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Depois da tempestade, o relato Experiência e narrativa em Primo Levi

After the Storm, the Repport Experience and Narrative in Primo Levi

Resumo

Neste ensaio investigamos de que maneira o longevo topos “depois da tempestade, a bonança” comparece em autores como Homero, Aristóteles, Virgílio, Dante Alighieri, Giacomo Leopardi e Herman Melville para, em seguida, analisarmos sua presença no trabalho de Primo Levi (1919-1987), químico turinense e escritor que sobreviveu e testemunhou os horrores de Auschwitz. Embora o referido lugar-comum apareça, de forma mais evidente, em Os Afogados e os sobreviventes (1986/2016), seus pressupostos ampararam as reflexões de Levi sobre as experiências no Lager, especialmente no que diz respeito aos limites da representação. O itinerário de uma tópica em diferentes (con)textos admite significados nem sempre análogos, pois cada formulação se ampara em prescrições, categorias, orientações e estilos particulares. Por meio deste estudo, pretende-se contribuir com as reflexões sobre o “irrepresentável” na literatura de testemunho, evidenciando um esforço no sentido de figurar o inaudito e amplificar eventos dramáticos e/ou trágicos com argumentos convencionais, muitos deles provenientes de práticas letradas antigas.

Palavras-chave:
lugar-comum; Auschwitz; Primo Levi

Abstract

In this work we investigate how the old topos “after the storm comes the calm” appears in authors such like Homer, Aristotle, Virgil, Dante Alighieri, Giacomo Leopardi, and Herman Melville, so as to analyze its presence in the work of Primo Levi (1919-1987), a chemist and writer from Turin who survived and witnessed the horrors of Auschwitz. Although this commonplace appears in a more evident way in The Drowned and the Saved (1986), its assumptions supported Levi’s reflections on the experiences in the Lager, especially in what concerns the limits of representation. The itinerary of a topical in different (con)texts admits meanings not always analogous, because each formulation is based on prescriptions, categories, orientations, and particular styles. Through this study, it is intended to contribute with reflections on what is “unrepresentable” in the literature of testimony, by showing an effort to figure the unheard and amplify dramatic and/or tragic events with conventional arguments, many of them derived from ancient literate practices.

Keywords:
Commonplace; Auschwitz; Primo Levi

Introdução

Lugar-comum (topos entre os gregos, locus entre os romanos) é um esquema de argumentação empregado no ato da produção de discursos. Como lembra João Adolfo Hansen (2012HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma; LAUDANNA, Mayra; BAGOLIN, Luiz Armando (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012. p. 166-167., p. 166-167), gregos como Aristóteles cogitavam a possibilidade de colecionar topoi ou argumentos gerais, mobilizados para a discussão de coisas prováveis (endoxa) com a finalidade de gerar persuasão. Já em Cícero o locus era como um molde, definido como sede do argumento. Seus usos são partilhados coletiva­mente, a partir da imitação (mímesis aristotélica ou imitatio latina), o que sugere não uma repetição mecânica e servil, mas uma variação elocutiva efetuada por meio da imitação. Retoricamente, há dois discursos que se mesclam: “o dos lugares-comuns de cada gênero, que são memorizados, achados e aplicados como teses ou questões genéricas e indeterminadas, e o das referências particulares, que especificam e variam os lugares indeterminados como hipóteses ou questões determinadas” (HANSEN, 2012HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma; LAUDANNA, Mayra; BAGOLIN, Luiz Armando (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012. p. 166-167., p. 167). Ao definir o lugar-comum como “sedes argumentorum”, Quintiliano (QUINTILIANO, 2001, p. 565) afirma que ele não deve ser buscado em qualquer lugar, pois cada escolha requer cálculo/precisão.

Para acompanhar o itinerário íngreme de um lugar-comum, é preciso reconhecer, de antemão, algumas dificuldades: a presença da tópica em diferentes (con)textos sugere significados nem sempre análogos, pois sua apropriação é datada; como o argumento é anônimo e coletivo, ele transita por diferentes gêneros oratórios e ficcionais, o que pressupõe prescrições, categorias, orientações e estilos díspares; em alguns casos, não é possível identificar as auctoritates ou fontes imitadas, mas isso não prejudica o trabalho. Aliás, justamente por ser anônimo e circular sem restrições, o lugar-comum não tem origem, filiação ou pátria: sua (re)formulação é fruto de um exílio incessante, por se tratar de um expediente nômade e cosmopolita.

Nosso propósito é compreender a maneira como a tópica “depois da tempestade, a bonança” comparece no trabalho de Primo Levi, sobretudo, em Os Afogados e os sobreviventes (2016). Não supomos que um estudo das referências letradas/literárias que marcaram a formação de Levi consiga explicar seu pensamento ou flagrar suas intenções. Se recorremos a obras que o autor considerava incontornáveis, foi com o único propósito de demarcar as linhas de força de sua argumentação. No que diz respeito à disposição, este artigo contempla dois momentos: no primeiro, transita por algumas letras que mobilizaram a tópica em estudo: Homero, Aristóteles, Virgílio, Dante Alighieri, Giacomo Leopardi e Herman Melville. Em seguida, investiga a obra de Primo Levi.

Itinerários do lugar-comum

Diferente da Ilíada, que relata a trajetória de um jovem herói que conquistou glória perene (kléos) e não pôde efetuar o regresso (nóstos), a Odisseia canta as façanhas de um homem maduro que, depois de enfrentar inúmeras peripécias, retornou a Ítaca. De acordo com François Hartog (2011HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 215), a Odisseia corresponde à versão épica de uma primeira história, como uma “epopeia da memória”. Diante das dificuldades enfrentadas em terra e mar, Odisseu não poderia olvidar suas origens, seu reino, sua família e sua condição de mortal. O mundo com o qual ele se deparou ao longo de suas andanças, ao contrário, encarnava o esquecimento, como o reino dos Lotófagos, consumidores da flor de lótus, e a ilha de Calipso, ninfa que desejava unir-se ao protagonista e torná-lo imortal. Ainda segundo Hartog, durante o banquete ocorrido na terra dos feácios, quando Odisseu chorou ao ouvir suas façanhas sendo narradas pelo bardo Demódoco, o poema precisou lidar com a historicidade e, dessa forma, afastar-se do registro épico que, até o momento, separava passado e presente por simples justaposição: “Tu declamas, respeitando demais a metrificação, a infelicidade dos aqueus, tudo o que eles realizaram e sofreram, assim como tudo o que lhes foi infligido como se, realmente, tivesses estado presente ou escutado essa narrativa de outra pessoa” (HOMERO, 2001HOMERO. Odisseia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001., p. 89).

Depois que obteve auxílio e transporte por parte dos feácios, Odisseu finalmente regressou, mas disfarçado de mendigo. Eumeu, o porqueiro de Ítaca, não apenas se mostrou acolhedor, garantindo-lhe os dons da hospitalidade, como também se dispôs a narrar as desventuras que o vitimou, não para entristecer seu hóspede, muito pelo contrário: “Nós dois ficaremos no casebre a comer e a beber / e a alegrarmo-nos com os sofrimentos um do doutro, / recordando-os: na verdade compraz-se com as duas dores / o homem que muito tenha sofrido e vagueado” (HOMERO, 2011HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin, 2011., p. 380). O herói foi instado a compartilhar suas dores, mas para regozijar-se, e não lamentar os males, passíveis de serem convertidos em feitos memoráveis.

A passagem homérica foi retomada no primeiro livro da Retórica, mais precisamente no tópico que analisa a oratória judicial. Aristóteles (2005ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2005., p. 133) define o prazer como “certo movimento da alma e um regresso total e sensível ao seu estado natural”. É prazeroso aquilo que não decorre de coação, preocupações ou esforços demasiados e se afina a nossos desejos ou hábitos. Na sequência, o prazer é concebido como um afeto da alma, que pode ser experimentado por meio da imaginação, “uma espécie de sensação enfraquecida”. Lembrar-se ou aguardar por alguma coisa envolve tal sensação, ou seja, “os prazeres ou são presentes na sensação, ou passados na memória, ou futuros na esperança; pois sentimos o presente, lembramos o passado e esperamos o futuro”. O episódio da acolhida de Odisseu pelo porqueiro de Ítaca foi mencionado nesse momento para sustentar que o “prazerosamente memorável não é apenas o que, quando efetivamente presente, era prazeroso, mas também algumas coisas que não eram, desde que seus resultados posteriormente se revelaram nobres e bons”. Na sequência, o Estagirita assevera: é prazeroso “o simples estar livre do mal” (ARISTÓTELES, 2011ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: EDIPRO, 2011., p. 135).

Na década de 1980, Primo Levi foi convidado para reunir autores que contribuíram com sua formação (humana, intelectual, literária) e produzir uma antologia. O projeto, organizado por Giulio Bollati, tinha caráter pedagógico/escolar e foi publicado pela editora Einaudi com o título La Ricerca delle radici (1981). Entre os autores retomados, consta Homero, especificadamente um fragmento do canto IX da Odisseia que aborda o confronto entre Odisseu e o ciclope Polifemo. Em seu comentário do poema, Levi (1981, p. 42) afirmou que a Ilíada, com suas batalhas, pestes e mortes, orientada por uma guerra estúpida e pela raiva pueril de Aquiles, não se compara à Odisseia, que tem a “medida humana” e nasce de uma esperança razoável: o fim da guerra e do exílio. Sobre o episódio envolvendo Polifemo, Levi menciona a forma como a astúcia do herói superou a violência crua do ciclope, pois um “homem de nada”1 1 Trad. livre do autor: “uomo da nulla”. suplantou e regozijou-se perante a “torre de carne”2 2 Trad. livre do autor: “torre di carne”. impotente. É interessante considerar que, dentre todas as passagens do poema homérico, o químico turinense tenha escolhido aquela que confere importância aos dons da hospitalidade, comportamento que é próprio do gênero humano. O hóspede é identificado pelos gregos como xénos, que corresponde ao termo latino hostis. O termo originou tanto a palavra hospes, hóspede, amigo, como também hostis, inimigo. Polifemo fere as regras de acolhida ao estrangeiro: além de zombar dos deuses, não atendeu às súplicas dos forasteiros como bom anfitrião. Logo, é impossível estabelecer com ele qualquer tipo de aliança, pois a ausência de sacrifícios indica a inexistência de um núcleo comunitário político mínimo e a presença de uma hostilização implacável (GAGNEBIN, 2006GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006., p. 13-27).

Além disso, o episódio promove uma memória, ou seja, Odisseu atua como bardo e narra, na corte dos feácios, os males dos quais foi vítima. Logo, seu pressuposto não dista muito do acolhimento de Eumeu, pois ali também se manifesta a centralidade do asilo e a importância do rememorar, mesmo quando se trata de infortúnios.

Ao emular os poemas homéricos e seguir, de perto, as prescrições da poética aristotélica, Virgílio se constituiu como auctoritas do gênero épico. Se Odisseu pretendia regressar a Ítaca e rever seus parentes, o protagonista da Eneida ausentou-se de uma Tróia em chamas para buscar refúgio da península itálica e, em seguida, fundar Roma. Ambos precisaram costear as adjacências do mar Mediterrâneo, cada qual movido por um propósito e vitimado por um conjunto de obstáculos divinos. Juno, por exemplo, descera à morada de Éolo, que imperava sobre “ventos e ruidosas tempestades”, e solicitou o naufrágio de Eneias e seus homens. Após a tempestade enviada pela divindade, o protagonista busca estimular seus companheiros:

“trabalhos mais árduos do que estes / já suportastes! Deus há de pôr fim, a tão grandes canseiras. / Vós os atroantes escolhos de Cila enfrentar já soubestes / e o seu furor desmedido; escapastes também dos ciclópeos / antros sem dano maior. Criai ânimo; o pálido medo / deixai de lado. Tudo isso há de ser recordado algum dia” (VIRGÍLIO, 1983VIRGÍLIO. Eneida. Brasília; São Paulo: Universidade de Brasília; A Montanha, 1983., p. 14).

O verso “tudo isso há de ser recordado algum dia”3 3 Trad. livre do autor: “forsan et haec olim meminisse iuvabit”. remete, justa­mente, à utilidade/prazer decorrente da recordação dos infortúnios. Quando chega a Cartago, Eneias encontrou, afinal, ocasião para refrear os infortúnios: “Eneias sinais encontrou de certeza de que seus males estavam no fim e que lícito era alimentar esperanças de sorte melhor no futuro” (VIRGÍLIO, 1983VIRGÍLIO. Eneida. Brasília; São Paulo: Universidade de Brasília; A Montanha, 1983., p. 20). O poeta não menciona o deleite proveniente das memórias, mas o prazer que sucede ao fim dos males.

A Eneida, especialmente o descensus (descida ao mundo dos mortos) de Eneias, ocorrido no livro VI, serviu de modelo a Dante Alighieri. O primeiro livro da Divina Comédia figura o Inferno, estado de dor e desesperança eternas, um abismo profundo formado por nove círculos. Quanto mais profundo o círculo, mais grave o pecado a ser punido. Os castigos invertem simetricamente a abominação dos pecados, ou seja, aplica-se a pena de talião. No canto V, por exemplo, Dante e seu guia, Virgílio (alegoria da razão e auctoritas poética), alcançam o segundo círculo, reservado aos luxuriosos, que são constantemente arrastados por uma ventania. Entre os condenados, encontram-se Paolo e Francesca. Maculada pelo estigma do adultério e assassinada pelo marido, Francesca da Rimini afirma que recordar é um peso: “‘Não existe’, falou-me, maior dor / Que recordar, no mal, a hora feliz; / E bem o sabe, creio, esse doutor.” (ALIGHIERI, 2019ALIGHIERI, Dante. A Divina comédia. Belo Horizonte: Garnier, 2019., p. 116).

O episódio é sublime e leva Dante a desmaiar. É evidente que o fragmento acima inverte a tópica que é objeto de nossa reflexão, ou seja, supõe-se que durante a “tempestade” é difícil recordar um tempo de felicidade. O lugar-comum é o mesmo, o que muda são as circunstâncias.

No canto XXVI, Dante e Virgílio encontraram Ulisses e Diomedes, vagando como chamas ambulantes no oitavo círculo, na fossa reservada aos conselheiros pérfidos. Ao ser interrogado, o rei de Ítaca admitiu que Telêmaco, Laerte e Penélope não puderam vencer seu desejo de conhecer novas terras e povos. Ele capitaneou uma nau e dobrou as colunas de Hércules. Se os heróis de Homero e Virgílio se mantiveram nos limites do Mediterrâneo, a personagem dantesca abandonou a navegação costeira para avançar pelo oceano Atlântico. Em discurso dirigido aos nautas, declarou a sua intenção de conhecer o abismo insondável e sem gente. Cinco meses após ultrapassar o estreito de Gibraltar, avistaram um grande monte coberto de escuridão. Um turbilhão adveio dessas paragens e chocou-se com a proa do navio, causando seu naufrágio.

Diferente do guerreiro astucioso que precisou superar obstáculos diversos para regressar a Ítaca, o Ulisses de Dante é um herói obstinado, incapaz de respeitar os limites instituídos por Hércules. Diferente do protagonista da Odisseia, que evitou a hýbris para assegurar sua condição de mortal e preservar a memória do lar, a personagem dantesca recorre ao excesso, olvidando o lar. Posto no Inferno e condenado pelo artifício que lhe conferia distinção heroica na Antiguidade, o herói, assim como as outras sombras consultadas, não passa de um tipo pecador que desengana com a própria experiência. Como sugeriu Lucchesi (2006LUCCHESI, Marco. A Memória de Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., p. 273), “ao atravessar as Colunas de Hércules, Ulisses navega em outro tempo, em outro espaço, lá onde o tempo e o espaço cessam, porque a geografia e a transcendência se assimilam”. Desprovido do amparo sagrado, o herói industrioso, incapaz de atribuir sentido à experiência que protagonizou, foi tragicamente fulminado pelas escolhas temerárias que realizou.

Em Se questo è un uomo (1988), mais precisamente no capítulo “O Canto de Ulisses”, Primo Levi conversa com o jovem Jean Samuel, que demonstrou grande interesse em aprender italiano. O químico encarregou-se de lhe apresentar a língua e reproduziu parte do canto XXVI da Commedia. Durante uma longa caminhada, ele discorreu sobre a audácia de Ulisses ao penetrar o mar aberto e se deteve no fragmento de um discurso que o herói grego teria proferido diante de sua tripulação, recomendando que todos se recordassem de suas origens e não vivessem como brutos que negligenciavam a virtude e o conhecimento.

Vicenzo Mengaldo (2019MENGALDO, Pier Vincenzo. Il Canto di Ulisse. In: MENGALDO, Pier Vicenzo. Per Primo Levi. Turim: Einaudi, 2019. p. 119-128.) afirma que esse episódio rememora/encena uma situação em que a própria memória de Levi assume protagonismo, ou seja, o objeto da narrativa é sua vontade de recordar qualquer traço pertencente a seu patrimônio cultural e humano, indício dos anos de liberdade. Para Mengaldo, além de justapor poesia e prosa, a disposição não linear do testemunho permite retratar o cotidiano do Lager, a fadiga do ato de recordar, as reações de Pikolo (alcunha de Jean Samuel), as imprecisões do lembrar. Sendo assim, o episódio pode ser lido sob o signo da ambivalência: evasão mental dos confins do campo, vitória da memória sobre o esquecimento, sobreposição dos versos dantescos à confusão babélica e, ainda assim, como consciência amarga do cárcere e da provável morte dos prisioneiros. Como se pode notar, Francesca e Ulisses recorrem ao passado em território hostil, inóspito. Primo Levi, ao relembrar os versos de Dante e, portanto, o tempo de liberdade, não estaria, igualmente, experimentando a dor de recordar “no mal, a hora feliz”? (ALIGHIERI, 2019ALIGHIERI, Dante. A Divina comédia. Belo Horizonte: Garnier, 2019., p. 116).

A calmaria depois da tempestade

Giacomo Leopardi (1798-1837), grande conhecedor das letras greco-­latinas e profundo admirador de Dante Alighieri, destacou-se nos ramos da filosofia e poesia. Muitos de seus poemas foram reunidos nos Canti (1974). Um deles, “La Quiete dopo da tempesta”, com um encadeamento de versos hendecassílabos e septenários, divide-se em três estrofes: a princípio, o poeta celebra o retorno da quietude para, em seguida, manifestar uma reflexão sobre a condição humana amparada na ideia de sofrimento. Ou seja, num primeiro momento, constrói-se um cenário com tons idílicos, caracterizado por circunstâncias amenas; entretanto, a alegria é retratada como uma sensação capaz de conter, temporariamente, a dor característica da natureza, que só cessa com a morte.4 4 Para uma análise mais detida do poema, consulta-se: MENGALDO, 2012. O fragmento abaixo corresponde à estrofe final do poema:

Ó Natura cortês! São estes os teus dons, estes são os prazeres com que os mortais cumulas? Nosso gozo é sair de um revés. Penas concedes a mancheias; dores vêm espontaneamente: e do prazer o pouco que um milagre ou um prodígio tira de raro em raro do dissabor é um lucro. A criatura tornada cara aos deuses! Venturosa assaz te considera, ó prole humana, se respirar te é dado de alguma dor: feliz se a morte em ti todas as dores sana. (LEOPARDI, 2014LEOPARDI, Giacomo. Cantos. Florianópolis: Nephelibata, 2014., s.p.)

O “lugar ameno”5 5 Trad. livre do autor: “locus amoenus”. formulado pelos versos iniciais do poema cria a ilusão de um desfecho aprazível, mas as estrofes finais demonstram que o caráter episódico do prazer não suplanta o “lugar horrendo”6 6 Trad. livre do autor: “locus horrendus”. que a natureza proporciona. Embora o tom não seja otimista, a formulação poética de Leopardi não deixa de supor que a satisfação é possível e pode decorrer do fim da dor, como prescreveu Aristóteles.

É possível encontrar elementos de sua filosofia/poesia na obra de Primo Levi. O último capítulo de La Ricerca delle radici, intitulado “Siamo soli”, retoma elementos de um texto sobre buracos negros escrito pelo físico norte-americano Kip Thorne. Primo Levi utiliza essa reflexão como forma de amplificar a solidão humana, pois qualquer possibilidade de encontrar interlocutores em outros locais que não a Terra torna-se cada vez mais remota. Além disso, na medida em que a ciência se aprimora, a ideia de que o homem ocupa o centro do universo se mostra improvável. O universo ser-lhe-ia hostil, violento e estranho, desprovido de Campos Elíseos e composto por “luz distorcida, comprimida, dilatada, rarefeita numa medida que supera os nossos sentidos e a nossa linguagem” (LEVI, 1981LEVI, Primo. La Ricerca delle radici. Torino: Einaudi, 1981., p. 229). Entretanto, no final do seu comentário, Levi não encara tal descoberta de modo pessimista, recordando que, para quem ousou compreender buracos negros, mitigar o medo, a pobreza e a dor não seria um projeto impensável. A inexistência de uma metafísica, no caso, não teria uma conotação negativa, na medida em que expõe o indivíduo não apenas em sua solidão, mas também como um agente livre. Ao invés de fazer eco à hostilidade do universo, seria possível confrontá-lo com cultura e promover a vida.

Essa reflexão reaparece em um conto de Primo Levi, no qual um poeta resolveu consultar um médico.

Certamente não lhe faltavam palavras para descrever o seu mal: sentia o universo (que aliás estudara com diligência e amor) como uma imensa máquina inútil, um moinho que triturava eternamente o nada para nada; não mudo, ao contrário, eloquente, mas surdo, cego e fechado à dor do germe humano; aí está, cada instante de sua vigília era atravessado por essa dor, a única certeza que tinha; não experimentava outras alegrias senão as negativas, isto é, as breves remissões do seu sofrimento. Percebia com impiedosa lucidez que este, e apenas este, era o destino comum de toda criatura pensante, tanto que frequentemente invejava a felicidade dos pássaros e dos rebanhos. Era sensível ao esplendor da natureza, mas nele discernia um engano a que toda mente nobre era chamada a resistir: nenhum homem dotado de razão podia negar-se à consciência de que a natureza não é mãe nem mestra do homem, mas sim um vasto poder oculto que, objetivamente, reina para o mal de todos (LEVI, 2005LEVI, Primo. 71 contos de Primo Levi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 368).

Entretanto, a sua angústia

lhe dava trégua: além dos momentos de alegria negativa já mencionados, sentia algum alívio tarde da noite, quando a escuridão e o silêncio do campo lhe permitiam dedicar-se aos estudos, ou melhor, entrincheirar-se neles como numa cidadela. Sim, uma cidadela quente, macia e escura - disse o médico, balançando a cabeça com simpatia. O poeta acrescentou que recentemente tivera um momento de respiro quando fizera um passeio solitário que o conduzira a uma altura moderada. Para além da sebe que limitava o horizonte, colhera por um instante a presença solene e tremenda de um universo aberto, indiferente, mas não hostil; só por um segundo, mas fora tomado de uma inexplicável doçura, que emanava do pensamento de um diluir-se e desatar-se no seio transparente do nada. Fora uma iluminação tão nova e intensa que havia vários dias ele vinha tentando expressá-la em versos. (LEVI, 2005LEVI, Primo. 71 contos de Primo Levi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 369)

Não resta dúvida de que o tal poeta seja Giacomo Leopardi.7 7 Sobre a ligação entre Leopardi e Levi, ver PIPERNO (2020, p. 179-195).

Em um de seus poemas, escrito em 1974, Levi não menciona os buracos negros, mas parece intuí-los ao retratar estrelas negras e luzes que sucumbem:

Ninguém mais cante o amor ou a guerra. A ordem de onde o cosmo ganhava nome se desfez; As legiões celestes são um emaranhado de monstros, O universo nos assedia cego, violento e estranho. O sereno está salpicado de horrendos sóis mortos, Densos sedimentos de átomos triturados. Deles emana apenas um desesperado peso, Não energia, não mensagens, não partículas, não luz; A própria luz desaba, rompida por sua gravidade, E nós, germe humano, vivemos e morremos para nada, E os céus se revolvem perpetuamente em vão. (LEVI, 2019LEVI, Primo. Mil sóis: poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019., p. 57)

Emaranhado de monstros, horrendos sóis mortos, germe humano: note-se a gradação, que desloca o olhar do plano celeste para a superfície terrestre. Os suplícios, por sua vez, foram deslocados dos ínferos para os súperos, do submundo para a selva oscura na qual “vivemos e morremos para nada”. Por alguma razão, o químico de Turim não abandonou a arte, que possivelmente atenuou o “desesperado peso” que carregou consigo. Uma bonança entre tempestades, como formulou Leopardi.

Nos comentários de Levi a respeito do artigo científico sobre buracos negros, e na ficção (em prosa e verso), a ideia de um universo hostil amplifica o isolamento dos indivíduos. Não por acaso, o poeta angustiado do conto conseguia trégua quando se “entrincheirava” nos estudos e durante passeios solitários. Tal condição é agravada entre aqueles que sobreviveram a Auschwitz:

As coisas vistas e sofridas me queimavam por dentro; me sentia mais perto dos mortos que dos vivos, culpado de ser homem porque os homens edificaram Auschwitz, e Auschwitz engolira milhões de seres humanos assim como muitos amigos meus e uma mulher que levava no coração. (LEVI, 1994LEVI, Primo. A Tabela periódica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 151)

O sentimento de culpa, no caso, abre uma nova trincheira e proporciona uma espécie de degredo, suscitado pela vergonha de fazer parte da espécie humana: trata-se de um exílio, mas seu deslocamento é interno.

Melville e a ruína do homem de valor

Primo Levi afirmou que quase não incluiu Moby Dick (2019LEVI, Primo. Mil sóis: poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019.) em sua antologia. Não porque tivesse dúvida sobre suas qualidades: para ele, há no romance de Herman Melville tudo o que se pode esperar de um livro: a experiência humana, monstros, o poço escuro da alma humana. Os capítulos de Melville retratam cenas dramáticas sobre a vida em alto-mar, manifestam elementos metafísicos e transcendentes, descrevem a aparência e o hábito das baleias, precisam as etapas da pesca e da extração do óleo, reúnem diversas digressões sobre anatomia, hábitos alimentares, frenologia. Sugere-se a complementaridade de poesia e ciência, como se uma suprisse os limites da outra (WARD, 1956WARD, Joseph Antony. The Function of the Cetological Chapters in Moby-Dick. Durham. American Literature, v. 28, n. 2, p. 164-183, 1956., p. 164-183).

Na sua seleção, Levi (1981LEVI, Primo. La Ricerca delle radici. Torino: Einaudi, 1981., p. 136) preteriu o terror da caça ou a loucura de Ahab para realçar o éthos de um homem “em tamanho natural”, ou seja, Starbuck, o primeiro imediato. A escolha não parece ser despropositada: justo e piedoso, esse marinheiro é um quaker temente a Deus que não adota medidas extremas. É corajoso, prudente, criterioso e parece atender à phrónesis aristotélica, ou seja, a um princípio ético pautado na conduta moderada, mediana. Apesar de seu autocontrole perante a dureza da vida, ele acaba cedendo à soberba do capitão do Pequod, que se deixa mover pela vingança contra a baleia branca que arrancou sua perna. O fragmento retomado por Levi menciona a forma como o primeiro imediato teve sua alma suplantada graças aos desvarios de Ahab. Melville, por meio de Ishmael, relata a dificuldade de se testemunhar a ruína de um homem de valor. A solidez moral de Starbuck teria causado sua queda, pois foi incapaz de confrontar a hierarquia, encabeçada por um homem sem princípios.

Ishmael, por sua vez, seguiu o caminho da pesca à baleia por outros motivos:

Principal dentre esses motivos foi a extraordinária ideia da grande baleia em si mesma. Um monstro tão portentoso e misterioso despertava toda a minha curiosidade. Depois, os mares remotos e selvagens onde se movia a sua massa insular, os perigos indescritíveis e inomináveis da baleia; isso tudo, com todas as maravilhas dos milhares de paisagens e sons da Patagônia, ajudou a influenciar meu desejo. Para outros homens, talvez, coisas assim não servissem de estímulo; mas, para mim, sou atormentado por um desejo permanente de coisas distantes. (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 35)

Antes de embarcar no Pequod, o narrador vai à missa e acompanha o sermão de um padre que comentava as aventuras do profeta Jonas e o episódio no qual ele foi engolido por uma baleia. O discurso termina com uma consolação: “Mas, oh! Companheiros! A estibordo de todo infortúnio é certo que existe uma alegria; e o ápice dessa alegria é tanto mais alto quanto mais profundo é o infortúnio” (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 74). Tal formulação corresponde à tópica já detectada em Homero, Aristóteles, Virgílio, Dante Alighieri e Leopardi, ou seja, à ideia de que livrar-se das desventuras causa alegria. A tomar pelos paralelos, logo se presume que sua narrativa proporcionaria tanto prazer quanto maior fosse o perigo representado pela baleia, animal indescritível que proporcionava uma experiência sublime:

Mas no enorme Cachalote essa elevada e pujante dignidade divina, inerente à fronte, é tão imensamente ampliada que, contemplando-a de frente, você sentirá a Divindade e os poderes do horror com mais força do que junto a qualquer outro ser vivo da natureza. Pois você não encontrará nenhum ponto preciso; nenhuma característica diferente é revelada; nem nariz, nem olhos, nem orelhas, nem boca; nem rosto; ele não tem nada que seja propriamente um rosto. (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 356)

A indefinição reforça a impossibilidade de representá-la, sendo o grande Leviatã “a única criatura do mundo que deverá permanecer para sempre inexprimível” (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 276). O Leviatã, mas também a ruína de um homem de valor como Starbuck. Levi teria escolhido a passagem sobre o primeiro imediato porque também testemunhou ruínas correlatas no interior do Lager? Os prisioneiros que foram “quebrados” a ponto de perderem toda a sua humanidade, como os “muçulmanos”, não teriam levado o químico a testemunhar o inexprimível? Tal memória não o assombrou por décadas, como relatou em um poema de 1984?

Para trás, fora daqui, gente perdida, Adiante. Não suplantei ninguém, Ninguém morreu em meu lugar. Ninguém. Retornem ao seu nevoeiro. Não tenho culpa se vivo e respiro E como e bebo e durmo e visto roupas. (LEVI, 2019LEVI, Primo. Mil sóis: poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019., p. 111)

Primo Levi e a urgência da narrativa

Primo Levi não poupou esforços no sentido de evitar narrativas simplistas na descrição da “máquina de morte” nazista, compromisso que assumiu com o leitor e a posteridade. O autor afirmou que a recepção geralmente parte de referências literárias e cinematográficas para questionar a ausência de fuga de Auschwitz, ou seja, ela costuma figurar um prisioneiro típico, “íntegro, em plena posse de seu vigor físico e moral, que, com a força nascida do desespero e com o engenho estimulado pela necessidade, arremete contra as barreiras, saltando-as ou transgredindo-as” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 124). Nos campos, os prisioneiros encontravam-se extenuados, desprezados, subalimentados, malcuidados, desmoralizados, enfraquecidos. Segundo Levi, há uma discrepância

que se amplia de ano para ano, entre as coisas como eram ‘lá embaixo’ e as coisas como são representadas pela imaginação corrente, alimentada por livros, filmes e mitos aproximativos. Essa imaginação, fatalmente, desliza para a simplificação e o estereótipo. (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 128)

No último livro que escreveu, Levi afirmou existir um “quadro estereotipado”,

consagrado pela literatura e pela poesia, registrado pelo cinema: ao fim da tempestade, quando sobrevém a “quietude após a tormenta”, todo coração se alegra. “Sair da aflição nos traz prazer”. Após a doença retorna a saúde; para romper as cadeias chegam os nossos, os libertadores, com as bandeiras desfraldadas; o soldado volta a reencontrar a família e a paz. (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 55)

A expressão “quietude após a tormenta” foi grafada entre aspas porque remete ao poema La Quiete dopo la tempesta, de Giacomo Leopardi (1974LEOPARDI, Giacomo. Canti. Introduzione e note di Franco Brioschi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1974., p. 109-111). Levi mencionou o verso “Sair da aflição nos traz prazer” para acusar a insuficiência da tópica, assegurando que a libertação de prisioneiros dos campos de concentração “não foi nem alegre nem despreocupada: soava em geral num contexto trágico de destruição, massacre e sofrimento” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 55). Livrar-se do tormento, segundo o autor, “foi um prazer somente para uns poucos afortunados, ou somente por poucos instantes, ou para almas simples; quase sempre coincidiu com uma fase de angústia” (LEVI, 2016b, p. 55). A dor persistiria, seja por meio da vergonha, seja pela incapacidade de relatar o horror em sua plenitude, uma vez que os sobreviventes não “tocaram o fundo” e “quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo” (LEVI, 2016b, p. 65).

Em outro capítulo, Levi (2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 121) reproduziu o provérbio ídiche “é bom narrar as desgraças passadas” e mencionou dois episódios, extraídos da Divina Comédia e da Odisseia, para reforçar seu argumento:

Francesca diz a Dante não haver nenhuma dor maior do que lembrar na miséria o tempo feliz, mas é verdade também o inverso, como sabe qualquer sobrevivente: é bom sentar-se no aconchego, diante do alimento e do vinho, e recordar para si e os outros o cansaço, o frio e a fome: é assim que Ulisses, na corte do rei dos feácios, logo cede à urgência de narrar diante da mesa posta. (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os Afogados e os sobreviventes. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b., p. 121)

Como é possível notar, Levi se apropria do lugar-comum para expressar a urgência do narrar. A princípio, o autor afirma que poucos obtiveram prazer com o fim do cativeiro, pois o cessar do exílio não suprimiu os tormentos. Em seguida, ele assegura ser aprazível sentar-se e narrar o cansaço, o frio e a fome. Haveria desajuste entre os argumentos?

O primeiro deles (manutenção da dor mesmo após o fim do cárcere) foi proposto num capítulo sobre a vergonha e os incômodos provenientes do ato de sobreviver aos campos de concentração. Já o segundo (prazer decorrente da narrativa dos infortúnios) é referido numa reflexão sobre estereótipos, que atenta para os riscos da simplificação e de uma estilização demasiada do relato. Se é preciso reconhecer certa ambivalência, ela reside no intervalo entre a vergonha/angústia que acompanha os sobreviventes e a necessidade de fazer dessa vergonha/angústia um objeto de reflexão a ser comunicado. Sendo assim, quando a testemunha afirma não dispor de palavras capazes de precisar a experiência horrenda e, em seguida, procede à narração, ela intensifica/amplifica o terror experimentado e, simultaneamente, adverte sobre o hiato que distancia as palavras do narrador e o repertório/entendimento do leitor. Primo Levi associou à tópica algo que ela não poderia incorporar na Antiguidade: a psicologia. O contraste entre o drama vivido e o conforto do lar é indicativo do “veneno” de Auschwitz, uma vez que os antídotos disponíveis no mundo ordinário não suprimem, em definitivo, os efeitos da moléstia.

Na condição de lugar-comum, a “quietude após a tormenta” transitou por diferentes gêneros: epopeia, poema sacro, romance, literatura de testemunho. Para compreender melhor o argumento e o testemunho de Primo Levi, convém reconhecer dois de seus desdobramentos: as dificuldades de narrar e o caráter dramático da experiência.

A tópica do irrepresentável

Numerosas cenas retratadas em Moby Dick representam elementos sublimes. Em várias ocasiões, Herman Melville mencionou episódios supostamente inenarráveis: “os mares remotos e selvagens onde se movia a sua massa insular, os perigos indescritíveis e inomináveis da baleia” (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 35); “havia nele uma espécie de sublimidade indefinida, incompleta, inimaginável, que congelava sua atenção, até que involuntariamente você jurasse a si mesmo desvendar o significado daquela pintura extraordinária” (MELVILLE, 2019, p. 40); “Voltei-me para admirar o mar magnânimo, que não permite registros” (MELVILLE, 2019, p. 85); “As coisas mais maravilhosas são sempre as indizíveis” (MELVILLE, 2019, p. 125); “havia (...) um horror impreciso e inominável a seu respeito que, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio à expressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em forma compreensível” (MELVILLE, 2019, p. 202); “o grande Leviatã é a única criatura do mundo que deverá permanecer para sempre inexprimível” (MELVILLE, 2019LEVI, Primo. Mil sóis: poemas escolhidos. São Paulo: Todavia, 2019., p. 276); “O horror me acomete diante da existência antemosaica e sem origens dos terrores inomináveis da baleia, que, anteriores ao tempo, ainda existirão depois do fim das eras humanas”8 8 Gianluca Cinelli (2020, p. 345-360) afirma que Primo Levi e o narrador/protagonista de Moby Dick, Ishmael, assumiram o papel de sobreviventes e testemunhas. Além disso, o autor sugere que o ponto de contato mais profundo entre eles não é o interesse que nutrem pelo saber ou pelos objetos sobre os quais falam (o Lager e a baleia branca), mas pelo homem. (MELVILLE, 2019, p. 461).

Segundo Barbara Glenn (1976GLENN, Barbara. Melville and the Sublime in Moby-Dick. American Literature, v. 48, n. 2, p. 165-182, 1976., p. 165-182), Melville faz uso de quase todas as causas do sublime enumeradas por Edmund Burke, a começar pelo mar, representado como superfície áspera, um infinito aparente em meio à sucessão de ondas, com vasta extensão e profundidade. Em Moby Dick, as representações do mar estão associadas à solidão e contrastam com a terra e as afeições nutridas em sociedade. Também as baleias se ajustam à categoria, pois vivem solitárias em ambiente inóspito, obscuro, profundo. À suposta impossibilidade descritiva, vários capítulos digressivos buscam aproximar o Leviatã do leitor.

A tópica do irrepresentável, abundante também na literatura de testemunho,9 9 Sobre sua presença nos testemunhos dos campos de concentração, ver De Angelis, 2009, p. 73-108. indica que um autor é incapaz de reproduzir o vivido por meio de uma narrativa, pois precisa traduzir sentimentos dolorosos com técnicas convencionais de escrita. Ao representar o horror e/ou o sublime, a recepção constitui novo obstáculo, já que grande parte dos leitores não vivenciou situações similares, ou seja, eles só poderiam valer-se da imaginação, abstraindo as informações e buscando equivalências em sua experiência particular. Primo Levi, ciente dessa carência, recorreu a comparações e analogias capazes de produzir um entendimento aproximado, mas receava o estereótipo e a simplificação. Há, portanto, uma tensão entre o narrar e o silenciar, entre a verdade e a verossimilhança, entre representação e recepção.

Como alegou em Os Afogados e os sobreviventes, os intelectuais sofreram nos campos porque desperdiçavam suas energias buscando uma razão para o cárcere. Indivíduos que seguiam alguma crença, entretanto, conseguiam decifrar a dor e, com isso, evitar o desespero absoluto (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O Ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. São Paulo: Unesp, 2016a., p. 119). O terror, no segundo caso, é concebido como parte de um universo mais amplo, com sentido e possibilidade de redenção metafísica. Levi, por outro lado, olhava ao redor e vislumbrava algo fugidio: “O mundo no qual se precipitava era decerto terrível, mas também indecifrável: não era conforme a nenhum modelo” (LEVI, 2016a, p. 28).

O caráter indecifrável e a ausência de modelo se fazem presentes, sobretudo, na descrição dos “muçulmanos” do Lager, vítimas de um estado de solidão insuperável:

Quanto aos “muçulmanos”, porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-lhes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em sua casa. Para que travar amizade com eles? Não têm, no Campo, conhecidos poderosos, não têm rações extras para comer, não trabalham em Kommandos favoráveis, desconhecem qualquer maneira secreta para obter vantagem. E, por fim, sabe-se que eles estão aqui de passagem; que, dentro de umas semanas, deles sobrará apenas um punhado de cinzas em outro Campo próximo e, no Registro, um número de matrícula riscado. Embora englobados e arrastados sem descanso pela multidão inumerável de seus semelhantes, eles sofrem e se arrastam numa opaca solidão Íntima, e nessa solidão morrem ou desaparecem sem deixar lembrança alguma na memória de ninguém. (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 130)

A construção não deixa de remeter à novela de Joseph Conrad, Heart of Darkness, publicada na Blackwood’s Magazine em 1899 e editada como livro em 1902. Os estudos a seu respeito, normalmente, assinalam dois propósitos: retratar a violência engendrada pelo colonialismo europeu na África e manifestar as inquietações de indivíduos confrontados com situações extremas e difíceis. Conrad, segundo Luiz Felipe de Alencastro (2008ALENCASTRO, Luiz Felipe. Posfácio: Persistência de trevas. In: CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 153-179., p. 163), “introduz a narração reflexiva de Marlow para levar a racionalização da violência colonial até suas últimas consequências”. O autor ainda adverte que, antes “do genocídio do século XX, antes da Shoah, a escravidão colonial apresentava-se como a situação mais extrema da violência social” (ALENCASTRO, 2008ALENCASTRO, Luiz Felipe. Posfácio: Persistência de trevas. In: CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 153-179., p. 167).

O protagonista da trama, Marlow, é contratado como capitão de um vapor que parte rumo ao Congo. Ele afirma que “não havia local mais remoto alcançado por navegação” (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O Coração das trevas. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 7) e, em seguida, admite as dificuldades enfrentadas durante o percurso: “A minha ociosidade como passageiro, meu isolamento em meio a todos esses homens com os quais não tinha nada em comum, o mar lânguido e oleoso, a uniformidade sombria da costa pareciam afastar-me da verdade das coisas, preso a uma melancólica e insensível ilusão” (CONRAD, 2011, p. 16). A sensação foi agravada quando ele desembarcou no que parecia o “círculo sombrio de algum inferno”, repleto de vultos negros que “agachavam-se, deitavam-se, sentavam-se entre as árvores, encostados nos troncos, grudados no chão, meio ocultos na penumbra, com todas as atitudes de dor, abandono e desespero” (CONRAD, 2011, p. 21). Marlow não deixa de reconhecer que os escravos, abandonados à própria sorte, não “eram inimigos, não eram criminosos, e agora era como se fossem seres de outro mundo - não passavam de escuras sombras, doentes e famintas, amontoadas confusamente na penumbra esverdeada” (CONRAD, 2011, p. 21). Uma grande desmoralização imperava no lugar e a descrição do ambiente sombrio remetia às práticas desumanas testemunhadas. Ciente da imagem impactante que produzira, o narrador antecipou a incredulidade dos ouvintes:

Podem ver alguma coisa? Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho - uma tentativa vã, porque nenhum relato é capaz de transmitir a sensação onírica, onde aflora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento, num frêmito de emoção e revolta, essa impressão de ser capturado pelo inacreditável em que consiste a própria essência dos sonhos. (...) Não, é impossível; é completamente impossível transmitir as sensações de vida de qualquer época determinada de nossa existência - aquilo que a torna verdadeira, seu sentido - sua essência sutil e penetrante. É impossível. Vivemos, como sonhamos - sós...” (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O Coração das trevas. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 37).

Ainda assim, embora admitisse que não passavam de “viajantes numa terra pré-histórica que possuía o aspecto de um planeta desconhecido” (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O Coração das trevas. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 48), Marlow buscava transmitir seu sentimento por meio de analogias: “deslizávamos por ali como fantasmas, perplexos e intimamente horrorizados, como homens normais estariam diante de uma explosão de entusiasmo num hospício” (CONRAD, 2011, p. 49).

Vários autores demonstraram afinidades entre as obras de Primo Levi e Joseph Conrad. Debra Baldwin (2005LEVI, Primo. 71 contos de Primo Levi. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., p. 185-204), por exemplo, estudou as “políticas de desumanização” em Heart of Darkness (2011) e em Se questo è un uomo, avaliando de que maneira ambos escreveram sobre atrocidades e suas implicações, e evocaram a imagem do “vazio” para transmitir a destruição da humanidade que vitimou tanto os muçulmanos (Lager) quanto os africanos (vítimas do movimento imperialista). O vazio testemunhado no olhar dessas vítimas da opressão teria fundamentado as reflexões que Conrad e Levi propuseram sobre a condição humana. O isolamento, como decorrência desse vazio, teria afetado também os narradores (Marlow e Levi), mas sem subjugá-los.

Ambos os escritores, cada qual de uma maneira, efetuaram a catábase, ou seja, “desceram” a um mundo que buscava negar a humanidade dos homens. De acordo com Lillian Feder (1955FEDER, Lillian. Marlow’s Descent Into Hell. Nineteenth-Century Fiction, v. 9, n. 4, p. 280-292, 1955., p. 280-292), Conrad efetua a descida ao mundo dos mortos ao investigar as profundezas de sua consciência e emprega, também, descrições realistas, com detalhes provenientes de sua experiência no Congo. O inferno residiria no terror, na violência. Conrad teria retomado o simbolismo do Hades para inventar uma região na qual não apenas o artista, mas todo homem deveria descer para entender a si mesmo. Levi, por sua vez, recorreu à Divina Comédia, outro modelo de catábase, para representar os campos de concentração e, de maneira mais geral, a hostilidade com que os homens trataram uns aos outros. Não por acaso, precisou repensar seu lugar no mundo quanto regressou do Lager. Como Conrad, Primo Levi enfrentou intempéries antes de se tornar escritor. Ele também encontrou no autor de Heart of Darkness um indivíduo que construiu a si mesmo ao nadar contra a corrente (LEVI, 1981LEVI, Primo. La Ricerca delle radici. Torino: Einaudi, 1981., p. 88). Não por acaso, metá­foras náuticas aparecem no título do último livro do químico de Turim: I Sommersi e i salvati. O sobrevivente, nesse caso, precisa repensar o sentido da existência em prol dos afogados.

Depois da tempestade, o relato

Algumas das fontes retomadas ao longo deste artigo (Homero, Virgílio, Dante Alighieri, Melville, Conrad) tratam de experiências marítimas, muitas delas com desfecho trágico. Ainda assim, é possível perceber um deslocamento, evidenciado não somente com o aprimoramento das técnicas náuticas ou com o avançar das naus rumo aos oceanos, superando a navegação costeira, mas também em aspectos político-econômicos, que passam a envolver a colonização, a pesca à baleia e o imperialismo. Essa mudança decorre da substituição de forças centrípetas, ou seja, de ações baseadas na contenção, na moderação, na prudência, pelas forças centrífugas, exacerbadas pela expansão marítima, pelo modelo econômico capitalista e pelo ímpeto colonizador/imperialista.

Tal aspecto fica muito evidente em Melville. De acordo com Bruno Gambarotto (2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019., p. 627), o

convés dos navios deixa a periferia do romance para ocupar seu centro à medida que o mar ganha dimensão política e econômica como o espaço indispensável à circulação de mercadorias, à integração entre os centros industriais e consumidores e os centros produtores de matérias-primas - espaço de trânsito e de disputa, portanto, território que se esquadrinha segundo a força dos interesses nacionais.

Melville, por meio da literatura, tematiza demandas do mundo moderno como as exigências do progresso, a fé na liberdade, no comércio e no avanço técnico e científico. Moby Dick situa-se “no contexto de uma sociedade para a qual a conversão da natureza em valor se autonomiza em relação às necessidades humanas” (GAMBAROTTO, 2019GAMBAROTTO, Bruno. Modernidade e tragédia em Moby Dick: uma leitura. In: MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. São Paulo: 34, 2019. p. 623-644., p. 635). À época, o Oceano Pacífico era “um vasto campo habitado por depósitos de óleo providos de sangue quente e conhecidos pelo nome de cachalotes” (PHILBRICK, 2000PHILBRICK, Nathaniel. No Coração do mar: a história real que inspirou o Moby Dick de Melville. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 11). Por volta de 1760, a população local desses mamíferos tinha sido praticamente dizimada, o que exigiu novos esforços no sentido de buscá-los em locais mais distantes. O trabalho foi facilitado com a instalação de fornos de tijolo nos navios, que permitiam a produção de óleo em alto-mar (PHILBRICK, 2000, p. 27). A ascensão da pesca aumentou o tempo de estadia a bordo dos baleeiros, que levavam de dois a três anos para baixar âncoras.

Se, no tempo de Dante Alighieri, ultrapassar as colunas de Hércules era considerado um gesto soberbo e imprudente, no século XIX cartografar os oceanos converteu-se em política de Estado. Homens poderosos residentes nas ilhas e na costa nordeste dos Estados Unidos insistiam que o governo deveria investir em campanhas para renovar as cartas náuticas e evitar acidentes envolvendo baixios e outros empecilhos à navegação (JUNQUEIRA, 2015JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao mar: U. S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015., p. 15). A U. S. Exploring Expedition, primeiro grande empreendimento científico norte-­americano além-mar, capitaneado pelo cartógrafo Charles Wilkes, buscou mapear o Pacífico e a costa noroeste da América do Norte. Aprovada pelo Congresso em 1836, a esquadra partiu do estaleiro da Marinha em Norfolk em 1838. Depois de passar pela costa da América do Sul e atracar no Rio de Janeiro, ela atravessou o Cabo Horn, mapeou parte da Antártida e, em seguida, subiu pela costa Oeste do continente e da América do Norte para, logo mais, alcançar a Austrália e as ilhas do Pacífico. A expedição demonstrou que a Antártida era um continente separado dos demais, o que tornou imprescindível a revisão dos mapas disponíveis (JUNQUEIRA, 2008, p. 120-138).

Homero, Aristóteles, Virgílio e Dante encontram-se amparados no antigo modelo em que a virtude era um meio de suplantar a hýbris, os vícios, os excessos, os pecados. Em seguida, com Melville e Conrad, os fundamentos da ação já se baseiam na pesca à baleia e no imperialismo, que exigem a ruptura de limites, o avançar para além do reino ou pátria com finalidades de caráter econômico e/ou político, algo que já se encontrava em vigor durante a expansão marítima. O sublime, componente que passa a integrar as letras a partir do século XVIII, surge como forma de representar essa avidez e a superação de limites e fronteiras, pois realça a transcendência proveniente da natureza, buscada em mares nunca dantes navegados e em terras supostamente hostis.

Também é possível notar diferenças consideráveis no que diz respeito à própria concepção de arte, a princípio pautada em gêneros distintos, cada um com seus protocolos e prescrições. Aristóteles, por exemplo, define epopeia recorrendo ao modelo homérico, que, por sua vez, foi imitado por Virgílio, guia de Dante Alighieri na Divina Comédia. O lugar-comum, portanto, transita entre diferentes gêneros porque é um expediente anônimo e coletivo. Com Melville e Conrad, já nos encontramos no registro romântico, ou seja, vigoram os imperativos do gosto, da estética, da psicologia, da literatura. Seus critérios são outros, muitas vezes atrelados aos esquemas do realismo histórico, artifício que, segundo Ian Watt (2010WATT, Ian. A Ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 9-36), foi cunhado no século XVIII. Por essa razão, é comum que suas obras sejam lidas não necessariamente como relatos de aventura, mas como imersão do autor em seu interior ou como manifestação de um exercício de autocompreensão, de autoanálise. Se a tópica continua em vigor, sua retomada já não se justifica, necessariamente, pela mimesis aristotélica, pelos critérios retóricos emulativos e prescritivos que vigoraram nas artes pré-românticas.

Entre a postura soberba do Ulisses dantesco (que confrontou a ética da mediania ao avançar pelo oceano Atlântico) e o genocídio patrocinado pelo nazismo, há uma escalada sistemática das forças centrífugas, que pode ser claramente vislumbrada em Moby Dick e em Coração das Trevas. Após cartografar mares e percorrer continentes e ilhas, procurou-se confrontar os limites da ação humana. O conceito de sublime, caracterizado pelo excesso, por um ofuscamento que torna os conceitos convencionais inoperantes, aproxima-se do trauma, que também se define por algo que transborda, que ultrapassa limites e que (re)constitui o informe. A “retórica analógica do como”, lembra Seligmann-Silva (2000, p. 93), “não funciona para a descrição da Shoah porque o seu registro, como todo registro da cena traumática, é o do absolutamente literal”. A “realidade em excesso” que se experimenta ali perfura “o próprio campo (geográfico, simbólico e semântico) da morte: esta, devido à sua onipresença, deixa de ocupar o seu papel fundamental na organização simbólica; ela não orienta mais a distinção entre o aqui e o além”. O trânsito da tópica “depois da tempestade, a calmaria” permite perscrutar uma intensificação do horror, pois o artifício comparece em diferentes gêneros letrados para amplificar os males narrados. A diversidade dos argumentos, de ordem retórica, metafísica, estética e/ou ética, ajuda a conceber a historicidade do topos e, portanto, os seus desdobramentos e sentidos.

Se Primo Levi não encontrou prazer na narrativa sobre o Lager, seguramente fez dela um propósito. Conforme relatou, ele nunca pôde se livrar inteiramente do mal; ainda assim, empenhou-se para representá-lo, atento não ao deleite, mas à utilidade do testemunho. Depois da tempestade, nasceu em Levi a necessidade ética de narrar, mas o autor narrou suas experiências em um barco à deriva, como fica evidente no pesadelo relatado no desfecho de A trégua:

É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, “Wstavach”. (LEVI, 2010LEVI, Primo. A Trégua. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010., p. 212-213)

O lugar horrendo/tempestuoso sobrevive por meio da angústia da testemunha e reveste/suplanta a calmaria, que não passa de engano, engodo ou férias, sempre abreviadas pela intempérie que ressurge. Outro sonho, recorrente no período do cárcere, também prevê a dissolução do ambiente familiar:

Aqui está a minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte do que eu. Conto também a história da nossa fome, e do controle de piolhos, e do kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me levasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio”. (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 85)

Os dois pesadelos se amparam na solidão, nas angústias e culpas que os sobreviventes carrega(va)m consigo. Nesse sentido, o testemunho funciona como um diário de bordo escrito sob a torrente e, ao mesmo tempo, como uma carta de marear que cartografa os obstáculos capazes de favorecer o naufrágio. Sendo assim, a despeito do clima hostil, a calmaria persevera no horizonte...

Referências bibliográficas

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  • WATT, Ian. A Ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • 1
    Trad. livre do autor: “uomo da nulla”.
  • 2
    Trad. livre do autor: “torre di carne”.
  • 3
    Trad. livre do autor: “forsan et haec olim meminisse iuvabit”.
  • 4
    Para uma análise mais detida do poema, consulta-se: MENGALDO, 2012MENGALDO, Pier Vincenzo. Leopardi antiromantico, e altri saggi sui “Canti”. Bologna: Il Mulino, 2012..
  • 5
    Trad. livre do autor: “locus amoenus”.
  • 6
    Trad. livre do autor: “locus horrendus”.
  • 7
    Sobre a ligação entre Leopardi e Levi, ver PIPERNO (2020PIPERNO, Martina. Primo Levi e Giacomo Leopardi. L’uomo, la macchina, l’artificio. In: CINELLI, Gianluca; GORDON, Robert (eds.). Innesti. Primo Levi e i libri altrui. Oxford: Peter Lang, 2020. p. 179-195., p. 179-195).
  • 8
    Gianluca Cinelli (2020CINELLI, Gianluca. Primo Levi e Herman Melville. In: CINELLI, Gianluca; GORDON, Robert (edd.). Innesti. Primo Levi e i libri altrui. Oxford: Peter Lang, 2020. p. 345-360., p. 345-360) afirma que Primo Levi e o narrador/protagonista de Moby Dick, Ishmael, assumiram o papel de sobreviventes e testemunhas. Além disso, o autor sugere que o ponto de contato mais profundo entre eles não é o interesse que nutrem pelo saber ou pelos objetos sobre os quais falam (o Lager e a baleia branca), mas pelo homem.
  • 9
    Sobre sua presença nos testemunhos dos campos de concentração, ver De Angelis, 2009, p. 73-108.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Revisado
    28 Jun 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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