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Editorial: Da (velha) hierarquização da produção científica

Editorial: On the (old) ranking of the scientific production

Mesmo em sua enorme dedicação à ciência, ele nunca conseguiu esquecer que a bondade e a beleza das pessoas vêm daquilo no que elas acreditam, não daquilo que elas sabem. (Robert Musil, O Homem sem Qualidades. p. 897)

Não é de hoje que as Humanidades são pensadas como espaço secundário dentre os campos acadêmicos. Ainda que obedeçam rigorosas metodologias, procedimentos e se amparem em conceituações sistemáticas, frequentemente são descartadas como meras opiniões. A História se torna, aos olhos interesseiros e interessados, um campo de batalha pela desinformação, pela formulação de memórias de ocasião, e, claro, terreno mais fértil do antiacademicismo. Em um tempo de pós-verdade e de ciberativismos, estudos e reflexões profissionais se tornam empecilhos àqueles que já sabem no que querem acreditar.

A História emerge, assim, entre os fragmentos que são as percepções reconstruídas pelos profissionais, e as certezas daqueles que se deparam com pedregulhos magnificados. Pierre Ouellet (2000)OUELLET, Pierre. Poétique du regard: littérature, perception, identité. Sillery, Septentrion/Limoges: Presses Universitaires de Limoges, 2000. aponta, nesse sentido, como a filosofia e a ciência operam sobre uma base conceitual, enquanto a música e a pintura partem da percepção e das sensibilidades, já a literatura combina ambos, partindo da composição entre arte e conhecimento. Onde situa-se a História nessas fronteiras construídas? Michel de Certeau (1987)CERTEAU, Michel de. La história, ciencia e ficción. In: Histórias, México: INAH (16), p.19-33, 1987. apontava, décadas atrás, como as fronteiras da História se tornam nebulosas pela linguagem empregada, tornando-se simulacro de Literatura, uma espécie de narrativa de fatos - fatos que, a história recente nos ensina, são facilmente manipuláveis - reforçada pela aura de cientificidade .

Tudo isso já chega a ser senso comum em conversas e discussões pelos cantos das universidades, mas não perde sua atualidade, especialmente diante dos cortes e ataques sistemáticos que presenciamos nos últimos meses. Um desses cortes recentes atingiu diretamente as revistas acadêmicas, espaço de debates e de divulgação das pesquisas e dos trabalhos desenvolvidos na área. Traço comum partilhado pelas revistas científicas na área de História no final de 2019, o fomento direcionado à manutenção de todos os periódicos foi reduzido substancialmente, em uma pseudo-justificativa meritória, em verba alocada por edital regular do CNPq. No entanto, mesmo esse valor reduzido diante das exigências editoriais não foi contemplado, em uma decisão que privilegiou os periódicos das ciências chamadas "duras", excluindo as publicações da área de História. Esse corte significa, para muitas das revistas, um futuro incerto em sua missão de tornar público (e de livre acesso) a pesquisa realizada no país.

A divulgação da produção científica, tanto quanto seu fomento, obedecem a alguns imperativos. Ela não é feita de forma desinteressada e idealista. Ela segue preceitos voltados à internacionalização da produção brasileira, sua inserção na academia global. Ela é feita, também, para dar conta dos investimentos feitos pelas próprias agências de fomento, que incentivam (e cobram) que os resultados de pesquisas financiadas sejam divulgados em revistas, preferencialmente, de alto estrato. A falta de recursos destinados à divulgação da produção científica parece, assim, atender a seu propósito: se não se divulga o resultado, obviamente não há nada de relevante sendo produzido. É mais fácil encontrar virtudes naquilo no que se acredita, do que naquilo que se sabe.

CNPq e Capes, agências que têm como papel fundamental zelar pela produção científica nacional e pelos pesquisadores, deparam-se com uma encruzilhada. Sujeitas às determinações de um governo que despreza a academia e a história, deixam de cumprir seu papel quando hierarquizam as ciências e ignoram as Humanidades, destacadamente, a História como ponte para a reflexão sobre os métodos de todas as ciências.

A despeito dos cortes travestidos de contingenciamento e da recusa no amparo à divulgação científica, Varia Historia apresenta mais um número. Frutos de investimento em pesquisa e pautados pela difusão da produção historiográfica, os artigos livres que compõem este número trazem reflexões sobre o Brasil e a impressão na Europa moderna. Ao revistar a historiografia do crédito na colônia nos séculos XVII e XVIII, Angelo Carrara monstra a relevância de se pontuar a reflexão sobre a produção historiográfica a partir de novas perspectivas, revendo questões por muito tempo tomadas como fato estabelecido, como a escassez de moeda - reforçando, ademais, a dimensão monetária deste editorial (e na esperança de não recorrermos ao crédito). Já ao primar pela análise de fontes, Érika Dias se debruça sobre o entrelaçamento entre a prática jurídica e a dimensão política em Pernambuco do século XVIII, com o julgamento do último governador da capitania no século. Passando ao XIX, Liz Dalfré analisa a aproximação do escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento com o Império brasileiro a partir de uma perspectiva de reconciliação, passada a Guerra contra Rosas. As questões jurídicas voltam a aparecer com o debate em torno da regulação do trabalho doméstico durante o Estado Novo e seu impacto que se estendeu por décadas, realizado por Teresa Cristina de Novaes Marques. As práticas coletivas são destacadas no artigo com forte diálogo interdisciplinar de Márcio Couto Henrique, que se debruça sobre o paticídio durante as festividades do Círio de Nazaré entre meados do século XIX e o início do século XX. É já no século passado que a instituição do Museu Estadual de Goiás e sua instrumentalização na divulgação dos atrativos do Estado são tratados por Giovana Tavares e Sandro Dutra e Silva. Do outro lado do Atlântico, André Gustavo de Melo Araújo reflete sobre a difusão do conhecimento na Era Moderna a partir dos manuais de impressão e o encontro entre múltiplos interesses - de autores, artistas, tipógrafos, editores e livreiros.

Um número plural, portanto, se apresenta aos leitores e leitoras, legado por Ana Paula Sampaio Caldeira, editora-chefe à frente da Varia Historia desde o início de 2018. A professora Caldeira manteve uma revista de alto nível frente às transformações vivenciadas - desde a discussão sobre as alterações nas práticas científicas engendradas às promessas de financiamento não cumpridas -, sem perder a generosidade no olhar para os artigos recebidos e seus autores e autoras. A ela deixo meus agradecimentos por uma transição marcada pelo profissionalismo e pelo afeto, com a manutenção de uma equipe dedicada, mesmo com um trabalho por vezes solitário. Agradeço também ao Departamento de História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais pela confiança em mim depositada nesta empreitada. Ciente das responsabilidades da função, assumo o cargo de editora-chefe como um espaço temporário, uma vez que a revista se oferece à pluralidade e à liberdade da comunidade acadêmica.

Se 2018 foi marcado como ano de resistência, 2019 se anuncia como ano de sobrevivência. Varia Historia se manterá como uma mediadora na transmissão da produção científica, a despeito dos ventos contrários. Pois eles mudam, inevitavelmente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • CERTEAU, Michel de. La história, ciencia e ficción. In: Histórias, México: INAH (16), p.19-33, 1987.
  • MUSIL, Robert. The Man without Qualities London: Picador, 1997.
  • OUELLET, Pierre. Poétique du regard: littérature, perception, identité. Sillery, Septentrion/Limoges: Presses Universitaires de Limoges, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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