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Um códice perdido de José de Santa Rita Durão A tradução portuguesa do Ensaio Sobre a Poesia Épica, de Voltaire (Lisboa, 1783)

A Lost Códex of José de Santa Rita Durão The Portuguese Translation of Voltaire’s Essay on Epic Poetry (Lisbon, 1783)

Resumo

O presente artigo revela a existência de um códice manuscrito setecentista contendo uma tradução portuguesa do Essay sur La Poésie Épique (1727), de Voltaire (1694-1778), que ofereceu as bases para o surgimento da literatura comparada no Ocidente. O tradutor manteve-se sob anonimato, mas o uso da bibliografia material enquanto método de pesquisa, combinado à consulta de outros manuscritos e impressos setecentistas custodiados em arquivos e bibliotecas de Portugal e do Brasil, revelou que o códice, submetido à Real Mesa Censória em 1783, foi produzido por José de Santa Rita Durão, um dos autores mais importantes da segunda metade do século XVIII, e amplia o conhecimento acerca dos estudos literários em Portugal no referido período. O códice apresenta, além da tradução desconhecida, notas autorais inéditas do poeta mineiro, que agregam novas informações sobre o pensamento e a obra do autor de o Caramurú (1781).

Palavras-chave:
manuscrito; Brasiliana; literatura

Abstract

This article reveals the existence of an eighteenth-century manuscript codex containing a Portuguese translation of Voltaire’s (1694-1778) Essay sur La Poésie Épique (1727), which provided the basis for the emergence of comparative literature in the Western. The translator remained anonymous, but the use of material bibliography as a research method, combined with the consultation of other eighteenth-century manuscripts and printed matter held in archives and libraries in Portugal and Brazil, revealed that the codex, submitted to the Real Mesa Censória in 1783, was produced by José de Santa Rita Durão, one of the most important authors of the second half of the 18th century and expands knowledge about literary studies in Portugal in that period. The codex presents, in addition to the unknown translation, unpublished author notes by the poet from Minas Gerais, which add new information about the thought and work of the author of Caramurú (1781).

Keywords:
Manuscript; Brasiliana; Literature

A 10 de maio de 1726, o escritor e filósofo francês François-Marie Arouet, Voltaire (1694-1778), deixou o porto de Calais, alcançando o território inglês em 30 de abril daquele mesmo ano, em razão da Inglaterra ainda utilizar o calendário Juliano, adotando o Gregoriano 26 anos mais tarde. O escritor francês exilou-se na Inglaterra oito anos após experimentar os rigores da Bastilha (1717-1718), prisão política utilizada pelo governo francês. Durante a prisão, Voltaire concebeu seu poema épico La Ligue ou Henry le Grand, publicando-o em 1723. O poema, que ficaria mais conhecido como La Henriade, um discurso em defesa da tolerância religiosa, consagraria seu autor na República das Letras e foi traduzido em quase todos os idiomas europeus.

Em Londres, Voltaire revisou e ampliou La Henriade, buscando recursos para executar uma edição do texto completo e angariando apoio da nobreza, incluindo personagens da monarquia inglesa, para esse empreendimento. A impressão do referido poema épico começou no verão de 1727, mas a gravação das ilustrações e a necessidade de mais assinaturas atrasou os trabalhos editoriais. Voltaire finalmente obteve cerca de 343 assinaturas, sendo que o preço da assinatura custava duas libras e da venda avulsa, mais caro, custava três libras. A lista de assinantes foi notável, incluindo aristocratas, homens do governo, magistrados, comerciantes, escritores, cientistas e clérigos. A primeira edição, cuidadosamente executada, mas ainda considerada inexpressiva, foi finalmente publicada em meados de março de 1728, com 202 páginas.

A publicação de La Henriade foi um grande evento literário. Logo, como era corriqueiro entre os bestsellers, novas edições, legítimas ou clandestinas, foram publicadas. Uma edição clandestina com 190 páginas apareceu quase imediatamente e uma segunda edição in-8o, corrigida, foi publicada com preço mais baixo por Woodman e Lyon, também em 1728. Há ainda, naquele mesmo ano, o registro de outra edição pirata, in-8o, aparentemente baseada nas folhas de prova não corrigidas.

Naquele mesmo ano, 1727, em que La Heriade estava sendo impressa, Voltaire publicou o folheto Essay upon the Civil Wars of France, Extracted from curious Manuscripts. And also upon the Epick Poetry of the European Nations, from Homer down to Milton. Foi impresso pelo tipógrafo e fundidor de tipos Samuel Jallason, em Prujean’s Court, próximo a Old Baily, para ser comercializado por livreiros de Londres e Westminster. Alguns exemplares foram distribuídos pelo próprio autor, para personagens de seu círculo, a exemplo do escritor irlandês Jonathan Swift, autor das Viagens de Gulliver (1726SWIFT, Jonathan. Travels into Several Remote Nations of the World. In Four Parts. By Lemuel Gulliver, first a Surgeon, and then a Captain of Several Ships. Londres: [s. n.], 1726.), e Sir Hans Sloane, presidente do Royal College of Physicians (VOLTAIRE, 1727VOLTAIRE. Essay upon the Civil Wars of France, Extracted from Curious Manuscripts. And also upon the Epick Poetry of the European Nations. From Homer down to Milton. By Mr. de Voltaire. London: Samuel Jallason, 1727.).

Figura 1:
Exemplar com dedicatória para Sir Hans Sloane

A exemplo de La Henriade, o referido folheto também ganhou edições e traduções clandestinas, inclusive na língua francesa (WHITE, 1915WHITE, Florence Donnel. Voltaire’s Essay on Epic Poetry: a Study and an Edition. New York: The Brandon Printing Co., 1915. Disponível em: <https://archive.org/details/voltairesessayo00voltgoog>. Acesso em: 08 jul. 2020.
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, p. 27-40). Voltaire atribuiu a tradução não autorizada ao padre Pierre-François Guyot Desfontaines (1685-1745), com quem se envolveu em querelas literárias. Desfontaines, autor de Voltairomanie (1738), defendeu-se acusando que o tradutor teria sido Louis-Robert-Hippolyte de Bréhant, conde de Plélo. Essa tradução do Essay Sur la Poësie Epique (1728a) traz a declaração de que foi impressa em Paris, Chez Chaubert, e possui a colação [8], 170 p., [2] p. (in-12o). Há outra variante dessa edição, impressa com os mesmos tipos e vinheta, também datada de 1728, mas que traz a declaração de que foi impressa em La Haye, Chez G. M. de Merville (1728b), com a colação [4], 170 p. (in-12º).

Além de versões clandestinas do seu folheto, em inglês e francês, o próprio Voltaire se encarregaria de preparar uma tradução para sua língua materna. Em abril de 1728, Voltaire menciona uma adaptação do Essay on Epic Poetry para os leitores franceses. O mais antigo exemplar de uma tradução francesa, que foi possível localizar, com 170 páginas, tem sua aprovação datada de 23 de abril de 1728:

Li, por ordem de Monsenhor o Guardiões dos Selos, um manuscrito intitulado : Essay sur la Poesie Epique, Traduction de l’Anglois, de M. de Voltaire. E acredito que pode ser impresso. Em Paris em 23 de abril de 1728. Lancelot.1 1 Trad. livre do autor: “J’A y lû par ordre de Monsseigneur le Garde des Sceaus, un manuscrit intitulé: Essay sur la Poësie Epique, Traduction de l’Anglois de M. de Voltaire. Et je crois qu’on peut en permettre l’impression. A Paris ce 23 Avril 1728. Lancelot”. (VOLTAIRE, 1728aVOLTAIRE. Essay sur la poësie epique. Paris: Chaubert, 1728a. Disponível em: <http://purl.ox.ac.uk/uuid/00fa38b4ce7d4529952ccb75a35b54d4>. Acesso em: 13 jun. 2021.
http://purl.ox.ac.uk/uuid/00fa38b4ce7d45...
, p. IV)

Figura 2:
Essay sur la Poësie Epique

Em uma carta a Nicolas-Claude Thieriot, Voltaire sinaliza a existência de uma tradução francesa: “Em seguida, enviarei minhas chapas com algumas folhas de uma edição in-quarto, em papel grande, iniciada em Londres, com o Essay on Epic Poetry em francês” (FOULET, 1913FOULET, Lucien (ed.). Correspondance de Voltaire (1726-1729): la Bastille, l’Angleterre, le retour en France. Paris: Hachette, 1913., p. 144-145).2 2 Trad. livre do autor: “Then I will send you my plates with some sheets of a quarto edition, large paper, begun in London, with the Essay on Epic Poetry in French”. Em 1732, Voltaire preparou a sua versão corrigida e ampliada, em francês, do Essai sur la Poésie Épique, imprimido-a em 1733, anexa à La Henriade (1728c). Não era mais a tradução de Guyot Desfontaines, cujos erros foram expurgados, mas uma nova obra “retrabalhada em francês e consideravelmente aumentada pelo próprio autor de La Henriade”.3 3 Trad. livre do autor: “Retravaillé em français et considérablement augmenté par l’auteur même de La Henriade”. EXTRAIT d’une lettre écrite de Londres, le premier Juin, concernant M. de Voltaire. Mercure de France, Paris, jun. 1733, p. 1417-1418. O Essay sur La Poésie Épique é formado por dez capítulos: uma introdução, um capítulo dedicado à cada um dos poetas épicos escolhidos (Homero, Virgílio, Marco Aneu Lucano, Gian Giorgio Trissino, Luís de Camões, Torquato Tasso, Alonso de Ercilla e John Milton) e uma conclusão.

Enquanto a edição inglesa de 1727 era um folheto de 39 páginas, contendo apenas uma breve introdução que se fundia ao primeiro capítulo, dedicado a Homero, a sua tradução francesa passou para 52 páginas, podendo ser considerada, pelos padrões contemporâneos, um livro. Foram corrigidos e modificados significativamente os capítulos sobre Milton e Camões, com críticas mais contundentes à obra do poeta inglês. No capítulo dedicado a Camões foram corrigidos alguns erros na biografia, admitidos por Voltaire na primeira versão, e as críticas ao poeta português são suavizadas. Uma longa introdução foi acrescida ao ensaio e transformada em um capítulo, intitulado Os diferentes gostos dos povos.4 4 Trad. livre do autor: “Des Différents Goûts des Peuples”.

Se em Londres, o pequeno volume contendo os dois ensaios parecia ter o propósito efêmero de estimular a curiosidade do público para a publicação de um poema escrito em língua estrangeira, que tratava de um período histórico desconhecido para a maioria dos ingleses, na França o Ensaio ganhava um novo objetivo: convencer os leitores do valor permanente de um gênero literário e, consequentemente, de seu poema, já previamente consagrado. A outra intenção inicial, já mencionada aqui, de estabelecer a comparação entre obras literárias e outras artes com critérios de espaço, gênero, tempo, nacionalidade, uma espécie de prenúncio do que viria a se tornar a disciplina de literatura comparada, usando o gênero épico. (MARQUES, 2018MARQUES, Caio Carneiro. Voltaire: ensaio sobre a poesia épica - um estudo e uma tradução. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018., p. 15)

Os estudiosos de Voltaire e do Essay sur La Poésie Épique concordam que o texto ofereceu as bases da literatura comparada (WHITE, 1915WHITE, Florence Donnel. Voltaire’s Essay on Epic Poetry: a Study and an Edition. New York: The Brandon Printing Co., 1915. Disponível em: <https://archive.org/details/voltairesessayo00voltgoog>. Acesso em: 08 jul. 2020.
https://archive.org/details/voltairesess...
, p. vi; p. 7; p. 42; p. 59; p. 63). A literatura comparada, que emerge no século XIX, pode ser definida como “uma disciplina que observa a literatura levando em consideração as fronteiras nacionais, o tempo, as línguas, os gêneros, os limites entre a literatura e as demais artes” (MARQUES, 2018MARQUES, Caio Carneiro. Voltaire: ensaio sobre a poesia épica - um estudo e uma tradução. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018., p. 14).

Apesar do seu caráter cosmopolita, na medida em que esse conceito pode ser aplicado às letras da Europa setecentista, e da sua ampla circulação nos países do norte daquele continente, uma tradução sete­centista do Essay Sur la Poésie Épique, até o presente, não havia sido localizada, impressa ou manuscrita, em bibliotecas e arquivos ibéricos. Somente em 1859, o capítulo sobre Homero foi traduzido e publicado em A Illustração luso-brazileira, sob o título de Ensaios críticos sobre a poesia épica por Voltaire (VOLTAIRE, 1859aVOLTAIRE. Ensaios críticos sobre a poesia épica por Voltaire. A Ilustração Luso-Brazileira: jornal universal, Lisboa, v. 3, n. 24, 18 jun. 1859b, p. 186-187.; VOLTAIRE, 1858b). Na Espanha, o Ensaio Sobre a Poesia Épica só foi publicado em 1930. Apesar dessas traduções tardias, desde o século XVIII as versões inglesas e francesas circularam tanto em Portugal e Espanha, quanto nos seus territórios ultramarinos.

No caso específico de Portugal, é compreensível que houvesse uma resistência intelectual às inconsistentes leituras de Voltaire sobre o épico de Camões, que usou a grafia “Velasco de Gama” para denominar o protagonista Vasco da Gama, conforme edições inglesas de The Lusiad (1655), traduzida por Sir Richard Fanshawe (1608-1666). Na primeira edição francesa do Essay, a grafia foi piorada para Verasco, somente corrigindo-a entre 1742 e 1746. Não há dúvida de que Voltaire usou a tradução de Fanshawe, visto que a primeira edição do épico camoniano em língua francesa é de 1735, traduzida por Louis-Adrien Duperron de Castera (1705-1752), posterior, portanto, à edição do Essay e possivelmente impulsionada por ele. Voltaire criticou a mistura de elementos cristãos e pagãos em Os Lusíadas e uma suposta falta de unidade na sua história.

A resistência às críticas de Voltaire contra Os Lusíadas se manifestou no campo das letras na Inglaterra, por meio do tradutor escocês William Julius Mickle, e em Portugal, por expediente do padre Tomás José de Aquino. Mickle, em 1776, publicou em Londres outra tradução inglesa de Os Lusíadas transformando o épico camoniano em um elogio ao sistema de comércio mundial e inçando-o de elementos paratextuais, incluindo uma dissertação que insere a obra de Camões na poesia épica, definindo o Ensaio Sobre a Poesia Épica de Voltaire como superficial e cheio de erros (MARTINS, 2015MARTINS, Cláudia Santana. Os Lusíadas na tradução de William Julius Mickle: a reencenação de uma translatio studii et imperii. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 54, n. 1, p. 29-51, 2015.). Com a publicação das Obras de Camões (1782), editadas por Tomás José de Aquino, em 1782, que traduziu a dissertação de Mickle, a discussão sobre as críticas de Voltaire a Camões estava em voga, em Lisboa. Aquino, que nutria admiração por Mickle, amplificou as críticas a Voltaire, observando a ignorância do filósofo francês em relação à língua portuguesa:

Mas he digno de notar-se, que o Traductor [William Julius Mickle] descobrio de onde tirou Voltaire a sua noticia de Camões; porque achando ele alguns defeitos criticados por Voltaire, que não existem em Camões; e no mesmo tempo achando, que estes defeitos existem na miseravel traducção na lingua ingleza, feita por Fanshaw, conclue com razão, que Voltaire não teve outro conhecimento do nosso Author, senão o que apprehendeo pela lição daquela traducção, que não representa o seu original com fidelidade; pois além de não ter espirito Poetico algum, tem varios equivocos, conceitos, e expressões baixas, que não se achão no original, os quaes, porém, o desavergonhado Voltaire, com mão liberal dá todos a Camões. Esta ignorancia de Voltaire confirma o Traductor por huma informação, que recebeo depois da publicação da primeira edição da Lusiada na lingua Ingleza, e he: Quando Voltaire ainda tinha na Imprensa em Londres o Ensaio Sobre a Poesia Epica, por acaso mostrou huma folha das provas delle ao Coronel Bladon, Traductor dos Commentarios de Cesar. O Coronel que tinha estado em Portugal, perguntou a Voltaire, se havia lido a Lusiada, e ele respondeo, que nunca a tinha visto, nem sabia a lingua Portugueza. O Coronel deo-lhe a Traducção de Fanshaw, e em menos de quinze dias appareceo a crítica de Voltaire. (AQUINO, 1782AQUINO, Tomás José de (ed.). Obras de Luis de Camões, principe dos poetas de Hespanha. Lisboa: Simão Thaddeo Ferreira, 1782., p. 50-51)

Quase uma década depois, em 1791, foi a vez dos espanhóis também criticarem a obra de Voltaire. Além dos escritos, o duque de Almodóvar criticou-lhe “a ambiciosa mania de querer passar por depositário da engenhosidade em todas as artes; por um escritor universal; por um homem único”, pretendendo que “a maior parte de suas dissertações literárias são um tributo de homenagens ou obséquios que ele paga para si mesmo, ou decretos proferidos contra seus rivais” (ALMODÓVAR DE RÍO, 1791, p. 33).5 5 Trad. livre do autor: “la ambiciosa manía de haber querido pasar por el depositario del ingenio en todos los artes; por un literato universal; por un hombre único”, atentando para que “La mayor parte de sus disertaciones literarias son un tributo de homenajes u obsequios que se paga a sí mismo, o decretos pronunciados contra sus rivales”. Góngora y Luján, não obstante, reconhece em “Seu Ensaio sobre poesia épica: uma Apologia para Henriada, o conhecimento das perfeições e defeitos da língua francesa dado ao público com nome emprestado, é a apoteose de suas produções”.6 6 Trad. livre do autor: “Su Ensayo sobre la poesía épica: una Apología de la Henriada, el conocimiento de las perfecciones y de los defectos en la lengua francesa dado al público con nombre prestado, es el apoteosis de sus producciones”. (ALMODÓVAR DE RÍO, 1791, p. 33)

Apesar de toda resistência contra Voltaire e sua obra na península Ibérica, traduções de seus escritos circulavam amplamente, por canais oficiais ou clandestinos. Logo após a crítica de Tomás José de Aquino, foi executada em língua portuguesa uma tradução do Essay Sur la Poesie Épique, que por mais de duzentos e trinta anos permaneceu ignorada pelos letrados portugueses.

O códice setecentista do ensaio sobre a poesia epica

Lisboa, outono de 1783. Um caderno manuscrito cujo título era Ensaio // Sobre // a // Poezia Epica // por // Francisco de Voltaire7 7 VOLTAIRE. Ensaio Sobre a Poezia Epica por Francisco de Voltaire. Traduzido por José de Santa Rita Durão. Lisboa, 1783. Manuscrito na coleção do autor. foi apresentado à Real Mesa Censória, aparato burocrático instituído no ministério do poderoso Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699-1782), por meio do alvará de 5 abril de 1768, com o objetivo de controlar a circulação de livros e de informação no reino e territórios ultramarinos. O manuscrito era uma desconhecida tradução portuguesa do Essay sur la Poësie Épique de Voltaire, com extensas notas autorais, particularmente no sexto capítulo, que trata da obra de Luís de Camões. Não há qualquer indicação de quem foi o tradutor.

Em maio de 2020, quase 237 anos depois, o códice acima foi disponibilizado pela empresa Bestnet Leilões, no seu leilão número 2518, sob o registro 70206, anunciando-o como uma “Tradução inédita de Voltaire” (1783). Para valorizá-lo, o lote foi descrito como “Peça de colecção, do maior valor e interesse para a Cultura Portuguesa”.8 8 TRADUÇÃO inédita de Voltaire, 1783. Disponível em: < https://www.bestnetleiloes.com/pt/leiloes/livros-206/traducao-inedita-de-voltaire-1783 >. Acesso em: 10 jul. 2021. Não havia, contudo, informação segura do que se tratava e não havia qualquer indicação de quem era seu tradutor/autor.

O aparecimento de uma tradução setecentista do Ensaio Sobre a Poesia Épica de Voltaire já é, acertadamente, da maior importância. Conforme já observado, não havia registros de que a referida obra havia sido vertida para a língua portuguesa no século XVIII. Sua importância para a cultura portuguesa é considerável, na medida em que por meio dela Os Lusíadas (1572) de Camões tornou-se obra amplamente conhecida em toda Europa.

Figura 3:
Frontispício do códice de 1783

O lote arrematado foi negociado e transportado para o Brasil em junho de 2020. Sem maiores informações, restava examinar o códice a partir da sua materialidade. A observação do aspecto material de manuscritos e impressos é condição para o desenvolvimento deste estudo. A História do Livro é orientada para compreensão da produção, das técnicas, bem como para as especificidades da circulação de um livro, impresso ou manuscrito, numa determinada sociedade. Manuscritos, impressos e imagens se constituem, portanto, em fontes valiosas nessa abordagem historiográfica, ampliando seu alcance para estudos sistemáticos que visam identificar e analisar, com enfoque histórico, atuações de agentes produtores dos impressos ou manuscritos e correlações de suas ações com os circuitos da leitura.

Considerar e aplicar a perspectiva da História do Livro “implica reconhecer o vínculo essencial entre o texto em sua materialidade, que suporta os textos, e as práticas de apropriação, que são as leituras” (CHARTIER, 2001CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArtMed, 2001., p. 29). Desse modo, a perspectiva da investigação se direciona à materialidade dos objetos culturais e de sua participação nos processos sociais, analisando assim aspectos materiais do livro e práticas de leitura. A análise da materialidade do texto requer o exame dos aspectos físicos do livro, contemplando a disposição do texto, o tipo de impressão, escolha do suporte, a encadernação e o tamanho do livro. Ilustrações, elementos simbólicos e gráficos agregam também informações relevantes para quem investiga o livro. Alinha-se com a afirmação de Roger Chartier de que

Nessa circunstância, os textos (…) não existem fora de uma materialidade que lhes dá existência. Esta materialidade geralmente é um objeto, um manuscrito ou um impresso, mas também pode ser uma forma de representação do texto sobre o palco, uma forma de transmissão vinculada às práticas da oralidade: recitar um texto, lê-lo em voz alta etc. (CHARTIER, 2001CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ArtMed, 2001., p. 30)

Todos esses elementos materiais, corporais ou físicos, pertencem ao processo de produção de sentido.

Por isso, essas questões acerca dos elementos materiais do livro ocupam “um lugar central no campo da história cultural aos saberes mais classicamente eruditos: por exemplo, os dabibliography, da paleografia ou da codicologia” (CHARTIER, 1991CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, v. 5, n. 11, p. 173-191, jan.-abr. 1991., p. 179). Eles possibilitam delinear rigorosamente os dispositivos materiais e formais pelos quais os impressos atingem os leitores, que se constituem em recurso fundamental para uma história cultural.

Com o códice ao alcance, foi possível iniciar um exame mais detalhado. Não foi possível apurar nada sobre sua trajetória entre 1784 e o século XIX. Há, contudo, alguns dos seus elementos que permitiram rastrear seu paradeiro no século XX, até chegar ao leilão. Há uma indicação, a lápis, na falsa folha de rosto, de que o códice teria pertencido à livraria do conde de Pinhel, título nobiliárquico criado por D. Carlos I de Portugal, por decreto de 6 de abril de 1893, em favor de Manuel António de Almeida (1860-1929). Nada foi possível apurar sobre a coleção de livros desse personagem e nem o seu destino.

Há no manuscrito um minúsculo carimbo seco, não percebido pelos leiloeiros, com menos de 1,5 cm, e quase apagado. Foi necessário ampliar a imagem para verificar que se tratava de uma marca de propriedade, indicando que o códice pertenceu ao engenheiro e bibliófilo português José Caetano Mazziotti Salema Garção (1886-1961). Dono de uma valiosa coleção de manuscritos e impressos, a coleção de Salema Garção foi vendida e dispersada a partir de 1980. O ex-libris de Salema Garção, presente em vários manuscritos e impressos, dezenas custodiados atualmente na Biblioteca Nacional de Portugal, está ausente. A encadernação do códice é recente, cerca de 50 anos, e em nada pode ajudar na investigação sobre suas origens. Não há indicações de que o conde de Pinhel ou Salema Garção conheciam quem foi o autor do códice que lhes pertencera.

O principal elemento de identificação no códice está na sua última folha. No verso da folha 73, está registrado, com letra de mão diversa do tradutor, “Imprima-se, e volte a conferir. Meza 5 de Dezbr.o de 1783”, seguindo-se três assinaturas dos censores. Logo, é possível afirmar que o manuscrito foi escrito antes de dezembro de 1783. A partir desse registro, foi possível continuar a investigação sobre o códice. O silêncio sobre o manuscrito, na verdade, foi a chave que permitiu alcançar sua origem.

Apesar da licença para impressão ter sido expedida, não há registro de que o Ensaio Sobre a Poesia Épica tivesse sido impresso em Portugal no século XVIII. Não alcançando prelo, essa tradução permaneceu inédita e foi esquecida. Nenhum bibliógrafo português menciona sua existência. Nem mesmo Inocêncio Francisco da Silva ou Brito Aranha tiveram conhecimento dela. Também o catálogo de Theodor Basterman, que inventaria as traduções de Voltaire em língua portuguesa, sequer indica sua existência. A bem da verdade, o catálogo de Basterman há muito está defasado e ignora um significativo número de impressos e manuscritos com traduções da obra de Voltaire, custodiadas em bibliotecas e coleções privadas. O códice com a tradução do Ensaio Sobre a Poesia Épica é um fantasma.

Figura 4:
Parecer e rubrica dos censores da Real Mesa

Uma questão se impõe de imediato: por qual razão um manuscrito aprovado pela Real Mesa Censória não foi impresso? Em se tratando de um escrito de Voltaire, a situação costuma ser mais complexa em Portugal, na segunda metade do século XVIII.

Em Portugal, desde 1768, quinze anos antes da tradução do Ensaio Sobre a Poesia Epica, tanto os escritos de Voltaire quanto dos outros autores da Ilustração, no geral, eram observados com suspeição pela Real Mesa Censória. Dois anos depois, em 1770, parte dos escritos e livros de Voltaire foi destinada à fogueira em praça pública em Lisboa. A percepção obscurantista que Voltaire possuía das instituições portuguesas, particularmente o Santo Ofício, declarada e difundida por toda Europa por meio de Candide, ou l’Optimisme (1759), conto filosófico em tom de sátira, comprometeu ainda mais sua obra perante censores e inquisidores portugueses.

Quando a censura aos escritos de Voltaire em Portugal ganhou força, com a criação da Real Mesa Censória, La Henriade foi um dos principais alvos dos censores. Ainda em 1768, o censor Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797) realizou a leitura minuciosa das obras de Voltaire. O oratoriano, mais conhecido por traduzir a Bíblia para a língua portuguesa, possivelmente o mais ferrenho defensor do pombalismo, em sua atuação como censor elaborou um parecer que revela muito de como os livros do filósofo francês estavam sendo recebidos pelos intelectuais portugueses:

Para ninguem julgar precipitado meo juizo, gastei mais de dois mezes em ler, ponderar, e examinar cada hum dos Tratados ou Peças Litterarias deste Escritor. E o que desta applicação e discussão tirei foi admirarme de que estando as Obras de Mr. de Voltaire cheias de tanto veneno e de doutrinas tão perniciozas, como logo veremos, seja ainda assim este Autor, o que ordinariamente anda nas mãos da mocidade Portugueza, e o que forma o gosto e base dos seus primeiros estudos. 9 9 ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 1v.

Antonio Pereira de Figueiredo resumiu sua impressão das leituras afirmando que “de livros que tenho lido (e he notorio que tenho lido muitos, e de diversas materias) posso e devo affirmar, que ainda não achei outros mais impios, mais capciozos, mais nocivos, que os de Mr. de Voltaire”.10 10 ANTT, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 1v. Ele examinou as ideias de Voltaire particularmente no tocante aos seus elementos religiosos. É possível, contudo, depreender que Figueiredo compreendeu uma estratégia de estilo nos escritos de Voltaire, que consistia em difundir suas ideias sob a capa de críticas a elas. De acordo com o censor português:

Elle he pessimo, ainda quando parece bom: elle difunde o veneno, ainda quando faz oraçõens a Deos: elle inspira insensivelmente hum desprezo de tudo o que he Religião e piedade, ainda quando quer persuadir que só a pied[ad]e e a Religião o obriga a manifestar os seos sentimentos: elle em fim he impio e blasfemo até quando se lamenta de o perseguirem por impio e blasfemo.11 11 ANTT, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 2.

O caso mais expressivo do uso da censura contra obras de Voltaire recaiu sobre a tradução da Henriada,12 12 VOLTAIRE. Henriada Poêma Epico Composto na Lingoa Franceza por M. r de Voltaire &.a Traduzido e ilustrado com Varias notas na Lingoa Potugueza por Thomas de Aquino Belo e Freitas. Medico formado pela Univers.e de Coimbra. Vila Rica, 1788. Manuscrito na coleção do autor. executada pelo médico mineiro Thomas de Aquino Bello e Freitas. A recente descoberta do manuscrito original traduzido na Vila Rica dos inconfidentes e a sua trajetória já foi investigada. O conteúdo político dessa versão manuscrita tem mais elementos que poderiam comprometer politicamente seu tradutor do que sua versão impressa, que foi proibida pela Real Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros, instituição estabelecida por D. Maria I, a partir do Decreto de 21 de Junho de 1787 (MAGALHÃES, no prelo).

Além do médico Thomaz de Aquino Bello e Freitas (Frondélio), é notável o conjunto de brasílicos ou personagens que transitaram pela América portuguesa que traduziram Voltaire, a despeito de suas obras serem observadas com desconfiança pelas instituições portuguesas. O também médico mineiro Joaquim Inácio de Seixas Brandão (Driasio Erimanteu), parente de Maria Doroteia de Seixas Brandão (Marília de Dirceu), célebre musa de Tomas Antonio Gonzaga, membro da Arcádia Ultramarina, traduziu duas obras de Voltaire do francês para a língua portuguesa. Adrien Balbi registrou que “A Alzira e da Zaira de Voltaire, traduzidas pelo médico Seixas”13 13 Trad. livre do autor: “l’Alzire et de la Zaire de Voltaire, traduites par le médecin Seixas”. foram representadas no Teatro da Rua dos Condes, Lisboa, em fins da década de 1760. (BALBI, 1822BALBI, Adrien. Essai statistique sur le royaume de Portugal et D’Algarve. Paris: Rey et Gravier, 1822., p. CCXIX)

José Basílio da Gama (1741-1795), também poeta árcade, traduziu Voltaire. Em 26 de Abril de 1770, foi entregue a Antonio Pereira de Figueiredo um requerimento de Basílio da Gama (Termindo Sipílio) com uma tragédia intitulada O Fanatismo. A resposta veio em 7 de maio de 177014 14 ANTT, Lisboa. Sem título, 7 mai. 1770. Real Mesa Censória, Livro 4, fl. 215v. : “Suprimida” (CAMÕES; PINTO, 2012CAMÕES, José; PINTO, Isabel. As traduções de Le Fanatisme ou Mahomet le Prophète na cena e na página: um caso de voltairomania nas últimas décadas do século XVIII português. EHumanista, v. 22, p. 211-236, 2012., p. 21). Seis anos depois, em 1776, a mesma obra seria liberada pela Real Mesa Censória.15 15 ANTT, Lisboa. Sem título, 1776. Real Mesa Censória, Livro 21, fl. 29v.

Em 1790, o magistrado José Pedro de Azevedo Sousa da Câmara, desembargador no Tribunal da Relação da Bahia, traduziu e publicou três obras teatrais de Voltaire. Sua tradução de Bruto, contudo, permaneceu manuscrita até 1806, quando foi clandestinamente impressa em Lisboa, sob a falsa declaração de que havia sido impressa em Calcutá, com o objetivo de ludibriar as autoridades portuguesas. Bruto só pôde circular livremente após a Revolução Liberal e Constitucional de 1820 (MAGALHÃES, 2016MAGALHÃES, Pablo Iglesias. O Tradutor dos abomináveis princípios: José Pedro de Azevedo Sousa da Câmara e a circulação dos escritos de Voltaire em Portugal e no Brasil (1790-1834). História, v. 35, n. 101, p. 1-39, 2016.).16 16 É necessária uma retificação na página 4 do artigo supra. Alexandre Herculano não foi o tradutor da novela Candide (1759). O tradutor da primeira edição portuguesa permanece anônimo.

Luís Antonio de Oliveira Ramos registra a existência de outro manuscrito com a tradução da La Henriade, que estava na coleção do Cardeal Saraiva e que, aparentemente, não guarda relação com a tradução de Thomas de Aquino Bello e Feitas: “Henriade de Voltaire traduzida do Francez com o Ensaio sobre Poezia Epica. Ms.”. É de notar que esse manuscrito da Henriade estava acompanhado de uma tradução do Ensaio (RAMOS, 2003RAMOS, Luís Antonio de Oliveira. Inéditos do Cardeal Saraiva (historiografia Monástica) II. Bracara Augusta, v. 51, n. 106, p. 183-279, 2003., p. 263). Apesar dos avanços recentes nos estudos acerca dos tradutores luso-brasílicos em fins do século XVIII (OLIVEIRA HARDEN, 2010OLIVEIRA HARDEN, Alessandra R. Brazilian Translators in Portugal 1785-1808: Ambivalent Men of Science. Tese (Doutorado em Estudos Hispânicos e Lusófonos) - University College Dublin, Dublin, 2010.), particularmente tradutores de textos científicos, ainda há significativo conjunto de personagens e obras que merecem ser mais bem observados, notadamente correlacionados a textos literários.

Muitas eram as razões que levavam um livro a ser proibido de circular nas duas últimas décadas do século XVIII: heresia, apostasia, tolerantismo, jacobinismo e divulgação de informações estratégicas. O Ensaio sobre a Poesia Épica, contudo, é totalmente isento desses elementos proibitivos. Para os padrões de Voltaire, o “Ensaio é texto pacífico, ainda que carregasse nas críticas ao poeta nacional de Portugal.

Além disso, o tradutor anônimo não inseriu notas que comprometessem o conteúdo do manuscrito. Antes, as notas são uma declarada defesa das letras portuguesas, de Camões e de sua poesia. O Ensaio Sobre a Poesia Épica é, portanto, isento de qualquer acusação que pudesse legitimar indicativo de censura. Tanto que esse também foi o entendimento da Real Mesa Censória, que o encaminhou para impressão, apenas ordenando, de modo protocolar, que voltasse para ser conferido após a impressão.

Por qual razão, então, o caderno manuscrito não foi impresso e comercializado? Silêncio. Outros elementos passaram, então, a ser considerados. E se o problema não estivesse no texto em si, mas na trajetória do seu autor/tradutor? Era uma possibilidade, mas o manuscrito impunha o desafio de ser anônimo. O caminho que restava seria tentar identificar o personagem que o produziu.

O primeiro encaminhamento foi comparar a letra do manuscrito com a caligrafia de outros notórios tradutores da obra de Voltaire em Portugal e no Brasil setecentista, alguns dos quais com graves problemas em relação à censura ou ao Tribunal do Santo Ofício. O método de análise comparativa de caligrafias, isoladamente, não garante um resultado seguro, na medida que muitos autores se valem de amanuenses. Era, contudo, o único possível. Foram investigados manuscritos autógrafos de Joaquim Inácio de Seixas Brandão, Thomas de Aquino Bello e Freitas, José Anastácio da Cunha, Manoel Maria Barbosa do Bocage, José Pedro de Azevedo de Sousa Câmara e outros. Nada. Não havia qualquer simetria entre a caligrafia desses homens e as letras que estavam no códice em questão.

Devido à proximidade do Ensaio Sobre a Poesia Épica com a Henriada, sendo que ela havia sido traduzida em Vila Rica no ano de 1788, apenas cinco anos depois do códice manuscrito, a prospecção caligráfica se estendeu aos arcades ultramarinos, particularmente os que atuavam em Minas Gerais. Assim, foram examinados manuscritos de Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e Manoel Inácio da Silva Alvarenga. Também foi examinada a letra de Tomas José de Aquino, editor das Obras de Camões, em 1782AQUINO, Tomás José de (ed.). Obras de Luis de Camões, principe dos poetas de Hespanha. Lisboa: Simão Thaddeo Ferreira, 1782.. Mais uma vez, o resultado foi infrutífero.

Outra estratégia passou a ser considerada no processo da pesquisa, para compreender o silêncio sobre o códice: a morte do tradutor/autor. O falecimento do anônimo tradutor, no período em que o manuscrito havia sido aprovado, seria uma explicação razoável para que o códice tivesse se mantido inédito e caísse no esquecimento.

O desafio passou a ser identificar a possível morte do tradutor/autor no período em que o códice passou pela Real Mesa. Para maior segurança acerca do levantamento dos possíveis óbitos de personagens ligados às letras em Portugal, foi considerado um período de três meses, entre 01 de novembro de 1783 e 31 de janeiro de 1784. Assim, as informações sobre obituários foram buscadas em diversos lugares, incluindo a coleção da Gazeta de Lisboa e o sempre útil Diccionario Bibliographico Portuguez, de Inocêncio Francisco da Silva e Pedro Wenceslau de Brito Aranha (1859-1923). Trabalho sem qualquer garantia de resultado.

Eis que, no quinto tomo do referido dicionário, Inocêncio Francisco da Silva fez a seguinte declaração:

Annos depois tive a satisfação de ver elucidada a matéria, quando a fortuna me deparou as Memórias obituarias dos Padres Gracianos que foram escriptores, colligidas no fim do século passado por Pedro José de Figueiredo, e autographas, como já signifiquei. D’ellas consta que Fr. José de Sancta Rita Durão professara a regra de Sancto Agostinho no convento da Graça de Lisboa a 12 de Outubro de 1738, nas mãos do prior Fr. Francisco de Vasconcellos, sendo provincial Fr. Miguel do Canto; que merecera pelos seus estudos e grande talento o grau de mestre, e pela Universidade de Coimbra o de doutor na theologia; e que se finara no collegio de Sancto Agostinho a 24 de Janeiro de 1784 (SILVA; ARANHA, 1860SILVA, Inocêncio Francisco da; ARANHA, Pedro Wenceslau de Brito. Diccionario Bibliographico Portuguez Tomo V. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860., p. 113. Grifos do autor).

Seria possível? Essa foi a primeira questão que se impôs. O óbito de José de Santa Rita Durão, contando então 62 anos, estava dentro dos três meses estabelecidos na investigação. Na verdade, não apenas seria possível, mas fazia todo sentido que o poeta José de Santa Rita Durão (1722-1784) fosse o tradutor do Ensaio Sobre a Poesia Épica. Ele é o autor do Caramurú (1781), o mais conhecido poema épico sobre o Brasil.

O Caramurú, em suma, representa “uma tentativa de épica sobre modelo camoniano com assunto brasileiro” (PEREIRA, 2000PEREIRA, Paulo Roberto (Org.). 500 Anos de Brasil na Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2000., p. 109), no qual projetou “as virtudes do nativismo crioulo” (KANTOR, 2005KANTOR, Iris. Esquecidos e renascidos: historiografia Acadêmica Luso-Americana (1724-1759). São Paulo; Salvador: HUCITEC; CEB - UFBA, 2005., p. 223). O poema épico obedece formalmente ao padrão camoniano, contendo dez cantos, 834 estrofes em oitava rima e 6672 versos decassílabos heroicos, embora a mitologia pagã, presente no poema quinhentista, esteja ausente no poema setecentista. Ao criticar o épico de Camões, Voltaire, indiretamente, criticaria a estrutura do poema épico de Durão, publicado 49 anos após a primeira edição do Essay Sur la Poësie Epique. Para frei José de Santa Rita Durão, defender a obra de Camões era defender o modelo sobre o qual fundamentava a sua própria.

O tempo transcorrido entre o parecer da Real Mesa Censória, 5 de dezembro de 1783, e o óbito de José de Santa Rita Durão são de 50 dias. Decerto que esse tempo se reduz, entre os procedimentos para retirada do manuscrito na Real Mesa Censória e os possíveis encaminhamentos para sua impressão.

Pode ter ocorrido, nesse ínterim, o agravamento das condições de saúde do poeta, sob os rigores do clima europeu. Em janeiro daquele ano, o inverno causou imensos transtornos em Lisboa. No dia 19 daquele mês “s’experimentou hum furioso temporal”, que chegou a afundar embarcações no Tejo e fora da sua barra, destelhando muitas casas.17 17 A GAZETA de Lisboa, Lisboa, 27 jul. 1781, n. XXX, p. 4. Com a saúde possivelmente comprometida, José de Santa Rita Durão faleceu no dia 24 de janeiro de 1784. Com sua morte, o manuscrito não chegaria ao prelo e foi esquecido.

Pela sua importância nas letras de Portugal e do Brasil, tornou-se necessário investigar a hipótese da tradução do Ensaio Sobre a Poesia Épica ser uma das obras perdidas de frei José de Santa Rita Durão.

José de Santa Rita Durão: atribuição da autoria

José de Santa Rita Durão nasceu a 15 de fevereiro de 1722 no arraial de Nossa Senhora de Nazaré do Inficionado, em Cata Preta, distrito de Mariana, capitania de Minas Gerais (AZEVEDO, 2011AZEVEDO, Carlos A. Moreira (ed.). Ordem dos eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2011., p. 422). Por ter nascido na América portuguesa, a obra de Santa Rita Durão entrou na esfera de interesse dos intelectuais brasileiros no processo de construção de um ideal nacional, após o processo de Independência. Mesmo em Portugal, o poema épico Caramurú continuou sendo livro procurado, tanto que ganhou segunda edição em 1836. Em 1837, uma terceira edição, primeira brasileira, foi feita na Bahia por diligência do editor soteropolitano Manoel Antonio da Silva Serva, filho (1802-1846). Em 1845, Francisco Adolfo de Varnhagen publicaria a quarta edição da obra, junto com o Uraguay de José Basílio da Gama, sob o título de Épicos Brasileiros (1845). A obra de Durão prosseguiu por meio de novas edições na segunda metade do século XIX e durante todo século XX. Seu poema épico foi alçado aos status de obra clássica da literatura brasileira, sendo continuamente adaptada para outras linguagens e mídias. A consagração do Caramurú tornou célebre seu autor, nas letras e no imaginário nacional.

Compreende-se que em relação aos autores brasílicos se conhece mais as suas obras do que suas trajetórias. De um conjunto significativo de escritores, poetas, músicos, cientistas, professores, mesmo no século XVIII, quase nada se conhece de suas vidas, além dos seus nomes e as obras que imprimiram. Com José de Santa Rita Durão essa premissa não é verdadeira. Na verdade, ela é diametralmente oposta. Com exceção do Caramurú e da sua aula inaugural ao tomar posse como professor de Teologia na Universidade de Coimbra (DURÃO, 1778DURÃO, José de Santa Rita. Josephi Duram theologi Conimbricensis O.E.S.A. pro annua studiorum instauratione Oratio. Coimbra: Tipografia Acadêmico-Régia, 1778.), quase toda sua obra é uma incógnita que continua a despertar o interesse de bibliógrafos e bibliófilos, desde o século XIX até o presente (MORAES, 2010MORAES, Rubens Borba de. Bibliographia brasiliana. São Paulo: Edusp, 2010., p. 327).

Em linhas gerais, a trajetória de Santa Rita Durão é bem conhecida desde o século XIX e com maior segurança a partir do estudo do padre jesuíta Antonio Antunes, sob o pseudônimo de Arthur Viegas, publicado em 1914VIEGAS, Artur. O Poeta Santa Rita Durão: revelações históricas da sua vida e do seu século. Bruxelas: L’Édition d’Art Gaudio, 1914. (VIEGAS, 1914VIEGAS, Artur. O Poeta Santa Rita Durão: revelações históricas da sua vida e do seu século. Bruxelas: L’Édition d’Art Gaudio, 1914.). Antunes localizou no Arquivo de Loyola, na Espanha, um manuscrito autobiográfico de Durão, intitulado Retratação ou Poenitens Confessio, datado de 1762, em que declarava seu arrependimento por ter caluniado os jesuítas.

Suas obras continuam a demandar, desde a primeira metade do século XIX, maior esforço dos investigadores luso-brasileiros. Desde 1847, especulava-se a existência de outras obras da autoria de Durão, “conquanto, como é de supor, muitas outras poesias escrevesse, si bem que se perderam inteiramente, porque nenhuma, à excepção do mencionado poema, chegou a ser publicada” (SILVA, 1847SILVA, João Manuel Pereira da. Plutarco brasileiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1847., p. 301). Brito Aranha afirmou “que ficaram pelas mãos dos confrades de Santa Rita Durão, de muitos sonetos, versos lyricos e até jocosos, para cuja publicação elle nunca prestou consentimento” (SILVA; ARANHA, 1884, p. 195). O padre Antunes apresentou uma explicação para o desaparecimento dos escritos de Durão, observando que

A indifferença com que foi recebido o Caramurú, produziu tamanho desalento em Durão, que, diz-se, rasgou todas as poesias lyricas que ainda conservava inéditas. Affirmou-se até que este desgosto lhe apressara a morte, sueccedida em Lisboa apenas três annos depois da publicação do poema. (VIEGAS, 1914VIEGAS, Artur. O Poeta Santa Rita Durão: revelações históricas da sua vida e do seu século. Bruxelas: L’Édition d’Art Gaudio, 1914., p. LXXIX)

Com o tempo, contudo, começaram a aparecer manuscritos e impressos de comprovada autoria ou atribuídos a Durão.18 18 BIBLIOTECA GERAL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, Coimbra. Descripção da funsaõ do Emperador de Eiras que se costuma fazer todos os annos em o Mosteiro de Cellas junto a Coimbra dia do Esp.° Santo, sem ano. Ms. 40. Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, por exemplo, se conserva o poema de setenta e cinco hexâmetros em latim com o título de Descrição da Função do Imperador de Eiras que se costuma fazer todos os anos em o Mosteiro de Celas junto a Coimbra, dia do Espírito Santo (REMÉDIOS, 1920REMÉDIOS, Mendes dos. Alguma coisa de novo sobre Santa Rita Durão. Revista de Língua Portuguesa, v. 6, p. 69-82, 1920., p. 169-82). Expressões da paranética duraniana também foram encontradas, apesar de pouco estudadas (ALMEIDA, 1949ALMEIDA, Manuel Lopes de. Um sermão de Fr. José de Santa Rita Durão. Biblos, v. 25, p. 161-180, 1949., p. 161-180). Em um códice manuscrito que pertencera ao bibliógrafo Rubens Borba de Moraes, hoje na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, encontra-se a única cópia conhecida da Écloga Piscatória, atribuída ao poeta Santa Rita Durão (MORAES, 1969MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia brasileira do período Colonial. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1969., p. 126). Ainda está por se conhecer a produção musical de José de Santa Rita Durão, mas lhe é atribuída uma “Novena de São Gonçalo de Lagos”, de que se conhece um exemplar de 1779, com notícia de que também foi impressa em 1781 e 1813 (AZEVEDO, 2011AZEVEDO, Carlos A. Moreira (ed.). Ordem dos eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2011., p. 422), pela Regia Officina Typographica.

A obra que consagrou José de Santa Rita Durão à posteridade foi o Caramurú. Na última folha do manuscrito original do Caramurú consta “Imprima-se, e volte a conferir. Meza, 25 de Janr.° de 1781”,19 19 BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro. DURÃO, José de Santa Rita. Caramurú: poema épico do descobrimento da Bahia. Ms. 02,3,006, fl. 137v. seguido por rubricas dos três censores. Essas informações foram omitidas na composição tipográfica, constando no frontispício da editio princeps apenas a declaração “Com licença da Real Meza Censoria” (DURÃO, 1781DURÃO, José de Santa Rita. Caramurú: poema epico do descobrimento da Bahia. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1781., frontispício). Apesar de ter sido aprovado em janeiro, o livro só deve ter ficado pronto em meados de julho, sendo anunciado na Gazeta de Lisboa em fins daquele mês, sendo vendido na “casa de João Du-Beaux, e nas mais lojas de livros das Províncias”.20 20 A GAZETA de Lisboa, Lisboa, 27 jul. 1781, n. XXX, p. 4. A distância temporal entre a composição do Caramurú e a escrita do códice com o Ensaio Sobre a Poesia Épica é menor que dois anos.

Apesar de todo conhecimento adquirido sobre Durão e sua obra, em nenhuma ocasião ele é associado ao ofício do tradutor. Não existe registro de que tenha traduzido obra alguma. É notório, porém, que Durão era um poliglota e que conhecia muito bem a língua de Voltaire, tendo vivido alguns meses na França. Que ele dominava bem a língua francesa e era capaz de escrevê-la ele mesmo diz: “Quando acima affirmei que só a penúria me forçara a escrever, referia-me unicamente à relação em francês, visto ter-me censurado o R. P. Geral de eu ter escripto e falado destas coisas em França sem necessidade nenhuma” (VIEGAS, 1914VIEGAS, Artur. O Poeta Santa Rita Durão: revelações históricas da sua vida e do seu século. Bruxelas: L’Édition d’Art Gaudio, 1914., p. 61). Em outra ocasião, ele revela que “Tendo passado a França em Novembro, invernei em Tolosa” (VIEGAS, 1914, p. 56). Em outubro de 1763, voltou ao território francês: “atravessando a pé a Catalunha fui ter aos confins da França, à cidade de Urgel” (VIEGAS, 1914, p. 63). Foi detido, apresentado ao Parlamento de Toulouse e ficou alguns meses preso. Esteve em Perpignan e Montpellier onde tratou com jesuítas e agostinhos franceses. De acordo com Durão, “chegando a Marselha, recebi em 20 de Junho um rescripto da Sagrada Penitenciaria. Munido com elle demandei a Itália e emfim, ao cabo de incalculáveis trabalhos e soffrimentos passados em extrema pobreza, cheguei aos 21 de Agosto a Montefiascone” (VIEGAS, 1914, p. 68). No total, passou mais de um ano residindo na França. Como, então, provar que Durão é o tradutor e autor das notas no Ensaio Sobre a Poesia Épica?

Decerto que a primeira comparação se deu entre o códice e a editio priceps de Caramurú, datada de 1781. A primeira edição de Caramurú, contudo, “não se obedeceu, na composição tipográfica, ao ideal simplificacionista do Autor, ou não se levou em consideração, optando-se pela grafia etimológica ou pseudo-etimológica, mais consentânea, aliás, com os hábitos e o espírito da época” (PEREIRA, 1974PEREIRA, Carlos de Assis. À margem do Caramurú. Revista de Letras, v. 16, p. 95-104, 1974., p. 96). Em suma, houve interferência do editor no processo de impressão do livro. A ortografia do livro não era compatível com a que foi empregada no códice de 1783. Foi, portanto, necessário verificar os manuscritos de José de Santa Rita Durão.

Mário Behring, então diretor da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1933BEHRING, Mário. Um cimélio na Biblioteca Nacional. Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 42, n. 137, p. 65-72, mai. 1933., publicou um editorial divulgando que o manuscrito original de O Caramurú estava custodiado na referida instituição (BEHRING, 1933BEHRING, Mário. Um cimélio na Biblioteca Nacional. Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 42, n. 137, p. 65-72, mai. 1933., p. 65-72), onde ainda se conserva. Havia, contudo, outra questão. Inocêncio Francisco da Silva afirmou que o manuscrito produzido entre 1780 e o início de 1781 foi “Escripto em três mezes por mão extranha, a quem o autor dictava” (SILVA; ARANHA, 1860SILVA, Inocêncio Francisco da; ARANHA, Pedro Wenceslau de Brito. Diccionario Bibliographico Portuguez Tomo V. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860., p. 181-182). Chegou-se a considerar que a grafia do códice era do jovem José Agostinho de Macedo, que em 1778 professou nos gracianos de Lisboa, tomando o nome de frei José de Santo Agostinho, sendo enviado para o convento de Coimbra, onde se aproximou de frei José de Santa Rita Durão.

A partir de pesquisas realizadas pela dra. Berty Biron na década de 1990, contudo, “ficou evidenciada a caligrafia do autor no manuscrito do Caramurú”. Após análise grafológica comparativa do manuscrito na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro com uma carta autógrafa enviada por Durão a frei Manuel do Cenáculo, “observou-se que a caligrafia constante em ambas é idêntica” (BIRON; TEIXEIRA, 2008BIRON, Berty Ruth Rothstein; TEIXEIRA, Ivan. Épicos: Multiclássicos (Ensaio - Luzes, Razão e Fé em Caramurú). São Paulo: Edusp, 2008., p. 224-225). O manuscrito do Caramurú traz também a caligrafia de Durão em notas e correções. Um detalhe é importante. Em nota introdutória, suprimida pelo editor em 1781, José de Santa Rita Durão teceu um comentário sobre suas opções para uso da ortografia:

Quanto á Ortografia, abraçamos a que se observará no Poema pelas seguintes rasoens, que nos parecéraõ eficases: 1.a por que o nosso idioma escreve-se, ou deve-se escrever, como se pronuncia; suposto que não militaõ a seo respeito as grandes rasoes que tem para o contrario os Franceses, ingleses e outros: e na pronuncia naõ exprimimos de ordinario se não o rr dobrado, como: corre, o ss como passo, cc em alguas voses como acçaõ. 2.a porque as letras redundantes e ociosas saõ as mais das veses de todo inúteis e esta rasaõ basta para naõ gastar com elas tempo e papel; sendo certo que a tíralas, poupa-se quasi a vigésima parte, do que se estende regularmente huma composição. Exceptuamos as voses, em que as letras naõ pronunciadas saõ necessárias ou de considerável utilidade para distinguir as palavras como hé, e; há, á, etc. Não nos faz algua força a razaõ que daõ alguns de conservar a etimologia das palavras: em linguas vivas, que de sincoenta em sincoenta anos mudaõ parte da pronuncia, acento e uso das palavras pouco se pode esperar sobre isto; basta naõ transfigurar a origem, escrevendo: xama, xapeo, em lugar de chama, chapeo : mas dizer molle ou mole em que altera a etimologia consideravelmente? Enfim esperamos melhores rasoes para nos emendarmos.21 21 BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro. DURÃO, José de Santa Rita, Caramurú: poema épico do descubrimento da Bahia, 1780. Ms. 02,3,006, fl. 2.

Essa concepção ortográfica, diferente da edição impressa no Caramurú, alinhava-se com a ortografia do códice de 1783. Também se alinha à referida carta autógrafa de José de Santa Rita Durão, escrita em Roma para o erudito frei Manoel do Cenáculo e datada de 10 de agosto 1773, que Brito Aranha publicou (SILVA; ARANHA, 1884SILVA, Inocêncio Francisco da; ARANHA, Pedro Wenceslau de Brito. Diccionario Bibliographico Portuguez Tomo XIII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1884, p. 194-195). Ela ainda está conservada na correspondência de frei Cenáculo, na Biblioteca Pública Municipal de Évora.22 22 BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ÉVORA, Évora. DURÃO, José de Santa Rita, Carta a Manoel do Cenáculo, 1773. Cod. CXXVII/2-4, 2 fls. Ao examiná-la, nota-se que as palavras “Istoria” e “umilde”, estão com a letra h suprimida, de acordo com a observação sobre a ortografia portuguesa que Durão inseriu no manuscrito do Caramurú, que em 1781 foi “inutilizado durante a revisão das provas, à vista do que faziam os compositores, em desacordo com os propósitos do Autor” (PEREIRA, 1974PEREIRA, Carlos de Assis. À margem do Caramurú. Revista de Letras, v. 16, p. 95-104, 1974., p. 96). A leitura do códice de 1783 revelou também a supressão do h: Omero, Ebreu, Eroe, Onra, Omem, Istoria. Obviamente que essa opção ortográfica não comprovaria, por si só, a atribuição de autoria. É, contudo, uma opção incomum e reforçava a possibilidade de o códice ser de punho de José de Santa Rita Durão.

O exame comparativo entre os dois documentos, de 1773 e de 1783, revelou perfeita simetria caligráfica, mesmo com um hiato de dez anos. O códice de 1783 não é obra de amanuense. É todo feito de próprio punho. Assim, confirma-se a existência de um manuscrito, até o presente completamente desconhecido, da autoria de frei José de Santa Rita Durão.

Figura 5:
Amostra comparativa da caligrafia de José de Santa Rita Durão

Deve-se considerar, ainda, que o códice não é apenas uma tradução. Ele traz uma série de elaboradas notas, algumas contando 4 páginas. No capítulo sobre Camões, Durão não poupou Voltaire de elegante crítica intelectual:

Na verdade que cauza espanto como Voltaire, o maior critico da Fransa, pos tão pouco cuidado nesta sua obra; mas não é esta a unica, em que se lhe pode notar a sua pouca exatidão em cronologia, e a pouca veracidade dos factos, que refere; o que deve servir de advertencia aos genios demaziada­mente avidos de escrever, pois este nimio desejo conduzio um omem tão grande, E que tem merecido tantos aplausos em o Orbe literario [rasurado pelo autor] o ser pouco exato nas suas Obras principalmente Istoricas.23 23 DURÃO, José de Santa Rita. Ensaio sobre a poesia epica por Francisco de Voltaire. Lisboa, 1783, fl. 36. Coleção pessoal do autor.

A descoberta do códice tradução do Ensaio Sobre a Poesia Épica e a atribuição de sua autoria redimensionam a importância de José de Santa Rita Durão nas letras luso-brasileiras. Essa foi, possivelmente, sua derradeira obra, e expande significativamente a atuação literária do escritor brasílico. Professor, teólogo, poeta, orador, pregador, músico e, a partir de agora, tradutor. Durão traduziu um texto basilar de Voltaire, o mais notável autor da Ilustração francesa. Publicar, na íntegra, o conteúdo do códice será de imensa relevância para ampliar os estudos sobre a literatura setecentista em Portugal e no Brasil.

Agradecimentos

Agradeço à minha amiga, Dra. Hélida Santos Conceição, que cuidou da aquisição e transporte do manuscrito arrematado e à Mariana Ferreira Aslan, por disponibilizar os 3 volumes do Catálogo da Biblioteca de Salema Garção, organizados pelo seu avô, sr. Manuel Ferreira, na cidade do Porto. Registro, também, meus agradecimentos à Dra. Berty Ruth Rothstein Biron, do Gabinete Português de Leitura, estudiosa da obra de José de Santa Rita Durão, por ter compartilhado seu conhecimento, cópia de fólios do manuscrito do Caramurú, da Apologia (1758) e a cópia da carta manuscrita de 10 de agosto de 1773. Esses três manuscritos foram, de acordo com a Dra. Biron, escritos pelo próprio Durão. A eles se soma o códice de 1783.

Referências bibliográficas

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    » https://archive.org/details/voltairesessayo00voltgoog
  • 1
    Trad. livre do autor: “J’A y lû par ordre de Monsseigneur le Garde des Sceaus, un manuscrit intitulé: Essay sur la Poësie Epique, Traduction de l’Anglois de M. de Voltaire. Et je crois qu’on peut en permettre l’impression. A Paris ce 23 Avril 1728. Lancelot”.
  • 2
    Trad. livre do autor: “Then I will send you my plates with some sheets of a quarto edition, large paper, begun in London, with the Essay on Epic Poetry in French”.
  • 3
    Trad. livre do autor: “Retravaillé em français et considérablement augmenté par l’auteur même de La Henriade”. EXTRAIT d’une lettre écrite de Londres, le premier Juin, concernant M. de Voltaire. Mercure de France, Paris, jun. 1733, p. 1417-1418.
  • 4
    Trad. livre do autor: “Des Différents Goûts des Peuples”.
  • 5
    Trad. livre do autor: “la ambiciosa manía de haber querido pasar por el depositario del ingenio en todos los artes; por un literato universal; por un hombre único”, atentando para que “La mayor parte de sus disertaciones literarias son un tributo de homenajes u obsequios que se paga a sí mismo, o decretos pronunciados contra sus rivales”.
  • 6
    Trad. livre do autor: “Su Ensayo sobre la poesía épica: una Apología de la Henriada, el conocimiento de las perfecciones y de los defectos en la lengua francesa dado al público con nombre prestado, es el apoteosis de sus producciones”.
  • 7
    VOLTAIRE. Ensaio Sobre a Poezia Epica por Francisco de Voltaire. Traduzido por José de Santa Rita Durão. Lisboa, 1783. Manuscrito na coleção do autor.
  • 8
    TRADUÇÃO inédita de Voltaire, 1783. Disponível em: < https://www.bestnetleiloes.com/pt/leiloes/livros-206/traducao-inedita-de-voltaire-1783 >. Acesso em: 10 jul. 2021.
  • 9
    ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 1v.
  • 10
    ANTT, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 1v.
  • 11
    ANTT, Lisboa. Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, 19 out. 1768. Cx. 4, n. 123, fº 2.
  • 12
    VOLTAIRE. Henriada Poêma Epico Composto na Lingoa Franceza por M. r de Voltaire &.a Traduzido e ilustrado com Varias notas na Lingoa Potugueza por Thomas de Aquino Belo e Freitas. Medico formado pela Univers.e de Coimbra. Vila Rica, 1788. Manuscrito na coleção do autor.
  • 13
    Trad. livre do autor: “l’Alzire et de la Zaire de Voltaire, traduites par le médecin Seixas”.
  • 14
    ANTT, Lisboa. Sem título, 7 mai. 1770. Real Mesa Censória, Livro 4, fl. 215v.
  • 15
    ANTT, Lisboa. Sem título, 1776. Real Mesa Censória, Livro 21, fl. 29v.
  • 16
    É necessária uma retificação na página 4 do artigo supra. Alexandre Herculano não foi o tradutor da novela Candide (1759). O tradutor da primeira edição portuguesa permanece anônimo.
  • 17
    A GAZETA de Lisboa, Lisboa, 27 jul. 1781, n. XXX, p. 4.
  • 18
    BIBLIOTECA GERAL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, Coimbra. Descripção da funsaõ do Emperador de Eiras que se costuma fazer todos os annos em o Mosteiro de Cellas junto a Coimbra dia do Esp.° Santo, sem ano. Ms. 40.
  • 19
    BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro. DURÃO, José de Santa Rita. Caramurú: poema épico do descobrimento da Bahia. Ms. 02,3,006, fl. 137v.
  • 20
    A GAZETA de Lisboa, Lisboa, 27 jul. 1781, n. XXX, p. 4.
  • 21
    BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro. DURÃO, José de Santa Rita, Caramurú: poema épico do descubrimento da Bahia, 1780. Ms. 02,3,006, fl. 2.
  • 22
    BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ÉVORA, Évora. DURÃO, José de Santa Rita, Carta a Manoel do Cenáculo, 1773. Cod. CXXVII/2-4, 2 fls.
  • 23
    DURÃO, José de Santa Rita. Ensaio sobre a poesia epica por Francisco de Voltaire. Lisboa, 1783, fl. 36. Coleção pessoal do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2021
  • Revisado
    07 Mar 2021
  • Aceito
    21 Mar 2021
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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