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Um processo democrático em construção: Entrevista com Jerry Dávila

An Ongoing Democratic Construction: Interview with Jerry Dávila

A presente entrevista foi gravada em 19 de julho de 2022, em Belo Horizonte, quando o historiador brasilianista Jerry Dávila, professor da cátedra Jorge Paulo Lemann em História do Brasil da University of Illinois Urbana-Champaign (UIUC), esteve na Universidade Federal de Minas Gerais, atuando como professor visitante na Faculdade de Direito, com bolsa da Comissão Fulbright, vinculada à Diretoria de Relações Internacionais da universidade. A entrevista aconteceu poucos dias após o professor Dávila ter ministrado uma conferência de abertura intitulada Challenges to Democracy in Historical Perspective [Desafios à democracia em perspectiva histórica], na 5ª edição da Escola de Verão em Estudos Brasileiros promovida pela UFMG.1 1 DÁVILA, Jerry. Challenges to Democracy in Historical Perspective. In: Diretoria de Relações Internacionais da UFMG (YouTube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= tosorXwNlLw. Acesso em: 20 ago. 2023.

A conversa se desenrolou sob a já tensa atmosfera de embates políticos, ameaças e ações contra as nossas instituições democráticas no momento pré-eleições em 2022. Inevitavelmente, como os leitores poderão constatar, os avanços e retrocessos democráticos na história do Brasil acabaram por compor as reflexões finais do entrevistado.

Jerry Dávila está entre os mais ativos acadêmicos radicados nos Estados Unidos que vêm estudando a história do Brasil, ou melhor, entre os “brasilianistas” mais atuantes atualmente - aqui, utilizamos a controversa denominação atribuída, desde os anos 1960, aos pesquisadores estrangeiros especialistas em assuntos brasileiros. Essa designação surgiu em plena Guerra Fria, no auge das investidas anticomunistas americanas no Brasil, e em conexão com os vários esforços de influência cultural dos Estados Unidos sobre o país. Difundiu-se ao longo dos “Anos de Chumbo” da ditadura brasileira, com a significativa expansão dos estudos brasileiros nos Estados Unidos (WEINSTEIN, 2016WEINSTEIN, Barbara. Sou ainda uma Brazilianist? Revista Brasileira de História, v. 36, n. 72, p. 195-217, maio/ago. 2016.). Nesta entrevista, não discutimos explicitamente o termo, nem as relações - de filiação ou problematização - que o professor Dávila possa estabelecer com ele. Lançar luz sobre a figura do “brasilianista” e a situar historicamente é, de toda maneira, oportuno, porque nos leva a reconhecer o lugar intelectual e a tradição historiográfica nos quais o entrevistado foi formado academicamente.

Graduado em história pelo Dartmouth College, Jerry Dávila fez mestrado e doutorado na Brown University, concluindo-os em 1993 e 1998, respectivamente. Foi orientado por Thomas Elliot Skidmore, um dos mais distintos pesquisadores da geração de “brasilianistas” dos anos 1960 e que assumiu em 1986 a cadeira de história da América Latina, existente naquela universidade desde 1973. É na atmosfera acadêmica de estudos brasileiros e latino-americanos dessa instituição que Jerry Dávila se aproxima da história do Brasil e se aprofunda na temática histórica que marca a sua produção acadêmica: pensamento racial e relações étnico-raciais no Brasil. Aliás, Skidmore (2012) é autor do clássico Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, 1870-1930, cuja primeira edição brasileira é de 1976. Trata-se, até hoje, de referência básica para os pesquisadores que se ocupam da questão racial no Brasil.

Dois dos principais livros de Dávila versam sobre esse tema: Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945, publicado pela Editora Unesp (DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.), fruto da sua pesquisa de doutorado e que aborda questões ligadas ao debate racial, à eugenia e às políticas educacionais no Brasil da Era Vargas; e Hotel Trópico: O Brasil e o desafio da descolonização africana, 1950-1980, publicado em português pela editora Paz e Terra (DÁVILA, 2011). Nesta obra, ele se debruça sobre a identidade racial e étnica brasileira, mas com foco no mito da democracia racial - ao analisar a história do trânsito transnacional desse mito, a partir de uma política de Estado em que diplomatas brasileiros e intelectuais que circularam pela África desde os anos 1950 promoveram o ideal do “lusotropicalismo” freyriano.

O Centro Lemann de Estudos Brasileiros, onde Jerry Dávila atua como professor titular, é uma instituição criada em 2009, justamente com o propósito de promover o ensino e a pesquisa sobre o Brasil por professores e estudantes de Illinois e do próprio Brasil. Atualmente, Dávila é também diretor-executivo do Illinois Global Institute, criado para desenvolver estudos sobre temas globais junto a centros de pesquisas e instituições internacionais. Outro foco de sua atuação institucional têm sido associações de estudos latino-americanos, como a Conference on Latin American History - seção da American Historical Association dedicada ao estudo da América Latina -, na qual atuou como presidente. No Brasil, ele trabalhou como professor visitante na UFMG (2022), na PUC do Rio de Janeiro (2005) e na USP (2000), em todos os casos com o apoio da Comissão Fulbright.

Uma particularidade da atuação acadêmica e da produção intelectual de Jerry Dávila está na sua capacidade aguçada para produzir reflexões históricas dentro de uma perspectiva comparada. Ora, Dávila atua no ensino de história do Brasil para estudantes dos EUA. Ensino que, como ele reflete no prefácio à edição brasileira de Diploma de Brancura (DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006., p. 16), é “fundado na pressuposição de que quanto mais um aluno dos EUA aprende sobre o Brasil, mais entende sobre os EUA (...) especialmente na área de relações raciais”. Foi de acordo com esse ponto de vista de se confrontarem as realidades históricas dos dois países que conversamos com Jerry Dávila. Dedicamos particular atenção ao seu trabalho em andamento sobre o uso, desde 1951, da chamada Lei Afonso Arinos2 2 BRASIL. Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em: 20 ago. 2023. - uma denominação que, como discutimos a seguir, o professor Dávila vem problematizando3 3 Consultar, também, o artigo de autoria do entrevistado publicado em Varia Historia, como parte do dossiê Ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX: Novos objetos e nova temporalidade em um panorama internacional (DÁVILA, 2017, p. 169-170). - para reivindicar direitos e desafiar experiências com discriminação racial; e para o qual ele estava no Brasil realizando pesquisas em instituições como o Arquivo Público Mineiro.

Convidamos os leitores a conhecerem um pouco da trajetória e algumas reflexões de Jerry Dávila sobre a história do Brasil. Manifestamos publicamente nosso especial agradecimento ao professor pela generosidade em nos conceder esta entrevista, e em concordar que ela fosse objeto deste experimento de publicação simultânea na revista e no YouTube.4 4 A versão audiovisual da entrevista passará, no momento da publicação desta edição, a integrar o acervo de mais de uma centena de vídeos do Canal Varia Historia no YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/@VariaHistoria. Acesso em: 20 ago. 2023. Algumas passagens foram, nesta publicação, editadas para favorecer a clareza e a legibilidade do texto. Agradecemos, também, o auxílio precioso que nos foi prestado por discentes do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em História da UFMG: Petrus Albino de Oliveira cuidou dos equipamentos durante a gravação da entrevista, Nathálya Aparecida Ferreira e Rafael de Azevedo Silva realizaram a transcrição do áudio, enquanto Antônio Henrique Boaventura Silva e Gabrielle Pacheco Noacco cuidaram da edição do vídeo.

Queríamos começar pedindo para você falar um pouco sobre a sua formação acadêmica. Em meados dos anos 1990, você fez o seu doutoramento em história na Brown University, instituição que abriga o internacionalmente reconhecido Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, supervisionado pelo “brasilianista” Thomas Skidmore. Sua tese, transformada no livro Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945 ( DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. ), tornou-se referência historiográfica para os estudos sobre raça, eugenia e políticas educacionais no Brasil da Era Vargas. Conte-nos, por favor, como surgiu, no início da sua trajetória acadêmica, o interesse pela história do Brasil, mais especificamente pela história da influência do pensamento racial na sociedade brasileira do século XX.

Na época da minha graduação, era mais difícil achar uma faculdade onde havia a oportunidade de, nos Estados Unidos, estudar a história das Américas e, especificamente, questões de estudos brasileiros. Então, hoje em dia eu acho muito interessante como o campo em nosso país, nos Estados Unidos, tem-se desenvolvido, as oportunidades que existem hoje para abrir questões sobre o Brasil especificamente; e, ao mesmo tempo, acho muito interessantes as crescentes oportunidades aqui no Brasil de estudar temas dos Estados Unidos, porque eu acho que nos dois casos eles levantam novas perguntas, não apenas sobre um país, como também sobre o outro.

Nesse contexto, eu comecei a pós-graduação com a intenção de estudar a história dos Estados Unidos, mas isso não durou muito, porque eu tive a opção de tomar um curso sobre a história do Brasil, que era ministrado pelo Thomas Skidmore, do qual você falou, e era justamente durante o impeachment de Fernando Collor. E o jeito que o professor Skidmore abriu as questões dessa conjuntura difícil naquele momento da sociedade brasileira, e fazer conexões com a história do Brasil, foi uma coisa que me chamou muito o interesse. Aí eu passei a vir ao Brasil para estudar português, com resultados mistos, como você vê. E quando comecei a fazer a tese de doutorado, na verdade, naquela altura eu tinha, por conta do programa de estudos desenvolvido por Skidmore, uma leitura sobre a historiografia, as ciências sociais, de relações raciais no Brasil, mas não era o eixo do meu tema de pesquisa.

Eu estava inicialmente interessado na questão de construções de identidade nacional na escola brasileira da Era Vargas, mas na medida em que eu ia trabalhando com os materiais do sistema escolar público - em ampliação naquela época, principalmente no Rio, mas em outras regiões do país também -, eu colhia material, e não sabia bem o que fazer com ele, que tratava de questões raciais e questões eugênicas. Mas não era algo que fazia sentido para mim.

Em meados do tempo em que eu estava no Brasil, houve um falecimento na minha família e eu voltei para os Estados Unidos para o funeral. E durante essa temporada que passei de volta nos Estados Unidos, visitei o Thomas Skidmore e falei do que estava encontrando. Ele me levou para a sua biblioteca no subsolo da casa dele, pegou o livro de Nancy Stepan (2005STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: Raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.), A hora da Eugenia, e deu para mim. No voo de volta para o Brasil, fiquei a noite toda lendo o livro. Cheguei ao Brasil entendendo o que era a minha tese pela primeira vez. No caso, era uma leitura da maneira em que o pensamento eugênico servia como uma forma de articular políticas públicas no Brasil daquela época, e também um sistema de pensamento que trazia para as políticas públicas elementos do pensamento racial vigente naquela época. Através desse conjunto de práticas escolares e pedagógicas, era possível abrir uma janela para a maneira em que desigualdades que já existiam na sociedade brasileira se reproduziam e se modernizavam dentro das políticas públicas. Veio daí o livro Diploma de brancura (DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.).

Queríamos saber um pouco mais sobre essa atmosfera intelectual e acadêmica da Brown University. Conte um pouco dessa sua experiência como aluno dentro do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros.

Acho que uma coisa que destacava esse programa, que eu acho que é muito importante também em outros centros de estudos brasileiros e de estudos das Américas nos Estados Unidos, é a intencional multidisciplinaridade dos estudos. Aluno de história, eu lia muito a sociologia, a literatura, a antropologia; e os meus principais interlocutores eram daqueles campos, tanto através de pessoas que vinham à Brown a convite de Thomas Skidmore, como também do Departamento de Estudos Africanos, Estudos Africanos e Afrodiaspóricos, especialmente o professor Anani Dzidzienyo, que tinha uma interlocução muito importante com intelectuais negros do Brasil, principalmente Abdias Nascimento. Através deles, eu aprendi a sempre procurar as linhas analógicas ao meu trabalho em história, em outras áreas das ciências sociais e ciências humanas. Acho que é uma coisa que distingue os estudos brasileiros e os estudos das Américas nos Estados Unidos de outras disciplinas. Essa multidisciplinaridade muito presente na Brown também está na Universidade de Illinois, onde ensino agora.

E quais questões sobre raça, relações raciais e racismo têm te provocado a desenvolver pesquisas sobre o Brasil? Você fala um pouco dessas aproximações a partir da raça e da eugenia na sua tese, e como elas se vêm desenvolvendo nas suas pesquisas desde então?

Bom, eu confesso que penso em questões acadêmicas sobre relações raciais e sobre discriminação e políticas públicas de uma forma muito comparativa. E essa comparação é algo que para mim vem de perspectivas pessoais, mas também da ponte entre a experiência desses estudos no Brasil e nos Estados Unidos.

Eu sou originalmente de Porto Rico, e uma coisa que me começou a chamar muito a atenção no Brasil era que os discursos sobre multirracialismo, a ausência da discriminação, existentes no Brasil, eram os mesmos discursos em Porto Rico. Eles tinham também a mesma referência: que o racismo era aquilo que se praticava nos Estados Unidos e, em comparação, nessa outra sociedade, havia uma virtude da ausência desses mecanismos. Porém, quando colocamos a experiência do Brasil, dos Estados Unidos, de Cuba, da Colômbia, de Porto Rico, uma ao lado da outra, vemos que fazem parte de uma história comum, que hoje, em todos esses países, é abordada como uma história da diáspora africana, e é um conjunto de experiências históricas e contemporâneas que ajudam a se informar.

Hoje em dia, nos Estados Unidos, enfrentamos sérios desafios no ensino de temas de história das relações raciais. Há até proibições por lei em alguns estados para abordar certas temáticas. Inclusive, há uma lei na Flórida que proíbe o ensino de uma matéria do New York Times, o principal jornal de referência nos Estados Unidos.5 5 O “Stop WOKE Act” [a sigla “WOKE” é composta a partir da expressão “wrongs to our kids and employees”, cujas iniciais formam um termo que costuma designar posicionamentos políticos progressistas; a designação da lei pode, nesse sentido, apontar tanto para uma forma de combate a supostos “males cometidos contra nossas crianças e nossos empregados”, quanto para esforços por barrar pautas emancipatórias] de 2022 restringiu uma série de matérias curriculares, incluindo o 1619 Project, iniciado no New York Times (disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2019/08/14/magazine/1619-america-slavery.html). Ver: Know Your Rights: Florida. In: National Education Association, 19 jun. 2023. Disponível em: https://www.nea.org/resource-library/know-your-rights-florida. Outros estados, principalmente no Sul, têm também aprovado medidas cerceando o ensino de temas ligados às relações raciais. Em 2023, a Flórida aprovou novas normas sobre a história afro-americana que, entre outras coisas, pregam o ensino das “maneiras em que os escravos desenvolveram habilidades que, em certos casos, poderiam ser aproveitadas para seu benefício pessoal” (citado em: ELLIS, Nicquel Terry. Florida’s New Standards on Black History Curriculum are Creating Outrage. In: CNN.com, 17 ago. 2023. Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/08/17/us/florida -black-history-backlash-reaj/index.html . Trad. livre das organizadoras: ““how slaves developed skills which, in some instances, could be applied for their personal benefit”). O acesso a todos os links foi feito em: 20 ago. 2023. Isso é muito pesado, e é uma coisa surpreendente que surgiu nos últimos anos nos Estados Unidos. Então, a experiência brasileira, do ponto de vista do trabalho de movimentos sociais na Nova República, a elaboração de políticas de integração em áreas como as universidades e as carreiras públicas, eu acho que abre uma gama de experiências que são muito interessantes para a conjuntura tão conturbada que vivemos hoje nos Estados Unidos.

Jerry, eu queria agora que você falasse um pouco mais especificamente sobre esse artigo publicado em Varia Historia em 2017. Eu queria que você nos contasse um pouco como surgiu essa pesquisa e falasse também dos desdobramentos que ela teve desde então. Eu fiquei particularmente interessada em saber como você tem concebido essas relações entre o universo jurídico e o pensamento racial, já que o artigo editado na nossa revista discute a famosa lei antidiscriminação de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos - aliás, uma nomenclatura que você problematiza de uma forma muito interessante no artigo. Você também se vale de processos judiciais como fontes, e a sua atual estadia aqui na UFMG teve como centro principal a Faculdade de Direito, certo? Então acho que ela é, ela própria, uma ilustração desse caráter interdisciplinar da sua formação, que você sublinhava há pouco.

Bom, preciso começar de novo agradecendo, porque o número que Ana Carolina Vimieiro Gomes organizou [em parceria com Robert Wegner e Vanderlei de Souza] da Varia Historia foi a primeira oportunidade que eu tive para organizar o meu pensamento ao redor desse problema, da maneira em que pessoas fazem uso da lei para reivindicar direitos e para desafiar experiências com discriminação racial. Esse foi o primeiro passo para um projeto que agora tenho o privilégio de estar de volta aqui na UFMG, continuando a elaborar, agora em formato de um livro que estou esboçando. Os alunos do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito, que estão participando da disciplina sobre lei e relações raciais nos Estados Unidos, têm aberto muitas questões que animam essa problemática. Então são duas coisas que estão no eixo do livro.

A primeira delas é que tenho tentado achar todos os casos que foram levados à Justiça sobre a lei contra a discriminação racial, conhecida como Lei Afonso Arinos. Com a ajuda de arquivistas dos arquivos dos Judiciários em vários estados - aqui de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, de onde estou vindo agora, do Rio de Janeiro, de São Paulo -, tenho podido achar material de denúncias que passam pela delegacia e chegam até o juiz. São casos extraordinários, porque mostram a forma em que uma pessoa enfrenta e identifica a discriminação racial, a linguagem que essa pessoa usa para definir o que aconteceu com ela, como essa pessoa foi ferida pelo ato de discriminação.

Mas a metodologia que eu usei para chegar a esses casos tem sido uma ampla leitura de jornais, especialmente as coleções de recortes de jornais que foram recolhidos durante quase meio século pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA6 6 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Centro de Estudos Afro-Orientais. Disponível em: https://ceao.ufba.br/. Acesso em: 20 ago. 2023. e pelo Centro de Estudos Afro-­Asiáticos da Universidade Candido Mendes,7 7 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES. Centro de Estudos Afro-Asiáticos. Disponível em: https://www.iuperj.org/centro-de-estudos-afro-asiaticos/. Acesso em: 20 ago. 2023. que são recursos extraordinários para a pesquisa, numa gama de temas em relação à história afro-brasileira, desde a década de 1960 até o século XXI. Eu recomendo, para qualquer pessoa com interesse na temática, consultar essas fontes.

Através dessas leituras e de outras, foi possível fazer também uma leitura ampla das experiências com discriminação. Isso possibilita fazer um mapeamento de uma linha de cor na história brasileira, um sistema de segregação que passa, grosso modo, por determinados lugares: o elevador social, a porta do clube, o baile, a boate, o restaurante, certas carreiras que eram espaços de impedimento (não absolutos, mas comumente), que definiam a separação de pessoas e obstavam oportunidades na sociedade brasileira. Uma coisa que me chama a atenção nesse material, que vai desde a aprovação da Lei de 1951 até a aprovação da Lei Caó,8 8 BRASIL. Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em: 20 ago. 2023. em 1989, é que durante essas quatro décadas vemos uma repetição de atos e de linguagem discriminatórios, segregadores, através do Brasil. Em Porto Alegre, em Belo Horizonte, em pequenas cidades através do país, através de décadas, as pessoas usam a mesma linguagem para impedir o ingresso ou a integração. Ou seja, essa repetição, através do tempo, através dos lugares, através das pessoas, mostra a continuidade de práticas segregacionistas na sociedade brasileira.

A segunda coisa que está no eixo analítico do livro é o que significa o acesso aos direitos sociais e aos direitos políticos, o que chamaríamos de cidadania, no Brasil durante esse século entre a abolição e a Nova República. A abolição, em si, é apenas o fim da escravatura. Não é um ato que fala sobre os direitos ou sobre a integração das pessoas atingidas pela abolição. É um fim, não é um começo. Nos Estados Unidos, há uma história trágica nesse sentido, porque nos anos que se seguiram à Guerra Civil, houve um impressionante projeto de definição de leis e de emendas constitucionais que definiam os direitos de pessoas libertas como cidadãs dos Estados Unidos que tinham direitos políticos, que tinham direitos sociais, como o direito de não enfrentar a segregação. Foram aprovadas leis que protegiam direitos civis. Essas leis eram respaldadas por emendas constitucionais. Mas a Suprema Corte dos Estados Unidos colocou isso tudo de lado e abriu espaço para o desenvolvimento, no nível estadual, de práticas de segregação e fechou os olhos para toda a elaboração do arcabouço de supremacia branca baseada na lei e na violência extrajudicial que tão tragicamente caracterizou a história americana. Mas isso aconteceu, apesar de existirem leis e emendas que garantiam os direitos de todos.

Aqui no Brasil, ao contrário, entre a abolição e a nova Constituição [de 1988], durante esse século, a única medida que garante o direito de ser livre da discriminação e de ter igual participação na sociedade é a Lei Afonso Arinos. Essa lei contra a discriminação é de 1951. É uma lei que é até influenciada, o próprio Afonso Arinos diz, pela legislação criada nos Estados Unidos depois da Guerra Civil, que só seria recuperada nos EUA na década de 1960, ou seja, depois da aprovação dessa lei aqui no Brasil. Mas essa lei não foi vista como uma lei que mudaria a sociedade brasileira. Não foi escrita e nem funcionava como uma forma de mudança social, embora pessoas tenham usado a lei na medida do possível para reivindicar direitos em situações pontuais e individuais.

É só na Nova República que vemos o começo da elaboração de um conjunto de medidas, de políticas públicas e de leis que atingem não apenas as experiências individuais com discriminação e preconceito, mas que mudam, começam a mudar sistematicamente práticas de política pública para gerar inclusão - por exemplo, nas universidades, nas carreiras públicas. Mas elas são um passo para esse processo de integração que refletiu um momento de transição democrática no Brasil, que eu acho muito importante e inédita na história do país.

A minha próxima pergunta tem justamente a ver com essa ideia de transição democrática. Eu vou, de alguma forma, trazer a nossa discussão para o presente. Para isso, vou recuperar a conferência de abertura que você fez na Escola de Verão de Estudos Brasileiros aqui da UFMG em julho de 2022, que teve como tema Os desafios à democracia em perspectiva histórica. Nessa conferência, você afirmou que percebe o Brasil como um país que se encontra em transição democrática, ideia que você acabou de recuperar aqui. Queria que você explicasse brevemente essa sua interpretação e também, em conexão com a persistente fragilidade da democracia brasileira, queria saber: como você enxerga as disputas em torno da história e da memória, particularmente do regime militar, em curso no Brasil hoje? Fiquei pensando, inclusive, no papel que o contraponto que você fez nessa conferência, entre a intenção de afirmar - autoritariamente, é claro - uma ordem e o caos da prática política cotidiana da ditadura inaugurada em 1964, pode cumprir nessas disputas. Ou ainda: como esses debates sobre relações raciais que você estudou sobretudo ao longo do século XX seguem reverberando nos embates contemporâneos?

Eu diria que, na história do Brasil, antes de 1988, seria muito difícil dizer que o Brasil era uma sociedade democrática, por dois motivos. O primeiro é plenamente político: esse século que antecedeu a Nova República foi um século de repetidas interrupções no sistema político. Não apenas de momentos autoritários, como aquele inaugurado em 1964, ou o Estado Novo ou o estado de sítio da década de 1920, etc., mas momentos de rupturas políticas em que principalmente vemos a atuação das Forças Armadas no sistema político para determinar os resultados de pleitos, para obstar o acesso de pessoas eleitas à Presidência, para mudar o presidente. Isso acontece sete vezes através do século e isso tem vários resultados.

Um deles é que se cria um ambiente político onde práticas democráticas não se podem consolidar e, muito mais do que isso, movimentos sociais não têm um plano em que é possível desenvolver ações para mudanças na sociedade. Então, para grupos que são sub-representados na política brasileira e nas forças armadas, como mulheres, pessoas indígenas, pessoas afrodescendentes, pessoas que não estavam sobrerrepresentadas nessas instituições, ficava muito mais difícil entrar nos debates políticos e influenciar as políticas públicas, porque as regras do jogo iam mudando e o espaço do jogo frequentemente era fechado.

Houve um segundo obstáculo ainda mais estrutural e profundo na sociedade brasileira, que era a proibição do acesso ao voto para pessoas analfabetas. Algo estabelecido no final do século XIX, pela Lei Saraiva,9 9 BRASIL. Decreto no 3.029, de 9 de janeiro de 1881. Reforma a legislação eleitoral. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3029-9-janeiro -1881-546079-publicacaooriginal-59786-pl.html. Acesso em: 20 ago. 2023. em 1881. Até aquela época, não existia essa proibição. Foi uma coisa criada dentro do momento da transição para o fim da escravidão no Brasil, mas em um momento em que 80% dos brasileiros não estavam alfabetizados.

Em um país onde o sistema de educação pública por tantas décadas era tão restrito, essa taxa de pessoas que não tinham acesso ao ensino para ler e escrever e para, com isso, ter acesso a seus direitos políticos, era enorme. Usando dados censitários, na década de 1940, três em cada quatro pessoas identificadas como pretas ou pardas não eram alfabetizadas. Agora, nesse momento, também ninguém tinha direito ao voto por causa do outro motivo, das rupturas democráticas e dos movimentos autoritários. Porém, essa exclusão atingia desproporcionalmente pessoas de ascendência africana e indígena na sociedade brasileira.

Quando foi legalizado o voto sem a questão da alfabetização, na década de 1980, era ainda um em cada quatro adultos brasileiros que não tinha acesso à alfabetização. Então, uma sociedade que exclui um quarto ou 80% das pessoas que são cidadãs da sociedade, porque essas pessoas não têm acesso à alfabetização por um sistema escolar ou por políticas estatais, é muito restrita. Eu acho difícil chamar essa sociedade de democrática.

E as disputas no presente? Como você enxerga, particularmente, as disputas de memória em torno da ditadura militar? Existe um lugar para o debate racial em meio a isso?

Eu acho que o debate sobre o impacto racializado, como o impacto sobre outros grupos minoritários e prejudicados pelo regime militar, é uma coisa ainda incipiente. Os trabalhos das comissões estaduais e a Comissão Nacional da Verdade serviram bem para abrir questões que ainda carecem de respostas. Ou seja, esse trabalho, eu acho que ainda continua pela frente para a sociedade brasileira. Mas, olhando para esse momento contemporâneo, sem dúvida, o Brasil, é um país ainda em transição democrática, é um país que ainda está em transição por dois motivos.

Um deles é a própria fragilidade dos avanços democráticos da Nova República. Por exemplo, vemos hoje o posicionamento por parte das Forças Armadas em relação ao processo eleitoral, algo que tem uma história trágica no Brasil. Uma história que tem interferido na consolidação de processos políticos democráticos. É curioso, também, porque seria estranho, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral debater temas de defesa nacional. Ou seja, a ideia de que existe um papel das Forças Armadas nos processos eleitorais e políticos do país é uma forma de pensamento que tem uma longa história, que tem sido repetidamente envolvida em interrupções do processo de democratização no Brasil.

A segunda questão, do ponto de vista da transição, é que existem milhões de brasileiros que ainda não exercem plenamente todos seus direitos humanos, como estão definidos na Constituição Brasileira e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse é um desafio não apenas para o Brasil, mas também para os Estados Unidos. Até que se consiga o acesso pleno de todos os residentes no país a seus direitos, eu acho que só podemos pensar no Brasil como um país em transição. Um país onde o processo democrático ainda está em processo de construção.

Referências

  • DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: Política social e racial no Brasil, 1917-1945. São Paulo: Ed. Unesp, 2006.
  • DÁVILA, Jerry. Hotel trópico: O Brasil e o desafio da descolonização africana, 1950-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
  • DÁVILA, Jerry. Challenging Racism in Brazil: Legal Suits in the Context of the 1951 Anti-Discrimination Law. Varia Historia, v. 33, n. 61, p. 163-185, jan./abr. 2017.
  • SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: Raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.
  • WEINSTEIN, Barbara. Sou ainda uma Brazilianist? Revista Brasileira de História, v. 36, n. 72, p. 195-217, maio/ago. 2016.
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    DÁVILA, Jerry. Challenges to Democracy in Historical Perspective. In: Diretoria de Relações Internacionais da UFMG (YouTube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= tosorXwNlLw. Acesso em: 20 ago. 2023.
  • 2
    BRASIL. Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em: 20 ago. 2023.
  • 3
    Consultar, também, o artigo de autoria do entrevistado publicado em Varia Historia, como parte do dossiê Ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX: Novos objetos e nova temporalidade em um panorama internacional (DÁVILA, 2017DÁVILA, Jerry. Challenging Racism in Brazil: Legal Suits in the Context of the 1951 Anti-Discrimination Law. Varia Historia, v. 33, n. 61, p. 163-185, jan./abr. 2017., p. 169-170).
  • 4
    A versão audiovisual da entrevista passará, no momento da publicação desta edição, a integrar o acervo de mais de uma centena de vídeos do Canal Varia Historia no YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/@VariaHistoria. Acesso em: 20 ago. 2023. Algumas passagens foram, nesta publicação, editadas para favorecer a clareza e a legibilidade do texto.
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    O “Stop WOKE Act” [a sigla “WOKE” é composta a partir da expressão “wrongs to our kids and employees”, cujas iniciais formam um termo que costuma designar posicionamentos políticos progressistas; a designação da lei pode, nesse sentido, apontar tanto para uma forma de combate a supostos “males cometidos contra nossas crianças e nossos empregados”, quanto para esforços por barrar pautas emancipatórias] de 2022 restringiu uma série de matérias curriculares, incluindo o 1619 Project, iniciado no New York Times (disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2019/08/14/magazine/1619-america-slavery.html). Ver: Know Your Rights: Florida. In: National Education Association, 19 jun. 2023. Disponível em: https://www.nea.org/resource-library/know-your-rights-florida. Outros estados, principalmente no Sul, têm também aprovado medidas cerceando o ensino de temas ligados às relações raciais. Em 2023, a Flórida aprovou novas normas sobre a história afro-americana que, entre outras coisas, pregam o ensino das “maneiras em que os escravos desenvolveram habilidades que, em certos casos, poderiam ser aproveitadas para seu benefício pessoal” (citado em: ELLIS, Nicquel Terry. Florida’s New Standards on Black History Curriculum are Creating Outrage. In: CNN.com, 17 ago. 2023. Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/08/17/us/florida -black-history-backlash-reaj/index.html . Trad. livre das organizadoras: ““how slaves developed skills which, in some instances, could be applied for their personal benefit”). O acesso a todos os links foi feito em: 20 ago. 2023.
  • 6
    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Centro de Estudos Afro-Orientais. Disponível em: https://ceao.ufba.br/. Acesso em: 20 ago. 2023.
  • 7
    UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES. Centro de Estudos Afro-Asiáticos. Disponível em: https://www.iuperj.org/centro-de-estudos-afro-asiaticos/. Acesso em: 20 ago. 2023.
  • 8
    BRASIL. Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso em: 20 ago. 2023.
  • 9
    BRASIL. Decreto no 3.029, de 9 de janeiro de 1881. Reforma a legislação eleitoral. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3029-9-janeiro -1881-546079-publicacaooriginal-59786-pl.html. Acesso em: 20 ago. 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2023
  • Aceito
    20 Ago 2023
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