versos que lhe enviaram o que, na sua visão, podia ser motivado por “timidez ou outra razão mais obscura”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, 92-93) O que João do Rio parecia não considerar, neste caso, é que, para além da timidez e de possíveis “razões obscuras”, a preferência pelo uso das iniciais talvez indicasse um trânsito entre o mundo escrito e o oral. Se levarmos em consideração que muitos daqueles poetas liam (ou simplesmente viam) livros e jornais, nos quais as poesias eram recorrentemente assinadas com as iniciais dos autores, fica possível sugerir que a opção por assinarem seus versos desta mesma forma pode ser considerada a apropriação de uma prática bastante comum nos meios letrados.

Tal a quantidade de poetas que a cadeia abrigava que João do Rio observou ser possível com eles compor um copioso “cancioneiro da cadeia”, (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 95) embora tais versos, de acordo com suas próprias palavras, servissem apenas ao deleite de “caixeiros de botequim, rapazes do povo, dos vadios, do grosso, enfim da população”. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 31) Ou, dito de outra forma, para ele, aquelas poesias não tinham valor literário, na medida em que tanto seus autores quanto seus receptores eram iletrados e desqualificados socialmente. Visto deste ângulo, pode-se perceber o tanto de preconceito estético e social continha a expressão “cancioneiro da cadeia”, cunhada pelo cronista.

João do Rio oferece, ainda, uma descrição dos talentos poéticos que encontrou na Casa de Detenção. Segundo ele, os companheiros do “Prata Preta, pessoal da Saúde” eram naturalmente repentistas, mas também existiam “trovadores simples, cançonetístas ocasionais”, poetas “eróticos” como Chico Bem-te-vi, e poetas de rua, como o Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da Cadeia Nova, o Luizinho. (RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. p. 92-104)

Embora os versos destes presos fossem inspirados em diversos temas que faziam parte do seu cotidiano, era significativa sua preferência por assuntos que diziam respeito a acontecimentos políticos. De assuntos políticos, falavam as quadrinhas remetidas a João do Rio por um dos detentos, recebidas das mãos “do guarda Antônio”:

Meus amigos e camaradas

As coisas não andam boas

Tomaram Porto Artur

Na conhecida Gamboa

Mas eu que não sou de ferro

Meu corpo colei com lacre

Que não gosto de chalaças

Lá nos borrachas do Acre.

(RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 95)

Também foram acontecimentos políticos o tema que serviu de inspiração à poesia de um lundu,10 10 Na música brasileira, lundu é uma palavra que pode ser utilizada para denominar um tipo de dança popular; um tipo de música de salão e também um tipo de canção folclórica. Antes de serem popularizados pelo teatro, os lundus foram dançados e cantados em festas ou encontros informais nas áreas rurais e urbanas. (SANDRONI, 2001) de autoria de um certo Carlos F. P., que João do Rio diria ser “comovente” (Céus...meus! por piedade/Tirai-me desta aflição!/Vós!... socorrei os meus filhos/Das garras da maldição!), e o estribilho ainda mais tocante:

São horas, são horas

São horas de teu embarque

Sinto não ver a partida

Dos desterrados do Acre.

(RIO, s/dRIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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, p. 95)

Os versos destes dois detentos remetem-se ao episódio conhecido na historiografia como Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro no ano de 1904, bem como a seus desdobramentos punitivos sobre a população pobre da cidade, notadamente a que habitava a área portuária, da qual faziam parte os bairros da Saúde, Sacos do Alferes e de São Cristóvão, Gamboa e Cidade Nova, reduto de alguns daqueles poetas que se encontravam reclusos na Casa de Detenção.

A revolta deu ensejo a uma repressão policial expressiva. Prendia-se qualquer indivíduo que fosse maltrapilho, que não tivesse endereço e emprego fixo ou que fosse considerado vagabundo, o que transformou os capoeiras em alvo preferencial da suspeição da polícia.

O destino de cerca duas mil pessoas presas ao longo da revolta foi inicialmente a Ilha das Cobras de onde, após sofrerem espancamentos, eram colocadas em navios-prisão e deportadas para o Acre, para trabalhar nos seringais. 11 11 Todas as informações sobre a Revolta da Vacina firam coligidas em SEVCENKO, 2003 e sobre os desterrados do Acre em SILVA, 2010.

O Porto Artur, mencionado nestas quadrinhas, foi o nome com que os jornais denominaram o bairro da Saúde, numa analogia à fortaleza do mesmo nome na guerra russo japonesa. Neste bairro, destacaram-se alguns líderes dos revoltosos, como Horácio José da Silva, o mesmo Prata Preta citado por João do Rio, que o jornal A Notícia comparou ao general russo Anatoly Stoessel, definindo-o como

um homem de 30 anos presumíveis, alto, de compleição robusta, completamente imberbe. A sua fama de homem valente e rixento não foi desmentida, pois ele era visto nos pontos mais perigosos das trincheiras e barricadas, atirando de carabina nas forças atacantes. Sendo impossível prendê-lo no reducto, a polícia preparou-lhe uma emboscada (...). Hoje, às 9 horas Prata Preta retirou-se das trincheiras para ir almoçar em uma casa de pasto, quando os agentes atiraram-se sobre ele para prendê-lo (...) 12 12 A Notícia, 16 e 17 de novembro de 1904, ano XI, nº 273, p. 01. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Prata Preta foi desterrado para o Acre, em 25 de dezembro de 1904, no navioItaipava. Na mesma notícia em que anunciou sua prisão ,o jornalO Paiz elegeu outro “líder” dos distúrbios ocorridos no bairro da Saúde, ninguém menos que Manduca, definido por esta folha como desordeiro perigoso eum vagabundo que há tempos pertencera a um dos corpos do exército”, filho de um “açougueiro do lugar, rapaz novo, moreno, metido a valente [que] andava sempre com uma espingarda (...) acompanhado de uma corneta”.13 13 O Paiz. “Reducto abandonado”, 17 de novembro de 1904. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba.

O Jornal do Commercio chegou a publicar uma lista das alcunhas dos indivíduos presos durante a revolta, da qual constavam nomes como Carvão de Pedra, Espanta Patrulha, Ferro Velho, Escangalhado, Canela de Vidro, Cara Queimada, Espanta Cachorros, Galinha Choca, Beiço Rachado, Papa Ovos, Chico Vagabundo, Malagueta, Rato Branco, Orelha Cortada, Boca de Fogo, Foguete, Cambachirra, Escrófula e Tripa Limpa,14 14 Jornal do Commercio.”Os sucessos de novembro”, 14 de janeiro de 1905. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. os quais, quem sabe e a julgar pela natureza dos apelidos, talvez fossem conhecidos ou amigos dos poetas Chico Bem-te-vi, Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, e Manezinho da Cadeia Nova.

Mas, para além de capadócios, rufiões, seresteiros e capoeiras, temos informações de que escravos e forros também escreveram ou demonstraram interesse por poesias.

Nos anúncios sobre escravos fugidos, publicados em periódicos ao longo do século XIX, não apenas destacavam-se as marcas presentes em seus corpos, mas também suas aptidões, com o intuito de que fossem mais facilmente identificados. Um certo escravo de nome Luiz, por exemplo, foi descrito num destes anúncios como “cabra 22 anos, altura regular e corpulento, pés grandes, cabelos grenhos, olhos vivos e pequenos, falta de dentes na frente”, que sabia ler e escrever, e andava sempre com papéis nas algibeiras e gostava de recitar versos. (Apud SCHWARCZ, 1987SCHWARCZ, Lilian. Retrato em branco e preto. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 141-142)

A preferência do escravo Luiz por versos não chega a surpreender. Afinal, a poesia estava intimamente associada ao trabalho dos escravos urbanos e das áreas rurais desde a primeira metade do século XIX, recorrentemente aparecendo na forma de canção.

João José Reis observou que a música servia aos escravos que habitavam as cidades, notadamente os carregadores, não apenas para imprimir ritmo ao trabalho e dar uniformidade aos passos, mas também para aliviar o espírito e como instrumento de denúncia da escravidão ou de escárnio dos senhores. (REIS, 1993REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, p.p. 8-24, 1993., p. 12)

Escravos improvisavam versos que eram cantados durante as jornadas de trabalho, como vários viajantes estrangeiros tiveram oportunidade de presenciar e registrar em seus relatos, quase sempre de maneira pejorativa. Daniel Kidder foi um deles. Nas suasReminiscências de viagens e permanência no Brasil, ele afirmou que ouvira carregadores de café, que trabalhavam nas ruas do Rio, entoando “alguma canção selvagem de suas pátrias distantes”, embora não tenha registrado os versos que ouviu, provavelmente por serem cantados numa língua que lhe era estranha. (KIDDER, 1940KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1940., p.47).

Nas áreas rurais, nos encontros proporcionados pelos jongos realizados nos terreiros das fazendas, os pontos oferecem outro testemunho da presença da poesia no mundo do escravo só que, neste caso, em momentos de lazer.

O ponto foi a expressão poética entoada pelos jongueiros nas rodas de jongo, os quais muitas vezes utilizavam metáforas ou expressões em dialetos africanos para passar mensagens incompreensíveis aos senhores e feitores. (LARA e PACHECO, 2007LARA, Silva Hunold e PACHECO, Gustavo (orgs). Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein (Vassouras, 1949). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007.)

Alguns dos versos destes pontos foram coletados por Stanley Stein, nas pesquisas que desenvolveu em Vassouras, nos anos 1940. Foi ele quem pioneiramente decifrou as letras de alguns pontos com a ajuda de seus entrevistados. Stein alertou para a força política das críticas à escravidão e aos senhores nelas presente, como em um ponto que dizia “com tanto pau no mato, embaúba é coronel”, cujo significado ele explicou da seguinte maneira: a embaúba era uma madeira mole e o coronel era o coronel da Guarda Nacional. Combinando ambos, percebe-se a mordacidade do comentário embutido nestes versos. (STEIN, 1990STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 248)

No Pós Abolição, foi também por meio dos pontos entoados nas rodas de jongo que os libertos mantiveram vivas suas memórias do tempo de cativeiro, ou deles se utilizaram como instrumento de crítica à realidade por eles vivenciada. Esta dimensão política é perceptível nos versos “Ai, não deu banco p’ra nos sentar / Dona Rainha me deu cama, não deu banco p’ra me sentar”, os quais criticavam a falta de acesso à terra que, na visão dos libertos, era um dos limites da liberdade promovida pela Abolição. (ABREU e MATTOS, 2006, p. 9).

Mas certamente um dos registros mais instigantes da presença do negro no espaço da poesia é “Minerva” Navio Negreiro, poema de autoria de um certo Gungo Moquiche.

Tomamos conhecimento deste poema, que faz parte da Coleção Pedro Correia do Lago (Instituto Moreira Salles), por meio do trabalho de Marialva Carlos Barbosa. (BARBOSA, 2010BARBOSA, Marialva Carlos. História, testemunho e valores: Modos de comunicação e escravos do século XIX. In: QUEIROZ, Adolpho Carlos F. e SCHAUN, Ângela (orgs). Memória, Espaço e Mídia. São Bernardo do Campo: Cátedra UNESCO / Metodista de Comunicação, 2010.) Como nossas pesquisas não avançaram no sentido de localizar maiores informações sobre Gungo Moquiche e seu poema, mas sem querer abrir mão da possibilidade de utilizá-lo, em função da riqueza que oferece ao historiador, decidimos analisá-lo a partir de uma dupla perspectiva: a possibilidade de este poema ter sido escrito por um liberto ou de ser obra de alguém que quis se fazer passar por um.

Reproduzimos, a seguir, alguns versos do poema e o texto final que o acompanha:

Agora sinhô baranco

Q`outro galo já canto,

Sumcê passa p`ra trazi

- Eu p`ra flente vou!

Pois, sumcê lisencioso

Do serebiço do tição

Acha bom, acja gossitoso

Amburi a cravidão?

Pois, sumcê licencioso

De famia do tição

Direitinho, abre zóio

P`ra não leva bofetão?!

Dando cumplimento di óridi de maiorá, mando primi berrhiço que sitá crito ni quaquê com bléma di nabio qui nosso transposipotô para terá di baranco, onde nosso ficou si cravo até 13 de Maio do 1888. Acaay-acay amollorum. Chuta di Zambezy, 3 di Marhiço do anno di centenaio di Bassitia di 1889 – Libredade

Gungo Moquiche, zi crivinhandô. (BARBOSA, 2010BARBOSA, Marialva Carlos. História, testemunho e valores: Modos de comunicação e escravos do século XIX. In: QUEIROZ, Adolpho Carlos F. e SCHAUN, Ângela (orgs). Memória, Espaço e Mídia. São Bernardo do Campo: Cátedra UNESCO / Metodista de Comunicação, 2010., p.9)15 15 Esta poesia encontra-se transcrita na íntegra em LAJOLO, 2010, p. 52, e também disponível em: http://www.peif.ufms.br/downloads/meus-alunos-nao-gostam-de-ler_lajolo.pdf.

A existência de cativos que dominavam a escrita já foi apontada por Cristina Wissenbach, que localizou cartas anexadas a autos judiciários redigidas de próprio punho por escravos. Tais cartas servem para demonstrar a presença de práticas e os usos da escrita em dimensões ordinárias e cotidianas, entre sujeitos que até pouco tempo atrás não se imaginava pudessem dominar a escrita e a leitura. (WISSENBACH, 2002WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002., p., 111)

O poema de Gungo Muquiche pode ser considerado mais um testemunho neste sentido, mesmo se for levado em conta não ter sido ele o autor, uma vez que ele evidencia o reconhecimento, por parte de contemporâneos, da presença do letramento entre alguns escravos e ex-escravos, tendo sido com base neste conhecimento que talvez alguém o tenha escrito, mas procurando fazer crer ser obra de um liberto. 16 16 A expressão “letramento” será aqui entendida tal como proposto por Magda Becker Soares, isto é, como “o estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. (SOARES, 1998, p. 18) A partir desta perspectiva, alguém que não seja alfabetizado pode ser considerado, em alguns casos, um “letrado” em função dos usos que faz da escrita.

Ainda de acordo com Cristina Wissenbach, sendo a alfabetização e a escrita prerrogativas do mundo dos brancos, seu domínio transformava-se em elemento de afirmação social, sendo uma habilidade exibida com orgulho,“não só nas relações com a sociedade mais ampla, mas também naquelas estabelecidas intragrupos sociais; no contexto dos relacionamentos existentes entre os dominados e como forma de afirmar as hierarquias existentes entre eles”. (WISSENBACH, 2002WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002., p. 112)

Esta dimensão encontra-se presente na parte final do poema, em que Gungo Muquiche, ou quem assim se denominou, definiu-se como “crivinhandô”. Ou, dito de outra forma, fosse um liberto real ou alguém que se fazia passar por um, ambas as possibilidades apontam para a importância da palavra impressa como símbolo de afirmação social numa sociedade em que a escravidão criou impedimentos concretos ao aprendizado formal para os cativos, tanto que o poeta fez questão de explicitar que mandara “primi berrhiço” como emblema “di nabio qui nosso transposipotô para terá di baranco, onde nosso ficou si cravo até 13 de Maio do 1888”.17 17 De acordo com Cristina Wissenbach, escravos ou ex-escravos só conseguiam aprender a ler e escrever em situações específicas tais como pertencerem a plantéis de ordens religiosas e do clero ou serem trabalhadores que exerciam atividades autônomas. (WISSENBACH, 2002, p. 110) Cremos ser ainda possível sugerir que este aprendizado talvez possa ter ocorrido como desdobramento do contato com os ledores, nas leituras comunitárias.

Além disto, pode-se também sugerir que, se estes versos foram escritos por um liberto, eles oferecem oportunidade para perceber-se que a relação do autor com a matéria escrita conserva procedimentos típicos de situações de oralidade, presentes no uso de uma linguagem arrevezada, comum entre escravos e ex-escravos. Todavia, não se deve deixar de levar em consideração que, se escritos por alguém que quisesse se fazer passar por um cativo, estes mesmos versos oferecem possibilidades para ridicularização e infantilização dos ex-escravos, por neles ter sido utilizada o que no século XIX pejorativamente chamava-se “língua de preto” ou “língua de negro da costa”. (SOUZA, 2009, p.162).

Por fim, o teor crítico destes versos também merece ser sublinhado. Se saídos da pena de um ex-escravo, eles apontam para a relação tensa e conflituosa entre brancos e negros, a ponto de o autor advertir o branco que, depois da Abolição, o negro andava “p`ra flente”, e que ele deveria abrir os “zóio, p`ra não leva bofetão”. Mas, se escritos por alguém que não era um ex cativo, eles transmitem o medo que rondou a cabeça de muitos senhores temerosos quanto ao destino a ser dado ao liberto “e alimentou debates acalorados entre parlamentares que, instados a elaborar leis que extinguissem a escravidão, se sentiam em cima de um vulcão, como alguns deles diziam, e se viam como os próprios promotores da explosão que dele poderia advir”, (SOUZA , 2009, p. 165), medo este que persistiu pelo menos nos anos iniciais ao pós-Abolição.

De tudo o que foi dito, cremos ser possível elaborar algumas observações que, no entanto, estão longe de ser conclusivas. Em primeiro lugar que, se grande parte desta poesia circulava de boca em boca, tinha como autores e receptores pessoas comuns, geralmente apartadas do mundo das letras, somos levados a sugerir que é bem possível que Silvio Romero estivesse equivocado na sua avaliação ao considerar esta produção poética exígua, e que é bem provável que ela tenha sido numericamente superior ao que dela se tem registro nos dias de hoje. Mais procedente talvez fosse pensar que foram seus preconceitos literários que o levaram a assim avaliá-la. Neste sentido, e mesmo que partilhando de preconceitos semelhantes aos de Silvio Romero, o memorialista Luiz Edmundo e o cronista João do Rio acabaram por registrar um quadro rico sobre a produção, circulação e apropriação das poesias compostas por poetas de rua, contribuindo para que elas não se perdessem para sempre, caindo no “olvido da humanidade”.

Da mesma forma, é passível de questionamento o fato de Silvio Romero considerar tais poesias de pouco interesse. Talvez esta produção poética fosse de pouco interesse para alguém que, como ele, não fazia parte dos segmentos marginalizados da sociedade, que foram os alvos preferenciais da suspeição dos poderes constituídos e da polícia, os quais encontraram na poesia um canal privilegiado para politizar e construir uma leitura crítica sobre acontecimentos que tinham desdobramentos concretos sobre suas vidas e afetavam suas experiências cotidianas, como fizeram os autores dos pontos de jongo, Gungo Muquiche e os dos versos que falavam da Revolta da Vacina.

Creio ser possível ainda considerar que estas poesias servem para demonstrar a convivência e a troca entre oralidade e escrita, apontando para o fato de quanto são tênues os limites entre estes dois mundos, sendo a apropriação de práticas próprias ao mundo da escrita por poetas de rua, que utilizaram as iniciais dos seus nomes para assinar seus versos, um bom exemplo neste sentido.

Por fim, mas não em último lugar, torna-se digno de nota que, numa sociedade, como a carioca de fins do século XIX e início do século XX, em que “uns leem, outros escutam, ou simplesmente veem, mas todos aproximam-se bem ou mal da escrita, todos percebem-na e experimentam sua presença. (WISSENBACH apud FABRE, 2002WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002., p. 20) Visto desta perspectiva, a existência de escravos e ex escravos capazes de dominar a escrita e a leitura, pode desvelar histórias desconhecidas sobre a escravidão e o pós Abolição, descortinado novas perspectivas de análise para os historiadores.

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  • MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, industria e diversidade cultural no Rio de Janeiro (1868-1908). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.
  • MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis:desclassificados da modernidade – protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890/1930). Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.
  • NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Do privilégio à propriedade literária: a questão da autoria no Brasil Imperial (1808-1861). In: Anais Eletrônicos do I Seminário sobre Livro e História Editorial Rio de Janeiro: FCRB, 2004. Disponível em: www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/luciabastosneves.pdf.
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  • PIRES Antonio Liberac C. S. Movimentos da cultura afrobrasileira: a formação histórica da capoeira contemporânea (1890-1950). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2001.
  • REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, p.p. 8-24, 1993.
  • RIO, João do. A alma encantadora das ruas Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, s/d. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action&co_obra=2051.
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  • SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2003.
  • SILVA, Francisco Bento. Acre, a “pátria dos proscritos”: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.
  • SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
  • SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Música de todo preço, música barata e música de alto coturno”: história, política e partituras musicais no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Saeculum, João Pessoa, n. 28, p.p. 177-193, jan./jun de 2013.
  • SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Que venham negros à cena com maracás e tambores”: jongo, teatro e campanha abolicionista no Rio de Janeiro.AfroAsia, Salvador, vol. 40, p.p. 145-171, 2006.
  • STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
  • VINCI DE MORAES, José Geraldo. História e Música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p.p. 203-221, 2000.
  • WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002.
  • 1
    Esta obra é uma reunião das crônicas e reportagens publicadas pelo autor entre 1904 e 1907, na Gazeta de Notícias e na revistaKosmos. Em 1908, João do Rio as reeditou em livro, com o título A Alma Encantadora das Ruas, pela editora Garnier.
  • 2
    A expressão “poetas literários” será utilizada neste artigo para denominar os poetas de formação letrada e diferenciá-los dos “poetas de rua”.
  • 3
    Embora parte destas publicações tivesse como alvo o público feminino, a publicação de “livros para homens”, oferecendo poesias eróticas e obscenas, ocupou um lugar nada desprezível naquele mercado. (EL FAR, 2004EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação. Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.)
  • 4
    Para estas informações foram consultados os exemplares do Almanack Laemmert de 1859 a 1880. Disponível em: http://www-apps.crl.edu/brazil/almanak; Acesso em: 29 jan. 2015.
  • 5
    A leitura em voz alta e comunitária era uma das mais importantes formas de circulação e apropriação de textos na sociedade brasileira oitocentista.
  • 6
    É necessário esclarecer que a música não será objeto das investigações deste artigo e que ela aqui aparece como um suporte material que permitiu a transmissão de poesias entre segmentos sociais com pouca ou nenhuma educação formal, para os quais a oralidade era parte constitutiva de suas experiências cotidianas. Neste sentido, e apesar de estar consciente de que o “binômio melodia/texto é a forma mais indicada para se ter como referência” ao lidar com testemunhos históricos dessa natureza, é preciso considerar também, tal como observado por Vinci de Moraes, que as formulações poéticas neles não ocupam um lugar menor e que elas muitas vezes “concedem mais indicações e caminhos que as estritamente musicais”, bem como “indícios importantes para compreender não somente a canção, mas também parte da realidade que gira em torno dela”. (VINCI DE MORAES, 2000VINCI DE MORAES, José Geraldo. História e Música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p.p. 203-221, 2000., p. 215)
  • 7
    A presença de poucas partituras nos cancioneiros talvez se explique pelo fato de que elas tinham um nicho de mercado próprio, explorado pelos inúmeros editores de música que se estabeleceram no Rio de Janeiro desde os anos 1840. (SOUZA, 2013SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Música de todo preço, música barata e música de alto coturno”: história, política e partituras musicais no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Saeculum, João Pessoa, n. 28, p.p. 177-193, jan./jun de 2013.)
  • 8
    Todas as informações sobre cancioneiros foram coligidas em MENCARELLI (2003)MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, industria e diversidade cultural no Rio de Janeiro (1868-1908). Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003. e FERLIN (2006)FERLIN, Uliana. A polifonia das modinhas.Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro na passagem do século XIX ao XX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006..
  • 9
    O Paiz. “Reduto abandonado”, 17 de novembro de 1904, nº 7.345, p. 02. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba.
  • 10
    Na música brasileira, lundu é uma palavra que pode ser utilizada para denominar um tipo de dança popular; um tipo de música de salão e também um tipo de canção folclórica. Antes de serem popularizados pelo teatro, os lundus foram dançados e cantados em festas ou encontros informais nas áreas rurais e urbanas. (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.)
  • 11
    Todas as informações sobre a Revolta da Vacina firam coligidas em SEVCENKO, 2003SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2003. e sobre os desterrados do Acre em SILVA, 2010SILVA, Francisco Bento. Acre, a “pátria dos proscritos”: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010..
  • 12
    A Notícia, 16 e 17 de novembro de 1904, ano XI, nº 273, p. 01. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
  • 13
    O Paiz. “Reducto abandonado”, 17 de novembro de 1904. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba.
  • 14
    Jornal do Commercio.”Os sucessos de novembro”, 14 de janeiro de 1905. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
  • 15
    Esta poesia encontra-se transcrita na íntegra em LAJOLO, 2010, p. 52, e também disponível em: http://www.peif.ufms.br/downloads/meus-alunos-nao-gostam-de-ler_lajolo.pdf.
  • 16
    A expressão “letramento” será aqui entendida tal como proposto por Magda Becker Soares, isto é, como “o estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. (SOARES, 1998SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998., p. 18) A partir desta perspectiva, alguém que não seja alfabetizado pode ser considerado, em alguns casos, um “letrado” em função dos usos que faz da escrita.
  • 17
    De acordo com Cristina Wissenbach, escravos ou ex-escravos só conseguiam aprender a ler e escrever em situações específicas tais como pertencerem a plantéis de ordens religiosas e do clero ou serem trabalhadores que exerciam atividades autônomas. (WISSENBACH, 2002WISSENBACH, Maria Cristina C. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n° 4, p.p. 103-122, jul./dez. 2002., p. 110) Cremos ser ainda possível sugerir que este aprendizado talvez possa ter ocorrido como desdobramento do contato com os ledores, nas leituras comunitárias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015

Histórico

  • Recebido
    9 Fev 2015
  • Aceito
    12 Abr 2015
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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