Acessibilidade / Reportar erro

A quatro mãos: encruzilhadas da coautoria na área de história

Four Hands: Crossways of Co-Authorship in the Area of History

Sviatoslav Richter (1915- 1997) foi um dos maiores e mais virtuosos pianistas do século XX, admirado pela profundidade de suas interpretações. Benjamin Britten (1913-1976) foi figura central na música clássica britânica, compositor, condutor e pianista. No Aldeburgh Festival of Music and the Arts de 1965, os dois realizaram memoráveis interpretações de obras para piano a quatro mãos, a exemplo da obra de Franz Schubert Fantasia em Fá menor, opus 103, composta em 1828, ano da morte do compositor austríaco. Esse encontro é um, entre muitos exemplos, da importância dada por grandes compositores e grandes instrumentistas a esse tipo de obra, em que a performance a dois origina criação e experiência musical.1 1 Para ouvir esta interpretação da obra de Schubert, visite https://www.youtube.com/watch?v=cKcR_6eT8Xw, consulta 08 de ago. 2017. Ver ainda o disco Britten at Aldenburg, pela BBC, 2000.

A divisão de um piano por dois artistas para criar música envolve muitos desafios: equilibrar sonoridades, compatibilizar toques, compartilhar o espaço físico de um teclado, decisões interpretativas, uso do pedal. E como a interpretação musical de uma peça é, em si mesma, uma criação, pode-se dizer que tocar a quatro mãos é, além de "uma maneira especial de se fazer música de câmara" (Faria, 2007FARIA, Sandra Costa Almeida de Lino. Piano a Quatro Mãos: aspectos interpretativos e obras brasileiras para essa formação. Dissertação (Mestrado, Escola de Música) Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007., p.10), uma forma de coautoria.

Arte e cultura são, tantas vezes, constituídas em coautoria, e de formas muito diversas: Federico Fellini e Nino Rota, John Lennon e Paul McCartney, Salvador Dali e Luis Buñuel, ou o Grupo Galpão de teatro, que transcende a coautoria ao escolher a criação coletiva.

No conhecimento científico, a coautoria estabeleceu-se há décadas como forma privilegiada de produção em muitas áreas, especialmente aquelas que envolvem a socialização de pesquisadores em laboratórios sofisticados, o levantamento e análise de dados. Implica a complexidade de abordagens, a formação de redes de colaboração, a internacionalização e, por vezes, a interdisciplinariedade.

Na área de história, a autoria individual permanece como tradição predominante. Mas a produção do conhecimento histórico também vem sendo aqui e ali realizada em coautoria, em obras de inegável qualidade. É o caso de Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2007)GOMES, Angela de Castro & FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007., João José Reis, Flávio Gomes e Marcus Joaquim M. de Carvalho (2010)REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos & CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1823 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010., Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015)SCHWARCZ, Lilia & STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., ou ainda Martha Abreu e Hebe Mattos que, desde 2014, escrevem em coautoria em seu blog "Conversa de Historiadoras", oferecendo análises históricas para além do livro e do artigo, em consonância com a importância das mídias e redes sociais em nosso tempo. Desenvolve-se um processo promissor, com dinâmicas inéditas: tal como os pianistas, esses historiadores têm que equilibrar as sonoridades do estilo, tomar decisões interpretativas, conduzir resultados de pesquisa, compartilhar o espaço da escrita, e conferir ênfases, sutilezas e ressonâncias acionados por "pedais imaginários" na condução da análise histórica.

A despeito de toda a vitalidade que a coautoria poderá estabelecer no processo criativo do conhecimento histórico, enfrentamos, em nossa área, graves problemas na sua realização. Talvez isso ocorra pelo caráter recente dessa prática entre os historiadores, e muitas vezes os padrões adequados de conduta não se encontram muito claros a quem a ela se propõe.

A revista Varia Historia tem se deparado com essa questão. Recebemos muitos artigos que se constituem em formas perversas de coautoria, frutos de uma relação desigual e de mão única. Orientadores assinam artigos de seus alunos, simplesmente por serem orientadores, num ato de poder e hierarquia eticamente questionáveis. Há ainda grupos de pesquisadores que se incluem quase numa atitude de apoio mútuo. Todas essas ações afrontam as práticas de produção do conhecimento como elemento transformador. A publicação deixa de ter como finalidade compartilhar conhecimento, torna-se um fim em si mesma, simplesmente para aumentar o currículo de quem assina. Como editora chefe desta revista, trabalhei com afinco para combater essas práticas. A cada artigo submetido, os currículos, as publicações, os projetos de pesquisa de cada autor eram consultados e analisados, buscando sondar não apenas o ineditismo do artigo, mas também a consistência e plausibilidade das indicações das autorias. É uma missão impossível mas, por vezes, há sinais claros que permitem ao editor barrar abusos. É preciso, mais do que nunca, rejeitar com veemência a exploração do trabalho alheio viabilizada por hierarquias, assim como a união inapropriada dos Homo lattes.

Na ultima reunião da Anpuh, em Brasília, julho de 2017, o coordenador da área de História na CAPES, professor Carlos Fico, realizou uma conferência decisiva, que seguramente trará muitos resultados positivos para nossa área. Entre outros pontos, criticou coautorias inadequadas motivadas pelo afã produtivista e ressaltou, com grande pertinência, a necessidade da valorização de padrões éticos na produção, escrita e divulgação do conhecimento histórico.

A história enfrenta um momento crucial. Resulta tantas vezes de reflexão individual, do estilo pessoal da escrita e condução de argumentos, de insights interpretativos. Mas a cada dia, o historiador trabalha de forma coletiva em laboratórios, produz filmes, documentários, blogs, exposições, assim como artigos e livros, integrado a profissionais diversos, em ambientes de sociabilidade acadêmica e troca intelectual. Por todas as suas promessas, temos que estar abertos à coautoria, sem preconceitos. Ela pode, sim, ser rica, ética e inovadora. Mas isso impõe a construção de um savoir faire. Algumas áreas de conhecimento estabelecem padrões sistemáticos para legitimar a autoria, e retomam continuamente o tema. Isso pode nos servir como inspiração, mas teremos que construir nossos próprios critérios.2 2 Ver, como exemplo, algumas recomendações e definições: International Committee of Medical Journals Editorshttp://www.icmje.org/recommendations/browse/roles-and-responsibilities/defining-the-role-of-authors-and-contributors.htmlCouncil of Science Editorshttps://www.councilscienceeditors.org/resource-library/editorial-policies/white-paper-onpublication-ethics/2-2-authorship-and-authorship-responsibilities/ ou ainda da Elsevierhttps://www.elsevier.com/authors-update/story/publishing-trends/the-challenges-arounddefining-authorship-you-have-your-say O debate em nossa área sobre os significados da coautoria é inadiável, e resultará em valioso aprendizado e amadurecimento.

Com a intenção de agir de forma propositiva, Varia Historia instituiu, em seu site, uma seção que define alguns parâmetros de autoria para a submissão de trabalhos, e estabeleceu um formulário aos autores, que deverá ser preenchido e enviado no processo de submissão. Os conteúdos dessa seção serão gradualmente aperfeiçoados pela experiência do dia a dia nos processos editoriais. Com isso, Varia Historia inaugura uma prática pioneira entre os periódicos de história publicados no Brasil.

Autoria, coautoria, criação coletiva: são caminhos diversos que o historiador pode e deve percorrer na busca do conhecimento necessário para o nosso tempo. Duas, quatro, seis, dez: quantas mãos forem necessárias. E porquê não? Relembro Richter e Britten, músicos memoráveis que, como tantos outros, emocionaram seus ouvintes ao explorarem, lado a lado, as 88 teclas e os dois pedais de um piano.

Que a história se faça em solo, duo, câmera ou orquestra. E que Varia Historia vibre com todas essas sonoridades.

Agradecimentos

Esta é minha última edição como Editora Chefe de Varia Historia. A partir do número 64, jan-abr 2018, passarei a batuta à querida e competente colega Ana Paula Sampaio Caldeira.

Nessa trajetória, tenho muita gratidão a expressar. CNPq, FAPEMIG e CAPES nos deram apoio decisivo. Agradeço aos editores associados e seniores, que partilharam decisões tantas vezes difíceis: Anny Jackeline Torres Silveira, Júnia Furtado, Heloisa Starling e, mais recentemente, Seth Garfield e Georg Fischer. Os membros do nosso Conselho Consultivo participaram de muitos processos, emitindo pareceres, assim como dezenas de generosos revisores ad hoc, que permanecem anônimos. Agradeço aos colegas do Departamento de História e à Pós-Graduação em História da UFMG, que me confiaram uma função tão importante.

Rafael Chimicatti foi impecável designer de nosso projeto gráfico e diagramador. Natascha Ostos prestou auxílio inestimável em todas as edições, num trabalho cuidadoso e movido pela generosidade. As meninas da Equipe Varia Historia, zelosas do nosso Facebook e do nosso Canal Youtube, me ensinaram o que é trabalho em grupo com alegria e vitalidade: Débora, Jéssica, Júlia, Nayara, Paloma. Contamos ainda com inestimável apoio do Projeto República, do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e do EPHIS 2017. Finalmente, agradeço especialmente aos nossos leitores, que prestigiaram, deram vida e sentido ao nosso trabalho.

Após tantos agradecimentos, torna-se claro como Varia Historia é, literalmente, uma criação coletiva, desde 1985, ano de sua fundação. Foi uma honra desempenhar um papel nessa história, a despeito de minhas muitas limitações. A todos, muito obrigada.

Referências bibliográficas

  • ABREU, Martha & MATTOS, Hebe. Conversa de historiadoras https://conversadehistoriadoras.com consulta 08 ago 2017.
    » https://conversadehistoriadoras.com
  • FARIA, Sandra Costa Almeida de Lino. Piano a Quatro Mãos: aspectos interpretativos e obras brasileiras para essa formação. Dissertação (Mestrado, Escola de Música) Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.
  • FICO, Carlos. Quatro propostas para a pós-graduação em História Anpuh: Brasília, 2017. Disponível no Canal Youtube História da Ditadura goo.gl/z1Ukz2; goo.gl/s3rqAW; goo.gl/r9mevQ consulta 08 ago 2017.
    » goo.gl/z1Ukz2» goo.gl/s3rqAW» goo.gl/r9mevQ
  • GOMES, Angela de Castro & FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
  • REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos & CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1823 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • SCHWARCZ, Lilia & STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com