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A geopolítica do pós-Segunda Guerra vista a partir do futebol

Football as a Viewpoint of Post-War Geopolitics

BURLAMAQUI, Luiz Guilherme. A dança das cadeiras. : A eleição de João Havelange à presidência da FIFA (1950-1974).São Paulo: USP-Capes, Intermeios, 2020

Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola

(RODRIGUES, 1993RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 116)

Essa citação do dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues é lugar-comum na produção dos estudos sociais sobre o futebol. A máxima do escritor, porém, serve de lembrança sobre como tal prática cultural e esportiva coloca muito mais em jogo do que uma mera esfera de borracha e couro. Nessa perspectiva, não é de se estranhar como, desde os primeiros estudos nacionais sobre o futebol, seus autores buscaram, partindo do esporte como objeto de investigação, responder a questões centrais da realidade brasileira.

Nos anos 1940, o irmão de Nelson Rodrigues, o jornalista Mario Filho, narrou a trajetória do futebol no Rio de Janeiro, do ponto de vista da inserção dos negros nesse esporte, em um livro infuenciado por Gilberto Freyre (RODRIGUES FILHO, 2003RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.). Roberto DaMatta (1982)DAMATTA, Roberto et al.. Universo do futebol: Esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. e um grupo de pesquisadores do Museu Nacional propuseram-se, no início dos anos 1980, a debater a identidade nacional por meio do futebol. Essa publicação inaugurou uma tradição de estudos acadêmicos nas ciências humanas, que só se expandiu desde então, com a formação de uma vasta bibliografia. Para que se tenha ideia dessa rápida proliferação, vale citar que, entre os anos 1990 e 1999, foram produzidas 76 teses e dissertações com esse enfoque, número que quase quadruplicou, saltando para 280, no intervalo entre 2000 e 2009 (GIGLIO; SPAGGIARI, 2010GIGLIO, Sérgio Settoni; SPAGGIARI, Enrico. A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: Um panorama (1990-2009). Revista de História, n. 163, p. 293-350, jul./dez. 2010.).

Atualmente, a produção sobre futebol articula o fenômeno às mais diferentes questões culturais, econômicas, políticas, etc., consolidando a percepção da prática como um “fato social total”, nos termos propostos pelo antropólogo Marcel Mauss (2003, p. 309)MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.. Nesse sentido, o livro A dança das cadeiras: A eleição de João Havelange à presidência da FIFA (1950-1974), de Luiz Guilherme Burlamaqui (2020), tem o mérito de abordar um dos aspectos ainda pouco explorados sobre o futebol na produção brasileira, que é a sua articulação à história das relações internacionais.

A publicação, originada da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da USP em 2019, consiste em importante contribuição para a compreensão da conjuntura geopolítica do Pós-Segunda Guerra, marcada pela dinâmica da Guerra Fria, da reconstrução europeia e da descolonização de regiões da Ásia e, principalmente, da África. No centro desse grande quadro, estão dois protagonistas, uma instituição transnacional, a Federação Internacional de Futebol (FIFA), e um dirigente esportivo brasileiro, João Havelange, que se tornaria, a partir de 1974, o presidente da entidade, na qual se manteve até 1998.

O exame que Burlamaqui (2020) realiza não se restringe à atuação dos Estados-Nações. Seu interesse se volta, sobretudo, para uma associação esportiva transnacional, a FIFA, e seu ponto de vista é de que a diplomacia também se constrói historicamente por meio de entidades privadas, de modo que cabe ao pesquisador da área alargar seu olhar sobre as conexões globais e as várias linhas de força que as atravessam.

Para tanto, o autor propõe um recorte centrado em um evento: a eleição para presidência da FIFA de 1974, que elevou João Havelange à condição de dirigente máximo e que representou a saída para a crise vivida pela entidade rumo à sua modernização. Ao optar por esse enquadramento, o autor insere o debate sobre o lugar da narrativa episódica na escrita da História, tecendo uma sofisticada discussão conceitual.

A constatação da modernização vivenciada pela entidade esportiva internacional é feita a partir de uma bela imagem: a da comparação entre suas sedes antes e depois de 1974. A fotografia da antiga sede da FIFA, destacada na capa de A dança das cadeiras, um bucólico casarão de estilo europeu, contraposta ao registro do novo prédio de traçado modernista, forma uma potente indicação dos novos tempos que se seguiram à eleição de João Havelange.

A presença de Havelange permite que Luiz Burlamaqui (2020) explore a perspectiva da história de vida, em um caso que perpassa boa parte da existência do Brasil republicano. Nessa medida, ao examinar a trajetória do ex-atleta, empresário e dirigente esportivo que teve uma vida centenária, o autor é capaz de estabelecer refexões sobre a atuação das elites em diferentes conjunturas do país no século XX, em especial no período democrático (1945-1964) e na ditadura instalada com o golpe de 1964. Além disso, o pesquisador investiga a construção da imagem de si por João Havelange, ao explorar suas (auto)biografias, algumas delas patrocinadas pelo próprio dirigente e/ou pela FIFA.

Do ponto de vista das fontes examinadas, o estudo avança e aponta caminhos interessantes para futuras pesquisas não apenas sobre futebol, mas também sobre relações internacionais. Os usos de conteúdo jornalístico, de biografias, de relatos orais e de documentação diplomática disponível nos acervos do Itamaraty, por si só, já garantiriam uma sólida base empírica. É, no entanto, a mobilização dos acervos disponíveis em entidades privadas, como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA), que representa um esforço ainda raro em trabalhos desenvolvidos no Brasil. Sua utilização indica toda a potencialidade das fontes mantidas por instituições transnacionais não governamentais para a compreensão da trajetória da geopolítica e da inserção de nosso país no concerto global.

Ao examinar a trajetória da FIFA e a construção de sua hegemonia baseada na constituição de um monopólio sobre a organização do futebol em suas diferentes expressões, Burlamaqui (2020) oferece um ponto de vista a partir do Sul Global que coloca em xeque algumas interpretações europeias da ascensão de lideranças vindas de regiões menos tradicionais, de fora do Velho Mundo, berço do esporte moderno consolidado no século XIX. Em especial, ele torna mais complexa a interpretação do jornalista inglês Andrew Jennings (2011)JENNINGS, Andrew. Jogo sujo: O mundo secreto da FIFA. Compra de votos e escândalo de ingressos. Rio de Janeiro: Panda Books, 2011., que atribui a emergência de uma rede de corrupção do futebol baseada na FIFA à eleição de João Havelange – uma perspectiva saudosista da liderança britânica até então representada por Stanley Rous, presidente da entidade de 1961 a 1974.

Sem ignorar as manobras éticas e antiéticas envolvidas na disputa pelo poder da entidade máxima do futebol, Luiz Burlamaqui (2020) busca compreender o episódio da eleição de João Havelange em associação com uma série de processos brasileiros e internacionais. A capacidade de articulação do evento a fenômenos os mais diversos é certamente o grande mérito do livro. Assim, à medida que o texto avança, o leitor se aproxima do pleito decisivo percorrendo diferentes momentos da história nacional e global.

Nesse percurso, além da já citada análise da construção (auto)biográfica de João Havelange, Luiz Burlamaqui (2020) examina a composição entre interesses da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), presidida por Havelange entre 1958 e 1975, articulada com setores privados nacionais, e as demandas do governo federal. Ao pensar essas conexões para o período autoritário pós-1964, sua interpretação se aproxima da categorização daquele como uma ditadura empresarial-militar.

A presença de empresários na inserção internacional do futebol brasileiro também é abordada. A articulação de excursões de clubes nacionais a regiões nas quais a FIFA se expandia, a exemplo do mundo árabe e da África em processo de descolonização, é reveladora da rede cuidadosamente cultivada por João Havelange com vistas à sua eleição. A isso se soma uma leitura de como interesses do arranjo global, em especial os dos chamados blocos soviético e terceiro-mundista, ora se alinhavam, ora se afastavam das composições com vistas à definição da presidência da FIFA.

Ao buscar compreender os processos que levaram à ascensão de João Havelange, Burlamaqui (2020) também indica, em grande medida, a composição que permitiu sua manutenção por mais de duas décadas à frente da FIFA, que seria parcialmente desarticulada apenas nos anos 2010, quando eclodiu uma série de escândalos que se abateu sobre a entidade. Tal episódio marcaria a passagem a um novo momento, ainda que práticas políticas muito similares àquelas fundadas por Havelange permanecessem.

É, pois, por meio de acurado trabalho empírico e de uma sofisticada abordagem conceitual que Luiz Burlamaqui (2020) constrói um debate sobre a conjuntura geopolítica da segunda metade do século XX. A opção de realização dessa análise a partir de uma entidade privada transnacional liderada por um brasileiro permite conexões com a trajetória latino-americana e coloca em questão os modos como essa região pouco debatida pelas abordagens globais inseriu-se no concerto mundial. Trata-se certamente de uma obra cuja contribuição extrapola o campo dos estudos do esporte, bem como a historiografia nacional. Não por acaso, o livro já possui uma versão para a língua inglesa atualmente no prelo. Para aqueles que ainda têm dúvidas sobre as potencialidades de pesquisas acerca do futebol para a compreensão de questões centrais da realidade nacional e internacional, A dança das cadeiras é um ótimo exemplo de como essa hesitação pode prosperar apenas entre os que, como diria Nelson Rodrigues, só enxergam a bola.

Referências

  • DAMATTA, Roberto et al.. Universo do futebol: Esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
  • GIGLIO, Sérgio Settoni; SPAGGIARI, Enrico. A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: Um panorama (1990-2009). Revista de História, n. 163, p. 293-350, jul./dez. 2010.
  • JENNINGS, Andrew. Jogo sujo: O mundo secreto da FIFA. Compra de votos e escândalo de ingressos. Rio de Janeiro: Panda Books, 2011.
  • MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro Rio de Janeiro: Mauad, 2003.
  • RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2022
  • Revisado
    05 Jun 2022
  • Aceito
    08 Jul 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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