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As imagens retirantes. A constituição da figurabilidade da seca pela literatura do final do século XIX e do início do século XX

Migrant Images. The Constitution of the Drought's Figurability by Late-Nineteenth-Century and Early-Twentieth-Century Literature

Resumo

Este texto trata da emergência da chamada "literatura das secas" do Norte, na segunda metade do século XIX, e de como ela construiu uma estrutura narrativa para esse fenômeno, centrada no acontecimento da retirada, que servirá de modelo para toda a produção literária subsequente acerca das estiagens. Partindo de dois modelos narrativos clássicos, presentes na cultura ocidental - a narrativa do êxodo e a narrativa da via sacra - essa literatura construiu um conjunto de imagens e enunciados que, ainda hoje, permanecem como o "ser" mesmo da seca do Nordeste do Brasil. Ignoradas pela vasta produção historiográfica existente a respeito desse fenômeno, essas imagens e cenas vão ser figuradas, inicialmente, e recorrentemente reapresentadas na produção literária que se diz regionalista, sendo posteriormente apropriadas por outros gêneros narrativos e artísticos. Mesmo em permanente reelaboração e reinscrição, essas imagens retirantes, sobrevivem e retornam periodicamente nos discursos em torno desse fenômeno dito regional.

Palavras-chave:
literatura das secas; estrutura narrativa; imagens retirantes

Abstract

This article deals with the emergence of the so-called "drought literature" of Brazilian North in the second half of the nineteenth century, and how this literature built a narrative structure for this phenomenon, centered on the event of migration, which will serve as a template for all subsequent literary production on droughts in this country. Drawing upon two classic narrative models of Western culture - the exodus narrative and the narrative of the Stations of the Cross -, this literature has brought forth a set of images and statements that, even today, remains as if it were the drought in Northeastern Brazil itself. Ignored by the vast historiography on the topic, these scenes and images will be originally shaped and, afterwards, recurrently presented in the self-proclaimed "regionalist" literature. Later on, they were appropriated by other narrative and artistic genres. Even in constant reworking and reinscription, these migrant images survive and return periodically in the discourses on this purportedly regional phenomenon.

Keywords:
drought literature; narrative structure; migrant images

O uso cotidiano das palavras faz com que as naturalizemos. Ainda mais quando essa palavra nomeia, indicia e remete para um fenômeno que costumamos localizar apenas na natureza. A palavra seca, ainda mais na região Nordeste do Brasil, perde, assim, toda a sua dimensão conceitual, para ser percebida como um simples nome que tautologicamente se refere ao que ela é. Além de não ser vista como um conceito, a palavra seca, notadamente o enunciado seca do Nordeste, é assim desprovido de sua historicidade e tomado como algo em si mesmo, como algo por si mesmo evidente, como uma denominação que sempre existiu. Normalmente não se faz ideia de que antes da seca ser do Nordeste, ela foi, inicialmente, até a chamada grande seca de 1877-1879, seca do Ceará, para só nesse momento passar a ser seca do Norte, tornando-se, seca do Nordeste, apenas quando da criação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), em 1919.

Mas o que significa dizer que a palavra seca é um conceito, que o enunciado seca do Nordeste é conceitual e possuem historicidade? Afinal, o que é um conceito? Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, o conceito é um agregado sensível, é um recorte feito nos mundos possíveis através do uso da linguagem, o conceito faz ver, ele faz gravitar em torno de um conjunto gráfico e sonoro um universo de imagens, um arquivo imagético. Quando usamos o conceito seca do Nordeste, imediatamente remetemos o ouvinte para um aglomerado de imagens, para um conjunto de figuras, que remetem, por sua vez, para dados tempos e para dados acontecimentos históricos. Daí porque Deleuze e Guattari afirmam que o conceito é também um acontecimento, tem uma historicidade e é composto por elementos heterogêneos. Todo conceito é uma heterogeneidade, é uma multiplicidade de tempos e de imagens, é produto da articulação e da sedimentação de camadas de sentidos, de afetos e de percepções, é uma criação heteróclita quanto aos tempos e aos elementos que o compõem (Deleuze; Guattari, 1992, p.25-47). Isso nos permite propor a realização, por parte dos historiadores, bem como por todos aqueles que lidam com conceitos, de uma arqueologia do conceitual, assim como fez Michel Foucault (Foucault, 1986). Essa arqueologia implica em buscar escavar as várias camadas de sentido, as distintas imagens, as variadas figuras e os tempos em que elas emergiram, que compõem o arquivo suscitado por um dado conceito. Tentarei, neste texto, indiciar as diferentes imagens, a multiplicidade de figuras, as diversas temporalidades que se acham implicadas no conceito seca do Nordeste, me atendo, exclusivamente, à contribuição que o discurso literário, do final do século XIX e do início do século XX, deu para a criação desse conceito, para sua emergência histórica, no final da primeira década do século passado, para a construção de uma figurabilidade (Didi-Huberman, 2013b, p.16, p.24) para o que seria esse fenômeno e sua ocorrência particular nesse espaço. É preciso chamar a atenção para o fato de que essas imagens e essas figuras, mesmo aquelas que advém de temporalidades outras, são agenciadas e articuladas a partir do jogo social e político que se desenrola em um dado momento histórico preciso. Os conceitos estão, por isso mesmo, permanentemente abertos a remanejamentos, a reordenações das figuras e dos elementos que os compõem, eles estão em constante reelaboração, em contato com novos materiais discursivos e dependentes das práticas não discursivas. O conceito é um arranjo provisório de figuras, é uma arquitetura e uma estrutura mais ou menos coerente e consistente de imagens, dependente das forças sociais, institucionais e políticas que o sustentam. Todo conceito obedece, portanto, a uma política, seja no interior do campo discursivo, seja em relação aos demais campos da ação humana.

Podemos dizer que a literatura de que vamos tratar, o conjunto de textos que compõem o que poderemos nomear de literatura das secas, vem inicialmente responder a um desafio, a um projeto que, já no nascedouro, é inextricavelmente político e literário: projeto claramente enunciado em uma carta endereçada a um remetente não nomeado que o escritor cearense Franklin Távora insere como prefácio do autor ao seu romance O Cabeleira , publicado em 1876: o projeto de criação, de escritura de uma literatura do Norte (Távora, 1973, p.21-29). De saída, ao mesmo tempo em que dá a luz ao que seria o primeiro exemplar dessa literatura, Franklin Távora já propõe um conceito para nomeá-la, distingui-la, singularizá-la. Ele propõe um recorte no mundo dos discursos literários para propor a criação de um espaço literário específico e próprio para o livro que lançava pudesse habitar e, ao mesmo tempo, endereçava um convite para que outros textos viessem preencher e se abrigar sob esse novo espaço conceitual. Tanto no texto do romance, como no texto da carta que lhe serve de prefácio, Távora arrola algumas imagens, algumas figuras que dariam existência e consistência a esse conceito e que, portanto, deveriam figurar como imagens e figuras icônicas, como uma espécie de balizas e marcos figurativos que serviriam para desenhar esse espaço literário específico e que deveriam, portanto, se fazer presentes nos textos que viessem a pretender ocupar esse espaço conceitual.

A primeira delas remete para o caráter compósito e de fronteira que teriam esses escritos, eles oscilariam entre "composições literárias" e "estudos históricos" (Távora, 1973, p.22), escritos que respondiam, assim, às novas regras trazidas para o campo literário pelo que veio a ser chamado de realismo e de naturalismo, que articulavam o propriamente ficcional ao imperativo de se figurar o que seria a realidade. Borrando as fronteiras penosamente escavadas, desde o final do século XVIII, entre escritos literários e escritos historiográficos, esses textos, que nomeia de romance histórico, deveriam aspirar a produção de conhecimento sobre a história e a realidade das terras de onde provinham os escritores que viessem a abraçar essa causa. Essa literatura visaria, assim, dar a ver e conhecer não somente "os tipos notáveis" e "os costumes" da província em que tivesse nascido o escritor, mas de todo o Norte, já que deveriam lutar não somente contra a ignorância da realidade dessas terras pelos centros cultos do país, mas contra o falso juízo e o desprezo que a elas eram devotadas, lançando mão, para isso da "rica mina das tradições e crônicas" das províncias setentrionais do país (Távora, 1973, p.22). A primeira diretriz traçada para essa literatura remete, portanto, esses escritos para um primeiro arquivo de imagens, de temas, de figuras: aquelas advindas das tradições, dos costumes, das memórias e da história das terras do Norte. O romance em que materializa esse projeto, O Cabeleira , se apoia em narrativas orais, algumas delas na forma de versos, que circulavam na província de Pernambuco, em torno desse bandido lendário. Em várias passagens do romance, Távora vai buscar nesses textos as imagens com que figura o corpo, os gestos, as ações do lendário criminoso, seu entorno social, os costumes e paisagens de seu tempo. O caráter fronteiriço desse discurso, entre o ficcional e o documental, se explicita na presença de notas de rodapé nessas passagens em que o material da oralidade é trazido para o texto, estando transcritos aí os versos que o inspirou. Misto de escritor e etnógrafo, Franklin Távora dá início a um modelo de escrita que será acompanhada por muitos outros autores. Sempre que quiserem figurar o que seria o regional ou o local, os escritores ditos regionalistas lançarão mão do que seriam os elementos da tradição, recorrendo frequentemente aos discursos que circulam através da oralidade, trazendo dela temas, eventos, palavras, expressões para dar singularidade e materialidade textual ao recorte espacial a que se referem. Em plena narrativa do romance, Távora se dirige diretamente ao leitor para justificar a sua empresa, chegando a negar o caráter ficcional de seu texto, o colocando no campo da memória, do testemunho, do documento. Diz ele:

Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas por minha fantasia. São fatos acontecidos há pouco mais de um século. Se só alguns deles foram recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição que nô-los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia do passado. Não estou imaginando, estou, sim, recordando; e recordar é instruir, e quase sempre moralizar. Com estas razões considero-me justificado aos teus olhos, leitor benévolo. (Távora, 1973, p.103-104).

Nesse passo, outros traços relevantes se advoga para delimitar o perfil dessa literatura do Norte: ela não trataria de fantasias mas de fatos; ela não seria fruto da imaginação mas da memória e do arquivo; as imagens que mobilizaria não nasceriam da imaginação do autor, mas do conhecimento testemunhal e memorialístico, do contato com a realidade, com as tradições, com os costumes sobre os quais se escreveria; ela visaria instruir, não apenas divertir, produzir saber onde reinaria o desconhecimento; e teria, por fim, uma função moralizante, ela buscaria discutir e veicular valores, utilizando para isso os exemplos do passado. Se não estamos diante de uma história mestra da vida, talvez estejamos diante de uma literatura que aspira a tal condição.

Para continuar justificando seu projeto, Franklin Távora advoga que as letras, assim como a política, obedeceriam "a um certo caráter geográfico" (Távora, 1973, p.27), defende que Norte e Sul são duas realidades distintas e, articulando um discurso que Freud nomearia de discurso de denegação (Freud, 1976, p.293), recusa a ideia de que estaria movido por algum "baixo sentimento de rivalidade" (Távora, 1973, p.28), que não se aninharia em seu coração de brasileiro. No entanto, o projeto literário de Távora se desenha a par com a crescente rivalidade entre setores das elites do Norte e setores das elites do Sul, motivada pelo crescimento da desigualdade entre esses dois espaços, tanto em termos econômicos, como em termos políticos. O projeto literário de Távora se articula à emergência de um sentimento regionalista que se materializará de modo explícito daí há dois anos quando do Congresso Agrícola do Recife, realizado no ano de 1878, onde discursos com tons claramente separatistas vão se fazer ouvir. Embora diga que Norte e Sul são irmãos, Távora não deixa de afirmar que eles são dois, procurando marcar as suas diferenças, diferenças essas fundamentais para recortar esse espaço, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista literário. Nessas imagens que servem para instituir um recorte entre os dois espaços, algumas servirão de tema e permitirão figurar literariamente, por muito tempo, esse espaço do Norte, depois o espaço do Nordeste. A mais significativa delas é aquela que define o espaço do Norte como sendo aquele mais brasileiro e que, portanto, possuiria os elementos capazes de permitir a formação de uma literatura propriamente nacional. A razão para essa sua afirmação é explicada dessa maneira:

A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão. (Távora, 1973, p.27).

Se este projeto literário de Távora se inscreve no interior de um embate entre setores das elites nacionais ligadas a espaços, interesses políticos e econômicos diversos, ele não deixa de nascer das tensões no interior do campo literário, ainda mal constituído no país. Ao propor o novo conceito sob o qual deveria nascer uma nova literatura, Távora não esquece aquele que parece ser o seu grande rival, o cearense já bem instalado não só na vida pública, no mundo da política, mas também já considerada uma figura emblemática da literatura nacional: o Exmo. Sr. Conselheiro José Martiniano de Alencar, contra quem já desfechara, no ano de 1870, acerbas criticas, numa série de artigos em forma de cartas, nomeadas de Cartas a Cincinato, em que usando o pseudônimo de Simprônio denunciou o que seria a falsidade dos romances regionalistas de Sênio (pseudônimo usado por Alencar), tais como O Gaúcho e Iracema , aos quais faltariam o conhecimento da realidade local, incorrendo em graves erros históricos e na construção de cenários e personagens totalmente inverossímeis. No prefácio a O Cabeleira , Alencar é sutilmente acusado de ser um trânsfuga, a medida que ao invés de se dedicar a fazer literatura apoiada na realidade do Norte, espaço em que nascera, figurava entre os grandes luminares do que Távora nomeia de literatura austral (Távora, 1973, p.28). Ao invés de seguir as regras, agora definidas pelo autor primeiro da literatura do Norte, o autor cearense, em suas obras, desconhecia os tipos legendários e heroicos produzidos por esse espaço, os costumes, lendas, poesia, "máscula, vívida e louçã" que nele existiam, traindo assim o que seria suas origens (Távora, 1973, p.28).

Mas não foi O Cabeleira o romance que inaugurou o que podemos chamar a literatura das secas. Posteriormente ele será considerado o texto pioneiro em tratar de outra temática central à literatura regionalista nordestina: o tema do cangaço, muito embora, a palavra cangaço apareça apenas uma vez em todo o texto e não designe ainda um estilo de vida, uma forma de prática criminosa. O conceito de cangaço, tal como aparece definido no glossário apenso ao final da obra, se referia ao "complexo de armas" que costumavam trazer consigo os malfeitores. Cangaço seria uma "voz sertaneja", uma expressão para descrever o conjunto de armas portadas por um criminoso, pessoas que "andavam debaixo de seu cangaço", uma espécie de vestimenta, de armadura constituída pelo conjunto de armas que o bandoleiro portava. Ao se apropriar do conceito de circulação na fala oral e trazer para seu texto, Távora não apenas contribui para sua divulgação nos meios letrados, como o disponibiliza para que, por meio de deslocamentos de sentido, por procedimentos metonímicos venha recobrir e nomear a própria figura que transportava o cangaço, que vem a se tornar um cangaceiro (Távora, 1973, p.199). Mas, como dizia, O Cabeleira não inaugurou a literatura das secas, embora nele se possa encontrar referencias esparsas ao fenômeno, como já ocorria em textos anteriores. Essas passagens, no entanto, já articulam ao fenômeno da seca e, por conseguinte, a esse conceito, algumas imagens que irão reaparecer em várias obras posteriores e que irão compor o arquivo imagético que gravita em torno deste termo. A primeira referência que se faz à seca remete à calamidade natural que teria assolado a província de Pernambuco no ano de 1776, que por ter sucedido uma epidemia de bexigas, teria sido mais letal para a população, do que a seca posterior, ocorrida entre 1791 e 1793, e que teria ficado conhecida no Ceará como "seca grande". A referencia de Távora ao Ceará se deve não apenas ao fato de que essa era sua província natal, embora tenha iniciado sua vida literária em Pernambuco, para onde se dirige em 1859, para frequentar a Faculdade de Direito, mas por ser essa província o espaço visto como essencialmente o espaço da seca. Nesse momento, a seca ainda era seca do Ceará. A associação entre secas e epidemias, seca e morte por doenças epidêmicas será um tema constante em toda literatura das secas, assim como a morte do gado e das pessoas por inanição, a presença da fome e da sede extremas, a paisagem calcinada, associada a um braseiro que crepita sob o fogo do sol e os rios reduzidos a pequenos poços descontínuos, em meio a areia escaldante.

Mas será uma obra publicada três anos depois de O Cabeleira , em 1879, que constituirá não apenas um arquivo de imagens para figurar o que seria a seca, mas construirá um modelo narrativo que será atualizado e utilizado em muitas outras obras, algumas delas que possuem um renome maior do que esse texto pioneiro. Embora não fosse um filho do Norte e não almejasse, talvez, fazer uma literatura de cunho regional, o fluminense José do Patrocínio, um mestiço, filho de um cônego, jornalista, redator da Gazeta de Notícias , se vê profundamente impactado pelo que testemunha e pelo que ouve narrar, ao viajar ao Ceará, no dia 13 de maio de 1878, exatamente dez anos antes de presenciar a realização de seu sonho de abolicionista, incumbido de registrar para aquele periódico os acontecimentos que se desenrolavam naquela província desde o ano anterior e que começavam a interessar a opinião pública nacional. Antes mesmo de publicar o livro que intitulou de Os Retirantes (Patrocínio, 1973), no último ano da seca que devastou parte das províncias do Norte do Império, a série de artigos que escreveu com o título de "Viagem ao Norte", acompanhadas das imagens fotográficas que envia para ilustrarem o seu texto, causam profundo impacto entre as elites letradas do país, notadamente da capital do Império. As imagens que constrói através de sua prosa, são reforçadas, quando não dramatizadas pelas cenas e corpos que escolhe para fotografar. A longínqua e abstrata materialidade do que era designado pelo conceito seca do Ceará, ganha nas imagens de seus textos jornalísticos e nas fotografias que os acompanha, uma figurabilidade, uma encarnação, uma dizibilidade e uma visibilidade, que serão decisivas para a construção do agregado sensível e significativo chamado seca. Aproveitando o impacto e reverberações de seus textos e das imagens de corpos cadavéricos e esqueléticos, de corpos mortos e quase mumificados que as fotografias que enviou fizeram ver, ele lança o livro, que reunirá em sua urdidura imagens advindas de sua experiência de testemunha dos eventos narrados, mas também figuras presentes na memória oral, nas narrativas factuais ou lendárias que circulavam entre as diversas camadas da população, nos materiais jornalísticos e memorialístico a que teve acesso, nos textos com pretensões historiográficas escritos por historiadores da terra, tudo isso articulado a um conjunto de imagens bem mais antigas, disponíveis na cultura letrada, notadamente na cultua ocidental, fruto de suas leituras, mas também de um substrato de imagens que Georges Didi-Huberman, na trilha de Aby Warburg, chamará de imagens sobreviventes, imagens que constituem uma espécie de inconsciente de nossas produções culturais, imagens que rasgam o tecido do tempo presente, para se apresentarem com uma nova forma de aparecer, de fazer aparência, através de novas encarnações (Didi-Huberman, 2013a, p.67-73). Ele estabelecerá um modelo narrativo que, apesar das variações e singularidades narrativas de cada autor, reaparecerá em livros como A Fome de Rodolfo Teófilo, publicado em 1890, que não se constitui na obra inaugural da literatura das secas, como quer Lira Neto, em posfácio escrito para a edição de 2011 dessa obra (Teófilo, 2011, p.368), em Luzia-Homem de Domingos Olímpio, publicado em 1903, em O Quinze de Raquel de Queiróz, publicado em 1930, e até em Vidas Secas de Graciliano Ramos, publicado em 1938, e no poema Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1956. Ele construirá o que podemos nomear de uma estrutura de significação que se articulará e aceitará a relação com distintas temporalidades e com seus acontecimentos.

O título escolhido para o romance, Os Retirantes, indicia o primeiro elemento, digamos mais visível, dessa estrutura. José do Patrocínio vai estabelecer uma paradigma de como se deve narrar os acontecimentos que conformam um período de seca. Ele coloca no centro da narrativa a retirada, ou seja, a peregrinação forçada pela míngua de recursos para a sobrevivência, dos habitantes do sertão em direção ao litoral e às capitais dos Estados em busca dos socorros públicos. Embora a seca dê a ambiência e a motivação nuclear da trama, ela se desenrola em torno da trajetória e dos percalços que ela traz para um grupo de personagens humanos que realizam a retirada. Narrar a seca torna-se narrar a retirada e todo o rol de misérias, sacrifícios e sofrimentos que ela traz. Embora a retirada só nomeie e passe a estruturar a trama do romance a partir de sua segunda parte, a primeira parte, chamada "A Paróquia Abandonada" (Patrocínio 1973, p.23-233), é um introito extremamente significativo para analisarmos a estrutura mais profunda do arquivo de imagens que conforma toda a narrativa. Poderíamos dizer que toda a primeira parte constitui o que para Freud seria um sintoma que indiciaria essa estrutura mais profunda que organiza toda a narrativa sobre a retirada (Freud, 1996, p.265-279). Essa primeira parte se estrutura também em torno de uma ausência, de uma perda, à sua maneira, em torno de uma retirada: o declínio dos valores cristãos, a ausência da presença do divino, do consolo da religião, a retirada do corpo de Deus de entre os homens, pela dissolução dos costumes no interior do clero, pela baixa condição moral dos representantes de Deus. Antes mesmo da seca e da retirada, o rebanho do senhor já se encontra sem abrigo, já se encontra vagando e perdido sem morada, pois aqueles que deveriam guiá-los e protegê-los, que deveriam ser a lanterna que iluminava seus caminhos haviam também se perdido nas trevas do pecado. Se ao final da primeira parte, devido a um ataque de retirantes à cidade, tramado pelo padre para perpetrar sua vingança contra seus paroquianos, o núcleo urbano queda completamente abandonado, com a retirada de todos os seus moradores, a paróquia há muito estava abandonada, e os valores cristãos, seus mandamentos já haviam desertado há muito daquelas plagas. A imagem de Cristo que deveria se encarnar em cada um de seus pastores, que deveria ganhar encarnação em sua Igreja, já havia dali se retirado, já era uma imagem desencarnada, ferida de morte pela ação deletéria de seus pastores. O corpo de Cristo que deveria ser incorporado por seus pastores, é encarnado agora apenas pelos menores e mais aflitos membros de sua Igreja, os retirantes, que sofrem em suas carnes os mesmos padecimentos do corpo crístico. Em sua crítica contundente ao clero, que torna seu livro bastante singular, quando tomamos toda a literatura das secas, José do Patrocínio lançará mão, no entanto, de consagradas e sagradas imagens pertencentes ao arquivo das narrativas cristãs para estruturar o relato literário dos sofrimentos que presenciou como jornalista. Sua postura política de crítico da Igreja e da cupidez de seus membros, se faz lançando mão de imagens pertencentes a uma temporalidade de longa duração, como as imagens bíblicas.

A narrativa de Patrocínio, que se tornará estrutural para todo relato sobre as secas, recorre a sobreposição de duas narrativas bíblicas fundadoras de sentido, articula imagens pertencentes a dois relatos que são distribuidores de discursividade: a narrativa do Êxodo, título recorrente de capítulos e passagens de vários desses livros, que relata a saída dos hebreus do seu cativeiro no Egito, a peregrinação no deserto, em busca da terra prometida pelo Senhor, no transcurso da qual Javé celebra seu pacto com o povo eleito e entrega a Moisés as tábuas da lei, que fundará e codificará o que deveria se constituir no império dessa divindade; e a narrativa da via-crúcis ou da via-sacra, relato de todos os eventos que se articulam em torno da morte de Cristo na cruz, desde a sua condenação à morte até o seu sepultamento, o relato de um série de acontecimentos dolorosos, em que o corpo sagrado de Cristo que, portanto, não deveria, em tese, ser tocado, violado, profanado, é brutalmente torturado, humilhado e vilipendiado, afirmando a sua condição terrena e humana. Ela figura o paradoxo do corpo de Cristo, de ser um corpo sagrado que recai na condição de carne, um Deus que enfrenta a paradoxal condição de ter se encarnado, cujos ferimentos sangrentos e cujas chagas expõem sua condição humana, no mesmo momento em que recobra a sua condição incorpórea e divina. Cristo parece assumir o lugar paradoxal do que os romanos chamaram de Homo Sacer, corpo sagrado e, por isso mesmo, destinado a ser sacrificado (Agamben, 2002, p.79-81). A narrativa da retirada conjuga a estrutura desses dois relatos, convoca imagens desse arquivos, à medida que elas são relatos de um percurso, de uma trajetória, embora uma seja em busca da terra prometida e a outra na direção da morte. Mas a retirada, a trajetória dos retirantes conjugaria justamente essas duas imagens, a da busca da terra prometida, do paradeiro final salvador, da terra paradisíaca da fortuna, das delicias e da saciedade, com a imagem do fim trágico, da morte cruciante e, por isso mesmo, reparadora de todos os pecados e salvadora das almas mais pecadoras. Uma delas narra a peregrinação incerta e cheia de percalços pelo deserto, imagem que será inúmeras vezes utilizada para descrever o sertão calcinado pela seca, guiada apenas pelas promessas de um profeta e amparada precariamente na crença em um Deus que deve, nessa travessia, submeter à prova o seu rebanho e poder, assim, ao final do percurso, separar aqueles que realmente lhe seriam fiéis e aqueles que dele haviam desertado, se perdido na travessia. A outra, uma trajetória feita de um conjunto de estações, marcadas cada uma delas por um evento doloroso, de flagelação do corpo de Cristo, de humilhação e demonstração de fragilidade daquele homem que se dizia filho de Deus. Um conjunto de eventos nos quais seu corpo vai sendo deformado, sua carne vai perdendo a figura humana, uma trajetória de sacrifícios e quedas, que termina pela morte e posterior sevícia de seu corpo. Corpo aberto, lanceado, ultrajado pelo fio de um lança, após ter sua face, seu rosto desfigurado pelo sofrimento, pela dor e pelo sangue gotejante de sua fronte coroada de espinhos. A imagem de Cristo é também uma imagem que vai perdendo em nitidez, uma imagem que se desfigura e se deforma, um rosto que se imprime num lenço da discípula amada, mas com traços feitos em sangue, num grande borrão vermelho a que sua imagem estava sendo reduzida. A imagem de Cristo é também uma imagem retirante, uma imagem que se ausenta de sua presença na terra, uma imagem que por deformações e desfigurações vai perdendo em forma, no mesmo instante em que se espiritualiza, ganhando assim em substância.

Se Franklin Távora havia definido como uma das tarefas da literatura do Norte o moralizar, o texto de Patrocínio, três anos depois, atende de maneira exemplar esse objetivo. Toda a primeira parte do romance é a narrativa de uma debacle moral, de uma conjuntura social em que os valores cristãos se ausentam, inclusive do seio da Igreja que os deveria representar. A seca e a via-crúcis da retirada são apresentadas assim como um castigo, uma forma de purificação, de expiação dessa ausência de virtudes. Mesmo Eulália, a personagem principal, carrega consigo a mácula do pecado por ter se apaixonado e se entregado ao vigário Paula, tendo que morrer, ao final da narrativa, abandonada em plena rua, diante do Palácio do Governo (Patrocínio, 1973, p.314). Assim como Cristo havia percorrido sua trajetória de dor e humilhação, para o perdão dos pecados humanos, assim como os sofrimentos do corpo de Cristo servira para a expiação das faltas humanas, o calvário moral e social trazido pela seca e sofrido pelos retirantes, serviria para repor uma ordem social em crise. A literatura das secas tende a incorporar a narrativa paulina de que a tortura do corpo, a flagelação da carne humana está a serviço da purificação das almas, de sua salvação (Onfray, 2014, p.111-118). A imagem do Deus hebreu, do Deus cuja ira se abateu no deserto contra aqueles que lhe viravam o rosto, sobrevive e se atualiza nessas narrativas, em que a seca surge como punição das faltas humanas e de seu afastar-se do divino. Remetendo-se a outra imagem bíblica, a das sete pragas lançadas contra o Egito pelo Deus hebreu, Patrocínio faz da seca um momento de ira de um Senhor desafiado por suas criaturas.

Se a via-sacra é composta de quedas, em que o Cristo explicita a fragilidade da condição humana, momento em que necessita da solidariedade, da piedade e da caridade de um homem comum, valores cristãos que aparecem representados em alguns personagens da trama, a literatura da seca também se remete, em quase todas as suas obras, à queda social de famílias pertencentes ao que seria uma espécie de tradicional e antiga nobreza rural. Se essa literatura foi fundamental para construir a seca como um problema político, a merecer a atenção e intervenção do Estado, se a seca foi descoberta, na chamada grande seca de 1877-1879, como um problema de âmbito nacional, isso se deve ao fato de que ela foi a primeira seca que, encontrando esse espaço em dificuldades econômicas, com o declínio dos preços do açúcar e do algodão, principais produtos de exportação, provocou a ruína econômica de famílias abastadas e consideradas de respeito. Como as finanças das províncias estivessem abaladas, ao contrário do que ocorrera em secas anteriores, essas famílias não puderam contar com cargos públicos para poderem resistir ao período de estiagem. Tal como em secas anteriores, como a de 1845, a última a atingir o Ceará e províncias adjacentes, a perda dos rebanhos e da escravaria significou forte abalado nas finanças das elites agrárias do sertão, mas desta feita, com a procura de escravos pelos cafezais que se expandiam no Sul, a venda de escravos se intensificou e a descapitalização das elites sertanejas se aprofundou (Albuquerque Jr., 1988, p.15-83; Mello, 1984, p.25-47; Monteiro, 1980, p.19-66; Teófilo, 2011, p.97; Patrocínio, 1973, p.210). Esses eventos históricos, testemunhados ou conhecidos através de relatos jornalísticos ou memorialísticos, vão ser articulados a essa estrutura narrativa de origem bíblica. A imagem da queda, do desabar do corpo divino na estrada empoeirada e deserta que levava ao monte estéril do Gólgota, é agenciada para reaparecer como a queda social de uma elite rural, que tem agora que perambular pelas estradas como simples retirantes, indo, alguns deles, terminar nos abarracamentos precários dos campos de concentração, tendo que realizar trabalhos braçais, como carregar pedras da pedreira de Mucuripe, em troca da parca e insuficiente ração diária (Teófilo, 2011, p.279). Em Os Retirantes , de José do Patrocínio é a família do velho criador Rogério Monte que vai perdendo o que ele chama de "dignidade da proeminência social" (Patrocínio, 1973, p.26). O barracão do engenho que fora patrimônio dessa família, se encontra em ruínas e servirá para alojar as levas de retirantes que chegam à cidade de B. V. No seu interior ressoa o maracá de um feiticeiro, imagem da crise da civilização cristã que aí se assiste, levando ao retorno das práticas mágicas que remetem aos indígenas e aos negros. A religiosidade cristã, marca maior da civilização trazida pelos brancos europeus, recua com a desagregação moral do clero, abrindo espaço para o retorno da barbárie. A literatura das secas se apropria, assim, de outras imagens e de outras estruturas narrativas, essas bem mais recentes. A imagem da queda cristã se articula à narrativa de caráter evolucionista, de matriz iluminista e positivista, que se fazia presente no Brasil, no final do século XIX, tendo a Faculdade de Direito do Recife, onde alguns desses escritores estudaram, como uma de suas principais divulgadoras. Autores como Comte, Spencer, Darwin e Haeckel ofereciam uma narrativa onde os destinos humanos já não estavam mais presos a decisões divinas, mas dependiam de determinações ou de condições naturais e sociais. Na maioria das obras que compõem a literatura das secas, um conjunto de imagens ligadas as teorias de caráter racial, enunciados ligados ao social-darwinismo, ao evolucionismo, muito presentes no que em literatura se chamará de naturalismo, se farão presentes, estabelecendo hierarquias entre o que seriam as raças, entre brancos, negros e mestiços, hierarquias que também vinham ser destruídas pelas secas (Paim, 1981, p.35-60; Saldanha, 1985, p.42-78; Sales, 2006, p.114-116; Olímpio, 1993, p.30, p.118).

No livro A Fome , escrito pelo farmacêutico e jornalista Rodolfo Teófilo, publicado em 1890, a crítica ao rebaixamento social sofrido por setores das elites agrárias cearenses, ao que chama de nivelamento social entre brancos e fidalgos com a canalha mestiça dos retirantes, é uma constante (Teófilo, 2011, p.180). A presença dos enunciados médicos em seu texto, a ênfase que seu texto confere a própria desfiguração dos corpos dos retirantes, a imagem recorrente de corpos em que até o sangue se esgota, se afina, se liquefaz, parece remeter para a própria morte dessa nobreza de sangue, para o fim desse corpo social, dilacerado, enfermiço, moribundo. No progressivo declínio do corpo de Manuel Freitas, descrito como "descendente de uma das mais antigas e importantes famílias do alto sertão" (Teófilo, 2011, p.18), à medida que afronta o êxodo, a via-crúcis da retirada, é a própria morte de toda uma ordem social que é figurada e denunciada. A casa que havia abrigado cinco gerações da mesma família, "sem nunca ouvir uma maldição à sorte" (Teófilo, 2011, p.27), era agora abandonada. A casa, imagem símbolo de uma ordem social centrada no mundo privado, uma ordem patriarcal e paternalista, ia sendo destruída pela seca e pela incúria governamental e política. Tanto em Patrocínio, quanto em Teófilo, são denunciados a insuficiência dos socorros públicos, sua desorganização, a corrupção generalizada, o enriquecimento de membros das comissões de socorros, a usura dos comerciantes dispostos a enriquecer às custas da comercialização, por preços escorchantes, das mercadorias que deveriam ser distribuídas aos retirantes. Já Domingos Olímpio elogia "os cidadãos incumbidos pelo governo da penosa tarefa", por desempenhá-la com "caridosa dedicação, escrupuloso zelo e probidade na administração dos serviços" (Olímpio, 1993, p.40).

As posições políticas dos dois escritores emergem na narrativa e são antagônicas. Enquanto José do Patrocínio assegura que a queda do gabinete Conservador, chefiado pelo duque de Caxias, em 5 de janeiro de 1878, veio piorar a situação dos retirantes, à medida que o novo gabinete Liberal, chefiado pelo visconde de Sinimbu, interrompeu o envio de socorros para os sertões, alegando que eles não chegavam a quem necessitava, dada a verificação de práticas de desvios constantes por parte das comissões de socorros e por parte de comerciantes, além dos ataques que grupos de bandidos faziam aos comboios que transportavam os víveres e do próprio esvaziamento progressivo dos sertões com o deslocamento de suas populações para o litoral - que em alguns desses romances figura como deslocamento para o Ceará, designação que parece ser usada na época para nomear a região norte da província (Patrocínio, 1973, p.11, p.209) -, Teófilo trata assim dessa reviravolta política:

O novo governo encontrou a província nas mais desoladoras circunstâncias. Na Fortaleza, mais de cento e quarenta mil almas de população adventícia, abarracadas em roda da cidade e, por cúmulo da incúria do governo da província, nos edifícios públicos e casas particulares do centro da capital.

Toda a província em deplorável estado de abatimento pela certeza da continuação do flagelo, sem viveres e sem recursos, e a lutar com a peste que se havia desenvolvido das praias ao sertão, se aniquilaria, se o governo que subia, com o mais acrisolado patriotismo, não procurasse por todos os meios atenuar os efeitos do mal. (Teófilo, 2011, p.209)

Em livros como Luzia-Homem de Domingos Olímpio, publicado em 1903, Aves de Arribação de Antônio Sales, publicado em 1914 e O Quinze de Raquel de Queiróz, publicado em 1930, os personagens principais da trama representam essa elite rural em dificuldades (Olímpio, 1993, p.20, p.28). Os retirantes são famílias que, no passado, foram abastadas e que se veem premidos, no presente, a deixar suas terras, suas casas, venderem seus animais ou retirá-los para as áreas úmidas, vender os seus escravos ou abandoná-los a própria sorte, bem como os homens pobres agregados, moradores e vaqueiros, como é o caso de Chico Bento do romance O Quinze , abandonado por sua patroa D. Marocas, que não cumpre o que seria o esperado por essa literatura: o pacto paternalista entre patrões e empregados. D. Marocas é o oposto de Vicente, o personagem central da trama, que mesmo diante das enormes dificuldades trazidas pela seca, não abandona o sertão, não abandona suas terras, seus animais e suas gentes (Queiroz, 1978, p.5-15). Realiza, assim, um dos valores fundamentais dessa ordem social que seria a solidariedade entre grupos sociais diversos, solidariedade que vinha acompanhada do respeito, da obediência e da quase devoção por parte do homem pobre e, mesmo do escravo, por ela agraciado, ao seu senhor e/ou patrão. Somente em Vidas Secas , de Graciliano Ramos e em Morte e Vida Severina , duas obras escritas por autores que se identificavam politicamente com o marxismo, é que a figura principal da trama é uma família de gente despossuída, é um homem das camadas populares. Em O Quinze , de Raquel de Queiroz, embora tenhamos a presença da família de Chico Bento como a família retirante, a trama se desenrola em torno da professora Conceição, talvez um personagem autobiográfico, e de sua avó D. Inácia, que ao contrário de D. Marocas, não abandona seus vaqueiros e empregados que, ao final do romance, a carregam nos braços, dada a morte da parelha de burros que puxava sua cadeirinha (Queiróz, 1978, p.66). As imagens que remetem a uma sociedade senhorial, com traços ainda muito presentes da existência de um passado escravista, aparecem constantemente em toda a narrativa da escritora que depois participaria da fundação do Partido Comunista no Ceará. O romance apresenta, põe sob nossos olhos cenas que remetem ao arquivo de imagens ligado ao mundo da nobreza, da aristocracia, de uma sociedade estamental e nobiliárquica. Esse arquivo de imagens, muitas delas advindas de uma literatura medieval, que chegou até o Brasil e circulou inicialmente no formato de narrativas orais e posteriormente de folhetos de feira, também era ligado a uma sociedade que foi a única a conhecer a existência de uma nobreza, a ser governada por uma monarquia, por se constituir em um Império, em toda a América, é presença constante na produção literária brasileira, notadamente, na produção literária que se diz regionalista e nordestina. A saudade do Império e da escravidão, a recusa e a crítica da sociedade burguesa e moderna se apoia no desejo de retorno, de fazer presente, nem que seja através do texto, esse tempo de nobreza e fidalguia desaparecido sob a vulgaridade e superficialidade do mundo da mercadoria.

Patrocínio e Teófilo também divergem quanto o papel desempenhado pela Igreja durante o flagelo, imagem que também remete à mais conhecida das flagelações do mundo Ocidental, aquela de que foi objeto o corpo de Cristo. Enquanto José do Patrocínio traz para sua narrativa uma Igreja Católica completamente corrompida, afastada dos valores cristãos, devotada aos prazeres da carne e aos interesses econômicos e políticos, aos valores e interesses mundanos, Rodolfo Teófilo encarna na figura do padre Clemente - que em seu próprio nome indicia um dos valores centrais ao discurso cristão, o valor do perdão, da clemência em relação a quem por ventura venha a realizar uma ofensa a um seu semelhante -, todos os valores positivos que teriam sido trazidos pela mensagem do Salvador, o que ele se torna em vários momentos da trama: a caridade, a solidariedade, o desprendimento dos valores terrenos, a piedade, a firmeza de caráter, a moralidade e a abnegação no serviço ao próximo, notadamente aos deserdados da terra. Clemente assume por inteiro a própria figura do sacerdote, aquele que se devota a uma causa, mesmo que ela implique riscos à sua vida e à suas posses. Essa talvez fosse a própria autoimagem do próprio Rodolfo Teófilo, o farmacêutico que, à revelia da ajuda dos poderes públicos, da desconfiança e perseguição dos poderosos da província, se dedicaria, no início da República, após a publicação de seu romance, em 1890, à vacinação da população de retirantes acometidos pela epidemia de varíola na seca de 1902. Entre 1878-1879, assistira impotente atrás do balcão de sua farmácia a verdadeira hecatombe provocada pela varíola, que descreve em traços bastante fortes (Neto, 1999). Ele figura a própria paixão dos corpos que vão sofrendo, como o corpo do Nazareno, em seu percurso pela via dolorosa, um processo crescente de desfiguração: do corpo que vai emagrecendo, ficando macilento e sem brilho (Teófilo, 2011, p.68; Olímpio, 1993, p.117); do corpo queimado pelo sol e coberto pela poeira e pelos andrajos; vai se caminhando para o corpo esquelético, escaveirado, onde apenas restam a pele e osso completamente inseparáveis (Teófilo, 2011, p.47, p.84; Olímpio, 1993, p.23). Mais algumas estações e encontramos o corpo morto e jogado pelo caminho, com as vísceras à mostra, servindo de repasto para os cachorros e os urubus, presença icônica em toda sua narrativa (Teófilo, 2011, p.67, p.160; Patrocínio, 1973, p.44; Olímpio, 1993, p.24, p.117). Depois é o corpo já em estado de putrefação, roído pelos vermes, atacado por morcegos, abandonado sozinho em uma casa de beira de estrada; corpos ressecados e mumificados encontrados ainda encostados ao pé de uma árvore (Teófilo, 2011, p.52; Olímpio, 1993, p.117); até nos depararmos com os corpos enterrados em redes ou amarrados e suspensos em paus, que eram conduzidos pelos presos da cadeia da Fortaleza, libertados para realizarem tarefa que ninguém se dispunha a realizar; corpos levados amarrados pelos pés e pelas mãos em um madeiro, em uma espécie rústica de Santo Lenho (cuja venda da versão em ouro, trazida pela esposa, foi o ultimo recurso do fazendeiro em desespero para evitar a retirada) tal como acontecera em longínquos tempos bíblicos (Teófilo, 2011, p.160; Patrocínio, 1973, p.183). Alguns desses corpos, representando o estágio final de desfiguração, se despedaçavam, se resumiam a pedaços de carnes podres e cobertas de pus, que quedavam caídos pelas ruas (Teófilo, 2011, p.245). O corpo humano, que segundo o discurso cristão, era o templo do Senhor, ao perder sua sacralidade, vilipendiado pela miséria física e moral, retornava à condição de carne, tornava-se abjeto, tornando ausente a própria condição humana.

Três outras cenas, três outras figuras vêm compor o agregado sensível que é nomeado pelo conceito seca do Norte e depois seca do Nordeste e que são presenças constantes nessa literatura das secas: a figura da besta humana, a figura do idiota e a figura do antropófago. Essas três figuras remetem ao que seria o processo de animalização sofrido pelos homens diante do quadro de sofrimentos físicos e emocionais e de dissolução dos códigos sociais e morais trazidos pela estiagem com o abandono a mais completa miséria de grande parte da população. A descrição mais vívida de uma besta humana é feita por Rodolfo Teófilo, em A Fome (Teófilo, 2011, p.62-64). O encontro com ela é narrado como tendo sido vivido pelos próprios personagens da trama: um homem a andar de gatinhas, a farejar migalhas, que roía as unhas e as escamas que se desprendiam de sua pele, as narinas dilatadas, que farejavam as carnes de Carolina, com o desejo de devorá-la. Ferido pelo fazendeiro que saíra em defesa da filha, leva a ferida à boca e suga o sangue incolor que sai do ferimento, terminando por devorar as próprias carnes do braço. O processo de desumanização é também figurado pelo idiotismo: é a criança que vai deixando de falar, que após a tentativa frustrada de tentar arrancar leite dos seios muxibentos de sua mãe vai recuando à condição de infante (Teófilo, 2011, p.33), que vai retrocedendo na condição humana, que vai se tornando um mero animal, que só pensa em e busca comida, nua, sendo capaz de comer as migalhas que caíam dos fardos de alimentos trazidos para os socorros públicos, lambendo a terra para aproveitar os pingos de mel que derramavam de barris que tinham alguma aduela afundada (Teófilo, 2011, p.238; Olímpio, 1993, p.77, p.78). Nessa tarefa se envolvia em verdadeiros pugilatos com outras crianças e até mesmo com o que seriam outros animais: cachorros e ratos. Essa cena, em que meninos lambem na terra pingos de mel caídos de uma barrica, parece advir de testemunhos diretos dos autores, pois ela aparece narrada da mesma maneira, nos romances de José do Patrocínio, Rodolfo Teófilo e Domingos Olímpio. A loucura também é outra forma de desumanização que atinge, notadamente as mulheres, que perdem seus filhos mortos pela fome, pelas epidemias e, no caso extremo narrado por Teófilo, devorado por outro ser humano. José do Patrocínio é o único que nos oferece uma narrativa que podemos chamar de jornalística de um evento de antropofagia. Nos demais o relato se remete para o campo do conto, do boato, da lenda, que possivelmente se referem a relatos orais que circulavam nesse espaço. Embora o início da narrativa do episódio se dê a partir do mero sussurro cheio de espanto e terror da população da vila de Quixadá, a mulher que cometera infanticídio, matando seu filho para devorá-lo, aparece conduzida pelas autoridades até a delegacia, onde confessa o crime (Patrocínio, 1973, p.115-125). Estas três cenas, remetem a aspectos profundamente recalcados na história de nossa espécie, de cada um de nós e da cultura brasileira, em particular: nossa animalidade, que ainda nos habita e nos espreita, nossa infância, que nos ameaça de retorno, transfigurada na velhice, e a antropofagia das primeiras gentes habitantes das terras brasileiras.

Apoiada, pois, na narrativa da retirada, a literatura das secas se estrutura como o relato da sucessão de percalços, de eventos que vão progressivamente despossuindo os personagens de suas terras, de seus pertences, de seus animais de estimação, das provisões que fizeram para a viagem, de seus valores morais, para terminar por despossuí-los de seus filhos, de sua descendência, de sua saúde, de seu corpo, dirigindo-os para duas saídas extremas: a morte ou a emigração forçada para outras terras (Teófilo, 2011, p.150; Olímpio, 1993, p.122-123). Nesse relato figuras e cenas foram construídas e se fixaram como a realidade desse fenômeno. Elas tiveram o condão de produzir uma figurabilidade, uma visibilidade para a seca que será, posteriormente, transformada em pinturas, desenhos e ilustrações, terminando por aparecer nas produções cinematográficas e televisivas sobre esse fenômeno. Nessa literatura encontramos figuras já tornadas clássicas como: o retirante a chorar tendo que deixar para trás a sua morada, notadamente algum bicho de estimação, como a vaca Rendeira, em O Quinze , que magra e quieta à beira da estrada, como que esperava a família do vaqueiro para se despedir, voltando para eles seus grandes olhos dolorosos, de onde escorria uma lista clara sobre o focinho, como se fosse um caminho de lágrimas (Queiróz, 1978, p.19); o encontro com a árvore frondosa e verde, a única a resistir em meio a caatinga acinzentada, proporcionando a guarida por uma noite (Teófilo, 2011, p.60; Patrocínio, 1973, p.45; Sales, 2006, p.76); o grupo de retirantes com trouxas à cabeça, composto de homens rijos que vão se alquebrando ao longo do trajeto, mulheres arrastando pelo braço crianças magricelas, de cabeças grandes e pernas finas, com barrigas enormes, que só aumentavam à medida que têm que ingerir as chamadas comidas brabas ao longo do percurso (Teófilo, 2011, p.29; Patrocínio, 1973, p.27; Olímpio, 1993, p.148); o animal de estimação que serve de socorro a todos no início da retirada, que colabora no encontro de alimentos e que, ao final, representando o máximo de entrega e dedicação aos seus donos lhes serve de repasto salvador (em José do Patrocínio o cachorro tem o nome significativo de Amigo. Baleia é sua reencarnação como imagem sobrevivente, cadela que a todos emociona em Vidas Secas ) (Patrocínio, 1973, p.107); o filho que morre e tem que ser deixado pelo caminho, enterrado sob uma improvisada cruz de madeira; o filho ou a filha que se perdem pela estrada ou que preferem ficar em alguma das estações da retirada; as mulheres que se prostituem, que são oferecidas pelos próprios pais como forma de angariar minimamente o sustento (Patrocínio, 1973, p.172, p.177; Olímpio, 1993, p.98); o sertanejo que se vê em tal estado de aflição que termina por roubar ou saquear os armazéns em que se guardam os socorros públicos, rompendo um dos valores mais estritos da moral sertaneja: a honestidade (Patrocínio, 1973, p.157). Essas figuras e cenas advém de diferentes matrizes narrativas: testemunhos, memórias, relatos históricos e biográficos, relatos orais, relatos jornalísticos e oficiais, articuladas em torno de estruturas narrativas que remetem, na cultura Ocidental, ao êxodo, à flagelação e à uma trajetória pontuada de dores e de quedas, de humilhações e desfigurações do corpo e da própria ordem social. Como é próprio do estatuto das imagens, essas figuras aparecem, fazem presença, veem à cena, para depois se retirarem, sobreviverem e depois reaparecerem, serem atualizadas, reencenadas e reencarnadas em outras narrativas, em outros contextos históricos e políticos, mediadas por outras tensões. Essas imagens, como a figura do retirante, se desfiguram, se deformam, se transformam, se retiram, permanecendo em latência em nossa cultura, retornando como presenças fantasmáticas e fantasmagóricas sempre que se deseja falar de ou narrar a seca do Nordeste, sendo convocadas e evocadas a partir dos conflitos e das forças em luta em cada época (Sales, 2006, p.113). Essas imagens obsediam, essas imagens obsessionam, emergem como abscessos de nossa cultura, sempre que se quer contar uma seca do Nordeste. Elas, como sintomas, remetem à cenas primárias, a acontecimentos, a eventos doloridos, traumáticos, que não cessam de, através delas, incomodar, atiçar, queimar nossas consciências. Elas nos indicam, pelo incômodo que provocam, que elas não são apenas fruto da imaginação e da ficção, elas, infelizmente, não são apenas literatura, elas são presenças fantasmáticas de desastres humanos, de carnificinas e genocídios, de flagelos, de vias dolorosas que foram a vida de muitos brasileiros. Elas emergem como gritos de horror e de dor diante do cortejo de grandes crimes que, infelizmente, constituem a história desse espaço e desse país. Embora seja extensa a historiografia sobre as secas, esta sempre fugiu de encarar essas imagens, de dar centralidade a elas em seus relatos. Essas cenas e personagens foram sistematicamente ignoradas pela historiografia. Imagens das quais os historiadores não souberam ou não quiseram se apropriar, imagens que a historiografia nunca foi capaz de criar, que remetem a regiões de nosso ser enquanto nacionalidade que a história pouco foi capaz de habitar, com seu racionalismo e sua frieza cientificista. Imagens que desertaram da historiografia para a literatura, que encontraram nessa retirada a maneira de se fazerem presentes e prementes. Embora retirantes, essas imagens estão indelevelmente gravadas, fixadas em nosso inconsciente, enquanto povo e enquanto cultura. Quanto mais elas migram, quando mais elas se deslocam, mais elas nos assombram com suas presenças. Elas se retiram, mas deixam em seu lugar a sensação da enorme dor e injustiça que as permitiram ser pensadas e escritas. Imagens retirantes, no entanto, imagens revoltantes.

Agradecimentos

Agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa que resultou neste texto, ao Departamento de Letras da Universidade Federal do Ceará e à Fundação Demérito Rocha, que realizaram o evento em que este texto foi apresentado.

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  • SALDANHA, Nelson. A Escola do Recife . Santo André: Convívio, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2016
  • Aceito
    28 Jul 2016
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