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Da resistência à desobediência: Augusto Boal e a I Feira Paulista de Opinião (1968)

From Resistance to Disobedience: Augusto Boal and The First Paulista Fair of Opinion (1968)

Resumo

Em 1968, Augusto Boal dirigiu a I Feira Paulista de Opinião, mobilizando artistas de teatro, música, poesia, cinema, fotografia e artes plásticas. A peça sofreu a censura prévia do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que lhe aplicou dezenas de cortes que afetariam drasticamente o entendimento pelo público. Muitos dos participantes da Feira - sobretudo o núcleo ligado ao Teatro de Arena de São Paulo ou inspirado por ele - passaram a incorporar diferentes estratégias de ação política em evidência no âmbito nacional e internacional, como desobediência civil, e propor alternativas de resistência político-cultural, como ações judiciais. As conquistas estético-políticas, em maturação desde o final da década de 1950, não foram completamente abolidas, mas foram instrumentalizadas em busca de eficácia política, passado o golpe de 1964. Este artigo analisa pormenores desse evento artístico-cultural, sua relação com a censura teatral e a configuração de espaços alternativos de resistência cultural.

Palavras-chave
teatro; censura; resistência cultural

Abstract

In 1968, Augusto Boal directed the I Feira Paulista de Opinião (First Paulista Fair of Opinion), in which he mobilized theater artists, musicians, poets, cinematographers, photographers, and visual artists. The event suffered prior censorship from an official government agency called Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), which was responsible for regulating public recreation. The SCDP implemented dozens of cuts that dramatically affected the audience's understanding of the play. Many of the Fair attendees - especially at the core of the Arena Theater of São Paulo or inspired by it - have incorporated different political strategies, actions that had wide repercussions at the national and international level (such as the civil disobedience), and the participants also proposed political and cultural resistance alternatives (lawsuits). The aesthetic and political achievements, which have occurred since the late 1950s, were not completely abolished; they have been converted into efficient policies, after the coup of 1964. This article examines the details of this artistic event, concerning its relationship with the theatrical censorship and the configuration of alternative spaces for cultural resistance.

Keywords
Theater; censorship; cultural resistance

A I Feira Paulista de Opinião foi um espetáculo realizado em São Paulo, no ano de 1968, com a direção de Augusto Boal. Um dos seus objetivos era engajar a intelectualidade brasileira, aquela em consonância com os movimentos de esquerda na luta contra a ditadura e que, de alguma forma, ainda vivia sob o signo das experiências estéticas anteriores ao golpe de 1964. Arte e ditadura, como afirmou Boal em sua autobiografia, são incompatíveis (Boal, 2000BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.257) e era preciso restituir um campo que permitisse atuar com liberdade estética e política pós-golpe civil-militar. O espetáculo e tudo relacionado a ele acabou por se tornar uma espécie de mito do chamado "teatro de resistência" no Brasil e, mais que isto, tornou-se símbolo da resistência cultural à ditadura militar, articulando uma série de impasses tanto estéticos quanto políticos que, de certa forma, foram nivelados pelo (de) uso da genérica definição de resistência - que, como afirmou Marcos Napolitano, "não faz jus aos intensos debates e muitas alternativas da época", ao contrário, fez "tábula rasa de todas as posições da resistência cultural, construindo uma memória de consenso" (2011, p.12).

Para além da construção da memória social e a partir da análise das fontes, a Feira, como evento artístico-cultural, é compreendido aqui como uma obra de resistência, especialmente no que tange à sua concepção de roteiro e encenação, e expressão da desobediência civil, no que se refere à sua relação com a censura e a ditadura.

De acordo com Nicola Matteucci, historicamente o termo "resistência" referiu-se a todos os movimentos e formas de oposição que emergiram no contexto da II Guerra Mundial contra a ocupação alemã e italiana. Ainda que, no seu entendimento lexical, trate-se "de mais de uma reação que de uma ação, de uma defesa que de uma ofensiva, de uma oposição que de uma revolução", pode existir resistência espontânea e voluntária, com motivações ativa e passiva. A primeira limita-se "a não colaboração, a sabotar passivamente, nos ministérios e nas fábricas, as iniciativas do inimigo", enquanto a segunda "ataca com o fim de o desmoralizar, estando a sua máxima manifestação na guerrilha, de características diversas" (Bobbio; Matteucci; Paquino, 2004BOBBIO, Norbert; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004., p.1114-1116).

Para Hannah Arendt, a definição de política exigia uma profunda reformulação após a experiência totalitária, na qual o termo "resistência" consagrou-se como uma luta heroica do indivíduo contra o "mal absoluto", em defesa da dignidade humana e da liberdade (Heuer, 2004HEUER, Wolfgang. Coraje en la política sobre um verdulero em Praga, senadores norteamericanos, whistleblowers y uma carreta siciliana. História: Questões e Debates, n. 41, p.167-181, 2004., p.168; apudNapolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.17). Sob esta influência, Wolfgang Heuer desenvolveu o conceito de "coragem civil", analisando-o a partir de três exemplos concretos, sendo o primeiro a resistência ao regime comunista em Praga, o segundo o inconformismo de senadores norte -americanos e o último a organização política contra a máfia siciliana (Heuer, 2004HEUER, Wolfgang. Coraje en la política sobre um verdulero em Praga, senadores norteamericanos, whistleblowers y uma carreta siciliana. História: Questões e Debates, n. 41, p.167-181, 2004., p.170). Nos três estudos de caso, coube tão-somente ao indivíduo a responsabilidade de construir um modo de viver sob um regime da verdade, sem necessariamente se ligar a sistemas fixos de valores (partidários, sociais, religiosos etc.) ou temer sanções impostas de cima para baixo (de regimes totalitários, autoritários, ditatoriais ou mesmo democráticos) (Heuer, 2004HEUER, Wolfgang. Coraje en la política sobre um verdulero em Praga, senadores norteamericanos, whistleblowers y uma carreta siciliana. História: Questões e Debates, n. 41, p.167-181, 2004., p.172-173).

Apesar da ampla repercussão nos trabalhos acadêmicos, esta definição de "resistência", se de um lado adquiriu uma força semântica com profundidade ética e dimensão universal, de outro uniformizou múltiplas experiências, em situações nem sempre similares e nos mais diversos contextos (Napolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.17).1 1 Partindo dessa definição geral, autores das mais variadas matrizes teóricas tentaram classificar os tipos ideais de manifestações de resistência. François Bédarida destacou quatro elementos constituintes: 1) a vontade de dizer não; 2) um combate clandestino voluntário; 3) uma lógica política que opõe democracia versus ditadura; e 4) a construção de uma memória didática com sentido cívico-ético. Roderick Kedward, por sua vez, classificou-as em quatro domínios centrais: 1) a existência de uma consciência da resistência; 2) os valores herdados do passado; 3) a presença de "mediadores" enquanto criadores e transmissores de valores; e 4) a inversão dos valores ideológicos pela força opressora. apudNAPOLITANO, 2011, p.13, p.21.

Entretanto, partindo da premissa citada anteriormente de que toda manifestação de resistência é, com grande frequência, mais uma atitude reativa, se tem seu lado heroico, deve também ser concebida como uma expressão de derrota. Segundo Maria Paula Araujo, assumir a resistência como derrota significa, de certa forma, alimentar a esperança de vitória pautada por valores humanistas (humildade, fé e coragem) e também articular ideologias específicas (comunismo, nacionalismo, socialismo, liberalismo) a bandeiras universais (liberdade, democracia, direitos) (2000, p.124-125 apud Napolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.18).

As manifestações de resistência, como afirmou Alfredo Bosi, tem muitas faces. Na poética brasileira, as formas de expressão estão mais relacionadas à "sublimação lírica", que se utiliza de figuras de linguagem para empreender uma crítica ao presente e são menos voltadas à "arte de barricadas", que costuma exortar uma ação direta e apelar à mobilização coletiva (apud Napolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.19) - como, de certa forma, é o caso da I Feira Paulista de Opinião, aspecto que será mais bem examinado adiante.

Ao partir desse quadro teórico, Marcos Napolitano analisou a resistência cultural ao regime militar não como uma única alternativa consagrada por uma memória de consenso, tendo mapeado múltiplas possibilidades para sua existência. Desde posições ideológicas mais consolidadas, que se firmaram numa cultura política específica, ou como posições conjunturais mais instáveis oscilando entre projetos de várias naturezas (Napolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.12-14), que se interpenetraram - e incidiram diretamente sobre o projeto da I Feira Paulista de Opinião. Grosso modo, a resistência cultural transitou do projeto de "frentismo cultural", até meados de 1960, à projeção da guerrilha urbana, em fins da década. De acordo com Napolitano,

a resistência, desde os seus primórdios, movia-se em meio a um quadro complexo, que ia dos setores mais conservadores aos mais radicais, marcado por três atores principais entre 1964 e 1968: os liberais críticos, porém dispostos a negociar; o Partido Comunista Brasileiro, com ampla penetração entre artistas e intelectuais, cujas principais bandeiras - unidade e volta à democracia - fez com que eles acabassem reféns das vicissitudes dos liberais; e, finalmente, a oposição de esquerda mais radical, disposta a pegar em armas para derrubar a ditadura e que, para tal, tinha que romper com as amarras do PCB, até então principal grupo de esquerda do Brasil (2011, p.28-29).

Uma última consideração a respeito da resistência e que tem relação direta com nosso estudo de caso, é o fato da desobediência civil ser interpretada como uma de suas práticas mais sintomáticas. Teoricamente, a desobediência civil implica a insubordinação dos cidadãos às leis do Estado e fundamenta-se no princípio da ação não violenta. De modo geral, os movimentos de desobediência civil, desde o século XIX, almejaram garantir os direitos fundamentais do homem, contrapor-se à ação violenta do Estado e exteriorizar as contradições existentes na sociedade.2 2 Entre as principais referências da desobediência civil pode-se citar Henry David Thoreau (1817-1862) que foi quem a fundamentou teoricamente (1997), John Ruskin (1819-1900), Léon Tolstói (1828-1910), Mahatma Gandhi (1869-1948) e Martin Luther King Jr. (1929-1968).

Desta forma, pode-se dizer que alguns movimentos de resistência na esfera das artes também se colocaram em situação de desobediência civil e apresentaram as quatro etapas de atuação preconizadas por Martin Luther King3 3 Para ele, os movimentos de desobediência civil e os atos de resistência não violenta deveriam apresentar quatro etapas básicas: 1) reunir exemplos de injustiça, 2) tentar negociar com o Estado, 3) promover autocrítica do movimento, corrigir erros estratégicos e aguardar resposta dos governantes e, na ausência de acordos, 4) promover resistência aberta às leis injustas e condições indignas. VIEIRA, 1984. , de forma mais ou menos estruturada: primeiro, reuniram-se elementos contra a censura; depois, buscou-se a negociação com o governo e também efetuou-se a autocrítica do movimento. Sem resultados efetivos, transferiram-se as discussões em torno da censura para o âmbito judicial.4 4 Posteriormente, adotaram outras formas de negociação com o governo, mas aí já se está diante de outra faceta dessa complexa articulação, analisada em outra ocasião. GARCIA, 2013.

A I Feira Paulista de Opinião vai além do formato "peça teatral", ainda que planejada para ser apresentada num dos principais teatros da capital paulista, sob direção de um dos mais renomados dramaturgos brasileiros, no emblemático ano de 1968. Tratava-se de uma produção cultural com o objetivo político de reunir artistas de diferentes matizes e linguagens, mas que compartilhavam de um ideal comum: a luta contra a ditadura, começando pela contestação da censura. Esta movimentação contestatória inicialmente ligada a um núcleo de artistas, acabou desencadeando uma greve de teatros nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que, por sua vez, culminou na organização do movimento "Contra a censura, pela cultura" (Boal, 2000BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.257; Garcia, 2012bGARCIA, Miliandre. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à ditadura militar no Brasil. ArtCultura, vol. 14, p.1-25, 2012b.).

Intitulada inicialmente Os Sete Pecados Capitalistas, a ideia original partiu de Lauro César Muniz (Boal, 2000BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.255), que já tinha tratado do assunto com José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina (apud Santos, 2015SANTOS, Patricia Freitas de. Pedagogia da atuação: um estudo sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no exílio latino-americano. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015., p.72-73; Rodrigues, 2015RODRIGUES, Eder Sumariva. O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira. Tese (Doutorado em Teatro) - Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2015., p.188). Mas foi com Augusto Boal e o Teatro de Arena que o projeto ganhou a forma de I Feira Paulista de Opinião e mobilizou artistas de teatro, música, poesia, cinema, fotografia e artes plásticas.

Prevista para ser apresentada neste teatro paulista, a I Feira Paulista de Opinião acabou realizada primeiramente no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, depois no Teatro de Alumínio, em Santo André, até chegar ao Teatro Ruth Escobar, também na capital paulista para, em seguida, partir em turnê para o Rio de Janeiro. Toda a produção do espetáculo esteve sob constante ameaça de violência, tanto simbólica como a realizada pela censura oficial, quanto física, como a exercida clandestinamente por organizações paramilitares. Dentre estas, uma granada foi jogada dentro do teatro no Rio, e, por sorte, não explodiu. Em São Paulo, o elenco também já havia passado por momentos perturbadores (Boal, 2000BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.257-259). Em vídeo-depoimento, Chico Buarque mencionou que a violência praticada contra o elenco de Roda Viva5 5 Em 17 de julho de 1968, cerca de 30 homens armados com revólveres, cassetetes e socos-ingleses invadiram o Teatro Ruth Escobar, depredaram o teatro e o cenário, invadiram o camarim e agrediram todas as pessoas que estavam lá. O contrarregra José Luís teve a bacia fraturada ao ser atirado do palco nas cadeiras e a atriz Marília Pêra foi despida, espancada e obrigada a correr nua pelas ruas. O ataque ao teatro durou poucos minutos, mas causou enorme prejuízo ao Teatro Ruth Escobar, estimado em 40, 50 milhões de cruzeiros velhos, além das já citadas agressões que, se afirmou, foram motivadas pelo pronunciamento "Vou acabar com Roda viva ", da deputada Conceição Costa Neves, em rede nacional. Três homens foram presos, mas como o delegado de plantão se recusou a lavrar flagrante e, assim, a queixa-crime não serviu nem para identificar os agressores. Especulou-se que um era Flávio Ettori, carteira de identidade n.º 56.203, do Ministério do Exército, outro oficial da Aeronáutica e o terceiro não foi identificado. Sem nenhuma punição, ganharam ainda mais confiança e, num ato de ousadia, escreveram ao jornal O Estado de S. Paulo para avisar que a "Operação Quadro Negro", como ficou denominada, era apenas uma amostra do que podiam fazer. Essas informações foram extraídas de: O teatro exige justiça. Artistas foram a Sodré, estão indignados porque dois terroristas sumiram. Folha da Tarde (São Paulo), 23 jul. 1968, acervo Funarte, e ARRABAL; LIMA; PACHECO, 1979-1980, p.86 talvez tenha tido como alvo também o elenco da Feira, que estava sendo encenada no mesmo teatro, no primeiro piso, mas cujo espetáculo, no dia invasão, tinha acabado mais cedo.6 6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-vwdBzWLjPs; Acesso em: 19 dez. 2015.

Como acontecia indiscriminadamente com todas as representações públicas, a I Feira Paulista de Opinião foi submetida à censura prévia do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) - posteriormente denominado Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) - que, indiretamente, proibiu o texto aplicando-lhe dezenas de cortes. Na impossibilidade de efetuá-los sem prejuízo para seu entendimento, os organizadores da Feira decidiram apresentá-la à revelia da censura. Exteriorizava-se, mais uma vez, o embate entre a intelectualidade e a censura, que já vinha se tornando corriqueiro e inaugurava novas práticas de resistência cultural (Garcia, 2012bGARCIA, Miliandre. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à ditadura militar no Brasil. ArtCultura, vol. 14, p.1-25, 2012b.; 2012cGARCIA, Miliandre. Patética: o prêmio e as censuras (anos 1970). Baleia na Rede, vol. 9, p.135-157, 2012c.). Havia, pois, uma estreita relação entre as esferas da cultura e da política que, nos anos 1960, não se apresentavam estanques, mas se influenciavam mutuamente. É necessário sublinhar que a primeira assumiu, com cada vez mais intensidade, um papel estratégico na oposição à ditadura militar, num momento em que os espaços tradicionais de atuação política foram tolhidos paulatinamente pelos governos militares, através de uma série de medidas, como atos institucionais, inquéritos policiais-militares, interrogatórios, prisões, torturas etc.

No campo estritamente estético, a I Feira Paulista de Opinião converteu-se em espaço político privilegiado de diálogo entre teatro e música, de aplicação do sistema coringa e de desenvolvimento do teatro jornal. Por sua vez, os temas políticos estiveram diretamente relacionados à questão estética e contribuíram para a organização dos artistas numa frente de resistência, uma espécie de ressignificação (e até contraposição) à ideia de "frente única", não mais sob orientação exclusiva do Partido Comunista Brasileiro (PCB),7 7 A Declaração de Março definia como "frente única" a união de setores da burguesia nacional e progressista e do proletariado, com o propósito de concretizar a tão almejada revolução anti-feudal, anti-imperialista, nacional e democrática no Brasil. NOGUEIRA, 1980, p.3-27. O PCB assumia a vanguarda do processo revolucionário e baseava-se, segundo Luiz Carlos Prestes, em "São indispensáveis a crítica e a autocrítica de nossa atividade para compreender e aplicar uma nova política" (1958), na adequação dos princípios universais do marxismo-leninismo às particularidades específicas do desenvolvimento histórico brasileiro. NOGUEIRA, 1980, p.30. mas sob novas influências teóricas (George Lukács, Antonio Gramsci), apostando, por exemplo, numa definição mais precisa de "povo" e num conjunto igualmente heterogêneo, porém distinto, de integrantes. Também se pode considerar que a Feira protagonizou os primeiros atos de desobediência civil no Brasil formalmente constituídos no âmbito da resistência cultural, e inaugurou o processo de judicialização da luta contra a censura que, posteriormente, se desmembrou em vários outros casos, dos quais o mais emblemático, sem dúvida, é Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra (1973) (Garcia, 2012aGARCIA, Miliandre. A luta agora é na Justiça: o processo censório de Calabar. PolHis - Boletín Bibliográfico Electrónico del Programa Buenos Aires de Historia Política, vol. 9, p.267-282, 2012a.).

A intelectualidade brasileira, de certa forma, organizou-se na luta contra o imperialismo norte-americano e seus agentes internos, no pré-golpe, ou contra a ditadura militar e seus mecanismos de controle e repressão, no pós-1964, mas nem sempre nutriu objetivos semelhantes, como ocorreu com liberais, comunistas, grupos contraculturais e a nova esquerda surgida nos anos 1970 (Napolitano, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.11, p.32). Essas iniciativas de confluência estiveram intimamente relacionadas ao debate em torno da formação de uma "frente única" - "política de frente-democrática", como designou Celso Frederico (1998, p.281)FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. MORAES, João Quartim (org.). História do marxismo no Brasil, Vol. III: Teorias, Interpretações. Campinas: UNICAMP, 1998. p.275-304., ou "frentismo cultural", como denominou Marcos Napolitano (2011, p.10)NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. - que, em linhas gerais, é tributária de George Lukács pelo menos até os anos 1970, quando Antonio Gramsci passa a ser lido mais sistematicamente por alguns setores das esquerdas brasileiras (Frederico, 1998FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. MORAES, João Quartim (org.). História do marxismo no Brasil, Vol. III: Teorias, Interpretações. Campinas: UNICAMP, 1998. p.275-304., p.277, p.290).

Tal como afirmou Celso Frederico, o teatro sob controle e repressão se converteu, nesse período, numa "verdadeira trincheira de resistência" (1998, p.281). No momento imediato ao golpe, esteve mais influenciado pela "política de frente-democrática" e teve como expressão mais evidente as produções do grupo Opinião. Porém, nos anos seguintes, ocorreu uma sensível aproximação com a ainda emergente guerrilha urbana, isto é bem visível na trajetória do Teatro de Arena tradicionalmente mais próximo da orientação cultural comunista e da ideia de resistência democrática. Houve uma sintomática aproximação dos grupos dissidentes de esquerda, passando a tematizar a luta armada como ocorreu em Arena Conta Tiradentes, em 1967, atingindo seu ápice com a I Feira Paulista de Opinião, no ano seguinte. "Aqui, tornava-se clara a ruptura com a posição do PCB e a adesão, por parte de alguns autores, das propostas guerrilheiras: uma das peças do espetáculo, abertamente, procurava mobilizar a opinião pública para o apoio aos ensaios da luta armada em curso" (Frederico, 1998FREDERICO, Celso. A política cultural dos comunistas. MORAES, João Quartim (org.). História do marxismo no Brasil, Vol. III: Teorias, Interpretações. Campinas: UNICAMP, 1998. p.275-304., p.282). Referia-se especificamente à peça de Augusto Boal, A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, que será discutida a seguir.

Além desse aspecto assinalado por Celso Frederico no qual o texto não é um inocente reflexo do contexto, mas que há evidente diálogo entre eles, a Feira teve muitos outros significados e, como evidenciou Patricia Freitas dos Santos, "pode ser considerada como um dos feitos teatrais mais importantes da década, ao levarmos em conta seu caráter experimental, processual e, acima de tudo, sua dimensão política, aberta à materialidade e aos movimentos sociais" (2015, p.76).

O roteiro da feira: uma forma de resistência cultural

No domínio do espetáculo I Feira Paulista de Opinião não é possível subjugar os interesses estéticos às demandas políticas, nem tampouco afirmar que as questões ideológicas nortearam as escolhas artísticas. Não há como separar referências estéticas, como o sistema coringa e o teatro jornal de questões políticas como a resistência cultural e a censura teatral. Ambas se influenciaram mutuamente e nenhuma se apresentou como mais importante que a outra. Era preciso fazer teatro, mas era igualmente necessário lutar contra a ditadura. Também não havia um só caminho para fazê-lo, então buscavam diversas possibilidades a partir da experiência anterior. Como afirmou Boal, em suas "memórias imaginadas",

ao Arena havíamos dado repertório com nossa cara e voz; depois do espelho realista, nos vimos metáfora clássica;8 8 Do golpe militar, em 1964, ao exílio de Augusto Boal, em 1971, o Teatro de Arena intercalou a apresentação de peças teatrais e textos musicais, de autoria nacional, e textos clássicos, de autores estrangeiros. As peças teatrais de autores nacionais eram: O Filho do Cão (Gianfrancesco Guarnieri), Opinião (Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes), Este Mundo é Meu (Millôr Fernandes e Sérgio Ricardo), Arena Conta Zumbi (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal), Arena Canta Bahia (Augusto Boal); Arena Conta Tiradentes (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal); Sérgio Ricardo na praça do povo (Augusto Boal), I Feira Paulista de Opinião (vários autores), Chiclete com Banana (Augusto Boal); O Comportamento Sexual Segundo Ary Toledo (Ary Toledo), Arena conta Bolívar (Augusto Boal) e Doce América, Latino América (criação coletiva). As de autores estrangeiros eram: Tartufo (Molière), Tempo de Guerra (texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri e poemas de Bertolt Brecht); O Inspetor Geral (Gógoi); O Círculo de Giz Caucasiano (Bertolt Brecht), La Moschetta (Ângelo Beolco); Mac Bird (Barbara Garson), O Bravo Soldado Schweik (Jeroslav Hasek), A irresistível Ascensão de Arturo Ui (Bertolt Brecht). com o CPC de Santo André, espectadores escreveram peças e personagens e, coroando a libertação, invadiram o palco, atores e personagens. Veio o golpe; recuamos: cantores voltavam a cantar a si mesmos, cada um representando muitos; Zumbi nos permitiu a síntese - nós, agora, contando a nossa história (2000, p.255).

A realização da I Feira Paulista de Opinião está relacionada, portanto, à experiência estético-política do Teatro de Arena que, de alguma forma, influenciou várias atividades artístico-culturais nos anos 1950 e 1960, como os seminários de dramaturgia, o CPC da UNE e o Teatro Opinião. É também uma redefinição da forma de atuação política de muitos artistas que, grosso modo, se materializou em múltiplas possibilidades que iam além da defesa de uma "frente única", expandindo-se em assembleias dos artistas, atos de desobediência civil, greve de teatros e o movimento "Contra a censura, pela cultura" (Garcia, 2012bGARCIA, Miliandre. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à ditadura militar no Brasil. ArtCultura, vol. 14, p.1-25, 2012b.).

Portanto, a organização da I Feira Paulista de Opinião, na concepção de uma das seis peças ou na transição entre elas, deu-se através da assimilação do sistema coringa e do esboço da técnica do teatro jornal,9 9 Mais informações sobre o teatro jornal podem ser consultadas em SANTOS, 2015, p.71-90. ambas desenvolvidas por Augusto Boal. Além disso, todos os textos do espetáculo, que serão apresentadas mais adiante,10 10 São elas: A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, de Augusto Boal, Sr. Doutor, de Bráulio Pedroso, Animália, de Gianfrancesco Guarnieri, A Receita, de Jorge Andrade, O Líder, de Lauro César Muniz, e Verde que te Quero Verde, de Plínio Marcos. dialogaram intimamente com outros setores artísticos, como já era tradição nas produções teatrais sob a direção de Augusto Boal que vinha promovendo a aproximação da dramaturgia com a música, a cenografia e outros, em produções emblemáticas como Show Opinião (1965), Arena Conta Zumbi (1965), Arena Canta Bahia (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967).

No Teatro de Arena, a inauguração do "ciclo dos musicais" e a fundamentação do sistema coringa visavam superar as fases do "realismo fotográfico", que se limitava à análise exaustiva das singularidades, e a da "nacionalização dos clássicos", que se restringia à síntese excessiva das universalidades (Boal, 1983BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983., p.195). Com Arena Conta Zumbi e, em seguida, com Arena Conta Tiradentes, Gianfrancesco Guarnieri e, sobretudo, Augusto Boal tiveram como meta sintetizar essas duas fases: "de um lado o singular, de outro o universal. Tínhamos que encontrar o particular típico" (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.226).

No que diz respeito a essas experiências, um ano depois do golpe de 1964, Arena conta Zumbi destacou-se na aplicação efetiva do sistema coringa e pela crítica contundente à ditadura militar. Desse modo, a montagem de Zumbi reafirmou a liderança do grupo na pesquisa teatral, consolidada desde a encenação de Eles não Usam Black-Tie, em 1958, e também na luta do setor contra a ditadura militar, instaurada em 1º abril de 1964. Sobre o espetáculo, Sábato Magaldi afirmou:

impressionou-me a violência da montagem. Nada houve entre nós, até aquele momento, que significasse uma condenação tão radical da ditadura instalada pelos militares. Todos os aspectos do golpe são analisados, sem que se poupe um. Política exterior, subserviência aos Estados Unidos, as "marchadeiras", a aliança Estado-Exército-Religião, o moralismo pequeno-burguês, a aliança com a corrupção (o ex-governador Ademar de Barros) para combate ao comunismo - tudo é meticulosamente composto, a fim de estimular o espectador no propósito de protesto. A narrativa flui com espontaneidade e inteligência, e as alusões são claramente apreensíveis (1984, p.67-68).

Naquela ocasião, Arena Conta Zumbi não alcançou a síntese entre o singular e o universal tão almejada por seus autores, esta tarefa ficou a cargo de Arena Conta Tiradentes, pois "a verdadeira síntese, é certo, não se lograva: conseguia-se apenas - e isto já era o bastante - justapor 'universais' e 'singulares' amalgamando-os: de um lado a história mítica com toda a sua estrutura de fábula, intacta; de outro, jornalismo com o aproveitamento dos mais recentes fatos da vida nacional" (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.228).

Teórica e artisticamente, Tiradentes atingiu o ápice do teatro brasileiro com a formulação do sistema coringa e superou a qualidade textual e as limitações formais de Zumbi. Quanto à recepção do público, Tiradentes não alcançou repercussão semelhante a Zumbi, que se tornara recorde de bilheteria na história do Teatro de Arena. Para Sábato Magaldi, a racionalidade excessiva e a repetição do método não permitiram a Tiradentes estabelecer comunicação com o público, nem tampouco reproduzir a indisciplina contagiante de Zumbi (Magaldi, 1984MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984., p.80).

Coautor e diretor de ambos os espetáculos, Augusto Boal aplicou a nova técnica na criação da peça Arena Conta Zumbi, e fundamentou o sistema coringa no prefácio da edição de Arena Conta Tiradentes, incorporando os princípios fundamentais do teatro grego, o moderno método de interpretação de Constantin Stanislavski e a teoria do distanciamento (ou estranhamento) do teatro épico de Bertolt Brecht.

Em Arena Conta Zumbi, Boal desenvolveu as técnicas principais do sistema coringa. A primeira técnica consistia em desvincular o ator do personagem: vários atores podiam representar um único personagem, propiciando a rápida identificação do público teatral, o que também era facilitado pelo uso de máscaras como na tragédia grega. A segunda concentrava-se na preparação do elenco responsável por transmitir a opinião coletiva do grupo. "O espetáculo deixava de ser realizado segundo o ponto de vista de cada personagem e passava, narrativamente, a ser contado por toda uma equipe, segundo critérios coletivos" (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.227). A terceira visava eleger estilos e gêneros teatrais, de acordo com as necessidades cênicas do espetáculo, permitindo transitar do "melodrama mais simplista e telenovelesco" à "chanchada mais circense e vodevilesca", e alternar cenas de inspiração realista, surrealista, expressionista e simbolista. Por último, a música tinha a função de preparar a plateia para assimilar mais profundamente o texto. A linguagem musical servia de apoio textual, quando este não era capaz de exteriorizar sozinho o impacto do "tempo de guerra" que permeava a peça Arena Conta Zumbi e as demais que se seguiram a ela. Segundo Gianfrancesco Guarnieri, coautor do espetáculo, nos anos de 1964 a 1969, completava-se com a música o que não se podia dizer com palavras.11 11 GUARNIERI, Gianfrancesco. Sufoco. Entrevistado por Florestan Fernandes Jr.. Folha de São Paulo (São Paulo), Folhetim, p.3, 11 nov. 1979. Era esta também a função da música na I Feira Paulista de Opinião.

A criação dessas técnicas visava atingir metas de natureza estética e também econômica, já que se tratava de uma companhia respeitável por suas experimentações teatrais desde 1958, quando a repercussão da peça Eles não Usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, salvou o Teatro de Arena da falência e conduziu-o à uma redefinição estética (Garcia, 2007GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à canção engajada: a experiência do CPC da UNE. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007., p.20); mas que não tinha a sólida estrutura dos grandes teatros que, por sua vez, também não passaram por melhores momentos no final da década de 1960, quando companhias de renome e público consolidado, como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), encerraram suas atividades artísticas. Tratava-se de um momento delicado para o teatro brasileiro e, independente da estrutura das companhias teatrais, todas elas sofreram, direta ou indiretamente, os efeitos todas aquelas restrições (público escasso, censura teatral, políticas culturais, carga tributária etc.).

Esteticamente, o sistema coringa articulava, pelo menos, três características determinantes. A primeira era a transmissão de uma interpretação coletiva ao público. A segunda relacionava-se à busca por uma estrutura que permitisse infinitas variações na qual o texto assumia a função de transmitir um julgamento, e as cenas a flexibilidade, de apresentar diferentes interpretações. A interação entre o estático e a dinâmica em "cada capítulo ou cada episódio podia ser tratado da maneira que melhor lhe convier [conviesse] sem prejuízo da unidade que será dada, não pela permanência limitadora de uma forma, mas pela pletora referida à mesma perspectiva". A terceira visava articular dois princípios teatrais de natureza antagônica: o do personagem-sujeito, cujo pensamento determinava ação, na formulação stanislavskiana, e o do personagem-objeto, cuja ação determinava o pensamento na interpretação brechtiana. Para solucionar este impasse formal e também preservar a empatia da plateia, a "função protagônica" (a "realidade mais concreta", na qual um ator representava apenas um personagem) contrapunha-se à "função coringa" (a "abstração mais conceitual" na qual um ator desempenhava vários papéis) (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.232-233).

Enquanto a função coringa afastava o público devido ao alto grau abstração, a protagônica resgatava-o, através da fácil identificação da cena. Segundo Augusto Boal, "a empatia se produz com grande facilidade no momento em que qualquer personagem, em qualquer peça com qualquer enredo ou tema, realiza uma tarefa facilmente reconhecível, de caráter doméstico, profissional, esportivo, ou qualquer outro" (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.236).

O lugar estático do ator-protagonista contrapunha-se à condição dinâmica do ator-coringa, que era polivalente porque podia interpretar todos os personagens; onipresente, porque conhecia o desenvolvimento da trama e o objetivo da obra quando desempenhava a função geral e adquiria a consciência de cada personagem quando assumia a função particular. Esta consciência, no entanto, não era nem do ator nem do personagem, mas do autor e do adaptador (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.236-237).

Não só a organização do elenco pretendia integrar um sistema permanente, como também a estrutura do espetáculo. Por isto, o sistema coringa dividia-se em sete partes, especificamente: dedicatória, explicação, episódio, cena, comentário, entrevista e exortação (Boal, 1968BOAL, Augusto. Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena. Revista Civilização Brasileira, ano 4, n. 2, p.213-251, jul. 1968., p.238-240).

No entanto, a repetição dos métodos e as estruturas fixas do sistema coringa não partilhavam da ideia de originalidade perseguida pela arte moderna e, de certa forma, ele acabou sendo responsável pela inflexão do público e pela mais grave crise do Teatro de Arena (Magaldi, 1984MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984., p.106). Segundo Magaldi, depois de Arena Conta Tiradentes, "seria insuportável outra montagem adotar o mesmo esquema. Por felicidade, Boal trilhou outros caminhos" (1984, p.82) sem, evidentemente, negar as experiências anteriores, pois se tratava mais de um processo cumulativo do que de negação do passado.

Um dos caminhos trilhados foi o teatro jornal que, na I Feira Paulista de Opinião, era ainda uma vaga ideia, posteriormente aprimorada no espetáculo Teatro-jornal (Primeira Edição), sob a influência o living newspaper, um projeto teatral idealizado pelo Works Progress Administration, nos Estados Unidos, na década de 1930. Era uma técnica rudimentar que procurava elucidar o aspecto manipulador da imprensa escrita, através da dramatização de notícias cotidianas e mostrar como qualquer pessoa podia utilizar o teatro como meio de comunicação sem, contudo, dispor de condições materiais ou conhecimentos específicos. Inclusive, para discutir essa nova forma, um curso de interpretação foi ministrado por Cecília Thumim e Heleny Guariba (Souza, 2008SOUZA, Edmilson Evangelista. Heleny Guariba: luta e paixão no teatro brasileiro. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho". São Paulo, 2008.), no Teatro de Arena, durante quatro meses de trabalho, em equipe dirigida por Augusto Boal. Segundo o diretor da peça:

o Teatro Jornal é a realidade do jornalismo porque apresenta a notícia diretamente ao espectador sem o condicionamento da diagramação. Algumas de suas técnicas como a do 'improviso' são a realidade mesma: aqui não se trata de representar uma cena, mas de vivê-la cada vez. E cada vez é única em si mesma - como é único cada segundo, cada fato, cada emoção. Neste caso, jornal é ficção, Teatro Jornal é realidade. Entre outras técnicas, porém, Teatro Jornal é teatro, ficção: nas técnicas de ação paralela, ritmo, etc. (apud Vargas, 2015VARGAS, Maria Thereza. Linha dos Tempos - Arena. Disponível em: http://www2.uol.com.br/teatroarena/arena.html; Acesso em: 09 nov. 2015.
http://www2.uol.com.br/teatroarena/arena...
, p.19).

Segundo Boal, "o principal tema da técnica teatral moderna ficou sendo a coordenação de suas conquistas, de forma a que cada novo produto venha [viesse] enriquecer o patrimônio existente e não substituí-lo" (1968, p.233), explorando assim múltiplas possibilidades a serem incorporadas no teatro brasileiro, especificamente no teatro popular. Como afirmou Augusto Boal sobre o sistema coringa, e pode-se acrescentar aqui também o teatro jornal, estes visavam "apenas tornar o teatro outra vez exequível em nosso país" e, assim, "continuar a pensá-lo útil" (1968, p.240). Mas não todo teatro, apenas teatro que era "manifestação sensorial da verdade" e não ignorava a guerra e a fome, no Brasil e no mundo (Boal, 1970BOAL, Augusto. Que pensa você da arte de esquerda?. Latin American Theatre Review, p.45-53, 1970. Disponível em: https://journals.ku.edu/index.php/latr/article/viewFile/93/68; Acesso em: 09 nov. 2015.
https://journals.ku.edu/index.php/latr/a...
, p.46).

Apesar de ser acusado de fazer teatro popular para plateias burguesas, e isto se constituir num dos principais motivos de cisão do elenco em 1960 e fundação do CPC da UNE no ano seguinte,12 12 Segundo Vianinha, "o Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares", "contentou-se com a produção de cultura popular, não colocou diante de si, a responsabilidade de divulgação e massificação" (PEIXOTO, 1983, p.93). todos os grupos de teatro que surgiram nas décadas de 1960 e 1970 e que nutriam expectativas de diálogo com a sociedade e a política são, de múltiplas formas, tributários das atividades do Teatro de Arena. Atividades que não se restringiram a leituras dramáticas ou a encenações teatrais, mas expandiram-se para seminários de dramaturgia e eventos culturais. Todas essas conquistas estéticas relacionadas às questões políticas, de certa forma, culminaram na organização da I Feira Paulista de Opinião, sob a direção de Boal. Nela está contida a ideia de resistência cultural no qual o meio teatral, em parceria com os outros artistas, assumiu o papel de expoente na organização dos atos de desobediência civil, na experimentação prática do sistema coringa e nos esboços da técnica do teatro jornal.

O projeto da I Feira Paulista de Opinião começava com a pergunta "Que pensa você do Brasil de hoje?",13 13 Os textos teatrais mais os documentos citados encontram-se reunidos em: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. à qual mais de 70 artistas aceitaram responder através de textos, músicas, pinturas, poemas, vídeos e fotografias. Os textos foram escritos por Augusto Boal, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro Cezar Muniz e Plínio Marcos; as músicas compostas por Ari Toledo, Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Sérgio Ricardo; as pinturas eram de Aldemir Martins, Clovis Graciano, Wesley Duke Lee, Manabu Mabe, Nelson Leirner, Mário Gruber, Maria Bonomi, Carmélio Cruz, Flávio Império, Sérgio Ferro; e os poemas de Pericles Eugênio da Silva Ramos, Lindolfo Bell, Lupe Cotrin Garraude, Mário Chamie, Bento Prado, Augusto e Haroldo de Campos. A Feira também contou com a participação de cineastas como Sérgio Muniz, Maurício Capovilla e Luís Sérgio Person e fotógrafos como Dulce Carneiro e Derly Marques.14 14 Relação de nomes contida num documento da Sociedade Cultural Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo, 30 maio 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Como se vê pela composição da Feira tratava-se de uma frente de resistência dos mais variados matizes, tendo em comum a luta contra a ditadura militar.

Seis dramaturgos escreveram seis histórias, cada qual abordando um problema específico.15 15 É mais que necessário reconstituir o espaço cênico de concepção do espetáculo, pois ele nos traz outros elementos que o texto escrito não é capaz de exteriorizar. Isto, no entanto, requer um empreendimento com maior tempo de elaboração mapeando os participantes da Feira e buscando vestígios em suas memórias ou mesmo realizando entrevistas com eles, já que os jornais da época e os críticos teatrais, até onde foi pesquisado, não ofereceram informações capazes de reconstituí-lo. A ordem das encenações começou com a apresentação da peça A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, de Augusto Boal, seguida da interpretação do poema Tonada de Manuel Rodrigues, de Pablo Neruda, ambos uma espécie de dedicatória a Che Guevara, assassinado em 1967. Nesta peça, Boal colocou em evidência o sistema coringa e apresentou a técnica do teatro jornal para construir sua "crônica de uma morte anunciada". Ele a definiu como uma colagem de textos do Diário do Che na Bolívia, visando reconstruir seus últimos passos em território boliviano, bem como seu ideal de unificação dos países latino-americanos, associando-o inclusive a um dos mártires do processo de independência da América Latina. Tocou em várias questões sensíveis à censura e tocou em temas proibidos na ditadura militar e, por isto, teve páginas inteiras cortadas numa situação atípica até mesmo para a censura de então, conforme será esmiuçada mais adiante.

A ideia de escrever O Sr. Doutor partiu de um conto publicado anteriormente no jornal O Estado de São Paulo, no qual Bráulio Pedroso narrou a história de um empresário casado, tratado simplesmente como "doutor", possivelmente por força do hábito e não por formação acadêmica, que supunha suprir as necessidades afetivas e mesmo sexuais da esposa através de bens materiais e se excitava com a concretização de um "negócio da China", envolvendo superfaturamento nas negociações com o governo. Sua euforia com tais "esquemas" era tamanha que o fazia descuidar não só casamento como também da saúde, a ponto de aparecer uma "coisa" no seu rosto, que ele julgava ser uma espinha ou um furúnculo fácil de tratar e, por isto, não merecia a devida atenção - afinal ele tinha uma "ordem de preocupações" e a saúde, certamente, não era uma elas. Mesmo com o corpo tomado pelas erupções e vertendo pus e vermes, o "doutor" só pensava na consolidação de uma negociata e, sem um desfecho concreto dessa história, dava-se a transição para a peça seguinte.

Em Animália, de Gianfrancesco Guarnieri, três personagens com características bem marcantes alternavam visões de mundo e práticas cotidianas. O Soldado, com um perfil mais repressivo e em sintonia com as demandas do governo, intercalava referências a "segurança nacional", "subversão", "terrorismo", "corrupção", "armas em punho", "cassetete", enquanto o Hippie, com uma visão acrítica das condições históricas, repetia insistentemente "Façamos amor, não a guerra", "Amor sim, guerra não". Em alguns momentos, essas visões de mundo se complementavam, interpenetravam-se na interpretação do dramaturgo, pois o suposto caráter apolítico do conjunção "paz e amor", de alguma forma, servia à manutenção do poder pelos governos militares. O Moço era o único que lutava efetivamente contra a ditadura militar, entoando palavras de ordem como "Viva a liberdade!" e "Abaixo a ditadura!". De um lado, a Multidão apoiava a ordem vigente tentando calar o Moço com gritos de "Cala a boca" ou desmoralizá-lo mandando-o estudar ao invés de "bancar o herói" e, de outro, a Senhora de orientação liberal, defendia seu direito constitucional de liberdade de expressão. Mudo e Muda representavam a alienação dos trabalhadores em ocupações subalternas, completamente influenciados pelos programas de televisão e pela cultura de massa16 16 De certa forma, resquício da concepção de "cultura de massa" como expressão direta de alienação cultural, conforme definição CORBISIER, 1958, assimilada por Carlos Estevam Martins no anteprojeto do manifesto do Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes (CPC da UNE) (1962). e sem experiência de luta contra a opressão dos patrões.

O Soldado representava os militares, a ditadura; o hippie, a contracultura; o moço, a juventude, as esquerdas (os comunistas e suas dissidências); a Senhora, o velho, os liberais; o Mudo e a Muda, os trabalhadores, cada um exteriorizando seu juízo de valor sobre os demais personagens. A juventude, encarnada no Moço, aparecia como protagonista das mudanças políticas e sociais, e também como principal alvo dos agentes repressivos e até mesmo da sociedade alienada, enquanto a empatia da Senhora pelo Moço representava a atuação de lideranças liberais como mediadores de forças antagônicas, bem como a união das forças progressistas na luta contra a ditadura militar - que não necessariamente se caracterizava pela ausência de conflitos entre seus representantes, condizente com a interpretação de Marcos Napolitano (2011)NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. acerca dessas alianças táticas durante a ditadura militar. Exceto o Moço que apresentava coerência ideológica, e o Soldado, que não tinha princípios morais, os demais personagens apresentavam características ambíguas oscilando entre crítica, adesão, conivência ou apoio à ditadura, aos militares, suas políticas e seus governos.17 17 As conexões entre esse texto de Gianfrancesco Guarnieri e outras duas peças de Oduvaldo Vianna Filho, respectivamente A Longa Noite de Cristal e Rasga Coração, devem ser mais bem investigadas.

A Receita, de Jorge Andrade, abordava a história de um médico numa região rural de extrema pobreza, seus dilemas existenciais diante das necessidades sociais, seu sentimento de impotência diante de problemas estruturais, oscilando entre o juízo de valor e empatia com o oprimido. Apresentava, também, a história de uma família sem recursos que não consegue assistência médica local para tratar das complicações de saúde de seu ente mais produtivo. Sem dinheiro e sem auxílio, sua irmã Carlinda toma uma decisão dramática e decide, por conta própria, amputar o pé de Devair.

Em O Líder, Lauro César Muniz abordou a história de Joaquim Romão do Nascimento, morador da praia de Tabatinga no litoral paulista, uma região isolada sem policiamento ostensivo, que assumiu a função de "inspetor de quarteirão" com o apoio da população local. O ponto de partida do enredo é um desentendimento entre dois homens que são apartados por Romão, posteriormente levados amarrados e a pé à delegacia mais próxima, distante dali mais de 30 km. Porém, a partir de uma mudança administrativa na chefia de polícia, o que antes era tolerado (e até incentivado) pelo poder local passa a ser considerado abuso de poder, tortura e exercício ilegal de função policial não autorizada nem credenciada pelo Estado.

De braço auxiliar da polícia local, Joaquim Romão passou então acusado de uma série de crimes e, contra ele, pesava ainda seu passado recente, no qual constava a acusação de posse de arma de fogo e uma citação em Inquérito Policial-Militar (IPM), instaurado anteriormente para apurar atividades subversivas dos sindicatos da região quando ele era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ubatuba, no governo de João Goulart, eleito por ser o único dos trabalhadores na região que sabia ler e escrever. Ao ser confrontado pelo delegado local, acusado de estar vinculado à Superintendência Política de Reforma Agrária (SUPRA) do governo João Goulart e sem nem se saber enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN), demonstrou desconhecimento completo dos últimos acontecimentos políticos no Brasil. Acabou preso sem entender os reais motivos e, depois de pensar exaustivamente sobre as razões da sua prisão, perguntou aos policiais da delegacia: "Então vou ser preso por que sei escrever?" A história de Romão baseou-se em fatos reais e ele só foi liberado depois da publicação de uma reportagem e da denúncia de um jornalista.

No contexto geral, o personagem de Joaquim Romão evidenciava, pelo menos, três questões centrais e de extrema relevância para o entendimento das práticas autoritárias durante a ditadura militar, mas também em outros contextos: 1) o autoritarismo não é um fenômeno restrito a agentes de controle e repressão (policiais, delegados, censores etc.), mas permeia todas as relações sociais e se manifesta indiscriminadamente em diferentes momentos da história do Brasil; 2) o Estado e a polícia estão ausentes nas regiões mais afastadas dos centros urbanos e os moradores locais são obrigados a assumir suas funções; 3) o isolamento dessas regiões em âmbito nacional; e 4) as tentativas de racionalização do aparelho estatal.

Verde que te Quero Verde é uma micropeça de Plínio Marcos de apenas quatro páginas que satirizava, de um lado e mais sintomaticamente, a atuação burocrática da censura de diversões públicas e sua vocação para a defesa da moral e dos bons costumes e, de outro, a ineficiência das assembleias teatrais na luta contra a censura e a ditadura (Garcia, 2012bGARCIA, Miliandre. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à ditadura militar no Brasil. ArtCultura, vol. 14, p.1-25, 2012b.). Tudo isto representado no diálogo do chefe da censura com seu subalterno, quando um terceiro personagem decide bater à porta do gabinete e, como tinha esquecido o complemento da senha "Deus, Pátria e Família", síntese das proibições às peças de Plínio Marcos, acabou assassinado por seus colegas de trabalho - como se nem eles mesmos fossem capazes de atender às próprias exigências. Para além do texto escrito, seu diretor Augusto Boal, em suas "memórias imaginadas", deu-nos uma ideia do impacto da encenação de Plínio Marcos: "coronéis vestidos de gorilas censurando sua peça, defecando e limpando-se com as páginas censuradas" (2000, p.256).18 18 Por isto, volto a insistir sobre o quanto é importante resgatar, ainda que parcialmente, o espaço cênico do espetáculo, pois sem esse esforço qualquer análise sobre teatro é incompleta. A tarefa não é fácil e requer um trabalho de maior fôlego, com mais tempo de maturação, mas sugiro como ponto de partida teórico-metodológico a pesquisa de doutorado de BRANDÃO, 2009, sobre a companhia Maria Della Costa (2009).

A estas peças teatrais integravam-se outras manifestações artísticas, como as canções Amor Sim, Guerra Não (esta não continha letra, apenas era entoada essa frase repetidamente), e a música cumpria o papel de causar impacto, complementava o que não se podia dizer no texto, como mencionou, em outro contexto, Gianfrancesco Guarnieri. Outro exemplo dessa integração ente música e montagem foi Espanto que Espanta a Gente, que já fazia parte do espetáculo Arena Conta Tiradentes, também citado anteriormente, além de esculturas, pinturas e instalações que integravam o plano geral da I Feira Paulista de Opinião. Em sua autobiografia, Augusto Boal se recordou de uma escultura chamada Milagre Brasileiro, de um quadro pintado por Jô Soares, de peças de madeira compondo a bandeira do Brasil que se transformava em bandeira dos Estados Unidos de uma banana de 2 metros e de carimbos com desenhos elementares, que propiciavam ao espectador uma participação direta. Em suma: obras que, de alguma forma, buscavam um contato mais próximo com o público como já vinham fazendo alguns grupos teatrais, sobretudo o Teatro de Arena desde que inaugurou seu teatro em formato de arena no Brasil (Garcia, 2007GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à canção engajada: a experiência do CPC da UNE. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007., p.15).

Como se vê, as conquistas estéticas e o trabalho de pesquisa realizados pelo Teatro de Arena desde meados dos anos 1950, aliados aos objetivos políticos e às táticas de guerrilha incorporadas pela I Feira Paulista de Opinião no pós-1964, evidenciaram um processo cumulativo no meio teatral que vinha se constituindo há tempos. Em termos estéticos, foi mais que uma ruptura radical com projetos artísticos anteriores. No campo político, observa-se que a proposta do PCB, de união democrática, vinha passando por um amplo processo de revisão crítica, e novas estratégicas de resistência cultural vinham sendo incorporadas pela intelectualidade engajada na luta contra a ditadura.

A relação com a censura: um processo de desobediência civil

O processo de censura da I Feira Paulista de Opinião está diretamente associado a um movimento de centralização da censura de diversões públicas que já havia começado em 1962 com a censura cinematográfica e efetivou-se em 1967 com a censura teatral, através da portaria n.º 11, que em nada diferia do decreto n.º 20.493,19 19 Decreto n.º 20.493. Aprova o regulamento do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública. Rio de Janeiro, 24 jan. 1946. que regulara a censura de diversões públicas desde 1946 até sua extinção em 1988, também ratificado pela lei n.º 5.536 de 1968.20 20 Sem a regularização dessa lei nos primeiros meses de 1969, instruções de serviço recomendavam aos censores federais efetuar censura de filmes e peças teatrais como já faziam no período anterior à publicação da lei. Paulatinamente, os agentes da censura adotaram a lei n.º 5.536, mas apenas os artigos 1º ao 14º; pois os artigos 15º ao 25º permaneceram sem regulamentação até 1979 quando Petrônio Portella assumiu a pasta da Justiça e implementou o Conselho Superior de Censura (CSC) como constava num dos artigos da lei. In: Lei n.º 5.536. Dispõe sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas, cria o Conselho Superior de Censura, e dá outras providências. Brasília, 21 nov. 1968. No entanto, a centralização da censura de diversões públicas não foi um processo tranquilo de acomodação das mudanças. Ao contrário, caracterizou-se por uma série de conflitos entre um órgão centralizado, que se firmava em âmbito nacional, e suas esferas regionais, que perdiam representatividade local.21 21 Esse movimento de centralização da censura de diversões públicas e os embates entre o órgão central e as instâncias regionais já foram amplamente esmiuçados e embasados em fontes documentais e em estudos de caso, ver GARCIA, 2008, que vem se constituindo em material para a redação de um livro sobre censura teatral no Brasil nos séculos XIX e XX em parceria com Silvia Cristina Martins de Souza. Isto é visivelmente observado no processo de proibição da peça teatral e na contestação desta decisão no âmbito da Justiça.

A censura teatral, principalmente no período de 1968 a 1975, quando teve uma atuação centralizada, tinha uma rotina administrativa. Em primeiro lugar, o produtor do espetáculo requeria autorização da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) na sua cidade de origem, protocolava o pedido de censura nos órgãos regionais que, então, enviava-o a Brasília para análise de três técnicos de censura. Estes eram nomeados de acordo com sua seção de especialidade, sendo que alguns transitavam por todas elas (cinema, teatro e congêneres, televisão e rádio). Se os três pareceres fossem similares, o chefe da censura normalmente acatava a indicação dos seus subordinados. Porém, se fossem divergentes, ele tinha poder de emitir o parecer final ou compor nova comissão.

Nessa etapa da tramitação, o processo de censura encerrava para o texto vetado, proibido ou interditado e continuava para o texto liberado (com ou sem cortes, com ou sem alterações na classificação etária). No caso de proibição, o chefe da censura solicitava às instâncias regionais emitir comunicado ao requerente informando-lhe a resolução da censura ou, no caso de liberação, designar dois censores responsáveis para exame do ensaio geral. Somente após a conclusão de todas essas etapas e, sendo elas favoráveis à apresentação do espetáculo, o autor da solicitação recebia um certificado de censura válido por cinco anos e em todo território nacional.

No início de 1968, representantes do Teatro de Arena de São Paulo solicitaram ao SCDP do Estado de São Paulo a aprovação da I Feira Paulista de Opinião que, por sua vez, encaminhou a documentação a Brasília para a realização do exame do script teatral. Em documento anexo ao processo de censura, os idealizadores de espetáculo não mascararam seu objetivo central: o de lutar pela liberdade de expressão contra a ditadura militar. Para efetivá-lo, reivindicaram aprovação sem cortes, já que uma "feira de opinião", na concepção dos produtores, "só terá [teria] validade se toda e qualquer opinião puder ser livremente exibida: o corte, por mais simples que seja, mutilará [mutilaria] o caráter democrático da mostra".22 22 Documento da Sociedade Cultural Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo, 30 maio 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Além do mais, mencionaram também a aprovação do espetáculo por outras instituições culturais como o Conselho Artístico e Literário, a Comissão Estadual de Teatro, o Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, responsáveis pela elaboração do plano oficial "Teatro e Cultura", do governo estadual de Abreu Sodré, como se pudessem intervir na decisão da censura - se alguma vez isto influenciou, não influenciava mais.

Os agentes da censura ignoraram completamente as solicitações dos produtores, evidenciando que ali havia uma série de transgressões da legislação vigente que, segundo seus rígidos critérios, iam desde o descrédito das instituições nacionais, particularmente as Forças Armadas, até se constituir em atentado contra o "regime democrático", configurando-se em prejuízo para as relações diplomáticas e comerciais entre Brasil e Bolívia, apologia do regime cubano, exortação das ações guerrilheiras e transformação de Che Guevara em mártir.

Ao contrário da regra de três, isto é, a exigência de pareceres de três técnicos de censura para cada peça teatral, conforme mencionado acima, a análise da I Feira Paulista de Opinião mobilizou oito agentes da censura, entre técnicos de censura e fiscais, que produziram apenas um parecer do script teatral e sete relatórios do ensaio geral.

Entre censuras e recensuras, a I Feira Paulista de Opinião foi proibida pelo SCDP quando a censura teatral já era centralizada em Brasília, a despeito do telegrama do ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva23 23 Telegrama n.º 368, do ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, ao diretor-geral do DPF, general José Bretas Cupertino. Brasília, 04 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. (1967-1969) que, pressionado pela intelectualidade brasileira e por formadores de opinião, advogou pela liberação do espetáculo para maiores de 18 anos, desde que os responsáveis pela encenação respeitassem os cortes da censura. Isto não ocorreu porque não se tratava simplesmente de pequenas adaptações, troca de palavras, mas de cortes sistemáticos, de páginas inteiras, que inviabilizavam qualquer intenção de exibição pública e, mais que isto, comprometia o entendimento da mensagem, transformando-o num texto sem sentido. Vale ressaltar que essa decisão da censura pode ser entendida como uma espécie de artimanha para manter a interdição do espetáculo sem proibi-lo integralmente, já que até o ministro da Justiça advogava por sua liberação. Afinal, desde que se descobriu a verdadeira identidade do chefe da censura, Antonio Romero Lago,24 24 Descobriu-se, na época, que se tratava de Hermelindo Ramirez Godoy, foragido da polícia rio-grandense por crime de assassinato. a credibilidade da censura e de seus agentes ficou consideravelmente abalada. Era, portanto, estratégico evitar mais uma polêmica envolvendo um evento daquela envergadura e com participação de tanta gente publicamente conhecida.

É relevante mencionar que o script apresentado para censura do SCDP tinha 73 páginas datilografadas, das quais somente 11, incluindo a capa com o título, passaram incólumes pelos censores, as outras 62 sofreram algum tipo de anotação: riscas vermelhas assinalando cortes de palavras e frases, riscas diagonais apontando cortes de página inteira e comentários indignados dos agentes da censura. Mesmo depois de examinar centenas de processos de censura, foi a única vez que se encontrou cortes de páginas inteiras (Garcia, 2008GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar (1964-1988). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.). A maioria das anotações não era de nenhum censor inexperiente, mas do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, que orgulhosamente rubricou cada corte e comentário feito por ele, demonstrando surpresa até com a palavra "puta" na marcação e também do técnico de censura, José Vieira Madeira, que, em 1979, assumiu a direção da censura por ser considerado mais condescendente com os artistas e contrário à censura política, embora em 1968 não destoasse dos colegas de trabalho, sugerindo a interdição do espetáculo. Segundo ele,

o texto teatral de Augusto Pinto Boal e outros, tendo em vista o seu conteúdo, achamos inconveniente sua liberação, pois o texto contém não só palavras de baixa expressão digo calão, como também, gratuitamente, tornam os censores personagens ridículos, o que, a nosso ver, constitui transgressão ao que dispõe o artigo 41 nos itens A, D, G e H, dec. n.º 20.493. Há outros fatos a assinalar, conforme se poderá ver no próprio texto, por mim assinalado em vermelho, como o diálogo sobre Ernesto "Che" Guevara, onde esse personagem aparece como um mártir, e os militares que o prenderam como feras. Isso poderá prejudicar a cordialidade das relações entre o Brasil e a Bolívia, pois o texto transforma tudo aquilo que realmente aconteceu, transgredindo os interessados no disposto no artigo 41, letra E, do decreto n.º 20.493.25 25 Parecer do Censor Federal José Vieira Madeira. Brasília, 02 abr. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Como se pode constatar, não eram apenas palavras de "baixo calão" que incomodavam estes "guardiões" da moral e dos bons costumes como se autodenominavam, mas questões políticas constituíram o imaginário dos censores da SCDP durante toda a ditadura militar, podendo-se justificar ou não, dependendo das demandas do momento, a interdição de uma peça, uma música, um filme etc., na íntegra ou de partes dela.26 26 A bibliografia acerca da censura é extensa e um levantamento minucioso está disponível na página Pesquisadores da Ditadura Militar do Facebook, criada por Carlos Fico, e no site www.estudosdoautoritarismo.weebly.com. Por hora, gostaria apenas de mencionar quatro trabalhos que tiveram grande impacto na minha pesquisa de doutorado e nas pesquisas sobre censura de diversões públicas. Antes de dissertar sobre eles e para ser justa com os autores, é preciso mencionar que os dois primeiros foram escritos num momento em que os arquivos da censura não estavam liberados para consulta pública. No caso do fundo da DCDP, isto se deu efetivamente em 1996 e assinala para mudanças de perspectivas das pesquisas sobre censura que, se antes eram majoritariamente embasadas em fontes secundárias/indiretas como notícias de jornais, depoimento de artistas, passaram então a fundamentar-se em fontes primárias/diretas como processos de censura, troca de informes, cursos de censores, instruções de serviço etc. O artigo "A censura durante o regime militar", SOARES, que, em 1989, atentou para as diferenças cruciais entre a censura à imprensa e a censura de diversões públicas e antecipou questões esmiuçadas posteriormente. O livro Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-1945/19681978), de SILVA, 2008, foi escrito em 1994 e marcou uma geração de historiadores interessados no tema da música popular brasileira e na sua relação histórica com a censura no Estado Novo, em perspectiva comparada com a ditadura militar. O livro de KUSHNIR, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 que, em 2004, reconheceu a existência dessas duas instâncias, mas tomou-as como uma espécie de simulacros para o exercício do poder, uma vez as "questões da moralidade estão na mesma pauta que as temáticas políticas" e, portanto, a censura moral realizada pela DCDP encobriu, na intepretação da autora, a censura política (p.106, p.109, p.118). Os artigos "'Prezada Censura': cartas ao regime militar" e "A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura", de FICO que, publicados em 2002 e 2004 respectivamente, inauguraram uma linha de pesquisa sobre a qual se estruturou um grupo de pesquisa contemplando as múltiplas facetas da censura de diversões públicas (censura teatral, musical, de livros, revistas, filmes e telenovelas) a partir de uma matriz comum que diferenciou a censura de diversões públicas da censura à imprensa, àquela mais voltada para as questões de fundo moral, pedagógico, calcada na longa duração, e esta de natureza política, ideológica, mais afinada com as demandas do momento, ainda que ambas se influenciassem mutuamente.

Entre os temas mais polêmicos, a luta armada e suas práticas efetivas eram, naquele contexto, uma questão delicada para os agentes da censura que já haviam proibido peças integralmente ou liberado-as com cortes, como aconteceu com a I Feira Paulista de Opinião, em 1968, o que se intensificou posteriormente.

Entre as restrições apontadas, um censor não identificado indicou corte de quatro páginas inteiras que explicitavam, direta ou indiretamente, referências a Che Guevara, à luta de classes, à luta armada e às frases "creio na luta armada como única solução para povos que lutam pela liberdade" e "para amanhã aumento de gasolina, leite e pão mais caros. Aguardam-se novos aumentos. Guerrilheiros no Caparaó. Lacerda em S. Paulo. Frente Ampla em ação! Mensagem otimista do governo".27 27 Anotações no texto encaminhado ao exame da censura. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Che Guevara, mesmo morto, não deixou de ser uma figura temerária nos círculos conservadores. Mais que isso, se transformou num fantasma que assombrava os censores, que se manifestavam negativamente diante da mínima possibilidade de transformá-lo em mártir ou herói, como acentuou o censor José Vieira Madeira28 28 Parecer do Censor Federal José Vieira Madeira. Brasília, 02 abr. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. ou, então, diante da menor evidência de homenageá-lo, como notou seu colega Willy de Paula Teixeira.29 29 Relatório do censor auxiliar Willy de Paula Teixeira. São Paulo, 20 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Concentrando-se nos aspectos políticos, mais do que nos morais, por vezes mesclando-os, os agentes da censura concordaram com a liberação da peça, não sem indicação de mais de 80 cortes, em 43 páginas que depois reduziram para 32, o que não diminuiu o impacto da censura, inviabilizando a apresentação do espetáculo.

Mas os idealizadores da I Feira Paulista de Opinião não aceitaram a decisão da censura e entraram com recurso na Justiça Federal em nome de Jorge de Andrade e outros e, sem aguardar parecer superior, apresentaram-na no Teatro Maria Della Costa, transformando-se num ícone dos atos de "desobediência civil", que acabou por influenciar ações semelhantes no meio teatral. Tome-se como exemplo a peça O Evangelho Segundo Zebedeu, cujo autor César Vieira, em 11 de outubro de 1968, e à revelia da censura, anunciou a encenação em São Paulo. A Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de Brasília sugeriu que, antes de anunciar a montagem dos espetáculos, os produtores teatrais levassem o assunto ao Ministério da Justiça, última instância de recurso contra a censura, a qual seu autor respondeu: "Ele (ministro) é pessoa do sistema. Nós somos contra o sistema! Portanto, não tem o menor sentido ficar pedindo a sua autorização".30 30 Pedido de busca n.º 402, da Divisão de Ordem Política e Social a Divisão de Segurança e Informação e ao Serviço de Censura de Diversões Públicas, 11 out. 1968. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Informações Sigilosas, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional. O ministro ainda era Gama e Silva, realmente um homem do sistema, conforme evidenciado noutra ocasião (Garcia, 2012dGARCIA, Miliandre. Teatro agora é livre: as contradições de Gama e Silva e as negociações com o setor teatral (1967-1968). Literatura e Autoritarismo, vol. 20, p.221-246, 2012d.).

Uma hipótese viável é que os mandados de segurança serviam também aos grupos de teatro para retardar uma decisão final e, assim, pro-ceder à sua encenação pública - como aconteceu com a I Feira Paulista de Opinião que teve o texto proibido, depois autorizado para maiores de 18 anos com dezenas de cortes e novamente proibido.

A decisão dos organizadores da I Feira Paulista de Opinião de se colocarem em estado de desobediência civil foi observada por um dos técnicos de censura, responsável pelo exame do ensaio geral em São Paulo. José Salles afirmou não ter recebido de Brasília um exemplar do texto com a indicação de cortes a ser observados por ele, mas acreditava que o texto havia sido apresentado integralmente porque percebeu

uma crítica às autoridades constituídas do governo federal, onde imperam os palavrões e situações vexatórias a personagens que, embora sem nomes, são facilmente identificáveis como o presidente Costa e Silva, o chefe da Censura Federal de Brasília e outros.

Nessa identificação retrata a vida e morte de Che Guevara, onde a crítica à Bolívia é manifesta. A situação encenada, poderá atrair protesto diplomático, por apresentar um assassinato a sangue frio, por parte de oficial-militar boliviano.

As insinuações inequívocas e as situações ridículas (por exemplo o general gorila e o general palhaço) a que são expostas as autoridade brasileiras, fazem considerar o espetáculo de teor subversivo.31 31 Relatório do censor José Salles. São Paulo, 10 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Outros três técnicos de censura evidenciaram a ausência do texto com indicação dos cortes que não havia sido enviado pelo órgão responsável em Brasília para exame mais preciso das instâncias regionais. Por isto, Francisco Braga e Antonio Celso Adelizzi decidiram não emitir relatório sobre a encenação,32 32 Relatório dos censores Francisco Braga e Antonio Celso Adelizzi. São Paulo, 14 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. enquanto Dalva Janeiro apontou essa falha na dinâmica da censura como grave.33 33 Relatório da censora Dalva Janeiro. São Paulo, 13 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Mas ao contrário dos dois citados, ela própria e outros colegas de trabalho fizeram seus respectivos relatórios, entre os quais José Américo Cesar Cabral, que identificou "cenas repelentes e obscenas" e "crítica às instituições nacionais, às relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos e às condições de vida",34 34 Relatório do censor José Americo Cesar Cabral. São Paulo, 18 jun. 1968. In: In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. e Maria Bontanzi Costa, que a considerou "ridícula e desmoralizante" e afirmou estar ali apenas por "obrigação", já que

Os quadros exibidos, na quase sua totalidade, são imorais, não trazendo proveito para quem os vê e até para quem os representa.

Além da imoralidade reinante, existem fotografias desmoralizantes de nossas forças armadas, sendo mesmo inacreditável que a censura em Brasília tivesse permitido a encenação de tal peça.

[...].

Não há dúvida de que o objetivo é a desmoralização das nossas Forças Armadas [...].

Contra os governos federal, estadual e dos Estados Unidos há uma catilinária sem fim, sempre com o emprego de palavrões, e dos ditos se depreende com facilidade que a intenção é fazer a apologia do regime cubano.

Ainda que estejamos em uma democracia, não há dúvida que nessa peça se ultrapassou o limite do compatível, parecendo até que se busca mesmo como resultado o aviltamento de nossas instituições.

É sujo demais.

A peça deve ser proibida terminantemente para a juventude que nada ali tem a apreender ou antes só pode ser corrompida em seus sentimentos de pátria.35 35 Relatório do censor Maria Bontanzi Costa. São Paulo, 19 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

O já citado Willy de Paula Teixeira concentrou-se no exame de dois aspectos do espetáculo: a questão moral e o conteúdo político. De um lado, sob perspectiva moral, considerou "a baixeza da linguagem empregada na composição da 'obra'", que a tornava "indigna até dos broncos, assim como constituía num insulto à inteligência dos espectadores, inclusive dos semiletrados", pois "simples operários ficariam estarrecidos ao verificarem até que ponto chega a estupidez de alguns que se dizem intelectuais" ao idealizar uma peça "inconcebivelmente obscena, quer pelos palavrões como pelos gestos indecorosos". De outro, indicou limites à questão política, pois se tratava de um "um achincalhe intolerável ao Exército nacional" e acabava "com um quadro em homenagem a Che Guevara, o qual foi tratado apenas como 'o comandante'" e "exposta sua vida e filosofia política", transmitindo "ao público que o sacrifício do referido indivíduo não tenha sido em vão". Diante desse cenário, o técnico de censura concluía que a I Feira Paulista de Opinião assim como Navalha na Carne e Roda Viva caracterizavam o "que se poderia chamar de prostituição da arte teatral".36 36 Relatório do censor auxiliar Willy de Paula Teixeira. São Paulo, 20 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Wladimir de Assis Carvalho também atentou para esses dois aspectos, por vezes mesclando-os:

a referida peça é imoral e o seu principal objetivo é criticar e ridicularizar as autoridades constituídas do país e no meio disso, os gestos obscenos e os palavrões são constantes. Seu argumento básico consiste em criticar erros e injustiças contra o povo, que é chamado de burguesia, apontando como solução o movimento através de guerrilhas.

[...].

No final da peça é feita uma exortação, com encenações de guerrilhas e um comandante guerrilheiro morto é enaltecido e que o mesmo só foi eliminado fisicamente.37 37 Relatório do censor Wladimir de Assis Carvalho. São Paulo, 21 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

No processo de centralização da censura de diversões públicas em andamento como já foi mencionado anteriormente, representantes e órgãos do Poder Judiciário nem sempre tomavam decisões afinadas com as instituições e agentes da censura, sobretudo no que se relacionava à censura prévia de peças teatrais, filmes, letras musicais, revistas, livros, programas de rádio e televisão. Por não estarem sintonizados quanto à sua legitimidade jurídica e competência administrativa, juízes estaduais acabavam deslegitimando a prática da censura concedendo mandados de segurança para apresentação de espetáculos como a I Feira Paulista de Opinião, de vários autores (1968), Senhora na Boca do Lixo, de Jorge de Andrade (1968), Roda Viva, de Chico Buarque (1968), Liberdade, Liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes (1968), O Rei da Vela, de Oswald de Andrade (1968), Clube da Fossa, Abílio Pereira de Almeida (1968), entre outras.38 38 Não se pode estimar o número exato de recursos e mandados impetrados contra a censura nas décadas e 1960, 1970 e 1980, mas sabe-se que eram muitos como evidenciou o diretor da DCDP, José Vieira Madeira, em maio de 1981: "nós não nos intimidamos com mandado de segurança que é uma constante aqui. No mês que vem, tem vinte mandados de segurança. Mandado de segurança é uma coisa rotineira dentro da Divisão". Apud RODRIGUES, Rogério Costa. Cinema e censura. Palestra proferida no Seminário Nacional sobre a Censura de Diversões Públicas. Brasília, p.146, 11 maio 1981. Funarte, Fundo SNT.

Em outubro de 1968, os múltiplos focos de instâncias decisórias motivaram o diretor-geral do Departamento de Política Federal (DPF) em exercício, coronel Raul Lopes Munhoz, a solicitar ao chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) que intercedesse junto aos órgãos competentes, fazendo-os respeitar as decisões do DPF, o que significava não conceder liminares a "espetáculos pornográficos e subversivos". Alegava que "algumas dessas peças são desprovidas de qualquer mensagem positiva, pois pregam a subversão da ordem pública, cultivando a obscenidade e a pornografia" e a "atitude da Justiça Federal, por conseguinte, vem provocando o desprestígio do órgão censório, pois as peças vetadas são automaticamente liberadas, favorecendo os grupos teatrais interessados na baderna e na subversão". Citou como exemplo os produtores da peça Roda Viva, que pretendiam seguir o exemplo do espetáculo I Feira Paulista de Opinião.39 39 Ofício n.º 382/68-SCDP, do diretor-geral do DPF, coronel Raul Lopes Munhoz, ao chefe do SNI. Brasília, 09 out. 1968. Fundo DCDP, Seção Orientação, Série Normatização, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

A Feira havia sofrido, inicialmente, a proibição do SCDP para, em seguida e temporariamente, ser liberada pelo juiz Américo Lourenço Masset Lacombe, da 1ª Vara da Justiça Federal do Estado de São Paulo, que, no embasamento da sua decisão, diferenciou manifestação teatral de diversão pública e, portanto, considerou "ilegal a centralização dos serviços censórios em Brasília e inconstitucional a censura de obras teatrais, pois que o teatro, sendo arte, é livre, do preceituado no art. 171 da Constituição do Brasil".40 40 Apud Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Cabe lembrar que, em suas "memórias imaginadas", o diretor do espetáculo afirmou que esse juiz federal posteriormente foi preso acusado de integrar organização guerrilheira (Boal, 2000BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000., p.257). Segundo investigações da Operação Bandeirantes (OBAN), tratava-se especificamente da proximidade dele com a Ação Libertadora Nacional (ALN) e com o grupo de Marighella (Magalhães, 2012MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p.348-350 apud Santos, 2014SANTOS, Desiree Reis dos. Novos horizontes: as criações teatrais de Augusto Boal nos anos de exílio. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2014., p.38).

Para o chefe do SCDP, a popularização desta tese traria "consequências imprevisíveis para a censura federal".41 41 Apud Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. A assessoria jurídica do DPF indicava como solução para o impasse enviar um ofício à Procuradoria Geral da República "solicitando o seu máximo empenho no sentido de obter a reforma da sentença, quando do julgamento do agravo, recorrendo ao Supremo Tribunal de Recursos, se for o caso".42 42 Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Com a prática cada vez mais usual, o chefe do SCDP publicou uma instrução de serviço que visava orientar as Turmas de Censura de Diversões Públicas (TCDPs), braços auxiliares da DCDP nos Estados, diante dos casos de liminares e mandados de segurança, concedidos para encenações de peças teatrais.43 43 Ordem de Serviço n.º 66/68-SCDP, do chefe do SCDP. Brasília, 20 dez. 1968. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Ofícios de Comunicação ou Solicitação, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Essa instrução de trabalho baseava-se nos artigos 3º e 4º da lei n.º 4.348, de 1968.44 44 Lei n.º 4.348. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. Brasília, de 26 jun. 1968.

Em meados de 1968, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, só foi encenada em São Paulo porque o juiz da 1º Vara Federal de São Paulo, Luiz Rondon Teixeira Guimarães, concedeu à Sociedade Cultural Teatro Oficina mandado de segurança para apresentá-la, argumentando que o SCDP não tinha amparo legal para administrar censura artística, pois a competência da União limitava-se às diversões públicas e esta não valia para as artes de espetáculo (Arrabal; Lima; Pacheco, 1979-1980ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70: Teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980., p.90).45 45 Ver também: Segurança beneficia censura. O Estado de S. Paulo (São Paulo), 15 jun. 1968, acervo Funarte.

No ano seguinte, o 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz, finalmente julgou a contestação de agravo de mandado de segurança do juiz da Vara da Justiça Federal do Estado de São Paulo, Américo Lourenço Masset Lacombe, como uma violação do Código do Processo Civil,46 46 Agravo em mandado de segurança do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz. Brasília, 31 mar. 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional. anulando, portanto, sua permissão de apresentação da I Feira Paulista de Opinião, uma vez que não cabia ao juiz federal se pronunciar sobre o que não se constituía em objeto de pedido. Isto é, a inconstitucionalidade da censura sobre as obras de arte que, no entender do representante da União, estava legitimamente amparada no artigo 150, § 8º, da Constituição Federal: "é livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição a censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer".47 47 Apud Agravo em mandado de segurança do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz. Brasília, 31 mar. 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Ao comunicar sua decisão final ao diretor-geral do DPF, general José Bretas Cupertino, o 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz, escreveu: "Tenho a satisfação de comunicar a Vossa Excelência que o Colendo Tribunal Federal de Recursos, em sessão do 2 do corrente, deu provimento ao Agravo de Petição em ação de mandado de segurança n.º 63.710 proposta por Jorge de Andrade e outros, à unanimidade" (grifo nosso).48 48 Ofício n.º 50-FP, do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz, ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, general José Bretas Cupertino. Brasília, 07 maio 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Essa decisão desfavorável de um representante da União aos produtores culturais da capital paulista, que também era uma espécie de repreensão do juiz desta localidade, evidenciava um processo de assentamento da centralização da censura e, consequentemente, a dissolução de tensões entre jurisprudências distintas e, por isto, é citado aqui com a devida atenção. Além disso, a negação visava dissuadir futuras tentativas de mandados de segurança com pareceres favoráveis às produções artísticas, o que não necessariamente aconteceu, como evidenciou o diretor da DCDP, José Vieira Madeira, em maio de 1981, citado em nota de rodapé.

Em 6 de agosto de 1969, o chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, solicitou ao diretor-geral do DPF, José Bretâs Cupertino, providências em relação aos mandados de segurança que favoreciam empresas de televisão que só almejavam "lucro fácil", em contraposição à censura que defendia os interesses da sociedade. Além de beneficiar atores, empresários e emissoras de rádio e televisão, essas sentenças colocavam a censura e seus agentes numa situação delicada perante a opinião pública, afirmou seu chefe na época.49 49 Ofício n.º 420/69-SCDP, do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, ao diretor-geral do DPF, José Brêtas Cupertino. Brasília, 06 ago. 1969. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Ofícios de Solicitação, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

Se, nesse momento, havia esses embates entre setores ligados a jurisdições diferentes, eles foram amenizados com o tempo. Primeiro com o projeto de centralização do SCDP em Brasília nos anos 1960, consolidado definitivamente quando da reestruturação da DCDP, em 1972. Assim configurada, a censura expandiu seu raio de ação para outras formas de expressão e assumiu a censura teatral até 1975 nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e até 1978 para os demais estados com mais de três técnicos de censura, exigência da lei de 1968.

Considerações finais

Ao idealizar a I Feira Paulista de Opinião, Augusto Boal tinha, pelo menos, três objetivos fundamentais: o primeiro era inventariar as tendências mais significativas das artes de esquerda; o segundo, reunir artistas e intelectuais que integravam a resistência cultural na luta contra a ditadura; e o terceiro, evidenciar as incongruências do sistema que submetia todo setor artístico a imposições draconianas (Boal, 1970BOAL, Augusto. Que pensa você da arte de esquerda?. Latin American Theatre Review, p.45-53, 1970. Disponível em: https://journals.ku.edu/index.php/latr/article/viewFile/93/68; Acesso em: 09 nov. 2015.
https://journals.ku.edu/index.php/latr/a...
; Arrabal; Lima; Pacheco, 1979-1980ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70: Teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980., p.19). A iniciativa de Boal e outros e seu empenho na realização da Feira evidenciaram uma série de contradições inerentes ao meio teatral, algumas das quais só se tornaram problemas efetivos para o regime militar em fins dos anos 1970 quando duas instituições ligadas ao governo, simultaneamente, proibiam e premiavam as mesmas peças teatrais. Tratavam-se da DCDP e do Serviço Nacional de Teatro (SNT). Este último, para evitar problemas mais graves como os enfrentados durante a premiação da peça Patética, de João Ribeiro Chaves Neto (1978) (mais detalhes em Garcia, 2012cGARCIA, Miliandre. Patética: o prêmio e as censuras (anos 1970). Baleia na Rede, vol. 9, p.135-157, 2012c.), acabou adotando a obrigatoriedade da apresentação de certificado de censura na inscrição dos tradicionais concursos de dramaturgia.

A partir da análise aqui exposta, pode-se afirmar que a I Feira Paulista de Opinião foi, a um só tempo, síntese e dissonância da produção artístico-cultural no contexto de ditadura militar. Ao organizá-la, seus idealizadores não romperam com as conquistas estéticas do Teatro de Arena, especificamente, mas as instrumentalizaram quando julgaram adequadas à ação política contra a ditadura militar. O fato de um dos seus principais expoentes ser diretor do espetáculo não garantiu fidelidade às estratégias de luta do PCB, pautadas por alianças classistas e resistência democrática. Tais estratégias influenciaram o Teatro de Arena e Augusto Boal, sobretudo no contexto pré-1964 quando gozavam de "relativa hegemonia cultural de esquerda" (Schwarz, 1978SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978.). No entanto, no pós-golpe, a resistência cultural passou por um amplo processo de revisão crítica, sendo incorporadas novas estratégias de ação política, entre as quais as táticas de guerrilha transpostas para o campo cultural, mas também a desobediência civil, inspirada na luta dos negros norte-americanos, e os processos judiciais que, de certa forma, individualizaram a resistência cultural, transferindo-a para um espaço mais restrito.

As novas estratégias de ação política, associadas às conquistas estéticas em evidência na época, potencializaram o poder questionador dos espetáculos teatrais e isto interferiu diretamente na relação com a censura que, desde a criação do SCDP em 1945, nunca foi tranquila. No entanto, as tensões se agravaram demasiadamente nos anos 1960 quando a censura passou por um processo de centralização e foi transferida para Brasília, afetando a produção teatral mais sintomaticamente. Os profissionais do ramo, então, não viram alternativa a não ser lutar contra aquele estado de coisas e, para isto, colocaram-se em ação contra a censura. Os idealizadores da Feira, por exemplo, decidiram não acatar o veto da censura nem as indicações de cortes. Na solicitação de censura, já tinham assinalado que não pretendiam obedecer outro parecer, que não o de aprovação integral. Mas foram além, não só deixaram de acatar a decisão da censura conformando com a não realização do espetáculo, como decidiram apresentá-la à revelia das autoridades e, inclusive, questionando sua legitimidade constitucional nas instâncias competentes.

Após análise desse e de outros processos de contestação judicial da censura, pode-se afirmar que, na maioria das tentativas de se resolver os impasses no âmbito jurídico, não se obteve sentença favorável ao meio artístico e, nesse caso específico, o mandado de segurança dos produtores da Feira pode ser apresentado como caso exemplar de proteção mútua entre instâncias federais (SCDP, DPF e Procuradoria da República), em detrimento do meio artístico e das autoridades regionais e locais.

Se, de um lado, pode se dizer que esse movimento de ida à Justiça foi uma estratégia ineficiente - já que não reverteu nem subverteu as decisões da censura, pelo menos na maior parte delas - de outro, foi uma maneira possível, talvez a única naquele momento, de protelar um julgamento final e, enquanto aguardavam a sentença judicial, proceder à apresentação do espetáculo. Portanto, se examinados os resultados imediatos em suas conquistas específicas, pode-se afirmar, sim, que foi uma estratégia ineficiente. Porém, se analisados em perspectiva mais ampla, o cenário desfavorável se inverte e constata-se que se tratou uma das poucas possibilidades de resistência cultural naquele momento, sobretudo na conjuntura política pós AI-5, que acabou com todas as expectativas de grandes manifestações públicas, que passaram a ser violentamente reprimidas com mecanismos sofisticados de controle e repressão.

  • 1
    Partindo dessa definição geral, autores das mais variadas matrizes teóricas tentaram classificar os tipos ideais de manifestações de resistência. François Bédarida destacou quatro elementos constituintes: 1) a vontade de dizer não; 2) um combate clandestino voluntário; 3) uma lógica política que opõe democracia versus ditadura; e 4) a construção de uma memória didática com sentido cívico-ético. Roderick Kedward, por sua vez, classificou-as em quatro domínios centrais: 1) a existência de uma consciência da resistência; 2) os valores herdados do passado; 3) a presença de "mediadores" enquanto criadores e transmissores de valores; e 4) a inversão dos valores ideológicos pela força opressora. apudNAPOLITANO, 2011NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980). Tese (Livre-docência em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011., p.13, p.21.
  • 2
    Entre as principais referências da desobediência civil pode-se citar Henry David Thoreau (1817-1862)THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 1997. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/thoreau/thoreau.pdf; Acesso em 09 nov. 2015.
    http://www.ufrgs.br/cdrom/thoreau/thorea...
    que foi quem a fundamentou teoricamente (1997), John Ruskin (1819-1900), Léon Tolstói (1828-1910), Mahatma Gandhi (1869-1948) e Martin Luther King Jr. (1929-1968).
  • 3
    Para ele, os movimentos de desobediência civil e os atos de resistência não violenta deveriam apresentar quatro etapas básicas: 1) reunir exemplos de injustiça, 2) tentar negociar com o Estado, 3) promover autocrítica do movimento, corrigir erros estratégicos e aguardar resposta dos governantes e, na ausência de acordos, 4) promover resistência aberta às leis injustas e condições indignas. VIEIRA, 1984VIEIRA, Evaldo. O que é desobediência civil. São Paulo: Abril Cultural, Brasiliense, 1984..
  • 4
    Posteriormente, adotaram outras formas de negociação com o governo, mas aí já se está diante de outra faceta dessa complexa articulação, analisada em outra ocasião. GARCIA, 2013GARCIA, Miliandre. Políticas culturais no regime militar: a gestão de Orlando Miranda no SNT e os paradoxos da hegemonia cultural de esquerda (1974-1979). In: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p.131-151..
  • 5
    Em 17 de julho de 1968, cerca de 30 homens armados com revólveres, cassetetes e socos-ingleses invadiram o Teatro Ruth Escobar, depredaram o teatro e o cenário, invadiram o camarim e agrediram todas as pessoas que estavam lá. O contrarregra José Luís teve a bacia fraturada ao ser atirado do palco nas cadeiras e a atriz Marília Pêra foi despida, espancada e obrigada a correr nua pelas ruas. O ataque ao teatro durou poucos minutos, mas causou enorme prejuízo ao Teatro Ruth Escobar, estimado em 40, 50 milhões de cruzeiros velhos, além das já citadas agressões que, se afirmou, foram motivadas pelo pronunciamento "Vou acabar com Roda viva ", da deputada Conceição Costa Neves, em rede nacional. Três homens foram presos, mas como o delegado de plantão se recusou a lavrar flagrante e, assim, a queixa-crime não serviu nem para identificar os agressores. Especulou-se que um era Flávio Ettori, carteira de identidade n.º 56.203, do Ministério do Exército, outro oficial da Aeronáutica e o terceiro não foi identificado. Sem nenhuma punição, ganharam ainda mais confiança e, num ato de ousadia, escreveram ao jornal O Estado de S. Paulo para avisar que a "Operação Quadro Negro", como ficou denominada, era apenas uma amostra do que podiam fazer. Essas informações foram extraídas de: O teatro exige justiça. Artistas foram a Sodré, estão indignados porque dois terroristas sumiram. Folha da Tarde (São Paulo), 23 jul. 1968, acervo Funarte, e ARRABAL; LIMA; PACHECO, 1979-1980ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70: Teatro. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980., p.86
  • 6
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-vwdBzWLjPs; Acesso em: 19 dez. 2015.
  • 7
    A Declaração de Março definia como "frente única" a união de setores da burguesia nacional e progressista e do proletariado, com o propósito de concretizar a tão almejada revolução anti-feudal, anti-imperialista, nacional e democrática no Brasil. NOGUEIRA, 1980NOGUEIRA, Marco Aurélio (org.). PCB: vinte anos de política. São Paulo: Ciências Humanas, 1980., p.3-27. O PCB assumia a vanguarda do processo revolucionário e baseava-se, segundo Luiz Carlos Prestes, em "São indispensáveis a crítica e a autocrítica de nossa atividade para compreender e aplicar uma nova política" (1958), na adequação dos princípios universais do marxismo-leninismo às particularidades específicas do desenvolvimento histórico brasileiro. NOGUEIRA, 1980NOGUEIRA, Marco Aurélio (org.). PCB: vinte anos de política. São Paulo: Ciências Humanas, 1980., p.30.
  • 8
    Do golpe militar, em 1964, ao exílio de Augusto Boal, em 1971, o Teatro de Arena intercalou a apresentação de peças teatrais e textos musicais, de autoria nacional, e textos clássicos, de autores estrangeiros. As peças teatrais de autores nacionais eram: O Filho do Cão (Gianfrancesco Guarnieri), Opinião (Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes), Este Mundo é Meu (Millôr Fernandes e Sérgio Ricardo), Arena Conta Zumbi (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal), Arena Canta Bahia (Augusto Boal); Arena Conta Tiradentes (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal); Sérgio Ricardo na praça do povo (Augusto Boal), I Feira Paulista de Opinião (vários autores), Chiclete com Banana (Augusto Boal); O Comportamento Sexual Segundo Ary Toledo (Ary Toledo), Arena conta Bolívar (Augusto Boal) e Doce América, Latino América (criação coletiva). As de autores estrangeiros eram: Tartufo (Molière), Tempo de Guerra (texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri e poemas de Bertolt Brecht); O Inspetor Geral (Gógoi); O Círculo de Giz Caucasiano (Bertolt Brecht), La Moschetta (Ângelo Beolco); Mac Bird (Barbara Garson), O Bravo Soldado Schweik (Jeroslav Hasek), A irresistível Ascensão de Arturo Ui (Bertolt Brecht).
  • 9
    Mais informações sobre o teatro jornal podem ser consultadas em SANTOS, 2015SANTOS, Patricia Freitas de. Pedagogia da atuação: um estudo sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no exílio latino-americano. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015., p.71-90.
  • 10
    São elas: A Lua Muito Pequena e a Caminhada Perigosa, de Augusto Boal, Sr. Doutor, de Bráulio Pedroso, Animália, de Gianfrancesco Guarnieri, A Receita, de Jorge Andrade, O Líder, de Lauro César Muniz, e Verde que te Quero Verde, de Plínio Marcos.
  • 11
    GUARNIERI, Gianfrancesco. Sufoco. Entrevistado por Florestan Fernandes Jr.. Folha de São Paulo (São Paulo), Folhetim, p.3, 11 nov. 1979.
  • 12
    Segundo Vianinha, "o Arena era porta-voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares", "contentou-se com a produção de cultura popular, não colocou diante de si, a responsabilidade de divulgação e massificação" (PEIXOTO, 1983PEIXOTO, Fernando (org.) Vianinha: teatro, televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983., p.93).
  • 13
    Os textos teatrais mais os documentos citados encontram-se reunidos em: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 14
    Relação de nomes contida num documento da Sociedade Cultural Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo, 30 maio 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 15
    É mais que necessário reconstituir o espaço cênico de concepção do espetáculo, pois ele nos traz outros elementos que o texto escrito não é capaz de exteriorizar. Isto, no entanto, requer um empreendimento com maior tempo de elaboração mapeando os participantes da Feira e buscando vestígios em suas memórias ou mesmo realizando entrevistas com eles, já que os jornais da época e os críticos teatrais, até onde foi pesquisado, não ofereceram informações capazes de reconstituí-lo.
  • 16
    De certa forma, resquício da concepção de "cultura de massa" como expressão direta de alienação cultural, conforme definição CORBISIER, 1958CORBISIER, Roland. Formação e problema da cultura brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958., assimilada por Carlos Estevam Martins no anteprojeto do manifesto do Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes (CPC da UNE) (1962).
  • 17
    As conexões entre esse texto de Gianfrancesco Guarnieri e outras duas peças de Oduvaldo Vianna Filho, respectivamente A Longa Noite de Cristal e Rasga Coração, devem ser mais bem investigadas.
  • 18
    Por isto, volto a insistir sobre o quanto é importante resgatar, ainda que parcialmente, o espaço cênico do espetáculo, pois sem esse esforço qualquer análise sobre teatro é incompleta. A tarefa não é fácil e requer um trabalho de maior fôlego, com mais tempo de maturação, mas sugiro como ponto de partida teórico-metodológico a pesquisa de doutorado de BRANDÃO, 2009BRANDÃO, Tania. Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa (1948-1974). São Paulo: Perspectiva, 2009., sobre a companhia Maria Della Costa (2009).
  • 19
    Decreto n.º 20.493. Aprova o regulamento do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública. Rio de Janeiro, 24 jan. 1946.
  • 20
    Sem a regularização dessa lei nos primeiros meses de 1969, instruções de serviço recomendavam aos censores federais efetuar censura de filmes e peças teatrais como já faziam no período anterior à publicação da lei. Paulatinamente, os agentes da censura adotaram a lei n.º 5.536, mas apenas os artigos 1º ao 14º; pois os artigos 15º ao 25º permaneceram sem regulamentação até 1979 quando Petrônio Portella assumiu a pasta da Justiça e implementou o Conselho Superior de Censura (CSC) como constava num dos artigos da lei. In: Lei n.º 5.536. Dispõe sobre a censura de obras teatrais e cinematográficas, cria o Conselho Superior de Censura, e dá outras providências. Brasília, 21 nov. 1968.
  • 21
    Esse movimento de centralização da censura de diversões públicas e os embates entre o órgão central e as instâncias regionais já foram amplamente esmiuçados e embasados em fontes documentais e em estudos de caso, ver GARCIA, 2008GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar (1964-1988). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008., que vem se constituindo em material para a redação de um livro sobre censura teatral no Brasil nos séculos XIX e XX em parceria com Silvia Cristina Martins de Souza.
  • 22
    Documento da Sociedade Cultural Teatro de Arena de São Paulo. São Paulo, 30 maio 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 23
    Telegrama n.º 368, do ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, ao diretor-geral do DPF, general José Bretas Cupertino. Brasília, 04 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 24
    Descobriu-se, na época, que se tratava de Hermelindo Ramirez Godoy, foragido da polícia rio-grandense por crime de assassinato.
  • 25
    Parecer do Censor Federal José Vieira Madeira. Brasília, 02 abr. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 26
    A bibliografia acerca da censura é extensa e um levantamento minucioso está disponível na página Pesquisadores da Ditadura Militar do Facebook, criada por Carlos Fico, e no site www.estudosdoautoritarismo.weebly.com. Por hora, gostaria apenas de mencionar quatro trabalhos que tiveram grande impacto na minha pesquisa de doutorado e nas pesquisas sobre censura de diversões públicas. Antes de dissertar sobre eles e para ser justa com os autores, é preciso mencionar que os dois primeiros foram escritos num momento em que os arquivos da censura não estavam liberados para consulta pública. No caso do fundo da DCDP, isto se deu efetivamente em 1996 e assinala para mudanças de perspectivas das pesquisas sobre censura que, se antes eram majoritariamente embasadas em fontes secundárias/indiretas como notícias de jornais, depoimento de artistas, passaram então a fundamentar-se em fontes primárias/diretas como processos de censura, troca de informes, cursos de censores, instruções de serviço etc. O artigo "A censura durante o regime militar", SOARES, que, em 1989SOARES, Gláucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 4, n. 10, p.21-43, jun. 1989., atentou para as diferenças cruciais entre a censura à imprensa e a censura de diversões públicas e antecipou questões esmiuçadas posteriormente. O livro Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-1945/19681978), de SILVA, 2008SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-1945/1968-1978). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008., foi escrito em 1994 e marcou uma geração de historiadores interessados no tema da música popular brasileira e na sua relação histórica com a censura no Estado Novo, em perspectiva comparada com a ditadura militar. O livro de KUSHNIR, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 que, em 2004, reconheceu a existência dessas duas instâncias, mas tomou-as como uma espécie de simulacros para o exercício do poder, uma vez as "questões da moralidade estão na mesma pauta que as temáticas políticas" e, portanto, a censura moral realizada pela DCDP encobriu, na intepretação da autora, a censura política (p.106, p.109, p.118). Os artigos "'Prezada Censura': cartas ao regime militar" e "A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura", de FICO que, publicados em 2002 e 2004 respectivamente, inauguraram uma linha de pesquisa sobre a qual se estruturou um grupo de pesquisa contemplando as múltiplas facetas da censura de diversões públicas (censura teatral, musical, de livros, revistas, filmes e telenovelas) a partir de uma matriz comum que diferenciou a censura de diversões públicas da censura à imprensa, àquela mais voltada para as questões de fundo moral, pedagógico, calcada na longa duração, e esta de natureza política, ideológica, mais afinada com as demandas do momento, ainda que ambas se influenciassem mutuamente.
  • 27
    Anotações no texto encaminhado ao exame da censura. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 28
    Parecer do Censor Federal José Vieira Madeira. Brasília, 02 abr. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 29
    Relatório do censor auxiliar Willy de Paula Teixeira. São Paulo, 20 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 30
    Pedido de busca n.º 402, da Divisão de Ordem Política e Social a Divisão de Segurança e Informação e ao Serviço de Censura de Diversões Públicas, 11 out. 1968. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Informações Sigilosas, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 31
    Relatório do censor José Salles. São Paulo, 10 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 32
    Relatório dos censores Francisco Braga e Antonio Celso Adelizzi. São Paulo, 14 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 33
    Relatório da censora Dalva Janeiro. São Paulo, 13 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 34
    Relatório do censor José Americo Cesar Cabral. São Paulo, 18 jun. 1968. In: In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 35
    Relatório do censor Maria Bontanzi Costa. São Paulo, 19 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 36
    Relatório do censor auxiliar Willy de Paula Teixeira. São Paulo, 20 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 37
    Relatório do censor Wladimir de Assis Carvalho. São Paulo, 21 jun. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 38
    Não se pode estimar o número exato de recursos e mandados impetrados contra a censura nas décadas e 1960, 1970 e 1980, mas sabe-se que eram muitos como evidenciou o diretor da DCDP, José Vieira Madeira, em maio de 1981: "nós não nos intimidamos com mandado de segurança que é uma constante aqui. No mês que vem, tem vinte mandados de segurança. Mandado de segurança é uma coisa rotineira dentro da Divisão". Apud RODRIGUES, Rogério Costa. Cinema e censura. Palestra proferida no Seminário Nacional sobre a Censura de Diversões Públicas. Brasília, p.146, 11 maio 1981. Funarte, Fundo SNT.
  • 39
    Ofício n.º 382/68-SCDP, do diretor-geral do DPF, coronel Raul Lopes Munhoz, ao chefe do SNI. Brasília, 09 out. 1968. Fundo DCDP, Seção Orientação, Série Normatização, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 40
    Apud Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 41
    Apud Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 42
    Parecer n.º 461/68-AJ/DPF, do assistente jurídico do DPF, Luiz Gonzaga Cabral Neves, ao chefe do SCDP. Brasília, 01 nov. 1968. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 43
    Ordem de Serviço n.º 66/68-SCDP, do chefe do SCDP. Brasília, 20 dez. 1968. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Ofícios de Comunicação ou Solicitação, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 44
    Lei n.º 4.348. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. Brasília, de 26 jun. 1968.
  • 45
    Ver também: Segurança beneficia censura. O Estado de S. Paulo (São Paulo), 15 jun. 1968, acervo Funarte.
  • 46
    Agravo em mandado de segurança do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz. Brasília, 31 mar. 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 47
    Apud Agravo em mandado de segurança do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz. Brasília, 31 mar. 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 48
    Ofício n.º 50-FP, do 3º subprocurador da República, Firmino Ferreira Paz, ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, general José Bretas Cupertino. Brasília, 07 maio 1969. In: Processo censura da peça I Feira Paulista de Opinião, do fundo da DCDP, Seção Censura Prévia, Série Teatro, Subsérie Peças Teatrais, caixa 119, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional.
  • 49
    Ofício n.º 420/69-SCDP, do chefe do SCDP, Aloysio Muhlethaler de Souza, ao diretor-geral do DPF, José Brêtas Cupertino. Brasília, 06 ago. 1969. Fundo DCDP, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subsérie Ofícios de Solicitação, caixa única, Superintendência Regional do Arquivo Nacional.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2015
  • Revisado
    11 Fev 2016
  • Aceito
    18 Fev 2016
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