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A deriva transfóbica do feminismo radical dos anos 1970

The Transphobic Drift of 1970s Radical Feminism

Resumo

Este artigo, de natureza teórica, analisa a história de construção, no campo feminista, de uma corrente feminista radical, com o objetivo de compreender as tensões e contradições que explicam a emergência de um “novo feminismo radical” cunhado de transfóbico. Buscando caracterizar e contextualizar o feminismo radical (início dos anos 1970) e o novo feminismo radical (fim da década), este estudo é orientado por uma análise dialética que procura identificar as diversas tensões e contradições que explicam, em cada contexto particular, o “movimento” feminista. A partir de uma análise de conteúdo dos textos associados ao feminismo radical e ao novo feminismo radical, buscou-se abordar tanto os pressupostos comuns quanto as divergências internas, tendo-se como referência as questões, controvérsias e críticas que, a cada momento histórico, tensionam o campo feminista. A análise sugeriu que a “nova” radicalidade construída pelo “novo” feminismo radical, a qual elegeu as identidades trans como alvos do combate na luta contra o patriarcado, estaria relacionada à influência crescente de um paradigma identitário particularmente excludente, combinado com uma versão biologizante e essencialista acerca da opressão das mulheres.

Palavras-chave
Feminismo radical; novo feminismo radical; transfobia

Abstract

Thistheoretical article analyzes the development, in the feminist field of the early 1970s, of a radical feminist current, seeking to understand the tensions and contradictions that explain the emergence of a “new radical feminism” which is deemed transphobic. Seeking to characterize and contextualize both radical feminism (early 1970s) and the new radical feminism (late 1970s), this study is guided by a dialectical analysis aimed at identifying the various tensions and contradictions that explain, in each particular context, the feminist “movement”. Starting from a content analysis of texts associated with radical feminism and new radical feminism, the article explores common assumptions and internal divergences, taking into account the questions, controversies, and criticisms that have affected the feminist field throughout its history. The analysis reveals that new radical feminism’s construction of a “new” radicalism, which targets trans identities in the fight against patriarchy, is related to the growing influence of a particularly excluding identity paradigm and a biologizing and essentialist view of women’s oppression.

Keywords
Radical feminism; new radical feminism; transphobia

Antes de adentrar na temática central deste artigo (a deriva transfóbica do feminismo radical), é importante explicitar que o recorte teórico utilizado para orientar este estudo implicou uma imersão na literatura feminista notadamente europeia e estadunidense. Esse recorte teórico foi necessário tendo em vista que as principais autoras que protagonizam a história nascente tanto do “feminismo radical” quanto do “novo feminismo radical” são oriundas de países europeus (notadamente da França) e dos Estados Unidos. Para melhor compreender, portanto, as tensões e contradições que poderiam explicar este “movimento” feminista, optou-se por uma tentativa de reconstrução do feminismo denominado “eurocêntrico”, na busca de hipóteses explicativas para a chamada “deriva transfóbica”. É importante salientar, entretanto, que o movimento feminista aqui retratado, de feições eurocêntricas, é apenas um recurso utilizado para fins analíticos. A análise proposta não pretende ser exaustiva.

Nascido como contraponto a um feminismo de feições mais liberais e reformistas, o feminismo radical que emerge no início dos anos 1970 se configura como uma práxis revolucionária cujo objetivo é colocar fim ao sistema que oprime as mulheres. Ser “radical” significa, para essa corrente feminista, identificar e, em seguida, extirpar as raízes do sistema opressor, para que este seja destruído em sua totalidade. Para entendermos o processo de construção de um feminismo radical, é importante retroceder na história para recuperar um pouco do “movimento”1 1 Utilizo, aqui, o termo entre aspas para sublinhar um aspecto central de minha análise: a atenção ao “movimento” (tensões, contradições, avanços, retrocessos) do movimento feminista. feminista que o antecedeu.

A partir de uma perspectiva liberal, o feminismo do século XVIII, associado a ícones como Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges, tinha como objetivos centrais a conquista e a ampliação dos direitos civis e políticos para as mulheres, como o direito à escolaridade, o direito ao voto, entre outros. O cerne da luta era, portanto, uma reivindicação de igualdade entre homens e mulheres, sobretudo no campo jurídico. Ao constatar a contradição entre a natureza supostamente universal da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)2 2 DÉCLARATION des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789. In: Conseil Constitutionnel. Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/node/3850. Acesso em: 13 jan. 2023. e uma realidade social em que as mulheres eram excluídas de uma série de direitos civis, Gouges redige, em 1791, uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, reivindicando uma igualdade entre os sexos que fosse assegurada pela lei.3 3 GOUGES, Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne. In: Gallica. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/essentiels/anthologie/declaration-droits-femme-citoyenne-0. Acesso em: 13 jan. 2023.

Ao propor uma declaração específica dos direitos da mulher, Gouges desenvolve uma crítica ao falso universalismo da Declaração de 1791, demonstrando que o ser humano portador de direitos era apenas o indivíduo do sexo masculino. Na mesma conjuntura, ainda no campo da luta por uma igualdade de direitos, Wollstonecraft (1792)WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of The Rights of Woman. Londres: Josep Johnson, 1792. publica A Vindication of the Rights of Woman, considerado como um dos textos fundadores do feminismo, na sua versão eurocêntrica. Os direitos civis e políticos reivindicados por Wollstonecraft significavam, sobretudo, o acesso das mulheres à vida pública, à educação formal e à independência econômica. No processo de emancipação feminina, a autora considera fundamental que as mulheres se libertem do confinamento doméstico, que as infantiliza, embota as suas capacidades intelectuais e as lança em uma condição de “menoridade”. A luta feminista deve, portanto, reivindicar uma educação que, em vez de ensinar as mulheres a serem submissas, graciosas, fúteis, dependentes e subservientes aos homens, contribua para o alcance da autodeterminação feminina.

Mesmo que as reivindicações de Wollstonecraft não tenham sido completamente conquistadas, houve - graças, entre outros, ao movimento feminista organizado - uma notável ampliação de direitos civis e políticos às mulheres em grande parte das sociedades contemporâneas. Além do direito à educação formal, as mulheres conquistaram os direitos ao voto, de possuir bens, de ter uma profissão, rompendo-se, pelo menos formalmente, com a condição de “menoridade” anteriormente atribuída a elas. Entretanto, a publicação de A mística feminina, de Betty Friedan (2020)FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020., em 1963, indica que ainda havia muito terreno no campo da luta pela cidadania, pois o acesso das mulheres a uma série de direitos civis e políticos não se mostrou plenamente eficaz para assegurar uma plena igualdade de direitos entre os sexos.

Nesse livro, Friedan (2020, p. 15)FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020., militante feminista estadunidense, procura descontruir o que nomeia de “mística feminina”: uma imagem socialmente limitante e insatisfatória em que as mulheres são concebidas, essencialmente, como donas de casa e mães. Essa imagem, argumenta Friedan, além de conduzir muitas mulheres a se dedicarem à “carreira da maternidade”, diminui suas possiblidades de investirem em uma carreira profissional e ascenderem no mercado de trabalho. Dando continuidade às demandas de Wollstonecraft, Friedan direciona o foco do combate feminista para os mecanismos ideológicos vinculados à educação/socialização das mulheres, cuja crítica é vista como necessária para a obtenção de uma efetiva igualdade de direitos entre homens e mulheres. O feminismo protagonizado por autoras como Friedan, indiferente a questões raciais e de classe, não tardou a ser criticado no interior do próprio campo feminista.

Na esteira do movimento feminista, surgem continuamente inúmeras contradições internas, correntes, perspectivas e abordagens, as quais, muitas vezes, podem rivalizar entre si ou problematizar concepções hegemônicas assumidas pelo campo feminista ao longo da sua história. É o caso do feminismo negro, que se consolida como uma corrente em 1977, com a publicação, pelo Coletivo Combahee River (2019)COLETIVO COMBAHEE RIVER. Manifesto do Coletivo Combahee River. Plural, v. 26, n. 1, p. 197-207, jan./jun. 2019., de uma Declaração Feminista Negra. Com o feminismo negro, desenvolveu-se, no interior do campo feminista, uma crítica aos feminismos de feição universalista, os quais partem da experiência particular de um grupo mulheres brancas, heterossexuais e burguesas como se estas representassem a totalidade da experiência das mulheres. Essa crítica é o ponto de partida para o surgimento de perspectivas como o feminismo interseccional, o feminismo decolonial, o feminismo lésbico, o transfeminismo, entre outras.

Tendo como parâmetro as tensões, contradições e dissidências do movimento feminista, este artigo buscou investigar o surgimento de uma deriva transfóbica no interior do dito feminismo radical. Para isso, foi necessário, em um primeiro momento, traçar, mesmo que de forma breve, o caminho percorrido pelo movimento feminista até o início dos anos 1970, no sentido de identificar que tipo de enfrentamento (interno e externo ao campo feminista) explica o surgimento de um feminismo dito “radical”. Como abordado anteriormente, tanto a chamada primeira onda do feminismo, representada por autoras como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, quanto o feminismo que, no final dos anos 1960, foi protagonizado por autoras como Betty Friedan, inscrevem-se na esfera dos direitos, em uma luta pela plena participação das mulheres como cidadãs na sociedade capitalista liberal.

Nos anos 1960 e 1970, tornam-se mais nítidos os contornos de uma corrente feminista marxista, que adota uma faceta notadamente revolucionária. No caso do Brasil, a autora Heleieth Saffioti (2013)SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013. se torna uma das principais representantes dessa corrente, com a publicação, em 1969, de A mulher na sociedade de classes. O feminismo marxista, enfatizando a dimensão de classe, contribui, de maneira importante, para a crítica a uma suposta homogeneidade da categoria mulheres, propondo um outro projeto societário que, além de romper com concepções liberais associadas historicamente ao movimento feminista, reconfigura a arena de sua luta, inserindo-a, como aliada, na luta anticapitalista.

Pode-se afirmar que o feminismo radical participa, ao lado do feminismo marxista, da reconfiguração do campo de batalha feminista. Para o feminismo radical, não se trata mais de propor reformas na sociedade e conquistar direitos, trata-se destruir, na sua totalidade, o sistema opressor. Se o propósito revolucionário aproxima as abordagens nascentes do feminismo radical e marxista, há um elemento importante que as separa, pelo menos nos anos 1970: a identificação do “inimigo principal”.

Enquanto o feminismo marxista, apesar das suas diferenças internas, tende a identificar o capitalismo como o sistema opressor (inimigo principal) a ser combatido, o feminismo radical se posiciona de forma bastante categórica: o sistema que oprime as mulheres (chamado pelas autoras militantes de patriarcado/sistema de sexo-gênero) é autônomo. Ele deve, portanto, ser diferenciado de outros sistemas de opressão, como o capitalista. Por considerarem que a opressão das mulheres é específica, e não derivada do capitalismo, as feministas radicais se dedicam não só a identificar tal sistema, mas a compreender a sua estrutura, o seu modo de funcionamento, os seus mecanismos de produção e reprodução, os seus artefatos ideológicos. Cabe, aqui, explicitar como essa tarefa revolucionária foi construída pelas autoras que se identificaram com essa corrente feminista e de que forma, no final dos anos 1970, emerge um “novo feminismo radical” centrado em uma crítica à transgeneridade.

Buscaremos compreender, em um primeiro momento, as diretivas centrais do feminismo radical nascente, bem como as suas diferenças internas, tomando como referências algumas autoras que foram vinculadas, na época, a tal corrente feminista: Shulamith Firestone, Kate Millet, Gayle Rubin e Christine Delphy. Shulamith Firestone (1976)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., com a publicação, em 1970, de A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista, costuma ser referenciada como a fundadora dessa corrente, ao lado de Kate Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., que publicou, no mesmo ano, Política Sexual. Além disso, as autoras Gayle Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., sobretudo em O tráfico de mulheres: Notas sobre a “economia política” do sexo, publicado originalmente em 1975, e Christine Delphy (2013aDELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a.; 2013b)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b., em L’Ennemi principal, situaram-se, de alguma forma, no campo do feminismo radical nascente.

A partir do pensamento dessas autoras, este artigo buscará situar histórica, conceitual e politicamente o surgimento do feminismo radical dos anos 1970, no sentido de se compreender qual é a relação desse pensamento com o chamado “novo feminismo radical”, representado por autoras como Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979., Sheila Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., Robin Morgan (1978)MORGAN, Robin. Going Too Far: The Personal Chronicle of a Feminist. Nova York: Vintage, 1978., Germaine Greer (1999)GREER, Germaine. The Whole Woman. Nova York: A. A. Knopf, 1999. e Eloisa Samy (2018)SAMY, Eloisa. Feminismo radical. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 400-413., as quais possuem como traço comum a rejeição à noção de transgeneridade. Essa rejeição levou a uma associação, bastante frequente, entre o feminismo radical e a transfobia, com a consequente atribuição da denominação TERFs (feministas radicais trans-excludentes, na sigla em inglês) a autoras/militantes dessa corrente feminista. Pretende-se, dessa forma, compreender melhor esse processo e, ao mesmo tempo, problematizar uma associação mecânica entre “feminismo radical” e “transfobia”, evitando análises reducionistas que desconsiderem não só a complexidade dessa corrente feminista, como também as suas diferenças internas e contextuais.

Entende-se que é na convergência de uma crítica tanto do feminismo liberal (reformista), quanto do feminismo marxista (que tende a eleger uma luta central contra o capitalismo), que o feminismo radical se forma. Na condição de críticas do feminismo liberal, todas as autoras enfatizam a natureza revolucionária de suas análises e proposições, insistindo no fato de que a melhoria do sistema, com a conquista de uma maior igualdade entre os sexos, não é o objetivo visado. Trata-se, sobretudo, de demolir as estruturas opressivas que servem de suporte ao sistema desigual. Gayle Rubin (2017, p. 49)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., por exemplo, afirma: “A opressão das mulheres é profunda; nem a fórmula ‘trabalho igual, salário igual’, nem todas as mulheres ativas na política mundialmente, têm como extirpar as raízes do sexismo”.

Delphy (2013a, p. 52)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a., por sua vez, sustenta que a tomada do poder através da revolução é o objetivo final do movimento de liberação das mulheres, pois, de acordo com a autora, somente a revolução tem o potencial para destruir o sistema de produção e reprodução patriarcal em sua totalidade. “Ser revolucionária”, explica a autora, significa “ser extremista no que concerne ao objetivo visado”.4 4 Trad. livre da autora: “être révolutionnaire (…) c’est être extrémiste par rapport à l’objet qu’on poursuit”. O movimento das mulheres deve preparar-se, portanto, para uma luta revolucionária.

Embora todas as autoras sejam radicais no sentido discutido anteriormente, é importante salientar que elas conservam diferenças teóricas, conceituais e metodológicas em suas respectivas abordagens. Não existe, por exemplo consenso em relação à raiz central da opressão das mulheres. Enquanto Firestone (1976)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. localiza sua origem na família biológica, Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. identifica essa raiz, sobretudo, nos sistemas de parentesco;5 5 Levando-se em conta a complexidade teórica contida no artigo de Gayle Rubin (2017), é importante precisar, para ser mais fiel ao pensamento da autora, que, para buscar as origens da opressão das mulheres, Rubin recorre a Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud. Esses dois autores, segundo Rubin, descrevem, sem problematizar, processos, características e fatos ligados a essa opressão: Lévi-Strauss, os princípios estruturais do parentesco, como origem da opressão material das mulheres; e Freud, através da sua teoria da feminilidade, os mecanismos (ideológicos) que permitem a legitimação dessa opressão. Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., na ideologia patriarcal; e Delphy (2013a)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a., na exploração do trabalho doméstico feminino na família patriarcal moderna.

Por outro lado, todas se recusam a analisar a opressão das mulheres a partir de uma abordagem econômica estrita, subordinando-a a uma opressão de classe. De fato, as autoras compartilham o pressuposto segundo o qual o marxismo é insuficiente para explicar a opressão das mulheres. Apesar disso, Delphy (2013aDELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a.; 2013b)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b., Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970. e Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. analisaram as relações de causalidade entre o patriarcado/sistema de sexo-gênero e o capitalismo. Rubin (2017, p. 14)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., embora reconheça que as mulheres são uteis ao capitalismo, sublinha: “uma coisa é explicar a utilidade das mulheres para o capitalismo. Argumentar que essa utilidade explica as origens da opressão das mulheres é outra bem diferente. É precisamente nesse ponto que a análise do capitalismo deixa de ter muito a explicar a respeito das mulheres e da opressão das mulheres”.

A opressão específica das mulheres

A recusa de todas as feministas ditas radicais em tratar a opressão das mulheres como um epifenômeno do capitalismo remete a uma compreensão compartilhada acerca de uma natureza específica, particular, vinculada à opressão feminina. Para as autoras, por ser um sistema próprio de opressão, deve ser tratado e compreendido a partir de si mesmo. Em L’Ennemi Principal, Delphy (2013a)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a. chega a postular a existência de dois modos de produção nas sociedades industriais modernas: o capitalista e o doméstico. Para a autora, enquanto o modo de produção capitalista é baseado na exploração do trabalho do proletariado, o modo de produção doméstico é baseado na exploração do trabalho das mulheres na família patriarcal. Nessa formulação, Delphy rompe com a associação corrente entre produção e capitalismo, situando a questão da exploração do trabalho no centro do sistema patriarcal. Com o propósito de diferenciar os dois modos de produção, Delphy (2013a, p. 57)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a. pontua:

Na minha análise, os beneficiários do trabalho doméstico não são os capitalistas mas os cônjuges (maridos ou concubinos), os pais (se são as filhas que fazem o trabalho doméstico), as crianças (se são as mães que fazem o trabalho doméstico), em todo caso, os parceiros na família, e não a classe capitalista.6 6 Trad. livre da autora: “Dans mon analyse les bénéficiaires du travail domestique ne sont pas les capitalistes mais les conjoints (maris ou concubins), les pères (si ce sont les filles qui font le travail domestique) les enfants (si ce sont les mères qui font le travail domestique), de toute façon, les partenaires dans la famille, et non pas la classe capitaliste”.

Ora, se existe um sistema de opressão específico que vitima as mulheres, torna-se imperativo nomeá-lo, identificando, de forma precisa, qual é o inimigo principal. Este é nomeado pelas autoras como patriarcado, com exceção de Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., que prefere utilizar o termo “sistema de sexo-gênero”.7 7 Rubin (2017) considera que essa expressão contempla melhor o caráter mutável e histórico das relações específicas que organizam, em cada sociedade e contexto histórico, o sistema de opressão das mulheres. No caso de Rubin, a raiz desse sistema opressor localiza-se nos sistemas de parentesco. De acordo com a autora, os sistemas de parentesco foram estruturados a partir da “troca das mulheres”, dando origem a um sistema de “relações pelas quais as mulheres se transformam em presas dos homens” (RUBIN, 2017RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., p. 10).

Embora Delphy, Millet e Firestone nomeiem o sistema opressor de patriarcado, isso não significa que as autoras possuam uma compreensão idêntica acerca do significado, da estrutura e do funcionamento desse sistema. Firestone (1976, p. 18)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., por exemplo, bastante vinculada à ideia de uma opressão de base biológica, faz referência à “família patriarcal” sobretudo em termos reprodutivos. De acordo com a autora, a família patriarcal define as mulheres como uma espécie diferente a partir da sua capacidade de parir. Ou seja, de acordo com a autora, na origem do patriarcado encontra-se “a família biológica”, unidade fundamental de reprodução homem-mulher-filho(a) em qualquer que seja a organização social.

Por outro lado, Millet (1970, p. 12)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., autora que identifica o desafio da revolução feminista na consciência, sustenta: “a sociedade patriarcal está de tal forma enraizada que o tipo de estrutura que ela determina é talvez muito mais um hábito de espírito e um tipo de vida do que um sistema político determinado”. De acordo com Millet, a mentalidade patriarcal, o código moral ambíguo, a ideologia patriarcal, os mitos, as crenças do patriarcado, a educação ideológica, constituem, entre outros, os terrenos da luta feminista revolucionária.

No caso de Delphy (2013a, p. 18)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a., a definição de patriarcado encontra-se vinculada ao conceito de “modo de produção doméstico”, estruturado em torno do trabalho doméstico gratuito fornecido pelas mulheres. Delphy esclarece, de antemão, que o patriarcado ao qual se refere não é aquele da “idade da pedra”,8 8 Trad. livre da autora: “mode de production domestique”; “âge de pierre”. mas diz respeito ao sistema de subordinação das mulheres aos homens nas sociedades industriais modernas. Embora enfatize a dimensão econômica do patriarcado e as relações de produção que ocorrem na família, Delphy adverte que o modo de produção doméstico não explica a totalidade do patriarcado nem toda a dimensão econômica da opressão das mulheres. Ela reconhece, portanto, que o conceito não traz esclarecimentos, por exemplo, sobre as violências físicas e sexuais de que as mulheres são alvo.

A ênfase nas formas de reprodução do patriarcado conduz as autoras a realizar uma investigação minuciosa da teoria freudiana, considerada como um dos suportes ideológicos da legitimação da distinção sexual e dos sistemas de parentesco. De acordo com Rubin (2017, p. 36)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., a psicanálise é uma disciplina digna de interesse, porque ela contém uma “descrição dos mecanismos pelos quais os sexos são divididos e modificados, de como crianças andróginas, bissexuais, são transformadas em meninos e meninas”. Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970. desconstrói, em detalhes, os argumentos centrais de Sigmund Freud, considerado pela autora como uma das maiores influências contrarrevolucionárias devido ao fato de ter racionalizado a relação insana entre os sexos.

Sobre a revolução feminista

Se, como foi visto, não existe consenso entre as autoras no que concerne à origem (raiz) da opressão feminina, isso significa que elas não concebem da mesma maneira a revolução feminista. Firestone (1976, p. 21)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., por exemplo, ao identificar o locus da opressão das mulheres na família biológica, baseada na procriação/reprodução humana, constrói toda a sua proposta revolucionária a partir da ruptura com o que a autora denomina de a “tirania biológica”.

Em A dialética do sexo, Firestone (1976)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. afirma que a natureza produziu a desigualdade fundamental: metade da raça humana deve alimentar e educar as crianças de toda a raça. Pode-se perceber, aqui, como Firestone busca uma explicação natural para um fenômeno social, o que revela, de acordo com Delphy, uma concepção originária do biologismo e do naturalismo próprios das teorias nativas da opressão centradas sobre a gestação (reprodução). Nesse contexto, Delphy (2013a, p. 22)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a. se pergunta: “por que deveríamos, para explicar a divisão da sociedade em grupos hierárquicos, voltarmo-nos à anatomia dos indivíduos que compõem (...) esses grupos?”.9 9 Trad. livre da autora: “Pourquoi devrions-nous, pour expliquer la division de la société en groupes hiérarchiques, s’attacher à l’anatomie des individus composant (…) ces groupes?”.

Delphy pontua que são as práticas sociais materiais que criam a divisão sexual do trabalho e a dominação patriarcal das mulheres, colocando a ênfase sobre o aspecto notadamente social da divisão entre os sexos. Em um artigo escrito posteriormente, a autora critica de maneira direta a abordagem de Firestone:

E mesmo a teoria considerada nos Estados Unidos e na Inglaterra como fundadora do feminismo radical, a de Shulamith Firestone, é escandalosamente biologizante, pois deriva a opressão das mulheres de uma “deficiência natural oriunda das gestações”10 10 Trad. livre da autora: “Et même la théorie considérée aux États-Unis et en Angleterre comme fondatrice du féminisme radical, celle de Shulamith Firestone, est outrageusement biologisante puisqu’elle fait découler l’oppression des femmes du ‘handicap naturel des grossesses’”. (DELPHY, 2013bDELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b., p. 210).

De acordo com Firestone (1976, p. 229)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., é a natureza que produz a desigualdade fundamental. Para a autora, assim, qualquer revolução feminista deveria visar, antes de mais nada, à ruptura com a “tirania do biológico”. É nesse sentido que a tecnologia adquire um papel fundamental no seu programa revolucionário, ao viabilizar o rompimento com as supostas “condições naturais”, liberando as mulheres do fardo da procriação. A gravidez, confessa a autora, é uma barbaridade que significa “a deformação temporária do corpo do indivíduo em benefício da espécie”, enquanto sua conclusão revela uma violência: “O parto dói. E isso não é bom”.

Firestone (1976)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. afirma que a reprodução penaliza muito as mulheres, emocional, psicológica e culturalmente. Por considerar que, em todas as sociedades, as mulheres foram oprimidas devido às suas funções biológicas, a autora propõe como objetivo do feminismo radical a demolição da própria dialética dos sexos, ou seja: o fim da divisão da sociedade em duas classes em função da procriação. Para tal, Firestone sugere um investimento em inovações tecnológicas, como a reprodução artificial, a fertilização em proveta, a placenta artificial ou os métodos contraceptivos para os homens. Sem colocar em discussão as relações sociais concretas e ancorada em uma promessa tecnológica oriunda de uma concepção em que o sistema de classes sexuais é a raiz de todas as opressões, Firestone (1976, p. 237)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. propõe um “socialismo cibernético”, capaz de eliminar as classes econômicas e todas as formas de exploração do trabalho.

Millet (1970, p. 10)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., autora que privilegia uma análise da ideologia patriarcal, afirma que uma revolução feminista exige o fim das inibições e dos tabus sexuais. A autora esclarece que o objetivo principal da revolução sexual é apagar as distinções tradicionais entre os sexos no que se refere aos papéis exercidos e no temperamento. Os alvos da revolução feminista seriam a desaparição do papel ligado ao sexo, considerado um freio para uma total independência das mulheres. Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970. avalia que, por intermédio de uma educação diferenciada dada aos sexos, a sociedade impõe arbitrariamente esses papéis sobre uma base biológica infinitamente plástica. Para romper com tais condicionamentos, Millet propõe que as crianças sejam educadas por profissionais dos dois sexos.

Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. também vai nesse sentido ao considerar que a troca das mulheres é o princípio fundamental dos sistemas de opressão. A autora considera que o feminismo precisa reivindicar uma revolução no parentesco e que essa revolução deve permitir uma evolução cultural que libere não somente as mulheres, mas também as diversas formas de expressão sexual. A autora explica que seu sentimento pessoal é “que o movimento feminista deve sonhar com algo maior do que a eliminação da opressão das mulheres. Ele deve sonhar em eliminar as sexualidades compulsórias e os papéis sexuais” (RUBIN, 2017RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., p. 55).

Levando-se em conta que existe uma recusa manifesta entre as feministas radicais de tratar a opressão das mulheres como um epifenômeno do capitalismo, poderíamos imaginar que, para essas autoras, a luta anticapitalista deveria ser diferenciada da luta feminista, pois uma teria por meta derrubar o capitalismo, enquanto a outra almejaria derrubar o patriarcado/sistema sexo-gênero. Firestone e Millet, entretanto, por considerarem que a opressão sexual é o “germe” de todas as opressões, criam uma outra hierarquia para as lutas: a luta principal é a feminista, e as outras lutas sociais são consideradas secundárias ou derivadas dela.

Millet (1970, p. 14)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970. afirma, por exemplo, que a dominação sexual é a chave de toda estrutura de injustiça humana, a raiz de todas as injustiças, o que significa que a política sexual serve como fundamento de todas as estruturas sociais, políticas e econômicas. Millet sustenta que “é evidente que a base da nossa civilização é o patriarcado”. Todos os mecanismos de desigualdade humana e de distinção social nascem, por isso, da supremacia do homem e da sujeição da mulher.

Em Firestone (1976, p. 18)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., a estrutura das classes sexuais é o modelo de todos os sistemas de exploração, constituindo, portanto, o germe a desenraizar como condição de ruptura com o capitalismo e o racismo. Há, portanto, para a autora, uma relação de dependência do racismo e do capitalismo perante o patriarcado. O racismo, por exemplo, não tendo uma existência própria, é concebido como uma opressão sexual. O racismo, para a autora, é somente o efeito do sexismo do homem - ou, como ela sugere, um sexismo aumentado, baseado em uma competição sexual. Nessa disputa, o homem branco serve de modelo para a competição racial que tem, para Firestone, uma base sexual.

De acordo com a sua análise, os homens negros odeiam, de maneira virulenta, os homens brancos porque os invejam. Essa relação os leva a desejar ardentemente a mulher branca como algo a ser conquistado com o objetivo de se vingar do homem branco. Tendo como parâmetro o que a autora denomina de uma “guerra dos sexos”, Firestone (1976, p. 161)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. realiza uma análise reducionista, mecânica e estereotipada do racismo.

Ora, essa abordagem reducionista não encontra qualquer eco nas propostas de Rubin e Delphy, o que corrobora, mais uma vez, a impossibilidade de tratar o feminismo radical, ou qualquer outra corrente feminista, como um todo homogêneo e coerente. De maneira diversa de Firestone e Millet, Rubin e Delphy não concebem a opressão feminina como a raiz de todas as opressões, embora reconheçam situações em que as opressões de classe (econômicas) e as sexuais se entrelaçam. Delphy (2013b, p. 52)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b. sustenta, inclusive, que, na realidade concreta, os indivíduos podem pertencer a uma variedade de sistemas de classe, às vezes contraditórios. Isso significa, por exemplo, que as mulheres, dependendo de sua situação de classe, podem-se configurar ora como vítimas, ora como opressoras.

Sobre o fim da distinção sexual

Para finalizar a caracterização do complexo feminismo radical do início dos anos 1970, trago a discussão sobre a maneira como as autoras concebem a distinção social - uma questão que me parece central na construção de um novo feminismo radical voltado a uma crítica à transgeneridade. Pode-se afirmar, sem muita dificuldade, que uma questão crucial para o feminismo radical nascente se refere à problematização da noção de distinção sexual, concebida como um elemento importante na conformação do sistema de opressão das mulheres. As feministas radicais não se contentam em desnaturalizar a distinção sexual, mas consideram que é necessário demoli-la para a ruptura com o sistema opressor. Millet (1970, p. 10)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970. afirma que seu objetivo é provar que o sexo é uma categoria que possui implicações políticas e que “masculino” e “feminino” são condicionamentos sociais, e não diferenças naturais entre os sexos.

Firestone (1976, p. 18)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., de sua parte, afirma que o objetivo do feminismo radical é a erradicação completa do sistema de classe baseado sobre o sexo - dito de outra forma, do que a autora denomina de a “dialética dos sexos”: a divisão da sociedade em duas classes de sexo em função de seus papéis no sistema reprodutivo. Da mesma forma, Rubin (2017, p. 55)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. observa que o movimento feminista não deve visar à eliminação dos homens, mas à eliminação do sistema social que criou o sexismo e o gênero, ou melhor, erradicar toda hierarquia de gênero (ou o gênero, em si mesmo).

Da mesma forma, Delphy (2013b, p. 80)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b. sustenta que o objetivo do feminismo radical é chegar a “um mundo onde as classes de sexo não existiriam mais”.11 11 Trad. livre da autora: “un monde où les classes de sexe n’existeraient plus”. (DELPHY, 2013b, p. 80). A autora detalha em seguida a sua proposta: “uma sociedade sem sexo não significa que as pessoas serão castradas e nem eliminadas, mas quer dizer que a distinção entre os sexos não tem mais pertinência social”.12 12 Trad. livre da autora: “une société sans sexe ne signifie pas qu’on castre les gens ni qu’on les élimine, mais cela veut dire que la distinction entre les sexes n’a plus de pertinence sociale”.

Em geral, observa-se nas perspectivas das autoras uma relação entre o fim da distinção sexual e a liberação da sexualidade humana. Millet (1970, p. 27)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., por exemplo, sublinha a enorme inibição que o patriarcado impõe ao organismo bissexual da mulher, reduzindo-a a um objeto sexual destinado a cumprir as funções de reprodução e de educação das crianças. Firestone (1976, p. 21)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., por sua vez, sustenta que a revolução feminista deveria caminhar em direção a uma pansexualidade livre que levaria à abolição das categorias sexuais, dando lugar à emergência de uma sexualidade polimorfa onde todas as formas de sexualidade seriam permitidas. Rubin (2017, p. 55)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., no mesmo sentido, afirma: “O sonho que me parece mais cativante é o de uma sociedade andrógina e sem gênero (mas não sem sexo), na qual a anatomia sexual de uma pessoa seja irrelevante para quem ela é, para o que ela faz, e para com quem ela faz amor”.

Podemos pensar que essa sociedade sem gênero proposta por Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. significa o desmonte da própria categoria sexo, pois os dois sexos binários (masculino e feminino), sem o suporte do “gênero”, perdem a razão de ser. Como pontua Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., sem a distinção sexual, não haveria a transformação de machos e fêmeas em homens e mulheres. Ora, tudo indica que a defesa de uma sociedade em que a distinção entre os sexos não tenha qualquer pertinência social, partilhada entre as feministas radicais do início dos anos 1970, irá trazer novos pontos de tensão para o campo feminista.

A deriva transfóbica do “novo feminismo radical”

Sem haver possibilidade, neste artigo, de examinar em detalhes o desenrolar desse “movimento” feminista, pretendo localizar alguns pontos de tensão entre o feminismo radical e outras correntes feministas que surgem após a primeira metade da década de 1970. Esses pontos de tensão ajudam a entender o processo de construção de um “novo” feminismo radical caracterizado por aquilo que denomino como uma “deriva transfóbica”.

As diversas correntes feministas que surgem após o início da década de 1970 ampliam e complexificam o escopo do campo feminista. É o caso dos feminismos negros e dos interseccionais, que nos anos 1970 e 1980, chamam a atenção para a inexistência de uma homogeneidade da categoria das mulheres, defendendo um feminismo que leve em conta as diversas formas de opressão. Esses feminismos, ao problematizarem a ideia de que existiria uma opressão comum sofrida por todas as mulheres, podem ter provocado uma tensão com o feminismo radical nascente. Pode-se perguntar: ao supor a existência de uma opressão compartilhada, estaria o feminismo radical do início dos anos 1970 homogeneizando e universalizando a categoria mulheres, de maneira a excluir outros marcadores sociais de opressão (raça, gênero, classe)?

Este debate, longe de ser simples, revela inúmeras nuances e contradições, começando pela maneira como cada parte define as categorias “homens” e “mulheres”. Vale lembrar, por exemplo, que o feminismo radical coloca em questão tais categorias, o que significa que, para essa corrente feminista, a pretensa “opressão comum” se vincula à própria criação da categoria “mulheres”. Se homens e mulheres não são categorias biológicas, mas sim sociais, a opressão compartilhada estaria vinculada à própria produção da categoria “sexo”.

Ora, considerar que os sexos, binários, são socialmente produzidos não significa supor que esses sexos estejam imunes, na realidade social, a outras formas de opressão, como a de classe, a racial e a de gênero. Aliás, a opressão de gênero, além de incidir sobre as mulheres, atinge, sobretudo, aqueles que fogem à coerência normativa entre sexo, gênero e orientação sexual, nos termos propostos por Butler (2013). De fato, a ideia de uma opressão comum vinculada à produção social das categorias “homem” e “mulher” não é, a princípio, incompatível com análises interseccionais. Essa incompatibilidade pode, entretanto, ter sido socialmente construída a partir de contradições do próprio movimento.

Aventa-se aqui a hipótese de que o surgimento de um novo feminismo radical em tensão com o transfeminismo pode estar relacionado, de alguma forma, à ascensão no campo feminista, a partir dos anos 1970 e 1980, do que Donna Haraway (2004, p. 215)HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: A política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, p. 201-246, jan./jun. 2004. nomeia de paradigma da identidade de gênero. De acordo com a autora, o termo “gênero” aparece nos escritos feministas do início da década de 1970, vinculado inicialmente ao conceito de “identidade de gênero” proposto pelo psicanalista Robert Stoller em 1955. Tal conceito foi criado pelo autor para diferenciar e desvincular a categoria sexo (associada por ele à biologia) de dimensões associadas à psicologia e à subjetividade individual. Essa distinção entre sexo e gênero foi fundamental no processo de legitimação do que, na época, era denominado de “cirurgias de mudança de sexo”, pois a “identidade de gênero”, e não apenas o sexo de nascença (“biológico”), passa a ser vislumbrado, no meio médico, como um fator que define “quem é homem” e “quem é mulher”.

Em “Gênero” para um dicionário marxista, Haraway (2004)HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: A política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, p. 201-246, jan./jun. 2004. aborda as contradições advindas da introdução da categoria “gênero” no campo feminista. Se, por um lado, a distinção sexo-gênero é útil no combate aos determinismos sociais, ela deixa intocada a construção da categoria natureza, reproduzindo o binarismo natureza-cultura. Além disso, Haraway (2004, p. 218)HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: A política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, p. 201-246, jan./jun. 2004. afirma que, com o paradigma de identidade de gênero, “as formulações de uma identidade essencial como homem ou mulher permaneceram analiticamente intocadas e politicamente perigosas”. Essa questão será discutida por Judith Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. em 1990 com a publicação de Problemas de Gênero, onde a autora apresenta a identidade como uma ficção reguladora e discute os problemas, para o feminismo, de fundamentar as suas lutas em torno de uma suposta identidade feminina homogênea e coerente.

A explosão do discurso das diferenças de sexo e gênero na literatura sociológica e psicológica dos EUA nos anos 1970 e 1980 (HARAWAY, 2004HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: A política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu, n. 22, p. 201-246, jan./jun. 2004., p. 221) cria certamente pontos de tensão com o feminismo radical nascente na década de 1970, pois este não só contesta o binarismo e a própria noção de distinção sexual, mas pretende abolir as categorias binárias para dar uma livre expressão à sexualidade humana e romper com as estruturas patriarcais opressoras. Há que se ressaltar, entretanto, que o feminismo radical do início dos anos 70, embora tenha reivindicado o fim das distinções sexuais como pauta do movimento feminista, não se confrontava, ainda, com o paradigma da identidade de gênero, em ascensão. De fato, aventa-se uma primeira utilização da noção de “gênero” no discurso sociológico e feminista no livro de Ann Oakley (1972)OAKLEY, Ann. Sex, Gender and Society. Londres: Maurice Temple Smith, 1972., Sex, Gender and Society, publicado em 1972.

Com foco no desenrolar do movimento feminista, tentaremos entender como essas tensões serão processadas no interior do feminismo radical, gerando novas contradições e divisões internas. Tais tensões ajudam a compreender o surgimento, no fim dos anos 1970, de um “novo feminismo radical”, portador de uma “crítica feminista à transgeneridade” que rejeita as identidades trans.13 13 Identidades trans ou transidentidades referem-se às identidades vinculadas às transições de gênero e assumidas pelas pessoas transgêneros (mulheres transexuais, homens transexuais, travestis, crossdressers, drag queens, pessoas queer, entre outras). Esse “novo feminismo radical” (termo utilizado pelas próprias autoras que se identificam com essa “nova” perspectiva) é entendido aqui como uma deriva transfóbica que ocorreu no campo (não homogêneo) do feminismo radical, não abarcando, necessariamente, a sua totalidade. O desenvolvimento dessa crítica levou à nomeação das feministas radicais a ela vinculadas de TERFs (feministas radicais trans-excludentes, segundo a sigla em inglês). Um marco importante na formação dessa crítica foi a publicação, em 1979, do livro The Transsexual Empire, de Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979.. Sheila Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., por exemplo, afirma que esse livro é a base sobre a qual a “crítica feminista à transgeneridade” foi construída e continua a inspirar o pensamento feminista radical.

Em tal livro, Janice Raymond (1979, p. 27)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979. se dedica a analisar o que nomeia de “Império transexual”, afirmando que os transexuais14 14 Para ser fiel ao pensamento das autoras e ajudar a compreender como a crítica à transgeneridade que elas formulam se expressa na escolha dos termos, dos pronomes e dos artigos utilizados para nomear as pessoas trans, optei por manter a terminologia utilizada originalmente, mesmo que ela, hoje, seja considerada imprópria, discriminatória e ofensiva. Utilizarei, assim, aspas sempre que se tratar de um termo utilizado na obra em debate. são produtos da sociedade patriarcal. A autora sustenta que os transexuais desejam mudar seus corpos com o objetivo de recuperar o poder e a energia criativa das mulheres. O corpo do transexual, de acordo com Raymond, representa a essência da masculinidade rejeitada e da feminilidade desejada. Assim, sustenta Raymond (1979, p. 28)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979., “o transexual homem” (chamo a atenção para a linguagem excludente utilizada, de propósito, pela autora), que muda o seu corpo para se tornar uma mulher, não só coloniza o corpo das mulheres, mas se apropria igualmente de uma parte da alma feminina. A autora afirma, ainda, que a ausência do pênis não significa a perda da habilidade de penetrar as mulheres, penetrar sua alma, sua identidade, seu espírito e sua sexualidade. Ora, para início de conversa, recorrer à ideia de uma colonização do corpo, da alma e da identidade das mulheres por “transexuais homens” me parece algo não só estranho, mas oposto ao projeto do feminismo radical nascente representado pelas autoras Firestone (1976)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., Millet (1970)MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1970., Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. e Delphy (2013aDELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a.; 2013b)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b..

A abordagem essencialista presente em Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979. se contrapõe ao antinaturalismo proposto pelas feministas radicais dos anos 1970. De fato, todas as feministas que inauguraram essa corrente desconstruíram de maneira radical a ideia de naturalidade da divisão sexual da humanidade em duas partes. Mesmo Firestone (1976, p. 21)FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: Um manifesto da revolução feminista. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976., que funda a opressão das mulheres na biologia reprodutora, busca romper com o que denomina a “tirania da biologia”, a partir da compreensão de que o que nós nomeamos “natural” não é assim tão natural como pensamos e pode, por isso, modificado graças ao desenvolvimento tecnológico.

Além disso, demandas identitárias centradas em uma suposta “identidade feminina” ou apelos a qualquer tipo de alma feminina não possuem lugar nas teorias elaboradas pelas feministas radicais do início dos anos 1970. Ao contrário, essas demandas contradizem suas análises. Uma hipótese é que o paradigma identitário presente no campo feminista desde meados de 1970 tenha influenciado de alguma forma a práxis do novo feminismo radical, originando uma contradição que me parece inconciliável: criticar a distinção sexual e ao mesmo tempo reivindicar a existência de uma identidade feminina biologizada e atrelada à categoria “mulheres”. As mulheres deixam, assim, de ser vistas como uma categoria social e passam a ser associadas a um corpo possuidor de útero, ovários, vagina. Nessa perspectiva, para ser incluída na categoria “mulher” e ser sujeito do feminismo, é necessário ter nascido com os atributos biológicos femininos, já que somente eles ensejariam a opressão comum sofrida pelas mulheres (as verdadeiras, as originais, as autênticas).

Um episódio importante que talvez tenha contribuído para a produção dessa crítica feminista à transgeneridade ocorreu na Conferência Feminista Lésbica, nos EUA, no ano de 1973. Na ocasião, Robin Morgan, feminista radical, pronunciou-se publicamente contra a permanência de Beth Elliot, mulher trans, a partir de denúncias de que ela teria assediado uma das feministas do movimento:

Não, eu não vou chamar um homem de “ela”; trinta e dois anos de sofrimento e sobrevivência nessa sociedade androcêntrica me fizeram merecer o título de “mulher”; um passeio na rua por um travesti masculino, cinco minutos de assédio (que ele deve gostar), e ele ousa, ousa pensar que entende nosso sofrimento? Não, pelos nomes de nossas mães e pelos nossos, não devemos chamá-lo de irmã.15 15 MILARÉ, Jéssica. A origem do feminismo radical transexcludente e a expulsão de Beth Elliott. In: Esquerda Online. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2016/11/25/a-origem-do-feminismo-radical-trans-excludente-a-expulsao-de-beth-elliott/. Acesso em: 13 jan. 2023.

Mesmo levando em conta o contexto particular em que Robin Morgan pronunciou tal discurso (uma acusação de assédio), seu argumento contém uma recusa de considerar que Beth Elliot possa fazer parte do grupo de mulheres devido ao fato de ela não haver sofrido as consequências difíceis de uma sociedade androcêntrica. Existe, além disso, um pressuposto segundo o qual ser mulher é algo “honorífico”, tal como sustentado por Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979. em The Transsexual Empire. Tudo indica que, para Morgan, o título honorífico “mulher” se vincula a uma natureza biológica que jamais poderá ser transmitida a um “macho”.

Não tardou para que uma crítica consistente a The Transsexual Empire fosse elaborada, levando o feminismo a se mover, continuar como um “movimento”. Essa crítica, elaborada por Sandy Stone em 1987 sob a forma do manifesto The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Mani-festo,16 16 STONE, Sandy. The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto. In: Trans Reads. Disponível em: https://transreads.org/the-empire-strikes-back-a-posttranssexual-manifesto/. Acesso em: 13 jan. 2023. tem sido apontada como o texto fundador do transfeminismo. Tal corrente feminista, em construção, é definida “tanto como uma filosofia quanto como uma práxis acerca das identidades transgênero que visa a transformação dos feminismos” (JESUS; ALVES, 2012JESUS, Jaqueline Gomes de; ALVES, Hailey. Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. Cronos, v. 11, p. 8-19, 2012., p. 7).

Há, portanto, na origem do transfeminismo, não só uma percepção de que os sujeitos trans foram excluídos do campo feminista, mas uma tensão particular e específica entre o “transfeminismo nascente” e o chamado “novo feminismo radical”. Entretanto, esse embate, que é efetivo e concreto, nem sempre leva em conta a complexidade do debate, ocultando algumas contradições abissais entre o feminismo radical do início dos anos 1970 e o novo feminismo radical. Em uma espécie de reducionismo, cria-se muitas vezes uma polarização a-histórica entre o transfeminismo e o feminismo radical (nomeado de radfem), como se este último pudesse ser reduzido às, perdoe-me o “radicalismo”, aberrações delirantes produzidas por Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979..

Como as terminologias nunca são inocentes, cabe indagar por que esse feminismo radical se apresenta como “novo”. Ora, tudo indica que a “novidade”, plena de contradições, significou a eleição de um novo representante do patriarcado (o inimigo principal), o qual estaria contribuindo para a sua perpetuação: as identidades trans; em particular, aquelas que desejam permanecer no binarismo “homem-mulher” e reivindicam uma identidade masculina ou feminina desvinculada da biologia.

De fato, um aspecto enfatizado pelas “novas” feministas radicais diz respeito à contradição de interesses entre o feminismo que elas defendem e a demanda identitária das pessoas trans. Eloisa Samy (2018, p. 401)SAMY, Eloisa. Feminismo radical. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 400-413., que se reconhece como uma feminista radical, afirma que essa corrente feminista defende a abolição da categoria “gênero”, concebida como um mecanismo de controle e de dominação sexual. Essa é a razão pela qual, “como crítica de gênero, a corrente geralmente não apoia a transgeneridade”. Ainda a respeito dessa suposta contradição de interesses, Sheila Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. sustenta que as teóricas feministas pretendem eliminar o gênero, e não o tornar mais flexível.

Em uma análise tributária das concepções de Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979., Samy (2018)SAMY, Eloisa. Feminismo radical. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 400-413. afirma que o transfeminismo pode ser visto como uma nova face do patriarcado. Este teria como objetivo conter as pretensões das mulheres e reforçar os marcadores sociais da feminilidade utilizados como ferramentas da opressão, ao tratar tais marcadores como se fossem naturais. Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. realiza uma análise similar no seu livro Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism, apontando “os males” que a noção de “transgênero” pode causar no movimento feminista, considerado pela autora como um fenômeno nefasto e perigoso por ser hostil ao direito de todas as mulheres.

Assumindo a defesa das feministas que rejeitam a noção de “transexualidade” ou de “transgênero” perante as acusações de transfobia, Samy (2018, p. 411)SAMY, Eloisa. Feminismo radical. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 400-413. explica que não se trata de um ódio ou de uma fobia contra as pessoas trans, mas unicamente da compreensão segundo a qual gênero não é uma questão identitária, e sim um sistema político que sustenta o patriarcado. Ele deve, portanto, ser demolido, e não reforçado. De acordo com a autora, se gênero é um sistema político que sustenta o patriarcado, a “transgeneridade”, enraizada na base do sistema, precisa ser arrancada, não havendo lugar para a sua preservação na agenda feminista. A autora sugere que a “transgeneridade” representa uma estratégia visando a reforçar a ideia de natureza feminina e masculina e que o movimento “trans” deturpou tanto os movimentos gay e lésbico quanto o feminismo.

Jeffreys (2014, p. 187)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., que se reconhece como representante do “novo feminismo radical”, desenvolve uma abordagem parecida. Para a autora, os indivíduos que nascem biologicamente machos são automaticamente alocados na casta superior dos homens. Assim, aqueles (a autora se recusa a utilizar o pronome feminino) que tentam ser reconhecidos como “mulheres” estão envolvidos em um tipo de colonialismo, razão pela qual essa demanda identitária deve ser rejeitada. Jeffreys explica que foi a força do poder masculino que criou a categoria “transgênero”. O indivíduo “transgênero” é, portanto, identificado como produto do sistema patriarcal e, como consequência, toda possibilidade de autodeterminação lhe é negada pela autora.

Jeffreys (2014, p. 5)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. confessa preferir o termo “casta sexual” a “classe sexual”, por considerar que a noção de casta permite enfatizar uma ausência de mobilidade entre a camada superior, dos homens, e a inferior, das mulheres. A autora afirma:

O termo “casta”, ao contrário, é útil para este livro porque exprime a maneira como as mulheres são alocadas no interior de uma casta subalterna durante toda a sua vida. As mulheres podem mudar de classe econômica graças a uma mobilidade ascendente, mas elas permanecem mulheres, a menos que elas escolham a transição de gênero e reivindiquem o pertencimento à casta superior.17 17 Trad. livre da autora: “The term “caste”, on the other hand, is useful for this book because it encapsulates the way in which women are placed into a subordinate caste status for their lifetime. Women may change their economic class status with upward mobility, but they remain women unless they elect to transgender and claim membership in the superior sex caste”.

De acordo com Jeffreys (2014, p. 5)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., o termo “casta sexual” se refere ao “sistema político no qual as mulheres são subordinadas aos homens com base na sua biologia”.18 18 Trad. livre da autora: “political system in which women are subordinated to men on the basis of their biology”. Nesse sistema hierárquico, fêmeas e machos, devido a uma biologia distinta, são alocados em castas diferenciadas. Os homens ocupam a casta superior; e as mulheres, a inferior. Esse fato, de acordo com Jeffreys (2014, p. 36)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., cria uma contradição entre a “teoria transgênero” e o feminismo: “A teoria e a prática transgênero contradizem a base mesma do feminismo, porque o feminismo é um movimento político baseado na experiência de pessoas que são mulheres, nasceram fêmeas e foram criadas na casta sexual das fêmeas”.19 19 Trad. livre da autora: “Transgender theory and practice contradict the very basis of feminism, since feminism is a political movement based on the experience of persons who are women, born female and raised in the female sex caste”.

Pode-se observar um biologismo importante que serve como referência à concepção da autora. De maneira contraditória, ao mesmo tempo que Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. defende o fim da distinção sexual, ela permanece extremamente presa a uma definição biológica de homens e mulheres. Em uma formulação naturalista, a autora sustenta que a realidade biológica associada à vida das mulheres é a base de sua subordinação ao sistema patriarcal. É importante salientar, ainda, que essa abordagem biológica determinista ignora completamente a subjetividade dos indivíduos (“homens” e “mulheres”), os quais são concebidos unicamente como representantes de suas castas de nascimento. As fêmeas e os machos estariam, assim, predestinados a se tornarem, seja homens (opressores), seja mulheres (oprimidas), sem qualquer possibilidade de autodeterminação. Recorrendo a Janice Raymond, Jeffreys (2014, p. 6)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. observa:

Nós sabemos que nós somos mulheres nascidas com cromossomos e uma anatomia feminina e que, quer nós sejamos ou não socializadas para nos tornarmos mulheres ditas normais, o patriarcado nos tratou e nos tratará sempre como mulheres. Os transexuais não possuem a mesma história. Nenhum homem pode pretender ter nascido e sido alocado nesta cultura como mulher. Ele pode desejar ser uma mulher e agir como uma mulher, mas essa experiência de gênero é a experiência de um transexual e não de uma mulher. A cirurgia pode trazer os artefatos de órgãos femininos exteriores e interiores, mas a experiência de ser uma mulher nesta sociedade, não.20 20 Trad. livre da autora: “We know that we are women who are born with female chromosomes and anatomy, and that whether or not we were socialized to be so-called normal women, patriarchy has treated and will treat us like women. Transsexuals have not had this same history. No man can have the history of being born and located in this culture as a woman. He can have the history of wishing to be a woman and of acting like a woman, but this gender experience is that of a transsexual, not of a woman. Surgery may confer the artefacts of outward and inward female organs but it cannot confer the history of being a woman in this society”.

Consequentemente, como foi indicado anteriormente, Jeffreys se recusa a utilizar o pronome feminino - que a autora considera, aliás, honorífico - para fazer referência àqueles que nomeia “transgêneros” do sexo masculino (e não “mulheres trans”). Em Gender Hurts, Jeffreys (2014, p. VIII)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. tenta esclarecer os propósitos políticos do seu livro:

Eu concebo este livro como uma contribuição à disputa considerável que se desenvolve atualmente principalmente entre militantes transgêneros machos e as feministas radicais, disputa essa com o objetivo de determinar quem é uma mulher: as mulheres ou machos que fantasiam serem mulheres.21 21 Trad. livre da autora: “I intend this book as a contribution to the considerable struggle that is presently taking place between mainly male transgender activits and radical feminist over who has the right to define what a woman is: women, or men who fantasie about being a women”.

De maneira contraditória, ao mesmo tempo que Sheila Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014. recusa a demanda identitária subjacente à noção de transidentidade, a autora utiliza como referência teórica as formulações identitárias e essencialistas elaboradas por Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979. em Transsexual Empire. Tudo indica que, nesse caso, existe uma combinação contraditória de duas perspectivas que, de acordo com Delphy (2013a, p. 40)DELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 1 - Économie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2013a., são inconciliáveis: o construtivismo social e o essencialismo. Sustentar, como Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979. propõe, que existe uma alma feminina que pode ser sequestrada significa, antes de mais nada, considerar a existência de uma alma feminina (essência) que habita o corpo das mulheres, pressuposto estranho aos propósitos do feminismo radical do início dos anos 1970.

Em The Whole Woman, Germaine Greer (1999)GREER, Germaine. The Whole Woman. Nova York: A. A. Knopf, 1999., outra feminista radical frequentemente associada às TERFs, afirma a natureza performática das transidentidades, descrevendo o ato de ser uma “mulher trans” como uma “encenação” da feminilidade. Para explicar a razão da sua recusa em aceitar que as “mulheres trans” sejam definidas como mulheres, Greer (1999, p. 84)GREER, Germaine. The Whole Woman. Nova York: A. A. Knopf, 1999. sustenta:

Nenhuma suposta “mudança de sexo” jamais demandou um transplante de útero-e-ovários. Se transplantes de útero-e-ovários fossem obrigatórios para aqueles que desejam tornar-se mulheres, esse tipo de demanda desapareceria de um dia para o outro. A insistência para que mulheres fabricadas sejam aceitas como mulheres é a expressão institucional da convicção errônea segundo a qual as mulheres são machos defeituosos.22 22 Trad. livre da autora: “No so-called sex-change has ever begged for a uterus-and-ovaries transplant; if uterus-and-ovarius transplants were made mandatory for wannabe woman, they would disappear overnight. The insistence that manmade women be accepted as women is the institutional expression of the mistaken conviction that women are deffective males”.

Levando-se em conta que o feminismo radical nascente dos anos 1970 propôs a abolição da distinção sexual, não seria problemático propor uma definição de homens e mulheres imutável e estritamente vinculada à biologia? É importante lembrar que todas as feministas radicais da década de 1970 aqui analisadas consideram como objetivo da revolução feminista a liberação das sexualidades aprisionadas, dando lugar a possibilidades de expressão múltiplas e polimorfas. Se as sexualidades domesticadas são vistas como produtos de um sistema patriarcal, por que conceber as pessoas trans como agentes do sistema opressor, e não pessoas se desejando liberar de certos aspectos opressivos do gênero?

Considerar, como propõe Jeffreys (2014)JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Londres; Nova York: Routledge, 2014., que os machos desejam tornar-se mulheres para colonizar suas almas é de um dualismo, de um determinismo e de um reducionismo impressionantes! Da mesma forma, caracterizar as identidades trans como fazendo parte de um projeto patriarcal de atualização da dominação masculina significa apagar, de uma maneira totalitária, as subjetividades dos indivíduos, além de ignorar o fato de que esses indivíduos também estão submetidos - como todos nós, aliás - à opressão de gênero. Longe de serem privilegiados, esses indivíduos entram na categoria dos “impensáveis”, o que significa, concretamente, que são alvos de uma intensa violência física e psicológica, que coloca suas vidas em permanente risco. Considerá-los como opressores e expressões da dominação patriarcal é, a meu ver, inadmissível.

Para finalizar, é importante salientar que, se o “novo” feminismo radical expressou uma tensão entre o projeto de demolição do gênero e a demanda identitária do(a)s transexuais, há que se considerar que a deriva transfóbica foi uma reposta que excluiu qualquer possibilidade de diálogo entre as partes. Ao invés de estabelecer laços, o novo feminismo radical rejeitou as transidentidades e as demandas identitárias das pessoas transgêneros, elegendo um “novo” adversário na luta contra o patriarcado.

Uma formulação alternativa foi proposta por Andrea Dworkin (1974)DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova York: Penguin, 1974., feminista radical que, mesmo se posicionando a favor da abolição de gênero e das identidades trans, defende explicitamente o direito das pessoas transgêneros de realizarem as intervenções cirúrgicas que desejam. Após afirmar que homem e mulher são ficções reguladoras e propor a androginia como a base da identidade sexual, Dworkin analisa o efeito perverso do modelo binário, reducionista e totalitário sobre o ser humano.

Esse modelo dicotômico, segundo a autora, oprime particularmente alguns grupos, como mulheres, homossexuais e transexuais, sendo estes últimos vistos pela sociedade como perversões da natureza humana. A análise realizada pela autora difere significativamente da interpretação proposta por Janice Raymond (1979)RAYMOND, Janice. The Transsexual Empire: The making of the she-male. Nova York: Beacon, 1979.. Em vez de reduzir a demanda “trans” a uma reprodução do binarismo, Dworkin (1974)DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova York: Penguin, 1974. compreende que ela, mesmo que de maneira contraditória, desafia a noção de que existem dois sexos (biológicos) distintos.

Por essa razão, Dworkin (1974DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova York: Penguin, 1974., p. 186) argumenta que a “transexualidade” é causada por uma sociedade defeituosa: “Transexualidade pode ser definida como uma formação particular da nossa multissexualidade geral que é incapaz de alcançar o seu desenvolvimento natural por causa das condições sociais extremamente adversas”.23 23 Trad. livre da autora: “Transsexuality can be defined as one particular formation of our general multisexuality which is unable to achieve its natural development because of extremely adverse social conditions”.

Por considerar que a “transexualidade” é fruto de uma sociedade que aprisiona as sexualidades humanas e que todo indivíduo transexual se encontra em um estado de emergência, Dworkin (1974, p. 186)DWORKIN, Andrea. Woman Hating. Nova York: Penguin, 1974. defende o direito de este sobreviver “nos seus próprios termos”24 24 Trad. livre da autora: “every transsexual has the right to survival on his/her own terms”. e, se for a sua demanda, realizar as intervenções cirúrgicas desejadas, as quais, para a autora, devem ser acessíveis a quem demandar. Trata-se, de acordo com Dworkin, de uma medida emergencial e necessária, frente a uma condição emergencial. Cabe sublinhar, entretanto, que a defesa dessa medida emergencial não significa, para a autora, o abandono da sua proposta de construção de uma identidade andrógina fluida, onde os papéis sexuais desapareceriam e, com isso, a própria “transexualidade”.

Conclusão

Inscrevendo-se em uma perspectiva revolucionária, o feminismo radical do início dos anos 1970 se propõe a realizar uma imersão nas origens (raízes) da opressão das mulheres, tendo por objetivo construir uma revolução feminista capaz de destruir o sistema opressor na sua totalidade. Mesmo que as autoras que se tornaram referências clássicas do feminismo radical (Rubin, Millet, Delphy e Firestone) situem as raízes da opressão das mulheres em diferentes loci, todas compartilham o ponto de vista de que a revolução feminista deve sacudir as estruturas de dominação e de opressão, colocando fim às distinções sexuais ou ao gênero em si mesmo. Ora, essa feição abolicionista compartilhada pelas feministas radicais da década de 1970 aparece posteriormente, em autoras associadas a um novo feminismo radical, como um ponto de tensão com a noção de transidentidade.

Tendo em vista que o feminismo é um movimento, é importante compreender como, em cada momento histórico, ele se constrói, não só a partir de denominadores comuns, mas também de inúmeras tensões e contradições. Com o feminismo radical, em processo de construção desde 1970, não seria diferente. No início dos anos 1970, a dialética do movimento não é a mesma do final década, e o feminismo radical, ao se deparar com outros pontos de tensão, formula algumas respostas e cai em algumas contradições que, a meu ver, são inconciliáveis. Tudo indica que a nova radicalidade construída pelo novo feminismo radical, elegendo como inimigo principal as identidades trans, esteja relacionada à influência crescente de um paradigma identitário particularmente excludente, combinado com uma versão biologizante e essencialista acerca da opressão das mulheres.

  • 1
    Utilizo, aqui, o termo entre aspas para sublinhar um aspecto central de minha análise: a atenção ao “movimento” (tensões, contradições, avanços, retrocessos) do movimento feminista.
  • 2
    DÉCLARATION des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789. In: Conseil Constitutionnel. Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/node/3850. Acesso em: 13 jan. 2023.
  • 3
    GOUGES, Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne. In: Gallica. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/essentiels/anthologie/declaration-droits-femme-citoyenne-0. Acesso em: 13 jan. 2023.
  • 4
    Trad. livre da autora: “être révolutionnaire (…) c’est être extrémiste par rapport à l’objet qu’on poursuit”.
  • 5
    Levando-se em conta a complexidade teórica contida no artigo de Gayle Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017., é importante precisar, para ser mais fiel ao pensamento da autora, que, para buscar as origens da opressão das mulheres, Rubin recorre a Claude Lévi-Strauss e Sigmund Freud. Esses dois autores, segundo Rubin, descrevem, sem problematizar, processos, características e fatos ligados a essa opressão: Lévi-Strauss, os princípios estruturais do parentesco, como origem da opressão material das mulheres; e Freud, através da sua teoria da feminilidade, os mecanismos (ideológicos) que permitem a legitimação dessa opressão.
  • 6
    Trad. livre da autora: “Dans mon analyse les bénéficiaires du travail domestique ne sont pas les capitalistes mais les conjoints (maris ou concubins), les pères (si ce sont les filles qui font le travail domestique) les enfants (si ce sont les mères qui font le travail domestique), de toute façon, les partenaires dans la famille, et non pas la classe capitaliste”.
  • 7
    Rubin (2017)RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. considera que essa expressão contempla melhor o caráter mutável e histórico das relações específicas que organizam, em cada sociedade e contexto histórico, o sistema de opressão das mulheres.
  • 8
    Trad. livre da autora: “mode de production domestique”; “âge de pierre”.
  • 9
    Trad. livre da autora: “Pourquoi devrions-nous, pour expliquer la division de la société en groupes hiérarchiques, s’attacher à l’anatomie des individus composant (…) ces groupes?”.
  • 10
    Trad. livre da autora: “Et même la théorie considérée aux États-Unis et en Angleterre comme fondatrice du féminisme radical, celle de Shulamith Firestone, est outrageusement biologisante puisqu’elle fait découler l’oppression des femmes du ‘handicap naturel des grossesses’”.
  • 11
    Trad. livre da autora: “un monde où les classes de sexe n’existeraient plus”. (DELPHY, 2013bDELPHY, Christine. L’Ennemi principal. V. 2 - Penser le genre. Paris: Syllepse, 2013b., p. 80).
  • 12
    Trad. livre da autora: “une société sans sexe ne signifie pas qu’on castre les gens ni qu’on les élimine, mais cela veut dire que la distinction entre les sexes n’a plus de pertinence sociale”.
  • 13
    Identidades trans ou transidentidades referem-se às identidades vinculadas às transições de gênero e assumidas pelas pessoas transgêneros (mulheres transexuais, homens transexuais, travestis, crossdressers, drag queens, pessoas queer, entre outras).
  • 14
    Para ser fiel ao pensamento das autoras e ajudar a compreender como a crítica à transgeneridade que elas formulam se expressa na escolha dos termos, dos pronomes e dos artigos utilizados para nomear as pessoas trans, optei por manter a terminologia utilizada originalmente, mesmo que ela, hoje, seja considerada imprópria, discriminatória e ofensiva. Utilizarei, assim, aspas sempre que se tratar de um termo utilizado na obra em debate.
  • 15
    MILARÉ, Jéssica. A origem do feminismo radical transexcludente e a expulsão de Beth Elliott. In: Esquerda Online. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2016/11/25/a-origem-do-feminismo-radical-trans-excludente-a-expulsao-de-beth-elliott/. Acesso em: 13 jan. 2023.
  • 16
    STONE, Sandy. The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto. In: Trans Reads. Disponível em: https://transreads.org/the-empire-strikes-back-a-posttranssexual-manifesto/. Acesso em: 13 jan. 2023.
  • 17
    Trad. livre da autora: “The term “caste”, on the other hand, is useful for this book because it encapsulates the way in which women are placed into a subordinate caste status for their lifetime. Women may change their economic class status with upward mobility, but they remain women unless they elect to transgender and claim membership in the superior sex caste”.
  • 18
    Trad. livre da autora: “political system in which women are subordinated to men on the basis of their biology”.
  • 19
    Trad. livre da autora: “Transgender theory and practice contradict the very basis of feminism, since feminism is a political movement based on the experience of persons who are women, born female and raised in the female sex caste”.
  • 20
    Trad. livre da autora: “We know that we are women who are born with female chromosomes and anatomy, and that whether or not we were socialized to be so-called normal women, patriarchy has treated and will treat us like women. Transsexuals have not had this same history. No man can have the history of being born and located in this culture as a woman. He can have the history of wishing to be a woman and of acting like a woman, but this gender experience is that of a transsexual, not of a woman. Surgery may confer the artefacts of outward and inward female organs but it cannot confer the history of being a woman in this society”.
  • 21
    Trad. livre da autora: “I intend this book as a contribution to the considerable struggle that is presently taking place between mainly male transgender activits and radical feminist over who has the right to define what a woman is: women, or men who fantasie about being a women”.
  • 22
    Trad. livre da autora: “No so-called sex-change has ever begged for a uterus-and-ovaries transplant; if uterus-and-ovarius transplants were made mandatory for wannabe woman, they would disappear overnight. The insistence that manmade women be accepted as women is the institutional expression of the mistaken conviction that women are deffective males”.
  • 23
    Trad. livre da autora: “Transsexuality can be defined as one particular formation of our general multisexuality which is unable to achieve its natural development because of extremely adverse social conditions”.
  • 24
    Trad. livre da autora: “every transsexual has the right to survival on his/her own terms”.

REFERêNCIAS

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  • WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of The Rights of Woman Londres: Josep Johnson, 1792.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2022
  • Revisado
    13 Jan 2022
  • Aceito
    14 Jan 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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