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“Cru e quente”: autores ansiosos, leitores insatisfeitos

“Haste makes waste”: anxious authors, unsatisfied readers

O cotidiano dos trabalhos editoriais de uma revista envolve uma tarefa árdua, infindável e decisiva: o processamento do fluxo contínuo de artigos e o cumprimento regular das etapas do processo editorial previstas pelas instruções e normas de publicação. O que pode parecer, à primeira vista, um trabalho relativamente burocrático requer, na verdade, esforço intelectual e muitos cuidados éticos.

Aspectos formais são avaliados logo na chegada do artigo (observância das normas de citação, extensão do texto, conferência de títulos, resumos e palavras-chave, ou mesmo a presença de informações sobre a autoria que comprometam o anonimato do julgamento a seguir). Mas esse é só o começo dos trabalhos dos membros do Conselho, que precisam ler o texto, avaliar sua pertinência segundo a missão da revista e verificar sua originalidade frente a outros artigos já publicados pelos especialistas (evitando plágios), mas também frente ao conjunto da produção do próprio autor. Para todas essas tarefas, a cada dia surgem mecanismos de busca e comparação. Mas nenhum deles dispensa a experiência e análise atenta dos editores que precisam se perguntar: o texto apresentado trará novidades aos nossos leitores? Ou será uma repetição mais ou menos modificada de outros escritos do autor, cada um contendo uma parte da pesquisa cujo conteúdo geral os leitores terão que buscar, juntando várias “fatias” publicadas em diferentes revistas, capítulos de livros ou trabalhos completos em anais? Um provérbio popular corrente diz que “apressado come cru e quente”. A publicação regida pela ansiedade leva, aos periódicos e aos leitores, pesquisas incompletas, dados mal refletidos, fontes utilizadas sem criatividade, escritas mal revisadas, conclusões inadequadas e incorretas, omissões imperdoáveis na revisão bibliográfica. No caso do título em inglês deste editorial (diante da impossibilidade de uma tradução literal escolhi o ditado “haste makes waste”), a pressa acarreta também o desperdício na vida acadêmica. Artigos “fatiados” desperdiçam o tempo (dos editores, dos revisores, dos leitores), assim como o espaço exíguo das publicações, a atenção e a curiosidade dos leitores. Dissipam, sobretudo, a chance de oferecer conhecimento transformador, girando em torno de si mesmos, cada autor se regozijando com o aumento do número de suas publicações, ameaçados todos por um terrível niilismo e pela perda dos valores éticos indispensáveis à prática científica.

Combater o salami slicing ou a least publishable unit(LPU) envolve uma série de considerações éticas sobre o sentido efetivo das publicações científicas na produção do conhecimento, entendido aqui como elemento transformador das sociedades humanas e do mundo em que vivemos. Agências de fomento estão cada vez mais preocupadas com a inflação de publicações de menor valor acadêmico, pois elas dificultam a avaliação de méritos e resultados reais para atribuição de futuros financiamentos. As revistas têm um papel decisivo nesse complexo problema: elas devem ser agentes de estímulo à publicação de artigos amadurecidos, com resultados de pesquisa realmente significativos, garantindo a satisfação de um leitor em busca de conhecimento inovador, de diálogo científico, de caminhos instigantes para suas próprias reflexões e pesquisas.

A quem serve a publicação? Ao produzir saber, um investigador precisa de meios de comunicação eficientes para sua difusão. Pouco valem análises excelentes e dados inovadores quando esquecidos no fundo das gavetas. Publicar, ser lido, estimular o pensamento, abrir-se ao diálogo com os pares, oferecer-se como pedra fundamental para outras pesquisas, mas também arriscar-se à crítica e à superação do que se fez. Direi o que é óbvio, mas tantas vezes esquecido: publicar é fazer do conhecimento produzido umacoisa pública. Por tudo isso, a publicação não pode ter sua razão de ser nela mesma, a serviço do aumento de índices quantitativos de produção.

Termino com outro ditado: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Equilíbrio é necessário. Exigir que um autor só publique quando a pesquisa parecer completamente terminada geraria imensa paralisia, impediria o debate e o amadurecimento dos temas pela comunidade acadêmica.

Nem cru e quente, nem overdone, o bom artigo surge da observação de um delicado equilíbrio na divulgação de resultados da pesquisa acadêmica. A comida “al dente” é aquela que estimula a mastigação, preserva o frescor do alimento e seu sabor original, incentivando a digestão mais lenta e proveitosa. Um bom pesquisador parece ter algo de “chef”, oferecendo aos seus pares a degustação de textos estimulantes – naquele raro e inigualável ponto exato – que saciem, tanto quanto despertem, o apetite por novos saberes.

O conselho editorial de Varia Historia tem trabalhado com afinco para oferecer artigos inéditos e sólidos, que possam nutrir pesquisas, inovações, pensamentos e ações. Em nossos processos editoriais, lançaremos sempre uma questão aos potenciais autores: afinal, o que vocês têm a oferecer de verdadeiramente novo e realmente instigante aos leitores de refinado paladar?

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Armando Olivetti a revisão do texto. Diane Grosklaus Whitty e Lise Sedrez ajudaram na decisão sobre o título em inglês.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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