Acessibilidade / Reportar erro

Sobre a efemeridade das efemérides

On the Ephemeral Nature of Ephemerides

Na noite de 17 de julho de 2022, o Fantástico apresentou uma reportagem de quase cinco minutos sobre as articulações para que o coração de Dom Pedro I viaje ao Brasil com o fim de ser exibido publicamente durante as comemorações do bicentenário da Independência. Em resposta a um pedido do governo brasileiro, o órgão embalsamado deixará temporariamente o rígido (e antiquado) sistema de segurança em que é mantido em uma instituição religiosa no Porto - por vontade expressa do imperador precocemente falecido, certamente motivada pela centralidade que a cidade teve em algumas das lutas políticas que fizeram sua glória pública - e cruzará o Atlântico, onde seus destinos ainda não estão plenamente definidos. Os dois historiadores entrevistados pelo longevo programa dominical da Rede Globo, a brasileira Isabel Lustosa e o português Francisco Ribeiro da Silva, expressaram visões algo divergentes sobre os significados da viagem ritual que se anuncia. Para ela, não seria apropriado que o coração saísse “fazendo turismo mundo afora”, até mesmo por se tratar de desrespeito ao último desejo de um morto. Já ele registrou incertezas sobre os significados que o povo brasileiro encontrará no contato com o artefato, mas reafirmou sua importância como relíquia.1 1 PORTUGAL aceita emprestar coração de D. Pedro I para comemoração dos 200 anos da independência brasileira. Fantástico, 17 jul. 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/07/17/portugal-aceita-emprestar-coracao-de-d-pedro-i-para-comemoracao- dos-200-anos-da-independencia-brasileira.ghtml>. Acesso em: 21 jul. 2022.

Os (des)caminhos do coração de Dom Pedro I aludem à complexidade das efemérides, a começar por seus vínculos com celebrações anteriores. Como a própria reportagem do Fantástico ressaltou, o pedido feito em 2022 guarda certa relação com as comemorações do sesquicentenário, que se desenrolaram em plena ditadura militar. Em 1972, a ossada de Dom Pedro I foi exposta em várias cidades brasileiras e finalmente depositada em cripta situada no Parque da Independência, em São Paulo. Uma “ritualização da história” que, além de exprimir uma “visão do espaço-tempo nacional como um todo indiviso”, procurou sugerir, com a partilha transatlântica dos locais de repouso dos restos mortais de Dom Pedro I do Brasil e Dom Pedro IV de Portugal, a “fraternidade” entre os dois países (ABREU, 2021ABREU, Marcelo Santos de. Comemorações, imaginação histórica e a linguagem nacional. In: CALDEIRA, Ana Paula Sampaio; MARCELINO, Douglas Attila (Org.). Lugares e práticas historiográficas: Escritas, museus, imagens e comemorações. Curitiba: CRV, 2021, p. 251-274., p. 268).

Como lembrou o historiador argentino Fernando Devoto (2014DEVOTO, Fernando J.. Conmemoraciones poliédricas: acerca del primer Centenario en la Argentina. In: PAGANO, Nora; RODRIGUEZ, Martha (Comp.). Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado: La elaboración social de la experiencia histórica. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014, p. 17-35., p. 18), as comemorações são eventos históricos peculiares, sobretudo porque não são inesperadas, mas sim deliberadamente produzidas. Marcelo Abreu (2021ABREU, Marcelo Santos de. Comemorações, imaginação histórica e a linguagem nacional. In: CALDEIRA, Ana Paula Sampaio; MARCELINO, Douglas Attila (Org.). Lugares e práticas historiográficas: Escritas, museus, imagens e comemorações. Curitiba: CRV, 2021, p. 251-274., p. 261, grifos no original) ressaltou, adicionalmente, sua natureza de performance, o que faz delas um meio de memória de “caráter efêmero, passageiro”, que “não produz uma inscrição indelével”. Ao mesmo tempo, e ainda segundo Abreu (em diálogo com as teorizações de Diana Taylor e Aleida Assmann), há trânsitos intensos e mutuamente constitutivos entre modos distintos de produção da memória: se o “arquivo só se torna relevante quando animado, (...) performado”, o “repertório faz uso dos materiais da memória arquival”, de formas que podem ser reverentes ou insubmissas.

Inerentemente efêmeras, inevitavelmente disputadas, as efemérides, mesmo que se rejeite o seu caráter monumental, convidam a balanços, reavaliações, disputas.

A Independência, ao menos de maneira explícita, foi pouco tematizada nas páginas de Varia Historia. Entre os artigos, a ruptura política com Portugal se fez notar de formas indiretas, como no trabalho de Cláudia Chaves (2002)CHAVES, Cláudia Maria das Graças. A construção do Brasil: Projetos de integração da América Portuguesa. Varia Historia, v. 18, n. 27, p. 77-95, jul. 2002. sobre os projetos de integração da América portuguesa entre fins do século XVIII e inícios do XIX, ou na revisão proposta por Bistra Stefanova Apostolova (2017)APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Os debates sobre a fundação dos cursos jurídicos no Brasil (1823-1827): Uma reavaliação. Varia Historia, v. 33, n. 62, p. 419-458, maio/ago. 2017. a respeito da criação dos cursos jurídicos no Brasil em 1827, resultante de debates que remontam à Assembleia Constituinte de 1823. Já entre as resenhas, a Independência se insinua na análise de Irene Nogueira de Rezende (2010)REZENDE, Irene Nogueira de. Resenha de A sentinela da liberdade e outros escritos (1821-1835), de Cipriano Barata. Varia Historia, v. 26, n. 43, p. 323-326, jan./jun. 2010. sobre a seleção de escritos de Cipriano Barata compilada por Marco Morel, nas reflexões de Tarcísio de Souza Gaspar (2015)GASPAR, Tarcísio de Souza. Resenha de Guerra literária: Panfletos da Independência (1820-1823), organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile. Varia Historia, v. 31, n. 57, p. 905-908, set./dez. 2015. sobre a coletânea de panfletos que circularam entre 1820 e 1823 organizada por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile e, em perspectiva mais abrangente, na leitura de Temístocles Cezar (2015)CEZAR, Temístocles. Resenha de Os vultos da nação, de Armelle Enders. Varia Historia, v. 31, n. 55, p. 295-298, jan./abr. 2015. sobre o estudo de Armelle Enders acerca da construção de “vultos da nação”, que coloca em perspectiva figuras como Dom Pedro I e José Bonifácio.2 2 Agradeço às estagiárias Gabrielle Pacheco Noacco e Nathálya Aparecida Ferreira pelo auxílio no levantamento desses textos. Planilhas temáticas que procuram facilitar o acesso ao conteúdo da revista podem ser consultadas em: <http://bit.ly/planilhastematicasvariahistoria>. Acesso em: 21 jul. 2022.

Ainda que não tenha sido pensada como uma intervenção direta nos debates sobre o bicentenário, esta edição de Varia Historia não deixa de dialogar com a efeméride. Isso se dá, em especial, pela centralidade que o império português assume em muitos dos artigos, que adotam pontos de vista pouco usuais em nossa historiografia. Juliana Torres Rodrigues Pereira destacou a complexidade da conquista ultramarina e de suas implicações religiosas a partir de controvérsias em que o primeiro arcebispo de Goa, Gaspar de Leão, envolveu-se nos anos 1560. Já Pablo Ibáñez-Bonillo analisou relações de gênero interétnicas, reconstituindo uma série de trajetórias de soldados instalados na região do Rio Negro em meados do século XVIII. Ayalla Oliveira Silva e Ivete Machado de Miranda Pereira voltaram-se aos anos iniciais do século XIX, discutindo, respectivamente, planos de dinamização econômica desenvolvidos na comarca de Ilhéus, em que se observam questionáveis trânsitos entre interesses públicos e privados, e o exercício da justiça durante o breve (e escassamente estudado) período de ocupação portuguesa na Guiana Francesa.

Contamos, ainda, com dois estudos que dialogam, já no século XX, com os persistentes desafios ao exercício da cidadania no Brasil: enquanto Aldrin Armstrong Castellucci propõe uma análise abrangente da fundação e dos primeiros passos do Partido Socialista do Brasil, fundamentada em vasta análise da imprensa dos anos 1920, Samuel Silva Rodrigues de Oliveira defende a necessidade de aprofundar a reflexão sobre os aspectos raciais nos estudos sobre os movimentos de favelas, enfatizando o jornal O Barraco, que circulou em Belo Horizonte no início dos anos 1960. Lucas André Berno Kölln, por sua vez, analisa os laços entre os escritos de Jack London e a consolidação do capitalismo monopolista nos Estados Unidos do início do novecentos.

Na segunda parte da entrevista organizada por André Furtado e Anna Coelho, Roger Chartier revisita o conceito de função-autor proposto por Michel Foucault em torno de questões como publicações institucionais, projetos editoriais e os cambiantes estatutos da autoria. Duas resenhas completam este número. Antonio Carlos Jucá de Sampaio reflete sobre os caminhos da construção nacional em diálogo com Brasil em projetos, de Jurandir Malerba, e Mauro Franco Neto discute as relações contemporâneas com o tempo a partir de Lembrança do presente, de Mateus Pereira.

Uma parte central do ensaio de Marcelo Abreu (2021ABREU, Marcelo Santos de. Comemorações, imaginação histórica e a linguagem nacional. In: CALDEIRA, Ana Paula Sampaio; MARCELINO, Douglas Attila (Org.). Lugares e práticas historiográficas: Escritas, museus, imagens e comemorações. Curitiba: CRV, 2021, p. 251-274., p. 251) sobre comemorações é um tão instigante quanto inquietante exercício de “ficção histórica prospectiva”. Em uma narrativa em primeira pessoa de registro próximo ao da crônica, Abreu (2021ABREU, Marcelo Santos de. Comemorações, imaginação histórica e a linguagem nacional. In: CALDEIRA, Ana Paula Sampaio; MARCELINO, Douglas Attila (Org.). Lugares e práticas historiográficas: Escritas, museus, imagens e comemorações. Curitiba: CRV, 2021, p. 251-274., p. 253-258) se propõe a imaginar como será (ou poderia ser) o 7 de setembro de 2022 em São Paulo. Não o faz de forma completamente livre, mas - e aqui reside a provocação teórica crucial do texto - se valendo do conhecimento de comemorações anteriores, notadamente do centenário de 1922 e do sesquicentenário de 1972. Mais aproximável da distopia que da glória cívica, a crônica de Abreu, como ele próprio sublinha, tornou-se parcialmente obsoleta entre sua escrita original, em 2019, e a publicação em livro, em 2021. Mesmo uma imaginação histórica bem-informada se mostra incapaz de predizer o futuro, ainda que possa ter algo a nos ensinar sobre ele.

Ao menos no que diz respeito aos grandes aniversários da Independência brasileira, temos agora uma variável inédita: os meios digitais. Eles nos colocam diante da possibilidade de transmutar as efemérides em arquivos de novo tipo (ainda que mais frágeis do que muitas vezes se imagina), e com possibilidades de alcance virtualmente irrestrito a custos reduzidos. As potencialidades de tais suportes vêm sendo exploradas por iniciativas como a página Brasil: Bicentenário das Independências,3 3 Brasil: Bicentenário das Independências. Disponível em: <https://bicentenario2022.com.br/>. Acesso em: 21 jul. 2022. resultado de parceria da Associação Nacional de História (ANPUH) com a revista Almanack e a Sociedade de Estudos do Oito­centos (SEO); o Portal do Bicentenário,4 4 Portal do Bicentenário. Disponível em: <https://portaldobicentenario.org.br/>. Acesso em: 21 jul. 2022. coordenado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), mas se reivindicando como uma iniciativa pluricêntrica e inclusiva, que parece ter como público prioritário o ensino básico; Itinerários virtuais da Independência,5 5 Itinerários virtuais da Independência. Disponível em: <http://projetorepublica.org/independencia/>. Acesso em: 21 jul. 2022. site produzido pelo Projeto República (UFMG) com o apoio do Senado Federal e que procura sublinhar a pluralidade do processo de emancipação política por meio das experiências específicas de cada província e de contrastes com diferentes regiões da América hispânica.

Em uma perspectiva abertamente iconoclasta, demonumenta,6 6 demonumenta. Disponível em: <http://demonumenta.fau.usp.br/>. Acesso em: 21 jul. 2022. iniciativa ligada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), propõe-se a revisitar as disputas pela memória no espaço urbano a partir de usos criativos e esteticamente orientados da tecnologia. A página foi construída em diálogo com o amplo debate sobre monumentos que se intensificou em meio aos protestos motivados pelo assassinato de George Floyd e com mobilizações como o incêndio ativista da estátua de Borba Gato realizado em São Paulo em julho de 2021. Um de seus eixos se vale de meios avançados de processamento de dados e de inteligência artificial para reimaginar o acervo do Museu do Ipiranga - cuja reinauguração, após um longo processo de reforma, está programada para coincidir com o bicentenário. As raras imagens de ex-escravizados produzidas por Militão Augusto de Azevedo ganham movimento, paisagens imaginárias são construídas a partir dos motivos repetidos nas pinturas do acervo, personagens como Dom Pedro I e o bandeirante Domingos Jorge Velho tornam-se emissores de questionáveis mensagens do Brasil da segunda década do século XXI.

Para Fernando Devoto (2014DEVOTO, Fernando J.. Conmemoraciones poliédricas: acerca del primer Centenario en la Argentina. In: PAGANO, Nora; RODRIGUEZ, Martha (Comp.). Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado: La elaboración social de la experiencia histórica. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014, p. 17-35., p. 19), toda comemoração assume um caráter “poliédrico”, abrindo-se a apropriações diversas e percepções cambiantes ao longo do tempo. Esse caráter multifacetado ganha novas arestas com os acelerados e por vezes desconcertantes códigos de produção e circulação de mensagens da internet. Ao mesmo tempo, as relações com violências do passado podem-se mostrar particularmente agônicas. Em contexto distinto, a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2014, p. 14) propôs um confronto necessariamente tenso entre comemorações oficiais e “outros bicentenários”, como o da rebelião indígena de Tupaq Katari (1781), cujos ecos nas lutas políticas andinas do presente ela enxerga como possibilidades de “inversão do tempo histórico”, como “a insurgência de um passado e de um futuro, que pode culminar em catástrofe ou em renovação”.

Haveria, entre ambientes virtuais e uma ainda claudicante ocupação pós-pandêmica dos espaços públicos, oportunidades para fazer da efêmera efeméride que se aproxima uma intervenção no presente - não para sacralizar o passado em seus restos orgânicos artificial e zelosamente preservados, mas talvez para imaginar futuros mais vivíveis, mesmo que com todas as suas fraturas e desvios?

A partir deste número, Varia Historia conta com novos integrantes em seu conselho editorial. Elisabet Prudant, da Universidad de Santiago de Chile, vem responder a uma necessidade há muito sentida de aprofundar os intercâmbios com as historiografias hispano-americanas. Já Alexandre Almeida Marcussi passa a representar o Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, substituindo Ana Paula Sampaio Caldeira, a quem dirijo um novo e caloroso agradecimento por todos os anos em que dedicou seu trabalho sério e criterioso à revista. Silvia Liebel, minha antecessora na editoria e agora inserida institucionalmente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, segue colaborando conosco. Remeto a elas e a ele, bem como à equipe de estagiárias e estagiários do periódico, o meu muito obrigada, com a certeza de que seguiremos trabalhando em conjunto pela excelência dos estudos que entregamos ao público.

Referências

  • ABREU, Marcelo Santos de. Comemorações, imaginação histórica e a linguagem nacional. In: CALDEIRA, Ana Paula Sampaio; MARCELINO, Douglas Attila (Org.). Lugares e práticas historiográficas: Escritas, museus, imagens e comemorações. Curitiba: CRV, 2021, p. 251-274.
  • APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Os debates sobre a fundação dos cursos jurídicos no Brasil (1823-1827): Uma reavaliação. Varia Historia, v. 33, n. 62, p. 419-458, maio/ago. 2017.
  • CEZAR, Temístocles. Resenha de Os vultos da nação, de Armelle Enders. Varia Historia, v. 31, n. 55, p. 295-298, jan./abr. 2015.
  • CHAVES, Cláudia Maria das Graças. A construção do Brasil: Projetos de integração da América Portuguesa. Varia Historia, v. 18, n. 27, p. 77-95, jul. 2002.
  • DEVOTO, Fernando J.. Conmemoraciones poliédricas: acerca del primer Centenario en la Argentina. In: PAGANO, Nora; RODRIGUEZ, Martha (Comp.). Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado: La elaboración social de la experiencia histórica. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2014, p. 17-35.
  • GASPAR, Tarcísio de Souza. Resenha de Guerra literária: Panfletos da Independência (1820-1823), organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile. Varia Historia, v. 31, n. 57, p. 905-908, set./dez. 2015.
  • REZENDE, Irene Nogueira de. Resenha de A sentinela da liberdade e outros escritos (1821-1835), de Cipriano Barata. Varia Historia, v. 26, n. 43, p. 323-326, jan./jun. 2010.
  • RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa: Uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores. São Paulo: n-1, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: variahis@gmail.com