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Revistas acadêmicas na sala de aula, ou o papel formativo dos periódicos

Academic Journals in the Classroom, or the Formative Role of Periodicals

No final de 2021, veio a público um documento construído coletivamente a partir do Fórum de Editores de Periódicos da ANPUH-Brasil que clamava por uma política de valorização das revistas acadêmicas na área de história. Subscrito por mais de duas centenas de integrantes de corpos editoriais - incluindo a professora Silvia Liebel, minha antecessora na editoria desta Varia Historia e hoje parte de nosso conselho - e publicado subsequentemente por diversos periódicos, o texto apontava, entre outros problemas do contemporâneo cenário de financiamentos rarefeitos e transformações vertiginosas nos formatos e dinâmicas editoriais, para os descompassos entre critérios de avaliação que priorizam a publicação em revistas de alto estrato e o pouco emprego efetivo dos textos que elas veiculam em nosso trabalho cotidiano. Na busca por alterar esse quadro, o documento salientava a necessidade de “uma ampliação nos usos de artigos científicos na prática de pesquisa, de formação, de ensino e de preparo e seleção de novos pesquisadores”.1 1 FÓRUM DE EDITORES DE PERIÓDICOS DA ANPUH-BRASIL. Por uma política de valorização das revistas acadêmicas na área de história. In: Zenodo, 2 abr. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.6408367. Acesso em: 30 mar. 2023. Ao que tudo indica, o diagnóstico sobre a área de letras feito há quase uma década por Jaime Ginzburg (2014)GINZBURG, Jaime. Periódicos acadêmicos: Antagonismo entre produção e leitura (notas sobre revistas da área de letras publicadas em 2013). Expedições, v. 5, n. 1, p. 10-41, jan./jul. 2014., segundo o qual existiria um “antagonismo entre produção e leitura” de artigos acadêmicos, segue vigente, em muitos outros domínios do saber.

A dimensão do ensino, e mais particularmente da formação nos níveis de graduação e pós-graduação, parece ocupar um lugar paradoxal em meio aos chamados para a valorização dos periódicos. Trata-se, ao mesmo tempo, do aspecto mais fundamental (no sentido etimológico do termo) e potencialmente transformador a médio e a longo prazo (capaz de engendrar uma verdadeira cultura de recurso às revistas), e do menos debatido de forma pública e em editoriais (que tendem a enfatizar aspectos ligados às políticas de publicação ou ao cotidiano de recepção e avaliação de manuscritos). Mesmo no cenário internacional, são escassos os trabalhos que se voltam aos possíveis usos de revistas acadêmicas em sala de aula.2 2 Os textos que consegui localizar se concentram em aspectos metodológicos e aconselhamentos práticos, além de contemplarem sobretudo as chamadas disciplinas “STEM” (ciência, tecnologia, engenharia e matemática, na sigla em inglês). Ver, por exemplo: Weick; Orton (1987); Hoskins; Stevens; Nehm (2007); Stevens; Hoskins (2014).

Na graduação, há ao menos uma vantagem óbvia no emprego de artigos em lugar dos mais corriqueiros recortes de livros: aqueles apresentam, em regra (quando são adequadamente concebidos e satisfatoriamente desenvolvidos), um argumento completo, autocontido, que se sustenta sem necessidade de alusão a outras passagens de um conjunto maior de reflexões. Encontramos, aqui, mais um paradoxo: tipos de artigos que poderiam ser particularmente úteis como ferramentas didáticas, como balanços historiográficos ou resenhas que convidam ao debate respeitoso e/ou ao pensamento crítico, tendem a ser cada vez menos valorizados por agências de fomento e concursos públicos, e mesmo pelas próprias revistas. Em um nível mais profundo, efetivamente voltado à formação de estudantes e futuras(os) pesquisadoras(es), os periódicos teriam muito a ensinar sobre as dinâmicas da vida acadêmica, inclusive no que diz respeito à validação por pares, ao caráter coletivo da construção do conhecimento, a boas práticas de autoria, ao combate ao plágio (e ao autoplágio), a dinâmicas de divulgação.

Possivelmente ainda em bacharelados e licenciaturas, mas de forma mais decisiva ao longo de mestrados e doutorados, os perió-dicos também guardam um enorme potencial para o desenvolvimento de habilidades de redação acadêmica - seja com leituras intensivas de textos já publicados, seja com a produção de novos estudos, seja, ainda, com a participação em procedimentos editoriais. Nesse sentido, seria fundamental pensar estratégias de “coexistência pacífica” entre publicações que exigem que potenciais autoras e autores detenham titulações elevadas e periódicos discentes, em um diálogo que entenda o papel de cada uma dessas instâncias e construa caminhos de colaboração. Para permanecer no âmbito “doméstico”, Varia Historia e Temporalidades3 3 Temporalidades - Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/index. Acesso em: 30 mar. 2023. - onde publiquei um dos meus primeiros (e mais ingênuos, mas que talvez justamente por isso mais coisas me ensinou) artigos - poderiam, sem dúvidas, aprender muito uma com a outra.

Os recentes debates sobre ciência aberta têm fomentado propostas adicionais quanto ao papel formativo das publicações acadêmicas. Os preprints, trabalhos depositados em repositórios de livre acesso e divulgados antes de passarem pelos mecanismos tradicionais de avaliação por pares, vêm sendo apontados como possíveis instâncias de aprendizado de habilidades de intercâmbio construtivo com produções alheias. Pensados como espécies de etapas prévias à elaboração de pareceres, os comentários a preprints poderiam ser especialmente oportunos para pessoas nas etapas finais da pós-graduação, que raramente são convidadas a avaliarem formalmente outros trabalhos, mas que muito provavelmente o farão em momentos posteriores.4 4 NASSI-CALÒ, Lilian. Como a avaliação por pares de preprints pode fazer parte de programas de doutorado e pós-doutorado. In: SciELO em Perspectiva, 22 mar. 2023. Disponível em: https://blog.scielo.org/blog/2023/03/22/como-a-avaliacao-por-pares-de-preprints-pode-fazerparte-de-programas-de-doutorado-e-pos-doutorado/. Acesso em: 30 mar. 2023.

Por fim, mas certamente não com menor importância, as pesquisas originais e inovadoras que (idealmente) as boas práticas editoriais selecionam e trazem a público podem, a partir de leituras e apropriações por docentes, ressoar em salas de aula, inclusive no ensino básico. Com o perdão da redundância, a periodicidade dos periódicos serve como lembrete de que nenhum processo de formação pode ser efetivamente concluído.

As reflexões deste editorial, embora expressem inquietudes de longa data e partam de experiências acumuladas em sala de aula (inclusive de excelentes debates suscitados por textos recentemente publicados em periódicos brasileiros!), foram em grande medida inspiradas pelo trabalho que encerra a seção de artigos deste número. Adotando certo tom ensaístico e propondo argutos diálogos com a atualidade, Breno Mendes, Cristiano Alencar Arrais e Carlos Oiti Berbert Júnior nos convidam a pensar o valor teórico do ensino, bem como o papel didático da teoria - o que pode e deve passar pelos suportes da nossa comunicação acadêmica.

Os demais estudos, mesmo que não tematizem diretamente o ensino, certamente carregam variadas contribuições potenciais às salas de aula, sobretudo por colocarem em xeque mitos historiográficos e concepções do senso comum. Enquanto Carlos A. Page analisa, a partir de relatos elaborados em distintos momentos, o uso de denúncias de que os jesuítas deteriam minas de ouro para desacreditar a ordem religiosa, Rafael de Freitas e Souza explicita o amargor da produção açucareira, ressaltando as contradições das recomendações dirigidas aos senhores e os altíssimos custos humanos da atividade nos engenhos. Já Carlos Federico Domínguez Avila propõe, com base em uma extensa pesquisa de arquivo, novos ângulos de compreensão da chamada Política Externa Independente e do curto e turbulento governo de Jânio Quadros. Enfatizando a “questão cubana”, o autor explicita como o presidente aliou uma postura conservadora no âmbito interno e, ao menos em alguns sentidos, progressista no exterior.

Débora Strieder Kreuz e Pedro Henrique Pedreira Campos, por sua vez, analisam dimensões pouco estudadas da ditadura militar brasileira. Enquanto ela ressalta, a partir do exílio de Miguel Arraes na Argélia, o trânsito de opositores do regime por variados espaços (e as formas como o aparato repressivo seguia seus passos), ele se volta às empresas que foram prejudicadas após o golpe de 1964, sugerindo que esses processos envolviam não apenas interesses de Estado, mas também, e de forma decisiva, competições entre diferentes grupos econômicos. Aludindo a alguns dos debates mais polêmicos e acalorados da contemporaneidade, Rafaela Cyrino propõe uma cuidadosa genealogia do feminismo radical nos anos 1970 e de seus desdobramentos no que a autora chama de uma “deriva transfóbica”. Completam este número duas resenhas que, embora voltadas a obras que tratam de temas tão díspares quanto o mercado do café (Nicole Leite Bianchini) e a prostituição (Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira), permitem-nos refletir sobre as potencialidades e os limites da guinada transfronteiriça pela qual passou a historiografia nas últimas décadas.

Nenhuma política de valorização das revistas poderá, enfim, trazer-lhes qualquer tipo de resultado se faltarem leitoras e leitores - esse enigmático elo final (ou intermediário, ou inicial, a depender do ponto de vista) sem o qual texto algum pode fazer sentido. E uma das funções das salas de aula, talvez não seja supérfluo lembrar, é justamente a de multiplicar o gosto pela leitura.

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    FÓRUM DE EDITORES DE PERIÓDICOS DA ANPUH-BRASIL. Por uma política de valorização das revistas acadêmicas na área de história. In: Zenodo, 2 abr. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.6408367. Acesso em: 30 mar. 2023.
  • 2
    Os textos que consegui localizar se concentram em aspectos metodológicos e aconselhamentos práticos, além de contemplarem sobretudo as chamadas disciplinas “STEM” (ciência, tecnologia, engenharia e matemática, na sigla em inglês). Ver, por exemplo: Weick; Orton (1987)WEICK, Karl E.; ORTON, J. Douglas. Academic Journals in the Classroom. Journal of Management Education, v. 11, n. 2, p. 27-42, May 1987.; Hoskins; Stevens; Nehm (2007)HOSKINS, Sally G.; STEVENS, Leslie M.; NEHM, Ross H.. Selective Use of the Primary Literature Transforms the Classroom Into a Virtual Laboratory. Genetics, v. 176, n. 3, p. 1381-1389, July 2007.; Stevens; Hoskins (2014)STEVENS, Leslie M.; HOSKINS, Sally G.. The CREATE Strategy for Intensive Analysis of Primary Literature Can Be Used Effectively by Newly Trained Faculty to Produce Multiple Gains in Diverse Students. CBE - Life Sciences Education, v. 13, p. 224-242, Summer 2014..
  • 3
    Temporalidades - Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/index. Acesso em: 30 mar. 2023.
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    NASSI-CALÒ, Lilian. Como a avaliação por pares de preprints pode fazer parte de programas de doutorado e pós-doutorado. In: SciELO em Perspectiva, 22 mar. 2023. Disponível em: https://blog.scielo.org/blog/2023/03/22/como-a-avaliacao-por-pares-de-preprints-pode-fazerparte-de-programas-de-doutorado-e-pos-doutorado/. Acesso em: 30 mar. 2023.

REFERêNCIAS

  • GINZBURG, Jaime. Periódicos acadêmicos: Antagonismo entre produção e leitura (notas sobre revistas da área de letras publicadas em 2013). Expedições, v. 5, n. 1, p. 10-41, jan./jul. 2014.
  • HOSKINS, Sally G.; STEVENS, Leslie M.; NEHM, Ross H.. Selective Use of the Primary Literature Transforms the Classroom Into a Virtual Laboratory. Genetics, v. 176, n. 3, p. 1381-1389, July 2007.
  • STEVENS, Leslie M.; HOSKINS, Sally G.. The CREATE Strategy for Intensive Analysis of Primary Literature Can Be Used Effectively by Newly Trained Faculty to Produce Multiple Gains in Diverse Students. CBE - Life Sciences Education, v. 13, p. 224-242, Summer 2014.
  • WEICK, Karl E.; ORTON, J. Douglas. Academic Journals in the Classroom. Journal of Management Education, v. 11, n. 2, p. 27-42, May 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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