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“Arrumados como pilhas de charque em porão de navio”: O corpo dos encarcerados como fonte de uma narrativa humanitária no Brasil imperial

“Arranged Like Piles of Jerky in the Hold of a Ship”: The Incarcerated Body as a Source of a Humanitarian Narrative in Imperial Brazil

Resumo

Propõe-se neste artigo analisar a produção de uma narrativa humanitária acerca das mazelas ou misérias carcerárias e humanas ao longo do período imperial (1825-1889). Utilizar-se-á, para isso, o discurso fabricado por ministros da Justiça (1825-1855), presidentes de província (1855-1889), comissões municipais e provinciais, além de crônicas e denúncias jornalísticas (1885-1886). Tais textos não são meros reflexos de uma realidade social, ou, apenas, resultados de usos políticos: eles também atuaram como motores e amplificadores de sentimentos de empatia e comiseração que poderiam auxiliar na tomada de decisões favoráveis a reformas ou melhorias (paliativas ou não) da vida atrás das grades. É importante precisar, quanto aos relatórios provinciais, que se trabalhará com os exarados para o Rio Grande do Sul e as demais fontes sobre a situação prisional porto-alegrense. Serão contemplados, assim, três níveis: nacional, regional e local. O argumento principal é o de que tais relatos em prol da humanidade e da civilização, em que se expressavam juízos de valor, apreciações, gestos de piedade e sentimentos de benevolência, acabavam alimentando uma “política da piedade” indispensável para o avanço (não linear) do “fluxo das sensibilidades penais”.

Palavras-chave:
Narrativa humanitária; história das prisões; corpos encarcerados

Abstract

This article aims to analyze the production of a humanitarian narrative about prisons as a source of human ills/miseries throughout the imperial period (1825-1889), by studying discourses produced by ministers of Justice (1825-1855), provincial presidents (1855-1889), municipal/ provincial commissions, as well as chronicles and journalistic complaints (1885-1886). Such texts do not constitute mere reflections of social reality, nor do they simply result from political struggles. They also functioned as engines and amplifiers of feelings of empathy and commiseration that could foster decisions favoring reforms or improvements (be they palliative measures or not) of life behind bars. It is important to specify, regarding the provincial reports, that work will be carried out on Rio Grande do Sul officers, as well as other sources about prison situation in Porto Alegre. Tus, three levels will be considered: the national, regional, and local ones. The main argument is that such reports in favor of humanity and civilization–in which value judgments, appreciations, gestures of pity, and feelings of benevolence were expressed – ended up feeding a “policy of piety” indispensable for the (non-linear) advancement of the “flow of penal sensitivities”.

Keywords:
Humanitarian narrative; history of prisons; incarcerated bodies

Introdução

A contemporaneidade emerge sob o signo da civilização graças à consigna do reconhecimento da existência de direitos. O “corpo de todos os homens”, como se expressou na declaração de independência norte--americana de 1776, passa a ser objeto de direitos (HUNT, 2009HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 13). Como uma corrente elétrica, a ideia de “direitos do homem”, principalmente após a Revolução Francesa, vai ganhando adeptos e novos cenários, aumentando a pressão contra a imagem do súdito à mercê das vontades do monarca; já nem mesmo os criminosos, como diria Foucault (2012, p. 72)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2012., deviam ser entregues à sua real vingança.

Mas, apesar de localizar os discursos e as provas dessa mudança no século XVIII, Foucault (2012, p. 76)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2012. não atribui tais movimentações a uma sensibilidade calcada no reconhecimento da existência de direitos por parte dos indivíduos, ou, usando suas próprias palavras, a “um respeito novo pela humanidade dos condenados”. Como se sabe, para o filósofo, tudo isso ocorrera, simplesmente, como fruto de uma vontade política por punir melhor, calculando e distribuindo eficazmente o exercício de poder. “‘Humanidade’ é o nome respeitoso dado a essa economia [punitiva] e a seus cálculos minuciosos” (p. 88), diria. E para arrematar: “A conjuntura que viu nascer a reforma não é portanto a de uma nova sensibilidade, mas a de outra política em relação às ilegalidades” (p. 79).

Particularmente, acreditamos que as duas coisas não são excludentes. Pelo contrário: justamente para que essa nova política punitiva pudesse ser instaurada, fazia-se necessário o compartilhamento de certos princípios e conceitos que passavam pelo estímulo de uma outra sensibilidade mais humana ou civilizada. Não nos parece possível compreender adequadamente o processo histórico que levou a uma reconfiguração da “economia dos castigos” (FOUCAULT, 2012FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 72) sem entendermos, antes e paralelamente, a produção de sentimentos de repúdio à tortura, aos suplícios, às penas cruéis e desproporcionais, aos maus-tratos, etc. Do contrário – e para ficar em um único exemplo –, como explicar o rechaço aos suplícios apoiado por filósofos, teóricos do direito, juristas, magistrados, parlamentares e populares, tal como registrara Foucault (2012, p. 71)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2012.?

Pensamos que o processo que pariu a sociedade burguesa e sua cultura punitiva alicerçou-se inequivocamente em medidas e parâmetros “humanos”, ou seja, era preciso compartilhar, além da ideia de direitos, o sentimento de repulsa diante de ações cruéis, vexatórias e dolorosas infligidas a terceiros. Daí, novamente, a importância das palavras de Hunt (2009, p. 30)HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.: “As mudanças nas reações aos corpos e individualidades das outras pessoas forneceram um suporte crítico para o novo fundamento secular da autoridade política”.

Essas “reações”, de fundamental importância para as transformações políticas e penais que se sucederiam, só foram possíveis com a amplificação dessa nova sensibilidade civilizada,1 1 Utilizamos este termo no amplo sentido expressado por Barrán (1991, p. 11): “Essa sensibilidade (...) que chamamos de ‘civilizada’ disciplinou a sociedade: impôs a gravidade e ‘enrijecimento’ ao corpo; o puritanismo à sexualidade; o trabalho ao ‘excessivo’ ócio antigo; ocultou a morte, distanciando-a e embelezando-a; horrorizou-se perante a punição de crianças, delinquentes e classes trabalhadoras, e preferiu reprimir suas almas”. Trad. livre do autor: “Esa sensibilidad (…) que hemos llamado ‘civilizada’, disciplinó a la sociedad: impuso la gravedad y el ‘empaque’ al cuerpo, el puritanismo a la sexualidad, el trabajo al ‘excesivo’ ocio antiguo, ocultó la muerte alejándola y embelleciéndola, se horrorizó ante el castigo de niños, delincuentes y clases trabajadoras y prefirió reprimir sus almas”. motivo pelo qual as palavras, ou melhor dito, a linguagem dos direitos humanos,2 2 O uso dessa expressão merece um esclarecimento. Com “linguagem dos direitos humanos”, não nos estamos nos referindo ao conceito de “direitos humanos” que, como é sabido, seria anacrônico e invalidaria todo o esforço de análise subsequente. Interessa-nos o vocabulário dos direitos, tal como o que se produziu a partir das declarações do XVIII, como potenciais motores e (re)produtores de narrativas humanitárias, em contextos e configurações específicas – portanto, não extensível a todos os indivíduos, nem muito menos a uma ampla parcela territorial do mundo ocidental. Sem esses cuidados, incorreríamos numa leitura teleológica e anacrônica (SILVA, 2014, p. 34-36), uma vez que nossas balizas temporais não ultrapassam o século XIX. Consideramos importante ressaltar, igualmente, que não comungamos em absoluto com a ideia de uma suposta existência de “direitos humanos dos presos” para o período estudado. Como assinalou Sontag (2019, p. 143-144), “[a]bstratamente, os encarcerados se encaixam como sujeitos de todos os direitos dos quais já falava a velha Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 (com as suas reverberações –maiores ou menores– nos textos constitucionais dos séculos XIX e XX, inclusive nas brasileiras)”. Para falar especificamente em “direitos humanos dos presos”, teríamos que avançar, conforme o autor, para uma temporalidade ainda mais recente, após a Segunda Guerra Mundial. deve ser tomada ao mesmo tempo como forma de expressão (“tornando algo carne pelo verbo”) e produção (“motor de transformações”) de ações consideradas humanas/humanitárias.3 3 Segundo Koselleck (2006, p. 102): “Privilégios políticos ainda por serem conquistados foram formulados primeiro na linguagem, justamente para que pudessem ser conquistados e para que fosse possível denominá-los”. É, sublinhe-se, a partir da absorção e da reprodução desse discurso calcado na “humanidade” que se poderá gestar uma “empatia imaginada”, “não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia requer um salto de fé, de imaginar que alguma outra pessoa é como você” (HUNT, 2009HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 30).

O discurso dos direitos,ou em prol da humanidade, faz parte do arsenal linguístico do século das Luzes (FIGUEIREDO, 2005FIGUEIREDO, Luciano. Rebeliões no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.), que possibilitou a emergência de sistemas liberais e o florescimento de novas sociedades, como a brasileira, que, após 1822, ao romper com o Reino Unido, tornou-se um país independente, soberano, sob um regime monárquico constitucional e representativo.Isso não significa, logicamente, que a simples existência de declarações, leis, códigos e constituições sejam suficientes para garantir de fato as atenções e direitos assegurados, impedindo um tratamento desumano, por exemplo, aos indivíduos privados de liberdade. O que se está dizendo é que esses textos, por meio de conceitos e concepções expressadas através de um vocabulário jurídico, embora não constituíssem propriamente óbices, não deixavam de estipular balizas, ao mesmo tempo que forneciam uma linguagem que, absorvida e reproduzida, podia gerar ações políticas contrárias a determinados tipos de tratamentos e condições de encarceramento consideradas vis.

Nesse sentido, a proposta deste artigo é analisar como o estado das prisões e da vida atrás das grades fomentou a produção de uma “narrativa humanitária” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Tomas W. . Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 239-277., p. 240) centrada no corpo dos encarcerados. Para isso, serão mobilizados, basicamente, quatro tipos de fontes: relatórios dos ministros da Justiça (1825-1855); falas e relatórios dos presidentes da província do Rio Grande do Sul (1855-1889); relatórios de comissões municipais e juntas de higiene; e crônicas e denúncias publicadas no jornal A Federação sobre a situação vivida pelos presos na Cadeia Civil de Porto Alegre, entre 1885 e 1886. Partimos, assim, de um plano macro, num primeiro momento, para em seguida contemplar os discursos produzidos a partir da realidade penal-carcerária sul-rio-grandense, terminando com uma perspectiva micro através dos relatos elaborados acerca das misérias da prisão capitalina. Trata-se de um conjunto de narrativas produzidas, de um lado, pelos mais importantes homens do staff imperial; e, de outro, por um amplo grupo de profissionais liberais, políticos e funcionários públicos, muitos dos quais ligados ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).

Entre a letra da lei e a filantropia do rei

No mais antigo relatório publicado a que se teve acesso, assinado em 19 de novembro de 1825, o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça Clemente Ferreira França ao dar conta dos tempos de sua administração, enumera uma série de melhorias que o monarca havia tomado com o fito de tornar o aparelho judiciário mais expeditivo, isonômico e claro em relação aos procedimentos e à marcha dos processos que corriam em segredo. França reconhecia que a lentidão e a inoperância da justiça infligiam tanto a inocentes quanto a culpados experiências em “feias mazmorras, e duras prizões”. Ressaltava que a referida celeridade cobrada pelo Imperador aos empregados da justiça ia “em favor dos miseraveis prezos”, fazendo com que alguns vissem novamente a “luz do dia”, outros voltassem ao “seio de suas familias”, e aqueles que tivessem que pagar seus crimes finalmente recebessem suas penas. Viam-se amparadas, assim, “victimas, que anteriormente soffrião e muitos de longos annos, a nudez, a fome, e a desesperação nos horrendos carceres em que jazião sepultados” (FRANÇA, 1826FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador dá o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826., p. 12-13).

Em seguida, embora França (1826, p. 14)FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador dá o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826. comente, por exemplo, não ser “justo nem conforme a Constituição serem retidos nas cadeias sem culpa formada” os presos enviados à Corte pelos presidentes das províncias, ordenando-se a eles que remetessem “sem demora as [suas] culpas”, tal preocupação acabou sendo atribuída à piedade de “Vossa Magestade Imperial”. O mesmo foi feito em relação à concessão de “diarias para seos alimentos, a fim de não perecerem á necessidade” e “penções mensaes ás familias dos desgraçados réos justiçados” à sua real clemência. Em suma, todas as referidas melhorias na administração do ramo são colocadas como provas do empenho do Imperador em empunhar com destreza a “espada da Justiça”.

Do exposto, já podemos tirar duas conclusões iniciais. A primeira é que, se teoricamente o cumprimento de dispositivos legais (leis, constituição, etc.) não deveria depender mais do que do simples gesto de execução, na prática, sua observância apresenta-se em boa medida consignada à piedade, à clemência e ao desejo de justiça do príncipe:

Á Beneficencia, e Humanidade de Vossa Magestade Imperial he que se deve o melhoramento das prizões, e o reparo das cadeias a fim de terem o aceio, commodidade, e pureza de ar tão indispensaveis a vida humana. Graças, Senhor, a Bemfazeja Philanthropia de Vossa Magestade Imperial, os presos, posto que entes desgraçados, nem habitão lugares immundos, e improprios para homens, nem são já victimas do esquecimento (FRANÇA, 1826FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador dá o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826., p. 14-15).

Não temos como saber se a intenção era emular o rei francês (DU-PRAT, 1980, p. 73-74), mas pode-se afirmar que o expressado não se tratava de mera retórica. Tanto que, se esticarmos essa leitura, poderíamos dizer que tal consigna também se estenderia aos governantes e representantes da coroa. Desde a fundação do Império, a questão penitenciária é colocada em termos de ações e concessões que passavam de maneira ineludível pela “sensibilidade” das pessoas ocupantes dos cargos mais importantes do Executivo. Isso, como era de se esperar, gerava um descompasso contínuo entre a “letra da lei e o nível de filantropia” daqueles que estavam à frente, por exemplo, das províncias do Império, podendo estimular ou não o “fluxo das sensibilidades penais” (PRATT, 2006PRATT, John. Castigo y civilización: Una lectura crítica sobre las prisiones y los regímenes carcelarios. Barcelona: Gedisa, 2006., p. 93).

A segunda conclusão, bastante evidente, é o fato de não se ter usado, em nenhum momento,o horrendo da situação anterior narrada por França (1826)FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador dá o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826. contra a antiga ordem colonial, ou, no mínimo, atribuindo-a ao pouco caso feito aos assuntos penal-carcerários a partir de 1815, quando o Brasil deixou de ser colônia e passou à condição de Reino Unido com Portugal e Algarves. Pelo contrário, e isso não é menos significativo, as supostas melhorias são creditadas às “Virtudes Innatas [de] Vossa Magestade Imperial, e Herdadas de Seos Augustos Progenitores” (FRANÇA, 1826FRANÇA, Clemente Ferreira. Conta, que a sua Magestade O Imperador dá o Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Justiça, do tempo da sua administração. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1826., p. 14). Ou seja, não só não se buscou indicar culpados, fazendo um uso político daquela realidade,como tampouco se apresentaram as reformas introduzidas por Dom Pedro I como fruto de uma gestão essencialmente inovadora. E nem se poderia, pois, como se disse, suas virtudes (beneficência, humanidade, filantropia, generosidade, benigno coração, piedade, clemência, justiça, etc.) teriam sido umbilicalmente herdadas de seus progenitores. Simbolicamente, sendo uma rama legítima dos Braganças, suas medidas no fundo não representariam uma ruptura, mas sim uma continuidade no bom governo do agora Império do Brasil.

Curiosamente, justo um mês após a abdicação de Dom Pedro I, Manoel José de Souza França (1831, p. 6)FRANÇA, Manoel José de Souza. Relatorio do Ex.mo Ministro da Justiça do anno de 1830 apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1831. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1831. diria, referindo-se a “providencias reclamadas pela necessidade Publica”, que é “urgentissima a que respeita ao melhoramento das Prisões”. Introduz, então, a “fórmula” sobre a situação carcerária no restante do país que, com variações, ir-se-á repetindo pelos sucessivos ministros da Justiça: “Nada se tem feito sobre isso até agora, e de todas as Provincias, com poucas excepções, se acusa o mesmo defeito”, ou seja, a falta de estabelecimentos prisionais. Nesse relatório, não obstante, a referida superlotação da Cadeia da Relação e do Calabouço do Castelo, entre presos e escravos, muitos dos quais há anos abandonados pelos seus senhores, fora atribuída ao antigo governo que, ao não cumprir com as leis, gravava escandalosamente a “Justiça”, mas também a “humanidade”.

Um ano após o início da Regência, Diogo Antonio Feijó (1832, p. 10)FEIJÓ, Diogo Antonio. Relatorio do Ex.mo Ministro da Justiça do ano de 1831 apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1832. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Const. de E. Seignot--Plancher, 1832. escreveria em 10 de maio que a “sorte dos presos já não he tão desgraçada”, pois, segundo ele, comiam duas vezes ao dia, uma por conta do governo e outra pela Santa Casa de Misericórdia. Também os “nus são vestidos” e os processos “tem sido alguma cousa adiantados”, acrescentara. Mesmo falando da realidade da Corte, esse “melhoramento na administração da Justiça” não fora devidamente creditado ao novo governo, mas sim ao presidente da Relação que por “filantropia (...) se tem encarregado de obrigações pesadas e alheias” ao seu cargo. Descrito como íntegro e devotando “amor” à justiça, o magistrado viria, ainda, nos últimos tempos servindo de promotor, encontrando em suas visitas às cadeias “tantos desgraçados inteiramente esquecidos, e totalmente abandonados”.

Note-se que não se falou em obrigação ou cumprimento da lei, mas de uma ação particular e altruísta, algo bastante sintomático sobre o modo como as questões penal-carcerárias foram tratadas ao longo do período imperial. A essa altura, também estava claro que a simples troca de regime/governo não garantia a solução aos velhos problemas das prisões e dos seus inquilinos, servindo o exemplo do desembargador para explicitar que, sem uma boa dose de empatia, dificilmente se mudaria o quadro de abandono e esquecimento habitual. De qualquer forma, repare-se que os corpos encarcerados jogados em ambientes atrozes são objetos de um discurso civilizatório, produzido, diga-se de passagem, no âmago institucional e burocrático do Império.

O relatório de Feijó (1832, p. 11)FEIJÓ, Diogo Antonio. Relatorio do Ex.mo Ministro da Justiça do ano de 1831 apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1832. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Const. de E. Seignot--Plancher, 1832. guarda ainda outras passagens interessantes. Sem fazer menção a ele, mas certamente reportando-se ao §21 do artigo 179 da Constituição de 1824, o ministro e futuro regente do Império se referiu às prisões construídas nas ilhas de Santa Bárbara e das Cobras como limpas, arejadas e seguras, apropriadamente “retiradas do centro da Cidade”. Com essas obras, acrescentava, “o horroroso da cadêa desappareceu; e este inferno dos vivos não atormentará jamais”. Toda despesa, como dizia, era “reclamada com urgencia pela humanidade”.

Qualquer um poderia pensar, e não sem razão, que esse tipo de justificativa encobriria os verdadeiros interesses para com esses novos equipamentos prisionais, tais como o de retirar instituições consideradas focos de infecção das áreas centrais da cidade, aumentando a segurança dos citadinos, mas também a vigilância dos condenados, evitando fugas e até mesmo olhares indiscretos voltados para um recinto de longa data caracterizado pela incomensurável arbitrariedade. Tudo isso é certo, mas, se olharmos bem, seria possível justificar, facilmente, de outras formas os gastos públicos com aquelas obras, sem ter que tocar nos descalabros penitenciários a partir da (re)produção de lúgubres representações, apoiadas num amplificado reclamo humanitário, quando nem pressão havia por parte da sociedade. Mera propaganda pessoal? Talvez, mas sua existência e repetição alimentava (e irradiava) um discurso dos direitos humanos, sem o qual, nenhuma mudança realmente significativa poderia ocorrer nem a curto, nem a longo prazo.

Diante do exposto acima, insistimos na hipótese de que essa escrita humanitária não poderia ser simplesmente uma espécie de biombo ou uma cortina de fumaça para os “reais interesses”. Podendo-se eludir sem mais (negando, ocultando, não mencionando apenas) as realidades abjetas dos cárceres, esses hommes d’État, pelo contrário, não deixavam de denunciar uma e outra vez que a vida atrás das grades distava muito do estipulado nos códigos e leis penais. Ora, sabia-se muito bem que, até para que a lei fosse cumprida, dependia-se de sentimentos de empatia e compaixão por parte daqueles que tinham condições de envidar esforços nesse sentido.

Feijó (1832, p. 11)FEIJÓ, Diogo Antonio. Relatorio do Ex.mo Ministro da Justiça do ano de 1831 apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1832. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Const. de E. Seignot--Plancher, 1832. ainda afirmou que, se a corte possuía então prisões suficientes, “outro tanto não acontece no resto da Provincia, e do Imperio”. Fórmula do seu antecessor que reaparecerá bastante melhorada em relatório de maio de 1833, na versão de Honório Hermeto Carneiro Leão, que lhe sucedeu no cargo. Segundo o futuro marquês do Paraná:

Em grande parte dos Municipios do Imperio não existem Cadêas; não digo Cadêas limpas, seguras, e bem arejadas, como promete e garante a Constituição, digo que não existe em grande parte dos Municipios do Imperio nenhuma especie de casa destinada para prisão dos delinquentes, que estiverem em livramento, ou forem condemnados á prisão simples (LEÃO, 1833LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Relatorio do Ex.mo Ministro de Justiça do ano de 1832, apresentado a Assembléa Geral Legislativa na sessão ordinaria de 1833. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1833., p. 25-26).4 4 Essa “fórmula” reaparecerá em Coutinho (1834, p. 17), Branco (1835, p. 37), Câmara (1852, p. 23) e Araújo (1854, p. 20; 1855, p. 19).

Honório, ao contrário dos ministros anteriores, não recorre ao vocabulário humanitário, mas não se furta em relatar e reclamar sobre aspectos do cotidiano prisional que falavam muito do que suportavam os reclusos. Chamara, por exemplo, a atenção da Assembleia Geral acerca da “sorte dos presos desta Capital”. Queixou-se de que a cadeia do Aljube era pouco arejada e espaçosa, mas que, apesar disso, os encarcerados preferiam permanecer nela “amontoados” do que serem transferidos para as prisões de Santa Bárbara. Ele mesmo explica que a resistência se dava devido às dificuldades de “verem seus parentes, amigos e procuradores”.5 5 Branco (1835, p. 41) também anotaria que os presos consideravam as dificuldades impostas pela distância um “rigoroso castigo”. Afirmou que a aglomeração, falta de limpeza e troca de roupas, somadas à má construção dos canos de esgoto, fazem “com que ahi hajão [cadeia do Aljube] exhalações insuportaveis, que, corrompendo o ar, dão causa a muitas enfermidades”. Não encerrou, contudo, sem antes mencionar a dificuldade de manter o sustento alimentício dos presos pobres (LEÃO, 1833, p. 3-37LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Relatorio do Ex.mo Ministro de Justiça do ano de 1832, apresentado a Assembléa Geral Legislativa na sessão ordinaria de 1833. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1833.).

Deste último relatório em diante, nota-se um estilo bem mais atenuado em relação ao uso de uma linguagem humanitária, mas ela não desaparece, longe disso, nem tampouco as descrições sobre o estado das prisões da corte. Coutinho (1834, p. 17-18)COUTINHO, Aureliano de Souza e Oliveira. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1834, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1834. falava de “accumulação de prezos” e recauchutava a ideia levantada por Honório de se fazer maior uso da pena de degredo enquanto saída para a eterna superlotação.6 6 Enquanto Honório sugeria enviar degredados para trabalhar em colônias agrícolas em seu relatório correspondente ao ano de 1832 (LEÃO, 1833, p. 31-32), duas décadas depois Eusébio de Queiroz (CÂMARA, 1852, p. 24-23) voltaria a considerar o degredo, porém em presídios, como alternativa às penas de prisão, buscando-se, assim, desafogar os cárceres imperiais e solucionar, simultaneamente, a falta de cadeias construídas propositalmente. Branco (1835, p. 38)BRANCO, Manoel Alves. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1835, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1835. voltaria a relatar as condições sórdidas da cadeia e a miséria dos presos do Aljube usando palavras como “horror” e “desesperação”. Ele não atribuiu em nenhum momento a resistência e a insubordinação dos reclusos contra o carcereiro, também narradas, ao drama enfrentado naquele ambiente, mas isso não seria necessário. Dizia, ainda, ser “impossivel descrever o horror das prisões das mulheres”, e que, no conjunto, aquela instituição se assemelhava mais a “antros de feras bravas”. Por tudo isso, opinava com licença poética que as prisões deveriam ser fechadas, mas não destruídas, sendo conservadas como “eternos monumentos, que, lembrando aos nossos filhos os horrores dos tempos passados, os fizessem amar de mais em mais as novas Instituições, e Leis de seu Paiz; seria essa de certo a maneira a mais bella de cumprir a palavra sagrada da Constituição” (BRANCO, 1835BRANCO, Manoel Alves. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1835, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1835., p. 39).

Anos depois, Vasconcellos (1838, p. 20-21)VASCONCELLOS, Bernardo Pereira de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1838, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Bernardo Pereira de Vasconcellos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1838. diria que os presos “se amontoão” nos cárceres do Aljube e de Santa Bárbara, mas, assim como Branco, chamou a atenção para o estado do compartimento destinado às mulheres no Aljube: “He sobre tudo horrorosa a destinada ás mulheres, sotoposta a huma prisão de homens, que fazem provar a essas infelizes victimas da miseria, alem dos incommodos da prisão, os insultos mais grosseiros, e a linguagem mais crapulosa”. E, acerca da enfermaria destinada aos presos do mesmo estabelecimento, exprimiu: “Senhores, he inhumano manter hum hospital em huma prisão humida, não arejada, visinha de calabouços immundos! Os infelizes enfermos vão ahi antes apressar o fim da existencia, do que recobrar a perdida saude”. Coelho (1840, p. 26)COELHO, Francisco Ramiro d’Assis. Relatorio apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1840, pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça Francisco Ramiro d’Assis Coelho. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1840., por sua vez, também destinaria algumas palavras para justificar a visita de uma comissão de médicos enviada pelo governo àqueles estabelecimentos. “Não permittindo a humanidade”, segundo escreveu, “e as Instituições que temos, que as prisões sejão depósitos de infecção, e como que túmulos de vivos”, buscou-se examinar o estado de salubridade e, em seu caso, sugerir melhoramentos.

Nos anos sucessivos, a tônica foi referir-se antes à desatenção aos preceitos constitucionais, precisamente o §21 do art. 179, do que à inexistência de cuidados tal como urgia a “humanidade”. Uma fórmula bastante mais asséptica, é verdade – mas, para bons entendedores, não faria falta explicar o que o denunciado descumprimento legal supunha em termos de condições de encarceramento e o que isso implicava na vida dos indivíduos privados de liberdade. Assim se referiram, salvando exceções, tanto às prisões da Corte, quanto às das demais províncias do Império, os ministros Galvão (1845, p. 15)GALVÃO, Manoel Antonio. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na 2ª Sessão da 6ª Legislatura em 1845, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Antonio Galvão. Rio de Janeiro: Typographia do Diario de N. L. Vianna, 1845., Torres (1846, p. 33)TORRES, José Joaquim Fernandes. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na 3ª Sessão da 6ª Legislatura em 1846, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Joaquim Fernandes Torres. Rio de Janeiro: Typographia do Diario de N. L. Vianna, 1846., Bueno (1848, p. 21-22)BUENO, José Antonio Pimenta. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na 1ª Sessão da 7ª Legislatura em 1848, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Antonio Pimenta Bueno. Rio de Janeiro: Typographia do Diario de N. L. Vianna, 1848., e Câmara (1851, p. 19)CÂMARA, Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso. Relatorio apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Terceira Sessão da Oitava Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso Câmara. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1851..

Por último, vale ainda sublinhar algumas considerações realizadas por Nabuco de Araújo (1855, p. 21)ARAÚJO, José Tomaz Nabuco de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na terceira sessão da nona legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Tomaz Nabuco de Araújo. Rio de Janeiro: Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, 1855. em relação às colônias penais. Em seu primeiro relatório, destacou, por exemplo, o resultado de uma enquete aplicada aos presidentes de província, originada na Câmara dos Deputados, sobre a “utilidade” e “localidades convenientes” para esse tipo de estabelecimento. O ministro ressaltou que os governantes “em geral” se pronunciaram favoravelmente “como medida de segurança e de melhor condição dos Réos, hoje oppressos nas pessimas prisões que temos: estas duas razões de repressão e humanidade respondem a quaesquer objeções em contrario”. Ele próprio referendaria esses pontos de vista posteriormente. Diante de prisões abarrotadas, sem segurança, mal administradas, onde os condenados viviam uma ociosidade forçada, havia-se de fazer “alguma cousa á bem da Sociedade e da Humanidade”. Em seu segundo relatório, Nabuco de Araújo (1856, p. 31)ARAÚJO, José Tomaz Nabuco de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na quarta sessão da nona legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Thomaz Nabuco de Araújo. Rio de Janeiro: Empreza da Associação Typographica Nacional do Diario, 1856. retomaria a ideia e justificaria a proposta de forma mais contundente:

São as colonias penaes, taes como vos propuz no precedente Relatorio, uma das necesidades mais urgentes da situação, em vista das frequentes evasões dos presos, assim como o unico refugio contra estas prisões que por todo o Imperio existem sem as condições de salubridade, segurança e moralidade exigidos pela justiça social e pela humanidade, em as quaes, com injuria da civilisação, estão confundidos os sexos, os escravos, os menores e os perversos.

Como vimos advertindo, se por um lado não se nega que esse discurso fosse instrumentalizado para justificar projetos penal-carcerários, obras, consertos, ações pela melhoria das condições de encarceramento, etc., às vezes como um simples verniz incolor, por outro, haverá de se concordar que o vocabulário utilizado e a reivindicação em prol da “humanidade”, da “justiça social” e da “civilização”, como expressara Nabuco de Araújo, auxiliava a robustecer e tonificar uma narrativa humanitária que provinha do e atravessava o corpo dos encarcerados. Nesse sentido, mesmo que se tratasse de um uso meramente político ou pro forma, ainda assim não deixava de sinalizar balizas e denunciar que a simples existência de textos legais, como a própria Constituição, não era suficiente para transformar de maneira significativa o quadro punitivo nacional. E, para finalizar, é importante lembrar que esses relatórios não eram lidos apenas pelos ministros que se sucediam no cargo. Antes disso, estavam dirigidos como prestação de contas aos deputados das Assembleias Legislativas do Império do Brasil.

“O acanhado e imundo calabouço (...) era o inferno para os que nele tinhão a desgraça de entrar, e um protesto vergonhoso contra a nossa civilisação”

Ao contrário de muitas falas dos ministros da Justiça analisadas acima, já existia, em meados do século XIX, um extenso e intrincado arquipélago carcerário nas províncias. Não importava se o número era insuficiente regionalmente para a demanda penal, se o tamanho das edificações não comportava o fluxo de encarcerados local, ou se suas condições se afastavam olimpicamente do que rezava o §21 do artigo 179 da Constituição Imperial. O fato é que esses espaços prisionais estavam lá e eram operativos! Foi em muitos desses acanhados e imundos calabouços, como disse o presidente Sinimbu (1855, p. 13)SINIMBU, João Lins Vieira Cansansão de. Relatorio com que o Dr. João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu entregou a presidencia da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Vice-Presidente Dr. Luiz Alves Leite de Oliveira Bello no dia 30 de Junho de 1855. Porto Alegre: Typographia do Mercantil, 1855., referindo-se à cadeia de Rio Grande, onde se experimentaram e vivenciaram por primeira vez as penas de privação de liberdade do nosso Código Criminal de 1830, quando todavia inexistiam as grandes prisões capitalinas ou modelo (casas de correção, detenção, penitenciárias, etc.).

Desde antes de meados do XIX até praticamente a queda do regime monárquico, os sucessivos relatórios dos presidentes caracterizavam a maioria das imperiais cadeias da província de São Pedro como inseguras, insalubres e sem capacidade suficiente para abrigar o número de presos que costumavam receber. Essa radiografia infame da infraestrutura carcerária sul-rio-grandense, por outra parte, falava muito do que certamente se padecia entre suas paredes. Tomando e expandindo a máxima de Sinimbu (1855, p. 13)SINIMBU, João Lins Vieira Cansansão de. Relatorio com que o Dr. João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu entregou a presidencia da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Vice-Presidente Dr. Luiz Alves Leite de Oliveira Bello no dia 30 de Junho de 1855. Porto Alegre: Typographia do Mercantil, 1855., podemos considerá-las em seu conjunto um autêntico complexo “infernal” para aqueles que nelas tinham realmente a “desgraça” de entrar, mas a segunda parte também era corroborada por outros inúmeros governantes, colocando-as como termômetro acerca do “nosso” nível civilizatório.

Muitas dessas cadeias eram antigas casas particulares mal adaptadas, quando não edificações que haviam servido originalmente para propósitos bastante diferentes, como a de Passo Fundo, que reutilizara um “pequeno rancho” que “outrora fez-se para matadouro”. Apresentavam, por isso, inúmeros inconvenientes que, consequentemente, aumentavam ainda mais os sofrimentos da privação de liberdade. De forma muito similar aos relatórios dos ministros da justiça, os chefes do executivo provincial tampouco se furtaram em adjetivar os cárceres gaúchos. Ao menos dezesseis deles, entre 1850 e 1860, foram assim descritos como: pequenos, impróprios, estreitos, acanhados, sofríveis, inabitáveis, velhos, miseráveis, imundos, repugnantes, calabouços, masmorras, como já se disse, verdadeiros infernos (CESAR, 2015aCESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: Encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos; Ed.Unisinos, 2015a., p. 61-72).

Muitos desses adjetivos são, por si sós, sintomáticos em relação à existência de uma sensibilidade que se opunha ao tratamento desumano recebido por quem desventuradamente vinha a ocupar esses espaços punitivos. Já então “calabouços” e “masmorras” eram locais de longa data associados a castigos físicos e psicológicos e a todo tipo de práticas arbitrárias, apartados da sociedade, das leis e dos direitos, típicos por assim dizer, de regimes absolutistas ou autoritários. Em uma conhecida entrevista, Foucault (1989, p. 16)FOUCAULT, Michel. El ojo del poder. In: BENTHAM, Jeremias. El Panóptico. Madrid: La Piqueta, 1989, p. 9-26. refletiria sobre isso, remontando-se à matriz discursiva das luzes.

O termo “inferno”, por sua vez, não aparece apenas dentro de nossas fronteiras. No final do século XIX, o futuro dirigente uruguaio Batlle Ordóñez também chamaria de “cárceres-inferno”7 7 Trad. livre do autor: “las cárceles infierno”. (BARRÁN, 1991BARRÁN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay: El disciplinamiento (1860-1920). V. II. Montevidéu: Banda Oriental, 1991., p. 96) aquelas distantes dos atributos da civilização. Mas, apesar de insistentemente descritas como precárias, estreitas, insalubres e inseguras, como advertido nos relatórios de José Antonio de Souza Lima (1883, p. 41-48)LIMA, José Antonio de Souza. Falla dirigida a Assemblea Legislativa pelo presidente Conselheiro José Antonio de Souza Lima, na 1º Sessão da 21º Legislatura. Porto Alegre: Typographia do Jornal do Commercio, 1883. e José Julio de Albuquerque Barros (1886, p. 49-61)BARROS, José Julio de Albuquerque. Relatorio apresentado a S. Exc. o Sr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos 2º Vice-Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul pelo Exm. Sr. Conselheiro José Julio de Abuquerque Barros ao passar-lhe a presidência da mesma província no dia 19 de setembro de 1885. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1886., muitas das cadeias de pequeno e médio porte construídas ao longo do território do Rio Grande do Sul,após sua reintegração ao Império do Brasil, em 1845, não foram projetadas de maneira refratária às modernas concepções da reforma penitenciária então em voga. Porto Alegre até pode ter sido o palco dessa “reforma” (em função da idealização da Casa de Correção), mas ela não ficou limitada à capital da província (CESAR, 2015aCESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: Encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos; Ed.Unisinos, 2015a., p. 72-86).

Novamente, para que não pareça ingenuidade, há de se dizer que, se por um lado reconhecemos o desejo expresso pelas autoridades de se dispor de espaços acordes e suficientes para o aprisionamento, afastados das partes centrais das cidades para evitar “contágios” e olhares indiscretos, ou, atentando-se para lugares estratégicos como a capital, cidades portuárias e regiões de fronteira, por outro, não se pode negar que muitos dos princípios da ideologia correcional não somente estiveram presentes teoricamente nas formulações como se materializaram em vários equipamentos da malha prisional gaúcha dos Oitocentos (CESAR, 2015aCESAR, Tiago da Silva. A ilusão panóptica: Encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São Pedro (1850-1888). São Leopoldo: Oikos; Ed.Unisinos, 2015a., p. 72-86).

É importante esclarecer que não nos estamos referindo à recepção e materialização de ingredientes do coquetel reformador em termos de progresso ou avanço linear da então chamada ciência penitenciária. A literatura especializada abunda em exemplos de como, inclusive nas prisões-modelo (correcionais, penitenciárias, prisões com trabalho, etc.), os regulamentos, para mencionar apenas uma dimensão do problema, eram continuamente desatendidos, valendo de fato, cotidianamente, uma velha ordem consuetudinária (AGUIRRE, 2019AGUIRRE, Carlos. Donde se amansan los guapos: Las cárceles de Lima (1850-1936). Lima: Ed. Universidad del Pacífico, 2019., p. 201-226). Somente estamos tentando dizer que nem tudo foi letra morta e/ou restrito à capital da província.

Por outra parte, apesar dos altos e baixos e dos documentados retrocessos penal-carcerários, vai ficando patente,com o avançar do século,que o descumprimento de alguns dos seus elementos básicos (separação de sexos, classificação, cuidados higiênico-sanitários, profilaxia, atenções médicas, aplicação ao trabalho, garantia de alimentação e vestimenta aos presos pobres, etc.) passava cada vez menos inadvertido, alimentando escândalos expostos nos jornais e não poucas críticas contra as autoridades governamentais.

O discurso correcional, calcado na ideia de emenda e regeneração dos indivíduos condenados, não só se originava como também se alimentava da mesma matriz iluminista que o discurso dos direitos humanos. São filhos da mesma mãe, que, mesmo vilipendiados e em constantes vaivéns, permitiam que indivíduos privados de liberdade, valendo-se do seu corpus conceitual, alçassem voz para exigir ou requerer atenções cabíveis e/ou reconhecidas em leis, regulamentos e artigos constitucionais.

Tanto um quanto o outro são portadores dos códigos que consignaram o nascimento de uma nova cultura que redundou processualmente na transformação de nossa economia psíquica (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), convertendo, por exemplo, o sofrimento humano num tabu moderno (BARRÁN, 1991BARRÁN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay: El disciplinamiento (1860-1920). V. II. Montevidéu: Banda Oriental, 1991., p. 82). As falas e narrativas humanitárias (re)produzidas pela elite política imperial brasileira em seus relatórios, portanto, são ao mesmo tempo barômetro desse processo e suporte/instrumento (tais como os jornais, panfletos, novelas, petições, etc.) de divulgação desses códigos, ideias, parâmetros e sentimentos considerados humanos. Essas narrativas exemplares possibilitavam assim experiências sensitivas que incitavam o desenvolvimento de uma “empatia imaginada” (HUNT, 2009HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 31), que, ao fim e ao cabo, ampliava potencialmente o horizonte de gestos e ações de comiseração ou compaixão, para utilizar expressões contemporâneas.

Daí o interesse em mapear o “vocabulário das sensibilidades” presentes nas narrativas humanitárias produzidas acerca da “sorte”, “desgraça” ou “tristes condições dos infelizes reclusos”, pois entendemos que a linguagem utilizada não apenas transmitia ou refletia seus significados sociais, como também constituía parte importante de sua elaboração/ produção, tal como diria Cabrera (2001, p. 56-57)CABRERA, Miguel Ángel. Historia, lenguaje y teoría de la sociedad. Madrid: Frónesis-Cátedra, 2001..8 8 Em outra passagem significativa e talvez ainda mais esclarecedora, expressou que “a linguagem não fornece simplesmente aos indivíduos o vocabulário através do qual eles formulam seus interesses sociais, mas é o que lhes permite conceber os próprios interesses sociais” (CABRERA, 2001, p. 103). Trad. livre do autor: “el lenguaje no proporciona simplemente a los individuos el vocabulario mediante el cual éstos formulan sus intereses sociales, sino que es el que les permite concebir a los intereses sociales mismos”.

Expostas essas premissas, podemos agora voltar às nossas fontes. No Rio Grande do Sul, a década de 1880 foi bastante agitada em assuntos penitenciários, causa de não poucas dores de cabeça aos governantes que arribavam na presidência da província. Somente a cadeia civil de Porto Alegre, a maior e mais segura prisão sul-rio-grandense, deu muito o que falar. Arrastando-se inconclusa desde 1855, quando se ocupou prontamente a primeira parte terminada, acabou no final dos anos 1870 testemunhando um significativo aumento da população carcerária, a tal ponto de tornar o termo “aglomeração” a palavra de ordem dos chefes do executivo em suas sucessivas falas e relatórios. Lucena (1887, p. 161)LUCENA, Henrique Pereira de. Falla apresentada a Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Sul pelo Presidente da Província o Exm. Sr. Desembargador Henrique Pereira de Lucena ao instalar-se a 2ª Sessão da 21ª legislatura em 7 de Março de 1886. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1887., por exemplo, apresentou o seguinte quadro à 2ª sessão da 21ª legislatura, em 7 de março de 1886:

Realmente o estado de agglomeração dos presos, por falta de espaço, em carceres pequenos, faltos de condicções hygienicas, que servem ao mesmo tempo de dormitorios, refeitorias, officinas, deposito de materiaes de trabalho, latrinas etc., favorecendo na maior escala o desenvolvimento da infecção physica e moral, é causa mais que poderosa para levar ao ultimo gráo de depravação esses infelizes, com grave attentado contra as leis sociais e humanas.

Nesse mesmo relatório, porém, várias páginas antes, o desembargador e futuro Barão de Lucena (1887, p. 120)LUCENA, Henrique Pereira de. Falla apresentada a Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Sul pelo Presidente da Província o Exm. Sr. Desembargador Henrique Pereira de Lucena ao instalar-se a 2ª Sessão da 21ª legislatura em 7 de Março de 1886. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1887. também destinaria algumas linhas aos “alienados” presos naquele mesmo edifício. Conforme exclamou:

Provoca a mais entranhada commiseração a sorte de 15 desses infelizes que por falta de accomodação no Hospicio, acham-se agglomerados nos quartos da cadêa civil em taes condições de desaceio e penuria que confrange o coração vel-os.

É um dever de humanidade proporcionar-se á esses infelizes que tocaram a meta da desgraça, tratamento e commodos convenientes.

E para não aborrecer ninguém com tantas passagens, concluímos com a fala de Joaquim Galdino Pimentel (1889, p. 9-10)PIMENTEL, Joaquim Galdino. Falla que o Exm. Sr. Dr. Joaquim Galdino Pimentel, Presidente da Provincia, dirigio a Assembléa Legislativa da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul por occasião de ser installada a 1ª sessão da 23ª legislatura em 1 de Março de 1889. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1889. dirigida à 1ª sessão da 23ª legislatura, em 1 de março de 1889. Segundo o presidente:

Tão grande numero de detentos reunidos sem que se cure de sua regeneração moral, traz em resultado perder-se a esperança de rehabilitação dos condemnados, tornando-se de dia a dia cada um delles mais depravado pelo contacto com os que já endurecidos na pratica do crime não são mais susceptiveis de regeneração. É necessario que se concilie o interesse da sociedade com os direitos dos sentenciados. A regeneração só póde vir pela educação e pelo trabalho e para isto é mister que se criem officinas e uma escola.

Essas narrativas humanitárias são suficientes para percebermos vários aspectos já levantados linhas atrás. Primeiramente, a centralidade do corpo dos encarcerados na produção e enaltecimento de um discurso reformista. Em segundo lugar, demonstra como as prestações de contas haviam alcançado, na década de 1880, outro nível, pois não mais se permitia fazer vistas grossas aos problemas penal-carcerários e aos dramas humanos vivenciados por homens e mulheres privados de liberdade. Isso constituía agora um “grave attentado contra as leis sociais e humanas”, como disse Lucena (1887, p. 161)LUCENA, Henrique Pereira de. Falla apresentada a Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Sul pelo Presidente da Província o Exm. Sr. Desembargador Henrique Pereira de Lucena ao instalar-se a 2ª Sessão da 21ª legislatura em 7 de Março de 1886. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1887., motivo pelo qual urgia conciliar o “interesse da sociedade com os direitos dos sentenciados”, segundo Pimentel (1889, p. 10)PIMENTEL, Joaquim Galdino. Falla que o Exm. Sr. Dr. Joaquim Galdino Pimentel, Presidente da Provincia, dirigio a Assembléa Legislativa da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul por occasião de ser installada a 1ª sessão da 23ª legislatura em 1 de Março de 1889. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1889.. Mas o motor dessas transformações, ao fim e ao cabo, seguia passando irremediavelmente pelo sentimento de “comiseração”, conforme exprimiu o desembargador diante das penúrias alheias que lhe confrangeram o coração.

Política, imprensa republicana e linguagem dos direitos

O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro transcreveu, no número de 17 de maio de 1885, várias notícias aparecidas até o dia 12 em folhas do Rio Grande do Sul, levadas para a Corte pelo vapor inglês Chatam. Foram publicadas na coluna “Gazetilha”, sob a rubrica “Sul do Imperio”, em plena primeira página. Uma delas, retirada de A Reforma,9 9 Órgão oficial do Partido Liberal. Media 15x34cm e já contava então com 18 anos de existência. Localizava-se na rua dos Andradas, nº 345, e sua assinatura anual em 1884/1885 custava 12 mil réis para a capital e 16 mil réis para fora. Segundo Cezar (1884, p. 189-190), por essa época, as oficinas funcionavam apenas com uma prensa Alauzet “movida a braço”, que antes havia servido ao Constitucional, órgão conservador. denunciava o estado caótico da cadeia civil de Porto Alegre, que abrigava, por então, mais de quatrocentos reclusos. A superlotação agravava velhos problemas higiênicos e diminuía consideravelmente a segurança do estabelecimento, mas foi a alusão ao “perigo” que representava a referida “aglomeração” que levou a redação do órgão liberal a chamar textualmente a atenção do presidente e chefe de polícia. Para paliar a situação, se sugeria a remoção de “um grande numero de presos militares” para as fortalezas da corte, assim como a de sentenciados a penas de galés perpétuas para o presídio de Fernando de Noronha.10 10 SUL do Império. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17 maio 1885, p. 1.

Esses e outros problemas, como se advertiu, não eram novos (CESAR, 2015bCESAR, Tiago da Silva. A (in)salubridade do cárcere e outras causa mortis na Casa de Correção de Porto Alegre, 1855-1888. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, , v. 22, n. 3, p. 829-848, jul./set. 2015b., 829-848), mas sim o uso político que se passou a dar a eles. O Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), fundado em 23 de fevereiro de 1882, já havia denunciado o periclitante estado higiênico do principal estabelecimento penitenciário da província em um artigo aparecido em A Federação,11 11 Passou a circular em 1º de janeiro de 1884. Segundo Cezar (1884, p. 200; p. 190-191), em meados desse ano, a província de São Pedro contava com aproximadamente 58 jornais, sendo A Federação o de maior circulação, imprimindo “cerca” de dois mil exemplares. À exceção dele, de A Reforma, e “talvez” do Jornal do Commercio da capital e do Correio Mercantil de Pelotas, nenhumoutro atingia os mil exemplares. Tinha o formato de 55x35cm e custava 14 mil réis a assinatura tanto para a capital quanto para o interior/exterior. Sua tipografia ficava na rua dos Andradas, nº 289 e 291. As oficinas operavam então com duas máquinas do fabricante Marinoni, a saber: a prensa Universelle e a Utile. órgão oficial da legenda, em 14 de março de 1885. A matéria publicada em A Reforma, portanto, veio a calhar, assim como sua reprodução no Jornal do Commercio da corte, resultando no ensejo perfeito para que importantes membros do PRR topassem integrar uma comissão nomeada pela Câmara Municipal para vistoriar a cadeia e outras instituições de caridade de Porto Alegre, em cumprimento do disposto no art. 56 da lei de 1º de outubro de 1828. A referida visita ocorreu efetivamente no dia 27 de maio, e dela redundou um extenso e detalhado relatório assinado pela comitiva em 14 de junho, posteriormente publicado na íntegra em A Federação do dia 30 do mesmo mês e ano.

Ao que tudo indica, contudo, não foi a notícia originalmente aparecida em A Reforma, ou o extrato das averiguações da visita municipal estampada em A Federação – diga-se de passagem, no mesmo dia em que aquela teve lugar (27de maio) – nem mesmo o relatório da comissão finalizado em 14 de junho e publicado no órgão do PRR no dia 30, o que finalmente chamou a atenção da presidência da província ao respeito, mas sim a transcrição da reportagem do órgão do Partido Liberal, acima referida, na primeira página do Jornal do Commercio (RJ). Diante da possível repercussão na corte e em outros espaços públicos locais, não restou outra alternativa ao Presidente José Julio de Albuquerque Barros a não ser solicitar satisfações ao chefe de polícia, em correspondência de 17 de junho de 1885.12 12 ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL (AHRS), Porto Alegre. Correspondência expedida para o Chefe de Polícia, 1880/1882/1885. Fundo Correspondência dos Governantes, Maço 119.

O caso é bastante ilustrativo acerca do que já vimos observando, em relação à politização dos assuntos penal-carcerários, com um claro uso no Rio Grande do Sul, por parte dos republicanos, como arma política contra o Império (CESAR, 2022CESAR, Tiago da Silva. A “questão penitenciária” no Rio Grande do Sul como arma política contra o Império (1884-1889). Revista de História, São Paulo, 2022 (no prelo).). Mas isso, se olharmos bem, só foi possível porque a sociedade, tal como notaram nossos colegas espanhóis para a sua realidade, pautando-se no “ethos punitivo da época, passou a considerar que o tratamento dos condenados deveria ser mais humano do que havia sido, que eles não poderiam ser maltratados gratuitamente”13 13 Trad. livre do autor: “ethos punitivo de la época, comenzó a considerar que el trato a los penados debía ser más humano de lo que venía siendo, que no podían ser maltratados de forma gratuita”. (OLIVER OLMO; GARGALLO VAAMONDE, 2020, p. 51OLIVER OLMO, Pedro; GARGALLO VAAMONDE, Luis. Tortura gubernativa y estado liberal. In: OLIVER OLMO, Pedro (Coord.). La tortura en la España contemporánea. Madrid: Catarata, 2020, p. 23-84.). Esse ethos, portanto, dependia e passava pela mudança de sensibilidade sobre o corpo e a vida dos encarcerados, motivo pelo qual insistimos na importância do vocabulário utilizado nesses documentos, assim como para os quadros narrativos apresentados. Comecemos pelo citado relatório de 14 de junho de 1885.14 14 Assinado pela comissão composta por: Júlio de Castilhos, Achylles Porto Alegre, João Câncio Gomes, Ramiro Barcellos e Felicíssimo Manoel de Azevedo, o Fiscal honorário.

A escrita dos comissionados é minuciosa em relação às condições precárias do edifício e suas consequências para o corpo dos encarcerados. Após descreverem a situação do xadrez das presas, dizendo ser “copia fiel de todos os outros”, afirmaram: “Poderá se fazer idéa d’esta prisão inquisitorial, considerando-se o desespero das miseraveis creaturas n’ella existentes, e amalgamadas como objectos em uma caixa, recebendo durante a noite a agoa da chuva, sem poderem d’ella desviar-se”.15 15 RELATORIO da commitrão nomeada pela Camara Municipal para visitar as prisões e estabelecimentos de caridade da capital. A Federação, Porto Alegre, 30 jun. 1885, p. 1. As citações feitas nos parágrafos que se seguem, incluindo o trecho longo com recuo, foram retiradas da mesma fonte.

A terrível cena de aglomeração das celas foi tamanha que os ilustres visitantes não deixaram de registrar inclusive a própria reação: “Ficou a commissão tomada de admiração, contemplando aquelles desgraçados, quasi entaipados, opprimidos no pequeno espaço que lhes fica livre, occupados em diversos trabalhos de industria”. Nem mesmo a comida fornecida aos presos enfermos pela Santa Casa de Misericórdia escapou das rotundas críticas:

Não póde haver maior deshumanidade: a comissão não contava encontrar na enfermaria da cadêa o desvelo que se observa nos hospitaes de caridade bem administrados; mas ficou deveras surprehendida ao examinar aquella dieta, vinda do lado opposto da cidade, chegando fria ao seu destino, para ser servida n’este estado uma vez aodia, sendo a mesma para todos os doentes, sem se atender ao estado de cada um.

Pouco mais adiante, argumentando sobre a necessidade de se concluir o edifício que vinha se arrastando inacabado desde 1855, expressaram a opinião de que: “A sociedade, que, para bem da segurança propria, da tranquilidade, retira de seu seio os membros que se deixaram corromper, não deve mostrar-se tão deshumana e cruel como elles [...]”. Caso não fosse, entretanto, possível terminar a obra ou remover pelo menos a “metade” dos presos existentes para outro edifício, “em bem da humanidade soffredora”, sugeria a comissão que a Câmara Municipal deveria impetrar ao Imperador um pedido de perdão de “grande parte d’esses infelizes tão deshumanamente tratados” para que os restantes pudessem ser melhor acomodados. Acusavam que, projetada para cento e cinquenta presos, a cadeia guardava então quatrocentos e cinquenta.

Outro bom exemplo do que estamos analisando é a linguagem utilizada na narrativa humanitária produzida à raiz de uma inspeção de higiene realizada na cadeia civil em 8 de maio de 1886. Segundo se noticiou: “Penetrando nas prisões adjacentes, notaram os visitantes um extraordinario excesso de lotação, em compartimentos humidos, sujos, apertados e fetidos... um espectaculo horroroso!”. Os “alienados” detidos viviam “soltos” pelo recinto, “alguns completamente nús e sem terem alimento!”. Aqueles mais “agitados” eram presos em celas “apertadas, sem ar, sem luz e sem limpeza alguma”, num “casebre velho” que servia de corpo da guarda, dentro do páteo, porém separado do edifício da cadeia. “É ali que se hospedam os alienados agitados, os quaes vivem nús e dormem sobre o solo coberto de materias fecaes!” Porém, mais escandalizada ficou a comissão de higiene quando deparou-se no corredor “que leva a estas enxovias” com o “cadaver de um alienado, ha 24 horas ali abandonado, logo á entrada!”.16 16 UMA VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 8 maio 1886, p. 2.

Repare-se, pelos sucessivos pontos de exclamação, na ênfase posta nessas narrativas humanitárias e na profusão de referências não somente ao ambiente sórdido, mas aos próprios corpos que o habitavam. Por questão de espaço, não é possível transcrevermos todas as passagens significativas, mas é notável como as celas e outros recintos penais eram meticulosamente descritos, fornecendo-nos uma imagem em três dimensões dessas instalações, a fim de impactar e mexer realmente com os sentidos dos potenciais leitores e/ou ouvintes. É evidente o objetivo de suscitar cumplicidade e respaldo naqueles que também expressavam uma sensibilidade civilizada, baseada nos princípios humanos, mas não menos o de suscitá-la em quem talvez nunca tivesse expressado empatia, a fim de “melhorar as tristes condições em que vivem os miseros encarcerados”.17 17 VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2.

Ao contrário da reação demonstrada pelo presidente José Julio de Albuquerque Barros (1886)BARROS, José Julio de Albuquerque. Relatorio apresentado a S. Exc. o Sr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos 2º Vice-Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul pelo Exm. Sr. Conselheiro José Julio de Abuquerque Barros ao passar-lhe a presidência da mesma província no dia 19 de setembro de 1885. Porto Alegre: Officinas Typographicas do Conservador, 1886. um ano antes, que somente procurou averiguar a situação vivida na cadeia civil após as repercussões da reportagem aparecida no Jornal do Commercio da corte, Manuel Deodoro da Fonseca, nosso futuro primeiro Presidente da República, aceitou prontamente o convite feito pela Inspetoria de Higiene para vistoriar pessoalmente o estabelecimento penal,depois da divulgação na imprensa dos resultados da visita do dia 8. Segundo se noticiou, “tão impressionado ficou s. ex., que declarou: – Fazia pessimo juizo sobre a cadêa, mas não esperava encontral-a em semelhante estado!”.18 18 VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2.

Confiamos que o potencial leitor já se tenha dado conta de como o assunto ganhou ressonância e total cobertura pelo PRR, através de A Federação. Mas outro importante correligionário dedicou ainda mais tempo e tinta aos problemas denunciados pelas respectivas comissões em sua coluna Cousas municipaes. Felicíssimo Manoel de Azevedo, o famoso “fiscal honorário”, escreveu nem mais nem menos que quatro crônicas que saíram à luz entre os dias 10 e 20 de maio de 1886. Delas, apenas nos interessará destacar a instrumentalização do discurso humanitário em meio aos seus usos políticos.

Já em sua primeira crônica, é muito sintomático o apelo à sensibilidade dos seus ouvintes e leitores, por meio de perguntas retóricas, defendendo e reivindicando reformas e melhorias das condições carcerárias baseadas em “sentimentos de justiça e de humanidade”. Dirigindo-se aos “cidadãos vereadores”, exclamava:

E haveis de presenciar indifferentes, cidadãos vereadores, esta aberração de todos os sentimentos de justiça e de humanidade, sem tomardes uma providencia com o fim de obter uma reparação a tão escandaloso procedimento das autoridades que têm a seu cargo uma tal instituição?

Não, não é possível que acoberteis com o silencio tão deshumano proceder.19 19 COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Felicíssimo desenvolveu uma potente narrativa humanitária, reproduzindo cenas de como as referidas inspeções haviam encontrado os presos cumprindo sentença nas deploráveis condições da cadeia civil de Porto Alegre. Mas aqui, como dissemos, interessa seguir explicitando o vocabulário, as expressões e as representações do que se julgava desumano, insensível ou típico de uma sociedade bárbara: “A sociedade, retirando de seu seio os malevolos, não deve mostrar-se mais deshumana do que elles, assassinando-os aos poucos com um martyrio tão cruel, negando-lhes até conforto quando enfermos”.20 20 COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Como um dos principais objetivos de suas crônicas era atacar o regime monárquico, sobrou até mesmo para o imperador. Considerado a fonte de todos os males, incluída a inexistência de uma autêntica política penal-carcerária, dizia-se que o velho monarca tampouco atendia aos princípios que deveriam ser próprios de sua figura real. Fazia “ostentação de piedade e devoção”, mas na prática deixava os encarcerados à mercê de suas desgraças e da desídia governamental. Por isso, recomendava Felicíssimo: “ponde diante de seus olhos o quadro repelente que acabo de pintar”,21 21 COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1. pois quem sabe assim, vendo e ouvindo, talvez despertasse nele algum tipo de sentimento ou empatia que o levasse, por sua vez, a obrar no sentido de promover ações institucionais concretas. Questionavam-se, portanto, seus principais atributos e representações de um príncipe justiceiro, clemente e piedoso.

Felicíssimo resgatou nessas crônicas a “humanitária” ideia da criação de uma colônia agrícola para que “se aproveitem os serviços dos miseraveis que estão apodrecendo na cadêa de Porto Alegre (arrumados como pilhas de xarque em porão de navio), para serem reabilitados pelo trabalho e voltarem depois á sociedade”.22 22 COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2. Essa, segundo ele, era a melhor forma de “desbastar o numero dos infelizes presos, não pelo assassinato latente produzido pelo deshumano tratamento que lhes é dado, mas pelo trabalho que é o reparador dos máos instinctos e o protector dos desprotegidos da sorte”.23 23 COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.

Conclusão

Neste artigo, privilegiamos dois tipos específicos de “narrativa humanitária” acerca das condições de encarceramento no Brasil imperial: a) os relatórios governamentais de ministros da justiça (1825-1855), de presidentes da província do Rio Grande do Sul (1855-1889), e de comissões de âmbito municipal e provincial, exarados a partir de visitas realizadas à Cadeia Civil de Porto Alegre (1885-1886); b) algumas crônicas e denúncias jornalísticas publicadas em A Federação sobre o estado higiênico-sanitário da estrutura penal da capital e de suas consequências para os corpos aprisionados.

Quanto ao primeiro conjunto, apesar de integrarem uma mesma tipologia, não eram necessariamente iguais, nem respondiam aos mesmos interesses, embora frutos de prestações de contas governamentais: o primeiro, dirigido mormente às assembleias gerais legislativas; o segundo, na maioria dos casos, à assembleia legislativa provincial; e o terceiro, à municipalidade porto-alegrense e ao governo provincial. São, portanto, documentos oficiais, como se disse, que visavam prestar contas de algo a alguém, mas até entre eles havia diferenças importantes. Os relatórios ministeriais e provinciais tratavam de informar sobre aquilo que esteve sob a responsabilidade da pasta ou do governo

dos mesmos signatários. Diferente, logicamente, daqueles assinados por comissões municipais ou juntas de higiene provinciais que tinham como incumbência inspecionar instituições ou situações/realidades administrativas que não dependiam ou eram resultado de suas próprias gestões. Daí que a linguagem humanitária seja bastante mais atenuada nos primeiros em relação aos segundos. Por sua vez, o segundo conjunto, composto pelas crônicas e reportagens jornalísticas publicadas em A Federação, tinha um claro objetivo de polemizar, politizando a miséria humana vivida nas prisões contra o regime monárquico.

Mas em qualquer caso, e sejam quais fossem os motivos ou “verdadeiros” objetivos por trás da produção dos relatos analisados, suas narrativas, como diria Laqueur (2001, p. 267)LAQUEUR, Tomas W. . Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 239-277., tinham a “capacidade de criar [uma] espécie de preocupação moral que surgiu no final do século XVIII”. Este autor também atribui à matriz iluminista a gestação de uma sensibilidade que, entre outros alvos, descobriu o corpo dos prisioneiros e permitiu o surgimento de uma cultura reformista da qual John Howard talvez tenha sido o maior expoente. A pergunta disparadora formulada em seu ensaio – “como os detalhes sobre os corpos sofredores dos outros suscitam a compaixão, e de que modo essa compaixão passa a ser entendida como um imperativo de ações mitigatórias” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Tomas W. . Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 239-277., p. 239) – também foi a nossa questão.

Esperamos ter demonstrado que não somente se produziu uma narrativa humanitária, durante o período imperial, a partir do corpo dos encarcerados, como tais relatos e gestos de comiseração também acabaram fortalecendo o sentimento de um certo dever moral que alimentava por sua vez ações e medidas (paliativas ou não) em prol dos condenados. Entendendo as limitações de alguns dos seus subscritores – como no caso de ministros e governantes, que, ao fim e ao cabo, avaliavam suas próprias gestões, podendo dessa forma carregar as tintas quando a narrativa humanitária interessava, ou atenuá-la (quando não a suprimir completamente) quando não –, percebe-se ainda assim a construção de um discurso em defesa de ações mitigatórias. Como era de se esperar, os relatórios exarados em inspeções foram ainda mais claros e insistentes sobre a necessidade de atender às mazelas vividas pelos presos. Afinal de contas, o “inquérito tem uma ligação explícita com a solidariedade pelo sofrimento dos estranhos” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Tomas W. . Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 239-277., p. 277).

Todas essas narrativas, como também se demonstrou, não deixaram de ser aproveitadas pelo PRR, que, fazendo coro com a campanha contra a escravidão, tomava o discurso da justiça, dos direitos, da humanidade, da clemência e da piedade como plataforma política a partir da qual não lhe faltava munição para disparar contra o regime monárquico. Mas, a partir da produção de reportagens e crônicas como as anteriormente analisadas do “fiscal honorário”, um público maior é acionado e o leitor/ouvinte é convidado, até mais do que isso, conclamado a solidarizar-se com o corpo daqueles que penavam atrás das grades muito além da “simples” privação de liberdade.

Vale elucidar com um último exemplo. Após receber insistentes críticas pela defesa da criação de uma colônia agrícola, Felicíssimo perdeu a paciência e chamou seus detratores de “deshumanos”. Provando na pele não ter convencido nem demovido todo mundo pelas palavras, expressou a convicção de que essas pessoas mereciam “ir parar nas masmorras de nossa cadêa, ao menos uns trinta dias, para saberem como aquillo é bom”.Tal“tratamento de choque”, por mais que esgrimido apenas no mundo das intenções, não deixa de confirmar o que vimos analisando acerca da importância da sensibilização como motor das reformas ou ações mitigatórias. Nessa mesma crônica, o “fiscal honorário” concluiria sintomaticamente convidando os potenciais leitores para compararem suas ideias com a situação do cárcere porto-alegrense, questionando se não tinha razão em “evocar os sentimentos de caridade e humanidade de quem nos governa, em favor de tantos miseraveis encarcerados, que ainda poderão rehabilitar-se tornando-se uteis á sociedade”.24 24 Entre as manifestações contra as quais Felicíssimo dizia reagir, estava a de um suposto indivíduo que teria expressado a seguinte solução para o problema da superlotação: “Enforquem-se os que excederem á lotação da cadêa! São criminosos; não devem merecer contemplação alguma”. COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.

Aí está a pedra de toque do “processo civilizador punitivo”; sem o compartilhamento massivo de sentimentos de caridade, humanidade, filantropia, justiça, piedade, empatia, etc., os direitos, mesmo já expressos em leis e em códigos, enfrentam sérios obstáculos e resistências em suas observâncias. Como se diria popularmente, a lei não é gente, e não sendo, não grita por si só contra um desrespeito. Por isso a importância dos relatos e do vocabulário das sensibilidades neles presentes, pois, independentemente dos objetivos, eles atuavam, como sugeriu Laqueur (2001, p. 277)LAQUEUR, Tomas W. . Corpos, detalhes e a narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 239-277., “no sentido de despertar as ‘paixões solidárias’ e de transformar, pelo menos por um momento, o ‘é’ em ‘deve ser’”. Nessa mesma direção, Aguirre (2019, p. 30)AGUIRRE, Carlos. Donde se amansan los guapos: Las cárceles de Lima (1850-1936). Lima: Ed. Universidad del Pacífico, 2019. consegue sintetizar muito bem a questão:.

Para além das necessidades específicas que a punição pode satisfazer – dissuasão, regeneração, controle do mercado de trabalho e outras –, ou das bases jurídicas e doutrinárias sobre as quais os ideólogos formulam suas propostas – direito natural, humanitarismo, ciência –, o modo como o resultado final dessa punição assume sempre dependerá, em essência, da influência de sensibilidades socialmente construídas. Em outras palavras, o que é considerado adequado, justo, horrendo ou merecido é definido não apenas pela lei ou pelas necessidades do Estado, mas – mais importante – pelos valores culturais dominantes (mas ainda contestados) da sociedade como um todo.25 25 Trad. livre do autor: “Mas allá de las necesidades específicas que el castigo puede satisfacer – disuasión, regeneración, control del mercado laboral y otras –, o de las bases legales y doctrinarias sobre las cuales los ideólogos formulan sus propuestas – ley natural, humanitarismo, ciencia –, la forma final que el castigo asuma dependerá siempre, en esencia, de la influencia de las sensibilidades socialmente construidas. En otras palabras, lo que se considera apropiado, justo, horrendo o bien merecido es definido no solo por la ley o las necesidades del Estado, sino – lo que es más importante – por los valores culturales dominantes (pero aun así cuestionados) de la sociedad en su conjunto”.

As narrativas humanitárias analisadas, por outra parte, devem ser lidas também a partir dos contextos econômico-políticos e sócioculturais dos diferentes períodos atravessados pelo país, desde o Primeiro Reinado até a queda da monarquia, compreendendo um arco temporal de praticamente 67 anos. Percebe-se, por exemplo, um claro engajamento da imprensa a partir do início da década de 1880, publicando ou dando espaço a assuntos e denúncias, conforme tivemos a ocasião de documentar.

Antes de alguém dizer que se tratava apenas da imprensa republicana, é importante lembrar que a matéria reproduzida no Jornal do Commercio da corte (de orientação conservadora) havia sido originalmente publicada em A Reforma, órgão do Partido Liberal, mas também há outros registros. Quando Deodoro da Fonseca visitou pela primeira vez, em 14 de maio de 1886, a cadeia civil, em pleno escândalo gerado à raiz do exarado pela inspeção de higiene do último dia 8, além de A Federação, também O Mercantil26 26 Jornal fundado por João Câncio Gomes que contava então com 13 anos de circulação. Media 51x32 cm e custava em 1884/1885 a assinatura anual 12 mil réis para a capital e 15 mil réis para fora. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua General Câmara, nº 49 (CEZAR, 1884, p. 190). se fez presente. Nessa mesma reportagem, ainda se sublinhariam as “tristes condições” vividas pelos “miseros encarcerados”. Afirmava-se, igualmente: “São constantes as reclamações da imprensa, mas não tem havido até hoje uma autoridade que as tome em consideração”.27 27 VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2. Com efeito, inclusive o Jornal do Commercio28 28 Com 63x45cm, era dono do maior formato das folhas sul-rio-grandenses e contava, já por então, com 22 anos de existência. Em 1884/1885, a assinatura custava, por ano, 18 mil réis para a capital e 20 mil réis para fora. As oficinas tipográficas ficavam na Praça Senador Florêncio (atual Praça da Alfândega). Segundo ainda Cezar, possuíam uma máquina de impressão dos fabricantes Dawson & Sons, movida à vapor (de Roley & Comp.), e outra prensa Alauzet (CEZAR, 1884, p.188-189). de Porto Alegre, caracterizado ironicamente pelos republicanos de “orgam neutro”, reservaria alguns comentários. Segundo uma nota publicada emA Federação de 12 de maio, a referida folha se teria pronunciado acerca do “pessimo estado em que se acha a nossa cadeia civil”, escrevendo que “crê sinceramente que as cousas não melhorarão emquanto um administrador animado de boa vontade e cumpridor dos seus deveres não fizer um supremo esforço”.29 29 RESPIGAS. A Federação, Porto Alegre, 12 maio 1886, p. 2.

Esse engajamento, não obstante, deve ser compreendido dentro de um conjunto de demandas altamente politizadas naquela década, como o próprio movimento abolicionista (ALONSO, 2015ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), a luta contra a manutenção de práticas penais como a pena de morte (PIROLA, 2016, p. 134-135PIROLA, Ricardo Figueiredo. Cartas ao Imperador: Os pedidos de perdão de réus escravos e a decisão de 17 de outubro de 1872. Almanack, v. 1, p. 130-152, 2016.), ou, a de açoites destinadas a escravizados, esta última, por certo, abolida por decreto de 15 de outubro de 1886. Pirola (2017, p. 1)PIROLA, Ricardo Figueiredo. O castigo senhorial e a abolição da pena de açoites no Brasil: Justiça, imprensa e política no século XIX. Revista de História, n. 176, p. 1-34. 2017., precisamente, salienta a importância da imprensa num “amplo debate de crítica aos castigos físicos nos anos finais da escravidão”.

O corpo dos encarcerados serviu de base comum de sentimentos e caminhos para a intervenção prática, moral e reformadora. E, embora não entre em nossos objetivos, resta dizer que os presos não ficaram alheios em meio a todas essas narrativas e discursos humanitários. Pelo contrário, foram alvos e partícipes de propostas de reformas e melhorias, pressionando a partir de dentro dos cárceres e instrumentalizando não raramente a “política da piedade” (MARTINS, 2017MARTINS, Ana Paula Vosne. A política dos sentimentos e a questão social no século XIX. Anos 90, v. 24, n. 46, p. 239-268, 2017., p. 258).

  • 1
    Utilizamos este termo no amplo sentido expressado por Barrán (1991, p. 11)BARRÁN, José Pedro. Historia de la sensibilidad en el Uruguay: El disciplinamiento (1860-1920). V. II. Montevidéu: Banda Oriental, 1991.: “Essa sensibilidade (...) que chamamos de ‘civilizada’ disciplinou a sociedade: impôs a gravidade e ‘enrijecimento’ ao corpo; o puritanismo à sexualidade; o trabalho ao ‘excessivo’ ócio antigo; ocultou a morte, distanciando-a e embelezando-a; horrorizou-se perante a punição de crianças, delinquentes e classes trabalhadoras, e preferiu reprimir suas almas”. Trad. livre do autor: “Esa sensibilidad (…) que hemos llamado ‘civilizada’, disciplinó a la sociedad: impuso la gravedad y el ‘empaque’ al cuerpo, el puritanismo a la sexualidad, el trabajo al ‘excesivo’ ocio antiguo, ocultó la muerte alejándola y embelleciéndola, se horrorizó ante el castigo de niños, delincuentes y clases trabajadoras y prefirió reprimir sus almas”.
  • 2
    O uso dessa expressão merece um esclarecimento. Com “linguagem dos direitos humanos”, não nos estamos nos referindo ao conceito de “direitos humanos” que, como é sabido, seria anacrônico e invalidaria todo o esforço de análise subsequente. Interessa-nos o vocabulário dos direitos, tal como o que se produziu a partir das declarações do XVIII, como potenciais motores e (re)produtores de narrativas humanitárias, em contextos e configurações específicas – portanto, não extensível a todos os indivíduos, nem muito menos a uma ampla parcela territorial do mundo ocidental. Sem esses cuidados, incorreríamos numa leitura teleológica e anacrônica (SILVA, 2014SILVA, Cristina Nogueira da. Como contar a história dos Direitos Humanos na Europa: Algumas questões metodológicas. In: MARQUES, António; BARCELOS, Paulo. (Org.). Direitos fundamentais e soberania na Europa: História e atualidade. Lisboa: Ed. Universidade Nova de Lisboa, 2014, p. 27-65., p. 34-36), uma vez que nossas balizas temporais não ultrapassam o século XIX. Consideramos importante ressaltar, igualmente, que não comungamos em absoluto com a ideia de uma suposta existência de “direitos humanos dos presos” para o período estudado. Como assinalou Sontag (2019, p. 143-144)SONTAG, Ricardo. “Casas de correcção” ou “casas de corrupção”? Os juristas e a questão penitenciária no Brasil (1830-1984). In: CESANO, José Daniel; NÚÑEZ, Jorge A.; GONZÁLEZ ALVO, Luis (Ed.). Historia de las prisiones sudamericanas: Entre experiencias locales e historia comparada (siglos XIX y XX). San Miguel de Tucumán: Ed. Universidad Nacional de Tucumán, 2019, p. 91-171., “[a]bstratamente, os encarcerados se encaixam como sujeitos de todos os direitos dos quais já falava a velha Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 (com as suas reverberações –maiores ou menores– nos textos constitucionais dos séculos XIX e XX, inclusive nas brasileiras)”. Para falar especificamente em “direitos humanos dos presos”, teríamos que avançar, conforme o autor, para uma temporalidade ainda mais recente, após a Segunda Guerra Mundial.
  • 3
    Segundo Koselleck (2006, p. 102)KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006.: “Privilégios políticos ainda por serem conquistados foram formulados primeiro na linguagem, justamente para que pudessem ser conquistados e para que fosse possível denominá-los”.
  • 4
    Essa “fórmula” reaparecerá em Coutinho (1834, p. 17)COUTINHO, Aureliano de Souza e Oliveira. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1834, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1834., Branco (1835, p. 37)BRANCO, Manoel Alves. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1835, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1835., Câmara (1852, p. 23)CÂMARA, Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso. Relatorio apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Quarta Sessão da Oitava Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso Câmara. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1852. e Araújo (1854, p. 20ARAÚJO, José Tomaz Nabuco de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na segunda sessão da nona legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Tomaz Nabuco de Araújo. Rio de Janeiro: Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, 1854.; 1855, p. 19)ARAÚJO, José Tomaz Nabuco de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na terceira sessão da nona legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Tomaz Nabuco de Araújo. Rio de Janeiro: Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, 1855..
  • 5
    Branco (1835, p. 41)BRANCO, Manoel Alves. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Sessão Ordinaria de 1835, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Manoel Alves Branco. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1835. também anotaria que os presos consideravam as dificuldades impostas pela distância um “rigoroso castigo”.
  • 6
    Enquanto Honório sugeria enviar degredados para trabalhar em colônias agrícolas em seu relatório correspondente ao ano de 1832 (LEÃO, 1833LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Relatorio do Ex.mo Ministro de Justiça do ano de 1832, apresentado a Assembléa Geral Legislativa na sessão ordinaria de 1833. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1833., p. 31-32), duas décadas depois Eusébio de Queiroz (CÂMARA, 1852CÂMARA, Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso. Relatorio apresentado a Assembléa Geral Legislativa na Quarta Sessão da Oitava Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça Euzebio de Queiroz Coitinho Mattoso Câmara. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1852., p. 24-23) voltaria a considerar o degredo, porém em presídios, como alternativa às penas de prisão, buscando-se, assim, desafogar os cárceres imperiais e solucionar, simultaneamente, a falta de cadeias construídas propositalmente.
  • 7
    Trad. livre do autor: “las cárceles infierno”.
  • 8
    Em outra passagem significativa e talvez ainda mais esclarecedora, expressou que “a linguagem não fornece simplesmente aos indivíduos o vocabulário através do qual eles formulam seus interesses sociais, mas é o que lhes permite conceber os próprios interesses sociais” (CABRERA, 2001CABRERA, Miguel Ángel. Historia, lenguaje y teoría de la sociedad. Madrid: Frónesis-Cátedra, 2001., p. 103). Trad. livre do autor: “el lenguaje no proporciona simplemente a los individuos el vocabulario mediante el cual éstos formulan sus intereses sociales, sino que es el que les permite concebir a los intereses sociales mismos”.
  • 9
    Órgão oficial do Partido Liberal. Media 15x34cm e já contava então com 18 anos de existência. Localizava-se na rua dos Andradas, nº 345, e sua assinatura anual em 1884/1885 custava 12 mil réis para a capital e 16 mil réis para fora. Segundo Cezar (1884, p. 189-190)CEZAR, J. J.. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., por essa época, as oficinas funcionavam apenas com uma prensa Alauzet “movida a braço”, que antes havia servido ao Constitucional, órgão conservador.
  • 10
    SUL do Império. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 17 maio 1885, p. 1.
  • 11
    Passou a circular em 1º de janeiro de 1884. Segundo Cezar (1884, p. 200; p. 190-191)CEZAR, J. J.. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., em meados desse ano, a província de São Pedro contava com aproximadamente 58 jornais, sendo A Federação o de maior circulação, imprimindo “cerca” de dois mil exemplares. À exceção dele, de A Reforma, e “talvez” do Jornal do Commercio da capital e do Correio Mercantil de Pelotas, nenhumoutro atingia os mil exemplares. Tinha o formato de 55x35cm e custava 14 mil réis a assinatura tanto para a capital quanto para o interior/exterior. Sua tipografia ficava na rua dos Andradas, nº 289 e 291. As oficinas operavam então com duas máquinas do fabricante Marinoni, a saber: a prensa Universelle e a Utile.
  • 12
    ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL (AHRS), Porto Alegre. Correspondência expedida para o Chefe de Polícia, 1880/1882/1885. Fundo Correspondência dos Governantes, Maço 119.
  • 13
    Trad. livre do autor: “ethos punitivo de la época, comenzó a considerar que el trato a los penados debía ser más humano de lo que venía siendo, que no podían ser maltratados de forma gratuita”.
  • 14
    Assinado pela comissão composta por: Júlio de Castilhos, Achylles Porto Alegre, João Câncio Gomes, Ramiro Barcellos e Felicíssimo Manoel de Azevedo, o Fiscal honorário.
  • 15
    RELATORIO da commitrão nomeada pela Camara Municipal para visitar as prisões e estabelecimentos de caridade da capital. A Federação, Porto Alegre, 30 jun. 1885, p. 1. As citações feitas nos parágrafos que se seguem, incluindo o trecho longo com recuo, foram retiradas da mesma fonte.
  • 16
    UMA VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 8 maio 1886, p. 2.
  • 17
    VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2.
  • 18
    VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2.
  • 19
    COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 20
    COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 21
    COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 22
    COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.
  • 23
    COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 10 maio 1886, p. 1.
  • 24
    Entre as manifestações contra as quais Felicíssimo dizia reagir, estava a de um suposto indivíduo que teria expressado a seguinte solução para o problema da superlotação: “Enforquem-se os que excederem á lotação da cadêa! São criminosos; não devem merecer contemplação alguma”. COUSAS municipaes. A Federação, Porto Alegre, 17 maio 1886, p. 2.
  • 25
    Trad. livre do autor: “Mas allá de las necesidades específicas que el castigo puede satisfacer – disuasión, regeneración, control del mercado laboral y otras –, o de las bases legales y doctrinarias sobre las cuales los ideólogos formulan sus propuestas – ley natural, humanitarismo, ciencia –, la forma final que el castigo asuma dependerá siempre, en esencia, de la influencia de las sensibilidades socialmente construidas. En otras palabras, lo que se considera apropiado, justo, horrendo o bien merecido es definido no solo por la ley o las necesidades del Estado, sino – lo que es más importante – por los valores culturales dominantes (pero aun así cuestionados) de la sociedad en su conjunto”.
  • 26
    Jornal fundado por João Câncio Gomes que contava então com 13 anos de circulação. Media 51x32 cm e custava em 1884/1885 a assinatura anual 12 mil réis para a capital e 15 mil réis para fora. As oficinas tipográficas estavam localizadas na rua General Câmara, nº 49 (CEZAR, 1884CEZAR, J. J.. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., p. 190).
  • 27
    VISITA á cadea. A Federação, Porto Alegre, 14 maio 1886, p. 2.
  • 28
    Com 63x45cm, era dono do maior formato das folhas sul-rio-grandenses e contava, já por então, com 22 anos de existência. Em 1884/1885, a assinatura custava, por ano, 18 mil réis para a capital e 20 mil réis para fora. As oficinas tipográficas ficavam na Praça Senador Florêncio (atual Praça da Alfândega). Segundo ainda Cezar, possuíam uma máquina de impressão dos fabricantes Dawson & Sons, movida à vapor (de Roley & Comp.), e outra prensa Alauzet (CEZAR, 1884CEZAR, J. J.. Notas sobre a imprensa do Rio Grande do Sul. In: AZAMBUJA, Graciano A. de. Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o anno de 1885 publicado sob a direcção de Graciano A. de Azambuja. Porto Alegre: Gundlach & Cia., 1884, p. 188-200., p.188-189).
  • 29
    RESPIGAS. A Federação, Porto Alegre, 12 maio 1886, p. 2.

Agradecimentos

Agradeço enormemente aos pareceristas anônimos pelas contribuições valiosas e à equipe editorial pelo excelente trabalho.

Referências

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  • ARAÚJO, José Tomaz Nabuco de. Relatorio da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado a Assembléa Geral Legislativa na terceira sessão da nona legislatura pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado José Tomaz Nabuco de Araújo Rio de Janeiro: Typographia Dous de Dezembro de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial, 1855.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2022
  • Revisado
    08 Set 2022
  • Aceito
    09 Set 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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