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O café salvadorenho e suas conexões globais

Salvadorean Coffee and its Global Connections

SEDGEWICK, Augustine. Coffeeland. : One Man’s Dark Empire and the Making of our Favorite Drug. Nova York: Penguin, 2020

Publicado em 2020, ano de reflexão crítica sobre a viabilidade da manutenção de um fornecimento contínuo de bens em escala mundial, Coffeeland, o primeiro trabalho de fôlego de Augustine Sedgewick, defende, de forma oportuna, a natureza intrinsecamente global do fornecimento de bens de consumo cotidiano do Hemisfério Norte, como o café. Tal proposta surge no esteio de diversos trabalhos semelhantes, publicados nas últimas duas décadas, nos quais histórias de diferentes commodities foram objeto de análises que enfatizaram como sua crescente disponibilidade nos Estados Unidos e na Europa ocidental dependeu diretamente do aprofundamento de estruturas de exploração da terra e do trabalho no Sudeste Asiático e na América Latina (RAPPAPORT, 2017RAPPAPORT, Erika. A Thirst for Empire: How Tea Shaped the Modern World. Princeton: Princeton University Press, 2017.; BECKERT, 2014; NORTON, 2006NORTON, Marcy. Tasting Empire: Chocolate and the European Internalization of Mesoamerican Aesthetics. American Historical Review, v. 111, n. 3, p. 660-691, June 2006.; SPARY, 2012SPARY, Emma C.. Eating the Enlightenment: Food and the Sciences in Paris, 1670-1760. Chicago: University of Chicago Press, 2012.; CLARENCE--SMITH; TOPIK, 2003MARQUESE, Rafael de Bivar. A Tale of Two Coffee Colonies: Environment and Slavery in Suriname and Saint-Domingue, ca. 1750-1790. Comparative Studies in Society and History, v. 64, n. 3, p. 722-755, July 2022.; MARQUESE, 2021). Nesse trabalho mais recente, Sedgewick, historiador do trabalho e professor da City University of New York, continua estudos centrados no imperialismo norte-americano e em seus impactos na produção de commodities (SEDGEWICK, 2015SEDGEWICK, Augustine. What Is Imperial about Coffee? Rethinking “Informal Empire”. In: BENDER, Daniel E.; LIPMAN, Jana K. (Ed.). Making the Empire Work: Labor and United States Imperialism. Nova York: NYU Press, 2015, p. 312-334.).

Projeto ambicioso, Coffeeland provê alguns bons pontos de discussão para historiadores do café que buscam entender a cadeia de produção, circulação e consumo de commodities de forma fluida e em diálogo, sem recair no problema comum de estabelecer hierarquias que ora enfatizam a supremacia da produção como motor da escala do consumo cafeeiro, ora fazem o caminho contrário. Ao direcionar o olhar para o ambiente de consumo estadunidense, Sedgewick (2020) contribui para um campo ainda pouco explorado da historiografia, já que trabalhos que buscam incorporar a história do consumo norte-americano de café costumam recorrer a clássicos como os de William Ukers (1922)UKERS, William. All about Coffee. Nova York: The Tea & Coffee Trade Journal Company, 1922., ou a trabalhos generalistas pouco críticos desse desenvolvimento (PENDERGRAST, 2010PENDERGAST, Mark. Uncommon Grounds: The History of Coffee and how it Transformed our World. Nova York: Basic Books, 2010.). Ao incorporar aspectos literários por meio de sua ancoragem em personagens emblemáticos, Coffeeland ainda demonstra a intenção de se dirigir não apenas a acadêmicos, mas também ao leitor norte-americano de modo geral, grande consumidor de café. Tal intuito fica evidente na sua conclusão, quando o autor questiona a efetividade dos certificados de fair trade em resolver os problemas estruturais gerados pela priorização da cafeicultura nos países produtivos. Seu propósito de alívio da consciência consumidora, argumenta, pouco questiona a equivalência entre melhoria salarial dos produtores e produção ética.

A proposta, que visa a combinar reflexão crítica e entretenimento, também causa, contudo, problemas ao livro, que precisa articular em muitos capítulos - 26, em mais de 300 páginas - diferentes dimensões da história que quer contar. Há o front principal, situado em El Salvador e na vida de James Hill. Nele, Sedgewick (2020) se vale do acesso privilegiado que teve aos arquivos da família para narrar como o patriarca, vindo de condições dickensianas do norte inglês, imigrou para a América Central, casou-se dentro da sociedade cafeicultora e, pela mistura de uma personalidade ardilosa, contatos com produtores e leituras sobre a produção cafeeira e a administração do trabalho, foi um grande cafeicultor e figura do campo político e social salvadorenho. Junto a essa narrativa principal, há a segunda frente, situada na América do Norte. O foco do autor passa às transformações no consumo de café, desde suas origens estrangeiras, sua popularização na Europa Ocidental até, finalmente, sua entrada nos Estados Unidos com imigrantes europeus, quando começou entre elites costeiras e se difundiu ao integrar as rações dadas a soldados durante a Guerra Civil.

Ainda que crie alguma confusão, a alternância entre os dois espaços traça um paralelo interessante, já que permite ao leitor observar a natureza dialética entre o que ocorria na esfera da produção e na do consumo. O domínio dos roasters, responsáveis por comprar, torrar e revender o café, é emblemático para o autor. Esse grupo, representado ironicamente pelos irmãos Austin e Reuben Hills (sem parentesco com a família salvadorenha), mudaria as cadeias de distribuição de café ao embalar seu produto, viabilizando a expansão de sua validade e da acessibilidade às famílias. Também foi responsável por métodos de seleção e avaliação do café, que se transformaram e contribuíram de forma significativa para a precificação do grão.

Desde o começo, fica clara a estreita relação entre agentes estrangeiros, como bancos e empresas privadas, e a política salvadorenha pós-independência, baseada em projetos liberais que visaram a fortalecer a economia por meio da agricultura. Durante as décadas de 1910 e 1920, essas conexões se tornariam ainda mais diretas, quando o primogênito de Hill, Jaime, estudou no Departamento de Agronomia da Universidade da California a fim de expandir o aproveitamento de terras do pai e quando o patriarca estabeleceu contato, como membro da Associated Coffee Industries of America, com figuras importantes do mercado consumidor cafeeiro como William Ukers, editor do Tea & Coffee Trade Journal.

Na prática, no campo salvadorenho, tais processos alteraram substancialmente organizações anteriores de propriedade de terra, desmantelando-as em prol da monocultura latifundiária. Nessas propriedades, a força de trabalho para a produção de café era composta por uma população de origem majoritariamente indígena que, expropriada de suas terras e seus cultivos, era coagida ao trabalho pela fome e pela miséria endêmicas geradas por tais mudanças. A fome, em especial, é a protagonista dessa relação, já que o fornecimento de um café da manhã diário, com rígidos horários preestabelecidos, foi utilizado para garantir trabalhadores regulares nas plantações, extirpadas de todas as árvores frutíferas que pudessem alimentar essas pessoas. São da mesma época estudos que conceberam o conceito de caloria como valor gasto pelo corpo humano no trabalho e que deram respaldo intelectual ao tratamento do corpo trabalhador como maquinário, sujeito à otimização e à supervisão.

O clímax dessa história é descrito a partir de um mergulho no modo como as relações exploratórias de longa data coincidiram com a formação de um movimento trabalhador de base socialista e comunista, que buscava ajuda soviética para um levante. Valendo-se novamente de grandes personagens, o autor descreve a insurreição de 1932 e o massacre subsequente, de base étnica, que aniquilou parte da população indígena, mesmo aquela que não tinha participado do movimento. Em discursos proferidos para o público americano, James Hill enfatizava a importância da manutenção desse modelo de trabalho para o funcionamento do mercado consumidor setentrional: melhorar as condições de trabalho e salários, disse em 1936, implicaria um indesejável aumento de preços ao consumidor. Afinal, estavam todos - produtores, roasters e consumidores de café - do mesmo lado. Nos anos 1950, com o falecimento de Hill, surgiram também os impulsos pela industrialização e a consciência de que o valor gerado pelo consumidor norte-americano de café era muito maior do que aquele produzido pela cafeicultura em si, gerando desigualdades estruturais entre os dois espaços. Esse público, composto por trabalhadores de escritório, também tratados como máquinas, movidas a café, convivia com transformações próprias, como suburbanização, automobilização e desmantelamento de mercados locais em favor das novas redes de supermercados, que precisavam de elevado fornecimento de café barato.

Coffeeland não inova tanto no campo da historiografia sobre a produção cafeeira quanto o faz na discussão sobre o consumo de café no Hemisfério Norte. Abarcando o tema de modo mais eficiente, há uma consolidada historiografia sobre a cafeicultura, sua natureza global e as formas pelas quais produtores latino-americanos a expandiram com práticas exploratórias da terra e do trabalho (MARQUESE, 2022MARQUESE, Rafael de Bivar. A Tale of Two Coffee Colonies: Environment and Slavery in Suriname and Saint-Domingue, ca. 1750-1790. Comparative Studies in Society and History, v. 64, n. 3, p. 722-755, July 2022.; TROUILLOT, 1982TROUILLOT, Michel-Rolph. Motion in the System: Coffee, Color, and Slavery in Eighteenth-Century Saint-Domingue. Review (Fernand Braudel Center), v. 5, n. 3, p. 331-388, 1982.; CLARENCE-SMITH; TOPIK, 2003CLARENCE-SMITH, William Gervase; TOPIK, Steven (Ed.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin America: 1500-1989. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 2003.). Ao privilegiar a narrativa e a conscientização do seu leitor-consumidor, Sedgewick perde a oportunidade de abordar a perspectiva dos trabalhadores, fora das disputas entre cafeicultores e militantes políticos. Em dado momento, pontua como a humanidade dessas pessoas podia ser vista por meio das relações sociais e afetivas desenvolvidas no cerne de um sistema de controle rígido do trabalho, o que teve como um de seus resultados a recusa ao trabalho. O autor, no entanto, não explora ou discute como funcionavam tais formas de resistência e quais eram seus impactos na produção das fazendas. Talvez, por sua seleção de fontes consistir principalmente na documentação fornecida pela família Hill, o enfoque na história dos trabalhadores perca espaço. De qualquer forma, essa dimensão teria beneficiado seu argumento. Privilegiando uma história de personagens, o livro alcança um público maior pelo entretenimento, mas não chega a concretizar satisfatoriamente seu projeto inicial.

REFERêNCIAS

  • BECKERT, Sven. Empire of Cotton: A Global History. Nova York: Vintage, 2015.
  • CLARENCE-SMITH, William Gervase; TOPIK, Steven (Ed.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin America: 1500-1989. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 2003.
  • MARQUESE, Rafael de Bivar. A Tale of Two Coffee Colonies: Environment and Slavery in Suriname and Saint-Domingue, ca. 1750-1790. Comparative Studies in Society and History, v. 64, n. 3, p. 722-755, July 2022.
  • NORTON, Marcy. Tasting Empire: Chocolate and the European Internalization of Mesoamerican Aesthetics. American Historical Review, v. 111, n. 3, p. 660-691, June 2006.
  • PENDERGAST, Mark. Uncommon Grounds: The History of Coffee and how it Transformed our World. Nova York: Basic Books, 2010.
  • RAPPAPORT, Erika. A Thirst for Empire: How Tea Shaped the Modern World. Princeton: Princeton University Press, 2017.
  • SEDGEWICK, Augustine. What Is Imperial about Coffee? Rethinking “Informal Empire”. In: BENDER, Daniel E.; LIPMAN, Jana K. (Ed.). Making the Empire Work: Labor and United States Imperialism. Nova York: NYU Press, 2015, p. 312-334.
  • SPARY, Emma C.. Eating the Enlightenment: Food and the Sciences in Paris, 1670-1760. Chicago: University of Chicago Press, 2012.
  • TROUILLOT, Michel-Rolph. Motion in the System: Coffee, Color, and Slavery in Eighteenth-Century Saint-Domingue. Review (Fernand Braudel Center), v. 5, n. 3, p. 331-388, 1982.
  • UKERS, William. All about Coffee Nova York: The Tea & Coffee Trade Journal Company, 1922.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Revisado
    05 Set 2022
  • Aceito
    11 Out 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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