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Sacudir e assar Um comentário sobre terremotos e incêndios

Resumo

Este comentário sobre terremotos e incêndios, por Stephen J. Pyne, privilegia episódios notórios como Lisboa (1755), São Francisco (1906), Tóquio (1923) como conflagrações urbanas num cenário de "sacudir, então assar". Discutindo a história de terremotos, cidades e incêndios, ele conclui que "Incêndios desastrosos fazem com que a história se imponha sobre a geografia; já medidas preventivas permitem que a geografia atenue a história". Pyne escreveu mais de 30 livros, a maioria sobre a história e manejo dos incêndios em áreas silvestres e rurais, incluindo grandes pesquisas panorâmicas sobre Estados Unidos, Canadá, Austrália, Europa (incluindo Rússia), e do mundo em geral, e está completando uma coleção sobre a história dos incêndios nas diversas regiões dos Estados Unidos de 1960 até os dias de hoje.

Palavras-chave
terremotos; incêndios urbanos; fogo

Abstract

This commentary on earthquakes and fire by Stephen J. Pyne focuses in notorious episodes as Lisbon 1755, San Francisco 1906, Tokyo 1923 as urban conflagrations in a scenario of "shake, then bake". Discussing the history of earthquakes, cities and fires, he concludes that "disastrous fires let history overwhelm geography; preventative measures let geography temper history". Pyne has written over 30 books, mostly on the history and management of wildland and rural fire, including big-screen surveys for the U.S., Canada, Australia, Europe (including Russia), and the world generally, and is completing a multi-volume fire history of the U.S. and its regions since 1960.

Keywords
earthquakes; urban fires; fire

A Segunda Guerra Mundial marcou a redescoberta do fogo como armamento militar e sua aplicação mais espetacular ocorreu nas cidades. Graças às aeronaves, foi possível despejar bombas incendiárias em centros urbanos. Se o céu estava seco, o dia ou a noite quente, o ar instável; se os edifícios pudessem primeiro ser cortados e divididos para expor matéria combustível; se as bombas, os entulhos ou o número total de ignições pudessem atrapalhar ou sobrecarregar as operações de combate ao fogo, então os incêndios podiam, nas cidades, fundir e incinerar quarteirões inteiros. De fato, queimar provou ser mais mortal do que jogar bombas. Uma explosão pode formar um buraco, enquanto o fogo é capaz de se propagar.

O uso moderno do termo "tempestade de fogo" foi inventado para descrever a queima de Hamburgo, Alemanha, em 27 de julho de 1943. Foi repetida em Dresden, em 1945, e depois em várias cidades japonesas, desde Tóquio até Osaka. O horror terminou quando as bombas atômicas trouxeram as tempestades de fogo para Hiroshima e Nagasaki. A imagem mais famosa de uma nuvem em forma de cogumelo sobre Hiroshima foi, por muito tempo, mal identificada como o pilar oriundo da explosão quando, de fato, era o pirocúmulo de centenas de incêndios acesos e fundidos pela bomba. Após a guerra, o Levantamento Estratégico de Bombardeio e a Associação Nacional de Proteção Contra Incêndios realizaram inquéritos sobre a mecânica do que parecia ser um novo espectro na conflagração urbana.

De fato, a única novidade verdadeira foi o bombardeio que precedia o incêndio. O passado está cheio de cidades incineradas de maneiras análogas, mas com terremotos assumindo o lugar dos ataques militares. A Tóquio que queimou, a 10 de março de 1945, era uma cidade surgida das cinzas de uma Tóquio que havia sido queimada em consequência do terremoto de 1923. A devastação e a destruição que famosas bombas provocaram nas cidades durante a guerra, já haviam ocorrido anteriormente durante terremotos. Os incêndios vinham em seguida. As novas tecnologias criaram formas inovadoras na construção de cidades para, em seguida, incendiá-las, mas os grandes incêndios, em si, eram velhas novidades.

A Terra é um planeta de fogo. Ela conhece o fogo terrestre desde que as primeiras plantas colonizaram os continentes; sendo que o carvão fóssil remonta a 420 milhões de anos. Da mesma forma, os seres humanos são criaturas de fogo. Nós temos usado o fogo - passamos a desfrutar da hegemonia das espécies por causa disso - por toda a nossa existência. Porque podemos cozinhar comida, temos vísceras pequenas e cabeças grandes. Porque aprendemos a cozinhar a paisagem, fomos ao topo da cadeia alimentar. Agora, nos tornamos uma força geológica porque começamos a cozinhar o planeta.

Mas o fogo tem limites. Nem tudo pode queimar e nem tudo que queima pode queimar o tempo todo. Na natureza, o fogo aparece em padrões, ou regimes, subscritos por ritmos de molhagem e secagem, e provocados por raios. Nas paisagens construídas, esses padrões devem, por princípio, estar sob o controle das pessoas. Podemos escolher quais materiais usar, como organizá-los e quais as fontes de ignição podem abundar entre eles. Ainda assim, sabemos que o ambiente construído também queima. Os quartos queimam. As casas queimam. As cidades queimam.

Parece macabro sugerir que paisagens construídas também conhecem regimes de fogo, mas é verdade. Se elas são construídas a partir de materiais combustíveis, como madeira e palha; se elas se aglomeram de maneira que permitem que uma chama se espalhe de um lugar para outro; se elas são suscetíveis às chamas e podem sobrecarregar as forças de controle do fogo que os moradores podem reunir; então as cidades arderão, mesmo cidades muito grandes, e queimarão da mesma maneira e ao mesmo tempo que a zona rural circundante. Os edifícios de madeira queimarão como florestas e o regime de ventos espalhará as chamas.

Em algumas partes do mundo, onde os incêndios urbanos são tão abundantes e as contramedidas tão fracas, estratégias de resiliência impedem a reconstrução rápida após grandes queimadas, ao invés de tentar suprimir começos efetivos que podem se transformar em conflagrações. Mas, na maioria dos países desenvolvidos, onde a industrialização substituiu materiais de construção mais facilmente combustíveis, como madeira e palha, por aço, vidro, pedra e tijolos; onde velas e lareiras foram suplantadas por luz elétrica e fogões; onde as paisagens urbanas são projetadas para prevenir a propagação do fogo; e onde um sistema de prevenção de incêndios (tipicamente baseado em motores) existe para apagar incêndios enquanto ainda são pequenos, algum outro fator deve operar para permitir que os incêndios se propaguem além do ponto de ignição. Os meios mais comuns são a guerra e os terremotos, seguidos por tumultos. O que resulta em uma variante urbana perversa de destruição e queima.

Tanto a guerra, especialmente a guerra aérea, quanto os terremotos quebram material combustível em formas mais suscetíveis às chamas e diminuem a capacidade de contê-las. As bombas podem romper as redes de água e cortar as linhas telefônicas, as crateras e os entulhos podem deter o fluxo dos motores e das brigadas de incêndio e o grande número de focos iniciais pode subjugar exércitos ou fazer com que eles se dispersem. Antes do bombardeamento aéreo, muitos dos incêndios urbanos mais famosos ocorreram porque as cidades haviam sido, anteriormente, destruídas por terremotos.

Sacuda, depois asse. Este cenário caracteriza três das mais famosas conflagrações urbanas. A pior, se for medida pelo quanto afetou de forma abrangente a sociedade, foi certamente Lisboa. A 1º. de novembro, Dia de Todos os Santos, de 1755, a cidade conseguiu atrair todos os demônios do Apocalipse. Os tremores foram seguidos por um tsunami, seguido por incêndios que, segundo as notícias, queimaram por cinco dias. Quando esse último ocorreu, cerca de 85% da cidade já estava em ruínas. San Francisco, Califórnia, sacudiu no início da manhã de 18 de abril de 1906. Os incêndios resultantes do tremor arderam a paisagem, em grande parte construída em madeira. O fogo durou três dias, espalhando-se pelos terrenos, levado pelos ventos, como se fosse um incêndio selvagem; ele destruiu 500 quarteirões da cidade. Felizmente, a crosta da Terra se rompeu, poupando a cidade de um maremoto. O grande terremoto de Kanto, a 1º. de setembro de 1923, considerado o pior desastre natural a atacar o Japão até então, sacudiu o fundo do mar situado a cerca de 30 milhas de Tóquio. A terra entortou-se e saltou, maremotos imensos atingiram a costa e as planícies e os incêndios devastaram o que restava de Tóquio e Yokohama.

Mas nem sempre as cidades precisam de terremotos para queimar. Roma queimou sem nenhum tremor em 45 DC; e Londres, em 1666. Os Estados Unidos dos colonizadores tinham cidades queimadas com tanta frequência (sem tremores prévios), que isto era aceito como um ato da natureza, ou mesmo como um julgamento da Divina Providência, da mesma forma que as grandes inundações ou as tempestades de neve. As cidades conquistadas eram frequentemente lançadas à tocha, bem como eram passadas à espada. Houve ainda o caso de Moscou, em que os próprios residentes se entregaram às práticas de terra queimada ao incendiarem sua cidade arborizada. Em todos esses exemplos, mantendo seu caráter de ambiente construído, as chamas foram diretamente, ou indiretamente, iniciadas por humanos. Ocasionalmente, um raio migrava das árvores para os celeiros, ou campanários e, de lá, para outras estruturas, mas não se conhecem cidades cujos incêndios foram iniciados por raios.

Terremotos situam-se fora da causalidade humana, o que talvez torne o trauma deles decorrente ainda mais assustador. A própria Terra, o elemento mais sensatamente sólido do mundo, treme e se agita na forma de uma terra infirma . É preciso erguer uma cidade levando-se em conta o pressuposto de que, de tempos em tempos, a terra inchará como um oceano numa tempestade. Mas, ao contrário do que aconteceu em Tóquio, Lisboa e São Francisco, as pessoas não assimilam os riscos até que o perigo aconteça. E o fogo soube aproveitar as oportunidades que lhe foram apresentadas. Curiosamente, muitos comentaristas, nas três épocas, escolheram se concentrar no fogo, que as pessoas poderiam pelo menos fingir controlar, do que no terremoto, que não podiam.

O fogo é um fenômeno interativo: ele sintetiza seu entorno e seu poder deriva da sua capacidade de propagação. Uma paisagem urbana destruída pode liberar muitas chamas de seu confinamento original, contido em velas, lâmpadas e fogões; ela expõe combustíveis que, de outro modo, estariam isolados entre si; ela pode quebrar a rede de água e paralisar a capacidade de responder de um sistema de combate a incêndios. Em poucos minutos, uma constelação de incêndios controlados pode se converter numa explosão de fogo selvagem.

As principais cidades localizadas em países desenvolvidos não queimam mais como ocorria antes da era industrial. No que diz respeito ao fogo, elas mostram uma estabilidade interna notável, em parte porque abrigam menos chama aberta, dependendo, cada vez mais, de energia gerada por máquinas situadas fora dos limites urbanos. Elas raramente queimam, a menos que alguma força externa agite a paisagem construída ao ponto em que ela possa propagar as chamas ou, de forma mais precisa, muitas chamas, porque um incêndio generalizado sobrecarrega o sistema de combate ao fogo. Isso pode acontecer durante os terremotos, mas a maioria das metrópoles não se localizam em zonas de falha. Ou pode acontecer durante a guerra moderna, em que as bombas substituem os tremores. Ou, ainda, pode ocorrer em meio a tumultos, que podem acender muitas chamas e interferir nos esforços de combate às chamas. (Na verdade, há estudos sugerindo que uma revolta durará tanto quanto seus incêndios, que se tornam pontos de mobilização e temporizadores sociais).

Há uma exceção curiosa. Nas últimas décadas, a expansão urbana causada pelos automóveis está levando casas, fragmentos da paisagem urbana, a se situarem em zonas rurais inflamáveis. Todas as cidades industriais com configurações propensas ao fogo estão sentindo seus efeitos - Sydney e Melbourne, Provence e Tras os'montes, Valparaiso e Santiago, Cape Town e Fort McMurray, Los Angeles e San Diego. A combustão industrial encoraja a ocupação de matas ou de áreas virgens, ao mesmo tempo em que estimula as paisagens antes rurais à decadência econômica e à vingativa expansão de matagal. A perda de uma área rural ativamente gerenciada é o passaporte para um novo regime de incêndios urbanos. É uma patologia peculiar típica de uma era industrial que, no entanto, encontrou alternativas para os incêndios abertos.

Os incêndios que explodem em tais cidades são, na realidade, menos tsunamis de chamas do que enxames de gafanhotos em brasa. Eles podem encontrar pontos de ignição abundantes em diversas estruturas, inflamando suas partes e, assim, sobrecarregando o sistema de bombeiros das cidades. O núcleo de proteção urbana contra incêndios é um modelo que torna os incêndios mais difíceis de começar e mais ainda de se espalhar. O fogo urbano supera essa inércia. Dessa forma, os incêndios podem se inflamar e se espalhar mais rapidamente do que os bombeiros são capazes de reagir a eles. Eles podem assar sem, primeiramente, sacudir.

Terremotos, cidades, incêndios - tudo continuará, cada um dentro de sua própria lógica. De tempos em tempos, suas narrativas paralelas irão se emaranhar, com consequências potencialmente catastróficas. Quando estes momentos acontecerão, é impossível prever. Mas há muito é sabido que, tanto para o fogo, quanto para o terremoto, o local importa mais do que o tempo. Nesses locais propensos a terremotos e a incêndios pode-se tomar medidas atenuantes antes que a catástrofe aconteça. Incêndios desastrosos fazem com que a história se imponha sobre a geografia; já medidas preventivas permitem que a geografia atenue a história.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2017
  • Aceito
    17 Mar 2017
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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