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Africanos Livres: Agentes da liberdade no Brasil novecentista

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. . Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 632p.

Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil, o muito antecipado novo livro da historiadora Beatriz Mamigonian, não desaponta. Sua inovadora perspectiva sobre o processo abolicionista no país enfatiza a experiência e luta pela liberdade de africanos escravizados nas décadas posteriores aos tratados internacionais e às leis que visaram abolir o tráfico atlântico de escravos. Mamigonian elucida a conexão entre a história dos africanos escravizados ao longo dos novecentos; a legislação e política nacional relativa à escravidão e ao trabalho livre; e as reviravoltas na política, sociedade, legislação, e sistema judiciário brasileiros que favoreceram a abolição da escravidão. Africanos Livres reestrutura a narrativa sobre esse período da história brasileira salientando esforços conservadores para preservar o controle sobre o trabalhador negro, e apontando a influência política e cultural de Africanos e seus descendentes na construção da liberdade no período imperial.

Os três primeiros capítulos do livro investigam a categoria ‘africano livre’ no contexto dos tratados negociados entre o Brasil e a Grã-Bretanha e da lei de 1831. Mamigonian mostra que nem os tratados que negociaram o fim do tráfico atlântico, nem a lei de 1831 que libertou africanos desembarcados no Brasil após aquela data, garantiram a liberdade a esse grupo. A decisão conservadora de negar a africanos cidadania brasileira; os esforços feitos para controlar a sua presença e trabalho produtivo no Brasil; e a falta de comprometimento político e jurídico com os termos da lei de 1831 promoveram a escravização de facto de africanos traficados. Alguns africanos conseguiram defender a sua liberdade em julgamentos cíveis. Mas de modo geral oficiais e instituições do governo se aliaram aos interesses de comerciantes e proprietários de escravos e evitaram processá-los pelo crime de tráfico. Adicionalmente, africanos emancipados por oficiais portuários e pela comissão mista brasileira e britânica que monitorou o tráfico ilegal, foram “concedidos” a particulares e a instituições públicas para trabalharem. O sistema de concessões, à semelhança do aprendizado ou servidão contratada praticada em outras sociedades atlânticas, visou facilitar a transição da escravidão para o trabalho livre. Ao contrário daquelas práticas, porém, as concessões raramente impuseram ou fizeram cumprir limites de tempo de serviço. Dessa maneira, o estado brasileiro sacrificou a liberdade africana para favorecer proprietários de escravos, se tornando cúmplice na expansão da escravidão africana no país (Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 164).

Os capítulos 4 e 5 discutem as condições de trabalho às quais africanos livres foram submetidos. Os concessionários que receberam o direito de explorar o trabalho de africanos livres os submeteram a maus tratos, ameaçaram-nos de venda, e ignoraram a temporaneidade da concessão. A realidade diária desse grupo pouco se distinguiu à de escravos. Aqueles forçados a trabalharem em obras públicas e instituições do governo sofreram condições ainda mais precárias. Encarregados de tarefas perigosas e extenuantes, muitos morreram antes de sequer tentarem negociar sua liberdade. O contraponto Britânico a essas experiências é examinado a partir do exemplo de africanos livres que foram resgatados no Brasil por oficiais ingleses e levados, voluntariamente ou não, para trabalhar em colônias britânicas caribenhas. Suas experiências com o trabalho forçado pouco corresponderam à visão que teriam da liberdade. Apesar da retórica abolicionista, africanos traficados ilegalmente também foram vítimas do racismo britânico que promoveu o trabalho forçado como instrumento civilizatório. O império britânico, assim como o brasileiro, continuou a explorar a capacidade produtiva africana para beneficiar economicamente seus súditos brancos.

Nos capítulos 6, 7, e 8 Mamigonian discute a lei Eusébio de Queiroz de 1850 e suas consequências tanto para africanos livres quanto para a continuidade da escravidão. A lei afirmou o compromisso definitivo do governo e da justiça imperial com o fim do tráfico atlântico de escravos. Mas pouco questionou a cumplicidade do estado e da elite política com a escravização criminosa de africanos nas duas décadas precedentes (Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 284). Eusébio de Queiroz e outros agentes do governo enfatizaram a intolerância judicial com o tráfico ilegal pós-1850 ao mesmo tempo em que promoveram o esquecimento de atividades ilícitas que antecederam à lei. Eles condenaram assim milhares de africanos ao cativeiro e solidificaram o suporte político e legal do estado à posse de escravos. Pedidos de emancipação processados entre 1854 e 1864 mostram, porém, que Africanos livres não abandonaram sua busca da liberdade, nem se contentaram em esquecer os erros do passado (Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 322-323). Adicionalmente, ao longo do seu cativeiro forçado eles buscaram sua autonomia, formando famílias, aprendendo a língua, e se inserindo na economia local. Ironicamente seus esforços nesse sentido foram usados em tribunais de justiça como evidência de que não eram africanos mas nascidos no Brasil, justificando a negação do seu direito à liberdade.

Os capítulos finais do livro revelam as armadilhas que o governo criou para atrapalhar africanos livres que tentassem buscar a liberdade, e a persistência destes na luta pela sua emancipação (Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 360-361). Mamigonian nota, em particular, a criação de uma matrícula de africanos livres que visou proteger senhores contra quem quer que questionasse a legitimidade de sua propriedade escrava. Africanos livres, contudo, ajudados por agentes abolicionistas, usaram os mesmos registros para argumentarem terem chegado ao Brasil após a proibição do tráfico. O potencial subversivo dos esforços feitos por africanos livres, e sua disseminação de noções de liberdade, progressivamente inquietaram o estado e as classes proprietárias, que temiam desordem pública e a perda do seu controle sobre trabalhadores escravos assim como livres. O ímpeto político para resolver de vez o problema dos africanos livres se fortaleceu nos fins do XIX e se estendeu à questão da escravidão de modo geral (Mamigonian, 2017MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 454).

Beatriz Mamigonian conclui o seu livro nos lembrando que a decisão do ministro Rui Barbosa, entre outros, de queimar matrículas e demais documentos relativos à escravidão tardia no Brazil reafirmou a estratégia do esquecimento (Mamigonian, 2017, p. 454-455). A tentativa de redimir com fogo os pecados da nação promoveu ainda uma narrativa da história da abolição que destacou os esforços políticos da elite branca e proprietária brasileira. Ao rejeitar essa narrativa e se entranhar por esse passado, Mamigonian resgata a relevância e liderança política de outros atores históricos e dos africanos livres em particular.

Referências bibliográficas

  • MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2018
  • Aceito
    27 Fev 2018
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