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Apresentação: As racionalidades econômicas medievais

Presentation: Medieval Economic Rationalities

Presente nas ciências humanas e sociais desde o século XIX, a questão da racionalidade é inevitável e cheia de armadilhas. Ela encontra a sua maior expressão no estudo da economia, supostamente o domínio ideal no qual florescem as ações racionais do homo economicus. Até alguns anos atrás, parecia bastante difícil identificar esse homem econômico e racional antes da era moderna. Novas perspectivas na análise da cultura textual e material, estudos pós-coloniais e avanços na econometria, embora não tenham feito triunfar a ideia de um homo economicus medieval, minaram consideravelmente as abordagens primitivistas associadas à Idade Média. Essa importante virada historiográfica ainda não foi, entretanto, objeto de um inventário, mesmo que parcial, e é isso que nos propomos a fazer neste dossiê. Nesse sentido, os artigos que o compõem abordam, a partir de diferentes fontes e questões, a natureza da racionalidade econômica na Idade Média, o lugar que a historiografia atribui a esse fenômeno na atualidade, bem como as principais possibilidades de pesquisa sobre o tema.

Para apresentar um quadro mais claro do problema, é necessário definir nossas escolhas teóricas e metodológicas. É possível abordar a racionalidade prática dos atores em dois níveis distintos: 1) a partir de uma perspectiva externa aos atores em estudo (“Os fins perseguidos pelos homens na Idade Média eram os melhores para eles?”), a qual deixamos de lado neste dossiê; não há espaço, assim, para reflexões baseadas em uma noção contemporânea de racionalidade, que tenderia, por exemplo, a considerar as práticas devocionais suntuárias como “irracionais”; 2) a partir da perspectiva dos próprios atores, ou seja, fazendo a pergunta sobre a articulação entre seus meios e seus fins (“As ações dos atores eram as mais prováveis de atingir os fins que almejavam, quaisquer que fossem?”); essa é a noção weberiana de ação racional em relação aos fins, na qual os meios são escolhidos de acordo com sua capacidade de atingir um determinado objetivo. É esse segundo nível, o da “utilidade subjetiva”, que privilegiamos aqui, em uma abordagem historicista assumida, mas buscando ir além do nível individual de observação para o estender ao sistema econômico que estamos considerando. Uma das possíveis abordagens da racionalidade é, de fato, a da eficiência da economia medieval, ou seja, sua capacidade de criar técnicas eficientes de produção e gerenciamento de bens: o esforço para obter o máximo possível com o mínimo de meios.

Durante muito tempo, historiadores e economistas acreditaram que o homem medieval não tinha essa racionalidade. Foi a antropologia econômica da primeira metade do século XX que deu origem à ideia de que o homo economicus, cujas ações eram inspiradas por uma concepção racional de interesse próprio, não existia antes da era moderna. Essa abordagem “primitivista” das sociedades pré-modernas é a raiz da imagem negativa da economia medieval. Embora reconheçam que, na Idade Média, as pessoas podiam agir em busca de seus próprios fins, esses autores acreditam que o imperativo da salvação limitava qualquer possibilidade de ação racional (que eles associam à satisfação material). Daí a ideia de que o objetivo final da economia medieval não era a produção de riqueza, mesmo que isso fosse possível. Mais importante ainda, a relação com os bens seria estabelecida de tal forma que não haveria preocupação real com o valor do dinheiro. Por exemplo, os polípticos carolíngios têm sido vistos, às vezes, como textos exclusivamente memoriais, escritos teóricos desvinculados das necessidades práticas da administração. Destinados a fixar para sempre o status dos homens e da terra nas várias villae de uma propriedade, esses textos teriam, portanto, um caráter perene, ignorando a evolução da situação econômica - Robert Fossier (1978FOSSIER, Robert. Polyptyques et censiers. Turnhout: Brepols, 1978.) - e dariam, do mundo rural, uma visão mais ideal do que realista. Georges Duby (1973DUBY, Georges. Guerriers et paysans: VIIe-XIIe siècle. Premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973., p. 99-100), referindo-se ao políptico de Saint-Germain-des-Prés, fala de uma “perigosa (...) indiferença às realidades econômicas”.1 1 Trad. livre dos autores: “dangereuse (…) indifférence aux réalités économiques”. Como não podia escapar do imperativo da salvação, a economia medieval teria sido aprisionada por princípios não econômicos.

A abordagem primitivista ainda está muito presente na historiografia medieval: ela se manifesta, por exemplo, na crença de que o homem medieval era incapaz, pelo menos até o século XIII, de desenvolver uma contabilidade racional. Essa perspectiva levou, por exemplo, Jacques Le Goff a declarar não apenas que o capitalismo não nasceu na Idade Média, mas que ela não teria sido nem mesmo uma era pré-­capitalista. No entanto, o próprio Le Goff (1964, p. 18-19) escreveu, em La civilisation de l’Occident médiéval, o livro fundador da antropologia histórica: “Como os primitivos, os homens da Idade Média muitas vezes nos parecem irracionais, mas, como Claude Lévi-Strauss demonstrou, o pensamento selvagem tem suas razões: outras, mas muitas vezes mais rígidas e mais restritivas do que nossa razão flexível”.2 2 Trad. livre dos autores: “Comme les primitifs, les hommes du Moyen Âge nous paraissent souvent irrationnels, mais, comme Claude Lévi-Strauss l’a montré, la pensée sauvage a ses raisons: autres, mais souvent plus strictes et plus contraignantes que notre souple raison”. Uma “razão” que aparentemente não se estendia, contudo, ao campo da ação econômica. Le Goff acredita que os homens medievais eram movidos por motivações sociais e tradicionais complexas no campo do trabalho, mas que os objetivos que perseguiam não visavam a satisfazer necessidades imediatas ou buscar fins utilitários.

Em Le Moyen Âge et l’argent, Le Goff (2010) argumenta que o dinheiro é um produto da modernidade; que ele não é um valor central do período medieval, nem do ponto de vista econômico, nem do psicológico ou do ético. Segundo ele, a história da Idade Média foi uma fase de regressão do ponto de vista do dinheiro, devido à fragmentação de seu uso e, sobretudo, à atitude que o cristianismo, a religião dominante, ensinava que deveria ser adotada em relação a ele e ao uso que deveria ser feito dele. A única noção de economia que se aplicaria ao período medieval seria a de “economia doméstica”, herdada de Aristóteles. A ausência de uma noção medieval de dinheiro se relacionaria à ausência de um campo específico da economia, bem como à ausência de teses ou teorias econômicas. Seria anacrônico, portanto, atribuir o pensamento econômico aos teólogos escolásticos ou às ordens mendicantes, especialmente aos franciscanos. O uso do dinheiro na Idade Média era, assim, parte de uma economia do dom: o dinheiro era parte da subordinação geral dos homens à graça de Deus. Pode-se medir a influência das teses de Jacques Le Goff nos estudos medievais, mas também o progresso feito nessa questão, em particular graças aos numerosos trabalhos de Giacomo Todeschini - mencionemos ao menos seu Richesse franciscaine (2008TODESCHINI, Giacomo. Richesse franciscaine: De la pauvreté volontaire à la société de marché. Lagrasse: Verdier, 2008.) -, que mostrou em particular o papel dos franciscanos na formação de uma concepção de riqueza e de um léxico da economia e da troca.

Esse “primitivismo econômico” ainda encontra representantes ilustres na historiografia contemporânea, que às vezes reluta em conceder aos homens da Idade Média, por exemplo, a provisão de um espaço econômico próprio, mesmo que intersticial, no pensamento econômico, ou a capacidade de medir o valor das coisas. Em suma, sem necessariamente se opor frontalmente à ideia da racionalidade dos atores medievais, parte da historiografia ainda hesita em reconhecer as ferramentas de racionalidade de que dispunham esses atores - ferramentas que eles usaram, mas também modificaram ou até mesmo forjaram. Desde a publicação de Mahomet et Charlemagne, de Henri Pirenne (1937PIRENNE, Henri. Mahomet et Charlemagne. Paris: Alcan; Bruxelas: Nouvelle Société, 1937.), passando por Guerriers et paysans, de Georges Duby (1973DUBY, Georges. Guerriers et paysans: VIIe-XIIe siècle. Premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973.), até as obras de Guy Fourquin (1969FOURQUIN, Guy. Histoire économique de l’Occident médiéval. Paris: Armand Colin, 1969.), Adriaan Verhulst (2002VERHULST, Adriaan. The Carolingian Economy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.) e outros, o debate sobre a economia medieval tem-se concentrado principalmente na questão da abundância ou escassez. Para alguns, a falta de meios técnicos explica a escassez crônica e os inúmeros episódios de crise alimentar da época. Outros argumentam que a produção agrícola era relativamente abundante e que a fome era o resultado de “crises de crescimento”. Esse debate, que durou várias décadas, finalmente pendeu para o lado daqueles que, como Pierre Toubert (2004TOUBERT, Pierre. L’Europe dans sa première croissance. Paris: Fayard, 2004.), Michael McCormick (2002) e Jean-Pierre Devroey (2019DEVROEY, Jean-Pierre. La nature et le roi: Environnement, pouvoir et société à l’âge de Charlemagne (740-820). Paris: Albin Michel, 2019.), identificaram a dinâmica de crescimento na economia medieval. Os trabalhos de Giacomo Todeschini (2008TODESCHINI, Giacomo. Richesse franciscaine: De la pauvreté volontaire à la société de marché. Lagrasse: Verdier, 2008.), Jean-Pierre Devroey (2006), Coquery, Menant e Weber (2006COQUERY, Natacha; MENANT, François; WEBER, Florence (Dir.). Écrire, compter, mesurer: Vers une histoire des rationalités pratiques. Paris: Éd. Rue d’Ulm; Presses de l’ENS, 2006.) e Laurent Feller (2009FELLER, Laurent. Calculs et rationalités dans la seigneurie médiévale. Paris: Publications de la Sorbonne, 2009.) contribuíram para mostrar que as doutrinas cristãs não eram incompatíveis com dinheiro e riqueza e para identificar racionalidades na gestão de bens e trocas que haviam sido ignoradas pelas abordagens primitivistas. Ao mesmo tempo, o trabalho desses autores abriu perspectivas de pesquisa que ainda não foram totalmente exploradas em relação ao período medieval: é o caso da relação com o dinheiro, da gestão de bens e da contabilidade, ou das respostas à fome e à gestão da escassez.

Com relação ao primeiro aspecto, o artigo de Leandro Rust discute o papel atribuído ao dinheiro pelos relatos dos conflitos em torno da sucessão de Bento IX ocorridos entre 1044 e 1046. O autor pretende mostrar que a racionalidade econômica dos agentes que disputaram o Papado a partir de meados do século XI pode ser identificada na pluralidade de relações formais e informais com o dinheiro.

Com relação ao segundo aspecto, Cécile Troadec estuda o patrimônio imobiliário do capítulo da Basílica de São Pedro em Roma nos séculos XIV e XV, com base nos registros censuais mantidos na Biblioteca Apostólica do Vaticano. Por meio dessa série documental, a autora mostra como um dos mais poderosos proprietários eclesiásticos de Roma administra seu patrimônio imobiliário como um agente privado no mercado imobiliário romano o faria, com o objetivo de otimizar a rentabilidade de seus ativos, conforme evidenciado pela inflação dos aluguéis e pelos investimentos especulativos feitos.

No que se refere mais especificamente à contabilidade, Julie Claustre apresenta uma densa revisão historiográfica, mostrando que a crença dos medievalistas em uma racionalidade capitalista medieval expressa nos registros contábeis marcou boa parte do século XX, até que o retorno a uma série de registros contábeis institucionais, mercantis e artesanais e a prática meticulosa de edição e crítica desses documentos, ocorrida a partir da década de 1990, permitiu aos medievalistas questionar essa grande narrativa da transformação medieval da economia europeia. Seu artigo propõe ver na ratio contábil medieval um conjunto de práticas de escrita (e cifragem) ligadas ao processo de desenvolvimento da administração e da competição social induzido pela crescente adoção do medium escrito, a partir do século XII.

Por fim, a racionalidade na gestão da escassez: em seu artigo, Alexis Wilkin analisa a racionalidade econômica sob a perspectiva das respostas das autoridades políticas à fome. Ele analisa a evolução das atitudes e práticas interpretativas compartilhadas pelas elites políticas desde o período carolíngio até o surgimento das comunidades urbanas no século XII, com foco nos Países Baixos do Sul.

Essas são as questões que nos propomos a abordar neste dossiê: um inventário parcial, admitimos, mas que nos parece importante para registrar uma notável virada historiográfica na história da economia medieval em sentido amplo. Por meio da problemática das racionalidades econômicas, o objetivo é destacar novas abordagens para o estudo das sociedades medievais.

Referências

  • COQUERY, Natacha; MENANT, François; WEBER, Florence (Dir.). Écrire, compter, mesurer: Vers une histoire des rationalités pratiques. Paris: Éd. Rue d’Ulm; Presses de l’ENS, 2006.
  • DEVROEY, Jean-Pierre. Puissants et misérables: Système social et monde paysan dans l’Europe des Francs (VIe-IXe siècles). Bruxelas: Académie Royale de Belgique, 2006.
  • DEVROEY, Jean-Pierre. La nature et le roi: Environnement, pouvoir et société à l’âge de Charlemagne (740-820). Paris: Albin Michel, 2019.
  • DUBY, Georges. Guerriers et paysans: VIIe-XIIe siècle. Premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973.
  • FELLER, Laurent. Calculs et rationalités dans la seigneurie médiévale. Paris: Publications de la Sorbonne, 2009.
  • FOSSIER, Robert. Polyptyques et censiers. Turnhout: Brepols, 1978.
  • FOURQUIN, Guy. Histoire économique de l’Occident médiéval. Paris: Armand Colin, 1969.
  • LE GOFF, Jacques. La civilisation de l’Occident médiéval. Paris: Arthaud, 1964.
  • LE GOFF, Jacques. Le Moyen Âge et l’argent: Essai d’anthropologie historique. Paris: Le Grand Livre du Mois, 2010.
  • MCCORMICK, Michael. Origins of the European Economy: Communications and Commerce AD 300-900. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
  • PIRENNE, Henri. Mahomet et Charlemagne. Paris: Alcan; Bruxelas: Nouvelle Société, 1937.
  • TODESCHINI, Giacomo. Richesse franciscaine: De la pauvreté volontaire à la société de marché. Lagrasse: Verdier, 2008.
  • TOUBERT, Pierre. L’Europe dans sa première croissance. Paris: Fayard, 2004.
  • VERHULST, Adriaan. The Carolingian Economy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
  • 1
    Trad. livre dos autores: “dangereuse (…) indifférence aux réalités économiques”.
  • 2
    Trad. livre dos autores: “Comme les primitifs, les hommes du Moyen Âge nous paraissent souvent irrationnels, mais, comme Claude Lévi-Strauss l’a montré, la pensée sauvage a ses raisons: autres, mais souvent plus strictes et plus contraignantes que notre souple raison”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2023
  • Aceito
    26 Abr 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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