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Negacionismo histórico e emergência da extrema direita A crise do regime moderno de historicidade no Brasil (2019-2022)

Resumo

O objetivo deste artigo é promover uma reflexão sobre o negacionismo da ditadura civil-militar como parte da ação política de Jair Bolsonaro e da extrema direita brasileira na criminalização dos movimentos sociais. Busca-se compreender como a negação do terrorismo de Estado promovido pela ditadura está relacionada à tentativa política de esvaziar a legitimidade dos direitos humanos e dos movimentos sociais na Nova República (1985-2020). Propomos que o projeto de poder de Bolsonaro inclui uma refundação das bases republicanas, sendo fundamental nesse processo alterar o regime de memória hegemônico construído a partir do processo de redemocratização. Nesse sentido, a hipótese deste artigo é de que o negacionismo histórico é um eixo estruturante no projeto de poder da extrema direita renovada e ocorre em um momento de crise do regime moderno de historicidade e de emergência do presentismo no Brasil. Nesse sentido, o uso político do passado recente pelo governo Bolsonaro se apoia na cultura política autoritária, no anticomunismo e no suposto combate à corrupção. Esses usos pretendem esvaziar qualquer agenda de direitos, favorecendo a consagração do modelo neoliberal.

Palavras-chave
Bolsonarismo; negacionismo histórico; presentismo

Abstract

This article discusses how denialism of the civil-military dictatorship constitutes a pivotal element in the political propaganda of Jair Bolsonaro and the Brazilian far right. We aim to understand the connections between, on the one hand, the disavowal of our last dictatorship and state terrorism and, on the other, political attempts to undermine the legitimacy of human rights and social movements during the New Republic (1985-2020). We posit that Bolsonaro’s vision for consolidating power entails a reimagining of the republic’s foundations. Crucially, this endeavor involves an attempt to reshape the hegemonic memory regime first established during the redemocratization process. In this sense, the central hypothesis of this article is that historical negationism constitutes a fundamental and structuring axis in the power project of the renewed far right, emerging in a moment of crisis in the modern regime of historicity alongside the rise of presentism. In this regard, the political use of the recent past by the Bolsonaro government hinges on authoritarian political culture, anticommunism, and the purported crusade against corruption. These uses intend to undermine any rights-based agenda, thereby paving the way for the consecration of the neoliberal model.

Keywords
Bolsonarism; historical negationism; presentism

Introdução

Este artigo pretende analisar as narrativas negacionistas 1 1 O conceito de negacionismo histórico trabalhado neste artigo segue a proposta de Henry Rousso ( 1987 ) e Enzo Traverso ( 2012 ), de pensar a negação do passado por parte de grupos vinculados à extrema direita. O negacionismo histórico pretende negar as experiências opressivas e violadoras dos direitos humanos promovidas pelos Estados na modernidade, com destaque para a negação do Holocausto – o extermínio de judeus e a existência de campos de concentração pelo regime nazista. Atualmente, a produção de narrativas negacionistas sobre o passado ultrapassa as experiências europeias e tem foco também na negação de torturas e assassinatos, desaparecimentos forçados e demais violações de direitos humanos promovidos pelas ditaduras latino-americanas nos anos de 1960, 1970 e 1980, assim como a negação sobre os horrores do colonialismo europeu e suas faces mais cruéis: a escravidão moderna e o genocídio indígena ( VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021 ). acerca da ditadura elaboradas pelo Estado brasileiro, durante o governo Bolsonaro (2019-2022), a partir de duas chaves interpretativas: a emergência do fenômeno do presentismo no Brasil e a crise da política de coalizão que marcou a Nova República (1985-2023). Trata-se de investigar os usos políticos do passado na elaboração de uma narrativa pública que legitime as pautas autoritárias produzidas pela extrema direita. Entendemos que as narrativas negacionistas constituem uma estratégia importante na busca de legitimidade para o projeto autoritário a partir do uso de velhos e novos medos, agora potencializados pelo uso indiscriminado das redes sociais na disseminação do ódio e das fake news .

Propomos uma reflexão sobre uma das faces do bolsonarismo, entendendo os usos políticos do passado por esse grupo como parte da construção de um projeto autoritário e neoliberal, o que inclui a fragilização das instituições políticas democráticas e o questionamento da legitimidade dos movimentos sociais na Nova República. Como propôs José Murilo de Carvalho ( 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ), ao se debruçar sobre a construção do imaginário republicano brasileiro nas suas décadas iniciais, a “conquista das almas” é tão importante para a legitimidade de qualquer projeto político quanto as demais ações para a ocupação do Estado.

Nossa análise sobre os usos políticos do passado se irá concentrar nos discursos e nas ações do então presidente da República Jair Bolsonaro e de representantes do Estado brasileiro nas chamadas comemorações do 31 de março. Ao longo desses quatro anos, na contramão do processo de justiça de transição até então empreendido, observa-se a construção de um discurso oficial que exalta a ditadura recente, nega o terrorismo de Estado, revive as narrativas anticomunistas e insiste na necessidade da manutenção da ordem e da segurança nacional para o desenvolvimento da nação. Trata-se de um discurso que agrega elementos de longa, média e curta duração, estruturado a partir da cultura política brasileira de uso da violência do Estado contra os movimentos sociais, incluindo a manutenção de privilégios de setores economicamente dominantes e o cerceamento do pleno acesso à cidadania para a maioria da população. Em artigo recente, Daniel Aarão Reis ( 2020REIS, Daniel Aarão. Notas para compreensão do Bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, v. 46, n. 1, e36709, jan./abr. 2020. ) propõe que o fenômeno do bolsonarismo precisa ser analisado a partir destas três dimensões da temporalidade histórica: a longa duração, considerando as tradições autoritárias que marcam o período republicano; a média duração, que vai da aprovação da Constituição de 1988 até os dias atuais; e a curta duração, marcada pelos acontecimentos recentes. É a partir do encontro das três temporalidades que podemos compreender a mobilização de narrativas negacionistas no espaço público, amplamente toleradas e apoiadas por setores da sociedade. Soma-se a isso uma tímida justiça de transição, baseada na acomodação e no não enfrentamento de memórias conflituosas.

Este artigo parte das contribuições da história do tempo presente, com o reconhecimento do não contemporâneo na contemporaneidade ( DELACROIX, 2018DELACROIX, Christian. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Tempo e Argumento, v. 10, n. 23, p. 39-79, jan./mar. 2018. ). Nesse sentido, o conceito de cultura política nos fornece os elementos não contemporâneos que ainda se fazem presentes (tradição de criminalização dos movimentos sociais, ameaça anticomunista, a imagem das Forças Armadas como defensoras incontestes dos interesses nacionais), associados à conjuntura de crise política, iniciada em 2013, e à chegada de uma liderança de extrema direita à presidência da República. O historiador Rodrigo Patto Sá Motta ( 2018MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: Um debate teórico e historiográfico. Tempo e argumento, v. 10, p. 109-137, 2018. ) apresenta duas características da cultura política dominante no Brasil: o personalismo e a acomodação/conciliação. No caso do personalismo, a tradição política brasileira privilegia a hipervalorização de uma liderança política em detrimento do fortalecimento das instituições democráticas. Em relação à acomodação/conciliação, trata-se de um processo geralmente realizado intraelites, com a contenção da participação popular no jogo político.

A ação do Estado brasileiro em relação à ditadura civil-militar nos governos da Nova República (Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff) reconheceu direitos pecuniários e administrativos das vítimas e o dever de memória, ainda que de forma pontual. Sem a adoção efetiva da justiça, no entanto, o Estado facilitou a existência de um espaço para suspeição, cujo vazio foi rapidamente ocupado por discursos negacionistas. Aliás, a própria manutenção de privilégios militares e da Lei da Anistia, de 1979, 2 2 BRASIL. Lei n o 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm . Acesso em:19 maio 2023. demonstra a capacidade de intervenção das Forças Armadas na política brasileira ao longo da Nova República. A saída dos militares do Poder Executivo não impediu que a elite das Forças Armadas continuasse atuando na política brasileira, demonstrando a fragilidade do comando civil e das instituições republicanas ( D’ARAÚJO, 2012D’ARAÚJO, Maria Celina. Limites políticos para a transição democrática no Brasil. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Org.). Violência na história: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 39-56.; FICO, 2012FICO, Carlos. Brasil: A transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Org.). Violência na história: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 25-38. ). No jogo político da Nova República, os militares mantiveram poder de veto nas ações de justiça de transição, impedindo medidas de promoção da justiça e limitando a expansão sistemática de políticas memoriais ( CUNHA, 2010CUNHA, Paulo Ribeiro. Militares e anistia no Brasil: Um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 15-40.; ZAVERUCHA, 2010ZAVERUCHA, Jorge. Relações civis-militares: O legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 41-77. ).

Nos anos 1980 e 1990, observamos a emergência dos novos movimentos sociais, pautados nas questões identitárias e na conquista de direitos. Contemporaneamente, novíssimos coletivos vêm apresentando uma miríade de demandas e desenvolvendo forte participação nas redes sociais. Ambos propiciaram questionamentos na cultura política de acomodação/conciliação intraelite que predominou no Brasil desde o século XIX. A presença de novos atores no espaço político, associada ao avanço e ao impacto das redes sociais, favoreceu a emergência de discursos e pautas políticas alheios às narrativas construídas por setores conciliatórios da política e, portanto, distantes do processo de acomodação que marcava a cultura política dominante.

Marcos Napolitano propôs uma importante intervenção nesse debate, destacando que a crise do modelo de governabilidade vigente resultou do esgotamento do “presidencialismo de coalizão”, expressão dessa tradição política conciliatória:

Do ponto de vista político, percebe-se o desgaste de um modelo chamado pelos especialistas de “Presidencialismo de Coalizão”. Este sistema, em grande parte fruto do equilíbrio tenso entre Legislativo e Executivo sacramentado pela Constituição de 1988, exige que o Presidente eleito forme maiores (sic) parlamentares em um sistema partidário fragmentado e, via de regra, fisiológico, que se agrupa por interesses materiais diretos na ocupação de cargos e benesses, e não a partir de programas de governo. O sistema de voto no Brasil, majoritário para o Poder Executivo e proporcional para o Poder Legislativo, sem cláusulas de barreira ou foco distrital, estimula este sistema. O resultado é que temos uma mistura confusa e informal dos princípios políticos de um regime parlamentarista – com capacidade de veto real do congresso sobre o Poder Executivo – sem uma cultura partidária e cláusulas constitucionais que deem estabilidade política ao sistema. 3 3 NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016. Disponível em: https://www.kooperation-brasilien.org/pt-br/temas-1/politica-economia/a-crise-politica\-brasileira-perspectivas . Acesso em: 19 maio 2023.

A partir da década de 1980, tanto setores à esquerda quanto à direita do espectro político foram construindo novos canais de participação e de diálogo com seus respectivos públicos, com pautas distantes daquelas evidenciadas por parcelas da grande imprensa, esta última, em geral, alinhada à cultura política da acomodação. A crítica à cultura política da acomodação intraelites suscitou respostas distintas entre as esquerdas e as direitas. Enquanto as esquerdas exigiam ampliação da participação social, caminhando para uma democracia cada vez mais deliberativa, com a presença de sujeitos históricos até então silenciados, os setores da direita alimentavam o medo, produziam fake news e acolhiam os ressentimentos das camadas médias da sociedade. Trata-se de uma crise ainda em curso, visto que as eleições de 2022 não expurgaram a extrema direita do poder. A vitória de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi fundamental para a manutenção das instituições democráticas; porém, incapaz de solucionar de imediato a crise política atual. As pautas da extrema direita continuam circulando livremente nas redes sociais e com ampla capilaridade entre setores importantes da sociedade. A frustrada tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 também demonstra a necessidade de reconstrução e valorização da democracia, pois revelou a existência de uma intricada rede de apoiadores e financiadores dispostos a patrocinar atentados golpistas. Ainda que frustrada, a invasão dos poderes da República com a destruição do patrimônio público demonstra que o bolsonarismo continua atuante e conta com séquitos inclusive entre as forças de segurança pública.

A emergência da extrema direita no Brasil e no mundo atual tem-se pautado na crise do Estado como agente promotor do bem-estar social e no questionamento da democracia como espaço de diálogo, da alteridade e do dissenso. No caso brasileiro, a cultura política da acomodação intraelites é marcada pela criminalização dos movimentos sociais, pela defesa das estruturas promotoras das desigualdades sociais, pela violência do Estado contra os grupos minoritários e marginalizados, e pela restrição do acesso à cidadania. Tal cultura política se manteve, apesar do avanço das políticas sociais nos governos do PT, e vimos crescer o ressentimento das camadas médias da população diante da perda de seus privilégios:

A estrutura social brasileira também apresenta desafios importantes à estabilidade do sistema político e à governabilidade. Há um “passivo” histórico de políticas sociais, agravado por uma secular exclusão política e social que consolidou a sociedade brasileira como uma das mais desiguais do mundo, em que pesem as conquistas dos últimos anos. Os serviços públicos são deficientes, os impostos são regressivos (penalizando os consumidores e os assalariados, e preservando as grandes fortunas, propriedades e rendimentos financeiros) e a classe média com algum recurso se vê onerada pela compra de serviços privados caros para suprir direitos básicos, como saúde e educação, o que explica, em parte, seu antigovernismo visceral. Ao mesmo tempo, esta mesma classe média, nos últimos anos, está vendo seu sistema de privilégios sobre os mais pobres – materializada no uso de mão de obra popular para os serviços domésticos e privados – diminuir, fazendo aflorar seu elitismo social e culpando o PT por essa “inversão” social. 4 4 NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016.

As eleições realizadas em outubro de 2022 demonstraram a força da extrema direita e do bolsonarismo, que, apesar de derrotado nas eleições presidenciais, foi vitorioso em diversos governos dos estados e ocupou numerosas cadeiras no legislativo. Para a presidência da República, Lula venceu com 50,9% dos votos válidos no segundo turno. O uso ostensivo da máquina pública e a rede de fake news utilizada por Jair Bolsonaro e seus apoiadores implicaram diretamente no resultado. A vitória apertada de Lula sobre Bolsonaro indica que a agenda da extrema direita encontra espaço no campo político e que projetos autoritários têm grande capilaridade na sociedade brasileira.

O governo Bolsonaro, o negacionismo histórico e a crise do regime moderno de historicidade

Os primeiros casos de covid-19 foram registrados no país no final de fevereiro de 2020 e, desde então, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro protagonizou diversas cenas públicas de negação às orientações das entidades científicas nacionais e internacionais. Suas práticas negacionistas sobre a covid-19 incluíram o deboche acerca da gravidade da pandemia, a desmoralização das políticas estaduais de isolamento social, a defesa do uso de medicamentos sem eficácia científica comprovada, além da promoção de todo o tipo de aglomeração – como suas visitas por estados e as famosas motociatas. Essa atitude em relação à pandemia não foi um caso isolado de negacionismo de Bolsonaro, mas integrou uma política sistemática do governo de negação da ciência, da promoção do anti-intelectualismo e do obscurantismo, objetivando um projeto de refundação das bases republicanas e de desmonte do Estado de direito construído a partir da Constituição de 1988. Esse projeto está baseado no avanço da extrema direita, na fragilidade institucional da democracia brasileira e no reflorescimento do projeto autoritário, diante da crise de acomodação intraelites da cultura política brasileira.

As elites políticas organizadas tradicionalmente em partidos, sindicatos e organizações institucionalizadas não conseguem suprir as demandas de novos atores que passaram a ter nas redes sociais um espaço inédito de interação e empoderamento. A emergência desse novo espaço público transformou as formas de comunicação e interação, provocando uma revolução nas formas de produção de narrativas e aderências a projetos políticos. Soma-se a essa nova experiência comunicativa a recente crise do presentismo, ou seja, a perda de referencial da dinâmica dos tempos, com a primazia de um presente contínuo e a desesperança em relação ao futuro. 5 5 Para uma análise detalhada sobre a crise da experiência do tempo na modernidade e o seu resultado direto, o presentismo, ou seja, essa sensação de vivermos num tempo marcado pela supremacia do presente, tendo em vista que o passado é um conjunto de experiências que pouco se relacionam com o presente, e o futuro não é mais o horizonte de expectativas novas e qualitativamente melhor, ver: François Hartog ( 2013 , 2022 ).

A Constituição de 1988 consagrou o Estado de direito, o reconhecimento do protagonismo dos movimentos sociais e a busca da efetivação da cidadania, definindo o papel do Estado na promoção do bem-estar social. Ao longo dos governos do PT, ou seja, de Lula e Dilma Rousseff, ainda se observa o crescimento de uma democracia radical, marcada pela presença de segmentos da sociedade civil em espaços deliberativos e de organização de políticas públicas. É contra o projeto político de expansão e efetivação dos direitos estabelecidos pela Constituição, defendido pelos movimentos sociais, que os negacionismos são acionados. Jair Bolsonaro promoveu e utilizou diversos negacionismos e fake news para ampliação e manutenção de seu apoio político entre distintos segmentos sociais suscetíveis a projetos autoritários de poder. As motivações para o apoio de diferentes estratos de classe às propostas da extrema direita são múltiplas: as elites econômicas estão especialmente interessadas na adoção do modelo neoliberal; as classes médias se sentem ameaçadas de perderem os privilégios que lhe promovem distinção; e setores da população socioeconomicamente fragilizados se veem amedrontados pela crise econômica e pela insegurança cotidiana em múltiplas dimensões. 6 6 NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016. Somado a isso, temos o fenômeno do antipetismo, que irá incorporar uma tradição anticomunista largamente difundida entre a população ( MOTTA, 2019MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; MOTTA, Rodrigo Patto Sá; BOISARD, Stéphane (Org.). Pensar as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2019, p. 75-98. )

Mesmo com cenário favorável para aderência a projetos autoritários, Jair Bolsonaro viu, a partir de 2021, uma provisória queda na sua popularidade, conforme pesquisa do Datafolha. 7 7 A ÚLTIMA pesquisa Datafolha em 10 pontos. In: G1 , 9 jul. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/09/a-ultima-pesquisa-datafolha-de-7-e-8-de\-julho-de-2021-em-10-pontos.ghtml . Acesso em: 19 maio 2023. Diante desse quadro, Bolsonaro optou por sair às ruas em busca de apoio político junto à população. O então presidente iniciou uma série de viagens por diferentes estados da federação, em especial nas regiões Nordeste e Sul, promovendo inaugurações e se apresentando diretamente aos populares, num corpo a corpo até então incomum à sua prática política. Até aquele momento, Bolsonaro se havia concentrado no uso intenso das redes sociais, na bajulação dos seus apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada e na busca por holofotes da mídia tradicional. Desde a campanha presidencial e, em especial, após o atentado sofrido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 2018, Bolsonaro havia direcionado sua propaganda política sobretudo às redes sociais. Contudo, com a sua popularidade oscilando e acossado por uma série de investigações que envolvem seus parentes mais próximos em esquemas de pagamentos ilícitos, as famosas “rachadinhas”, ele saiu às ruas, no modelo tradicional do corpo a corpo, tentando resgatar a popularidade e reforçando os seus discursos negacionistas. Afinal, se para ele a covid-19 “é uma gripezinha”, qual seria o problema de estar nas ruas e ignorar as orientações de isolamento ou distanciamento social? Bolsonaro fez questão de se contrapor a todas as orientações dos órgãos de saúde, personificando o próprio negacionismo ao abraçar apoiadores, não usar máscara, propagandear o uso de medicamentos sem eficácia comprovada e negar a vacina, como se já não tivéssemos enterrado aproximadamente de 700 mil cidadãos vítimas da covid-19 no país.

Voltemos ao dia 31 de julho de 2020. Naquele dia, cumprindo sua agenda de viagens, Jair Bolsonaro desembarcou em Bagé, município do interior do Rio Grande do Sul, para a inauguração de um conjunto habitacional popular e de uma escola cívico-militar. À sua espera no aeroporto, um Landau iria conduzi-lo aos locais previstos. 8 8 MATOS, Kelly; MATOS, Eduardo. Os bastidores sobre o carro de Médici à espera de Bolsonaro no RS. In: Gaúcha ZH , 31 jul. 2020. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/kelly-matos/noticia/2020/07/os-bastidores-sobre-o-carro-de-medici-a-espera-de\-bolsonaro-no-rs-ckdac1yqg001c013ghq0wiia7.html . Acesso em: 19 maio 2023. O carro pertencera ao ex-presidente ditador Emílio Médici (1971-1974), que presenteou sua cidade natal em 1972 com o veículo. Recepcionado por apoiadores que o aguardavam no aeroporto da cidade, Bolsonaro rapidamente acenou com uma caixa de hidroxicloroquina nas mãos. 9 9 MOURA, Thiago Rolim de. Bolsonaro mostra cloroquina para apoiadores no RS e causa aglomeração. In: UOL , 31 jul. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-\noticias/2020/07/31/bolsonaro-cloroquina-bage-aglomeracoes.htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 19 maio 2023. Os negacionismos médico e histórico se encontravam numa cena habilmente montada para reafirmar seus posicionamentos cotidianos. Aqui, a ação política orquestrada para produção de negacionismos explicitava a escalada autoritária que vivíamos. O carro de um ex-ditador foi buscar um presidente em plena vigência da democracia. Essa não foi a primeira vez que Bolsonaro promoveu ações ou discursos em defesa da ditadura. É emblemático, no entanto, que tenha incorporado duas ações negacionistas ao mesmo tempo como parte de sua propaganda política, na tentativa de reconquistar o apoio de parte do seu eleitorado e marcar, novamente e incansavelmente, suas opções político-ideológicas.

Propomos que o negacionismo histórico acerca da ditadura deve ser avaliado como parte da agenda política do ex-presidente e da extrema direita renovada, não se inscrevendo apenas no campo do ressentimento de velhos militares e de parte das Forças Armadas. Como propõem Patrícia Valim, Alexandre Avelar e Berber Bevernage (2021, p. 15), “o negacionismo histórico pode ser pensado como um mosaico de falas, práticas e representações mobilizadas com o objetivo de legitimar certas leituras dos nossos passados sensíveis – sobretudo de suas violências, seus extermínios e dominação dos mais vulneráveis”.

Não se trata de uma batalha exclusiva do campo da memória, mas sim de usar politicamente a negação à ditadura para impor um projeto de refundação da Nova República e de reconfiguração dos pilares que forjaram a Carta Constitucional de 1988. Um projeto altamente excludente e de permanência no poder. No dia 31 de março de 2022, Bolsonaro, em discurso oficial no Palácio do Planalto sobre o golpe e a ditadura, afirmava:

Hoje, 31 de março. O que aconteceu em 31? Nada. A história não registra nenhum presidente da República tendo perdido o seu mandato nesse dia. Por que então a mentira? A quem ela se presta?... Quem esteve no governo naquela época fez a sua parte. O que seria do Brasil sem obras do governo militar? Não seria nada, seríamos uma republiqueta. 10 10 Citado por: MAZUI, Guilherme; RODRIGUES, Paloma. Em discurso no Planalto, Bolsonaro defende militares e deputados réus por atos antidemocráticos. In: G1 , 31 mar. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/03/31/em-discurso-no-planalto-bolsonaro\-defende-ditadores-militares-e-deputado-reu-por-atos-antidemocraticos.ghtml . Acesso em: 19 maio 2023.

A interpretação de que o negacionismo seria parte da necropolítica e de sua instrumentalização para a adoção do neoliberalismo é defendida por Márcio Seligmann-Silva ( 2022SELIGMANN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Ed. Unicamp, 2022. ) em livro recém-publicado. Para o autor, o negacionismo acerca do passado ditatorial é integrante da necropolítica dos governos neoliberais radicais, num processo distópico de tomada do poder: “Governos neoliberais radicais implantam a necropolítica que se volta contra o passado, o presente e que tolhe o futuro” ( SELIGMANN-SILVA, 2022, p. 228SELIGMANN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Ed. Unicamp, 2022. ). Em sentido semelhante, o fenômeno do bolsonarismo foi analisado por Daniel Aarão Reis ( 2020REIS, Daniel Aarão. Notas para compreensão do Bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, v. 46, n. 1, e36709, jan./abr. 2020. ) a partir de duas chaves interpretativas: a crise da democracia e o avanço do neoliberalismo. Para o historiador, o bolsonarismo é um fenômeno sustentado pela descrença nos partidos políticos, pela desvalorização dos sindicatos, pela criminalização dos movimentos sociais e pelo avanço do neoliberalismo – modelo baseado no Estado mínimo, para cuja adoção plena o Estado de direito se torna um entrave. Acrescentamos em nossa análise, em diálogo direto com as propostas analíticas de Aarão Reis e Seligmann-Silva, uma terceira chave explicativa para o fenômeno: o avanço do negacionismo histórico como parte da crise do regime de historicidade moderno vivenciada no Brasil, a partir de 2013, e a emergência do presentismo, a partir da negação do regime de memória liberal sobre a ditadura. Essa crise, portanto, também atravessa os usos e as apropriações do passado, e tem favorecido a construção de um regime de memória que requalifica a ditadura e condena os movimentos sociais e suas ações políticas, através do falseamento do passado.

Para fazer frente a esse processo degenerativo da democracia brasileira, observamos um avanço nos debates sobre a história do tempo presente no Brasil. Os historiadores têm-se debruçado sobre a crise das democracias, o fenômeno do bolsonarismo, os fundamentalismos religiosos e a presença da extrema direita no campo político ( CALDEIRA NETO, 2020CALDEIRA NETO, Odilon. Neofascism, “New Republic” and the Rise of Right-Wing Groups in Brazil. Conhecer: Debate entre o público e o privado, v. 10, n. 24, p. 120-140, 2020.; MOTTA, 2020MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A história no olho do furacão. In: KLEM, Bruna S.; PEREIRA, Mateus Henrique; ARAÚJO, Valdei Lopes de (Org.). Do fake ao fato: (Des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020, p. 29-41. ). Todos esses fatores indicam uma mudança no regime de historicidade moderno até então prevalecente, com a hipertrofia do presente e o avanço da crise política e econômica, somada à tragédia da covid-19 nos últimos anos. O presentismo, identificado como crise da modernidade por Hartog ( 2013HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., 2022HARTOG, François. Os impasses do presentismo. In: MÜLLER, Angélica; IEGELSKI, Francine (Org.). História do tempo presente: Mutações e reflexões. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2022, p. 133-143. ), emerge a partir de uma hipertrofia do presente, do descaso com o passado e do pessimismo diante do futuro. A tensão entre os tempos passado e futuro vivenciada no presente na experiência moderna é esvaziada, constituindo uma experiência sob o predomínio do tempo presente. A crise da social-democracia e de suas promessas de desenvolvimento econômico com justiça social levou a um quadro generalizado de pessimismo. É nesse quadro que observamos a emergência da extrema direita e dos fundamentalismos religiosos, fortemente incentivados pelo uso de fake news e pela produção de negacionismos, incluindo o histórico.

É nesse sentido que reiteramos nossa hipótese: o negacionismo sobre a ditadura produzido e difundido pela extrema direita é um sintoma da crise do regime de historicidade moderno (presentismo) e da necessidade desses grupos de refundarem as matrizes da Nova República, substituindo o presidencialismo de coalizão em crise por um projeto autoritário e excludente de poder.

A crise dos tempos, ou o novo regime de historicidade, conforme propõe François Hartog ( 2013HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. ), é marcada pela convivência entre duas formas de experimentação do tempo em condição assimétrica: as expectativas de um futuro novo e qualitativamente melhor vêm diminuindo, e convivem com o crescimento do pessimismo em relação ao futuro e a consequente hipertrofia do presente. No Brasil, as expectativas desse futuro promissor diminuíram drasticamente nos últimos anos, marcados pela pandemia, pelo avanço da extrema direita, pela crise econômica e pelo uso abusivo da internet e das redes sociais. Antes da pandemia, em 2018, a revista Época 11 11 FAUSTINO, Rafael. Jovens brasileiros são mais pessimistas com o futuro do país, mostra pesquisa. In: Época , 28 set. 2018. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2018/09/jovens-brasileiros-sao-os-mais-pessimistas-com-o-futuro-do-pais-mostra\-pesquisa.html . Acesso em: 19 maio 2023. trazia uma reportagem indicando um índice de 34% de crianças e jovens pessimistas em relação ao futuro. No pós-pandemia, em janeiro de 2022, uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) apontou que 69% dos jovens brasileiros com menos de 24 anos acreditavam que o mundo estava piorando. 12 12 FERREIRA, Alex. Pessimismo com o futuro cresce entre jovens no Brasil, diz pesquisa. In: O Tempo , 19 jan. 2022. Disponível em: https://www.otempo.com.br/interessa/pessimismo-com\-o-futuro-cresce-entre-jovens-no-brasil-diz-pesquisa-1.2597746 . Acesso em: 19 maio 2023. Ainda que as causas do pessimismo tenham múltiplos fatores (políticos, econômicos e culturais), o fato é que há uma crise na percepção do futuro prometido pela modernidade, que indica uma crise na própria relação dos jovens com a experiência do tempo.

Alguns acontecimentos políticos refletem o funcionamento do fenômeno do presentismo no Brasil: a nefasta atuação da Operação Lava-Jato; o golpe parlamentar, midiático e jurídico contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016; as reformas trabalhista e da previdência, que lançam para o futuro um ambiente de insegurança social em relação à velhice; a atuação intempestiva e irresponsável da imprensa; a condenação e a prisão arbitrárias do ex-presidente Lula – que tinha nas pesquisas de intenção de voto, no início de 2018, uma forte possibilidade de vitória eleitoral –, decisivas na eleição do candidato da extrema direita Jair Messias Bolsonaro – deputado federal cuja trajetória de desrespeito aos direitos humanos e aos preceitos constitucionais era amplamente conhecida. Eleito no segundo turno de 2018, Bolsonaro iniciou seu governo com vasto uso dos negacionismos, obscurantismos e ataques à ciência, cujos resultados foram: milhares de mortes desnecessárias na pandemia; aumento do garimpo ilegal e queimadas na Amazônia brasileira; recuo dos índices de aprendizagem escolar; baixo índice na aplicação do esquema vacinal de crianças e adultos; aumento da fome e da miséria; perda de espaço do país no campo internacional.

O pessimismo em relação ao futuro e a produção de esquecimentos em relação ao passado não necessariamente indicam, no entanto, a vitória inconteste dos projetos da extrema direita, hoje presentes nas democracias ocidentais com enorme capilaridade política. Há uma guerra cultural em curso, identificada por Seligmann-Silva ( 2022SELIGMANN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Ed. Unicamp, 2022. ) como uma guerra de imagens, à qual se associa uma guerra discursiva, com largo uso da propaganda na requalificação dos usos do passado dentro do projeto necropolítico. Esse projeto, contudo, encontra espaços de resistência, sobretudo, no campo cultural – nas artes e na intelectualidade –, dispostos a estabelecer novas relações com a sociedade na conformação de outro mundo possível.

Memórias da ditadura: Um campo em disputa

O ataque sistemático às ciências humanas e à história disciplinar, realizado por meio das políticas de cortes no investimento de pesquisa e da desqualificação das humanidades, é fundamental nessa estratégia de refundar as bases de governança da Nova República, a partir de um projeto autoritário vinculado aos ideais da nova extrema direita. A história, entendida aqui como construção epistemológica do conhecimento na modernidade, encontra-se hoje envolvida numa trincheira em favor da democracia, da ciência e dos direitos humanos, dos quais é caudatária. Dos diversos temas e objetos que são de interesse dos historiadores, aqueles dedicados à história recente, sobretudo aos regimes ditatoriais do século XX, vêm sendo alvo de negacionismos, em meio a um anti-intelectualismo emergente e uma política do ódio que desconsidera o outro, suas diferenças, direitos e pluralidades. Nesse sentido, este artigo assumiu o compromisso ético e político de trazer a público uma reflexão sobre o negacionismo, concentrando-se nas manipulações negacionistas acerca da ditadura militar brasileira.

O negacionismo histórico é fenômeno de negação ou suavização das violações de direitos humanos provocadas deliberadamente por indivíduos, órgãos de Estado ou grupos articulados. Cabe lembrar que o negacionismo histórico é um fenômeno de extrema direita originalmente vinculado à negação do Holocausto Judeu. O Holocausto foi um evento-limite que impôs ao século XX a necessidade de valorização dos direitos humanos, assim como fez emergir o papel central do testemunho da vítima na construção da memória social sobre aquele terrível acontecimento ( TRAVERSO, 2012TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: História, memória e política. Lisboa: Unipop, 2012. ). Nesse debate, construiu-se o conceito de revisionismo para definir leituras que tentam amenizar os eventos marcados pelo uso da violência e do terror sistemáticos no século XX. Além disso, os próprios negacionistas muitas vezes usam o conceito de revisionistas para se autointitularem na tentativa de buscar legitimidade ou construírem autoridade lógica para suas descabidas narrativas (que, quando não falseiam o passado, manipulam-no negativamente). Para evitar o abrandamento do fenômeno e as muitas confusões em torno do conceito de revisionismo, considerando inclusive a existência de um revisionismo crítico comum ao trabalho do historiador, optamos pelo uso do conceito de negacionismo histórico para tratar dos usos políticos do passado ditatorial recente pelo governo de Jair Bolsonaro.

No Brasil, a historiadora Sônia Meneses ( 2020MENESES, Sônia. Bolsonarismo: Um problema de “verdade” para a História. In: KLEM, Bruna S.; PEREIRA, Mateus Henrique; ARAUJO, Valdei Lopes de (Org.). Do fake ao fato: (Des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020, p. 43-56. ) mapeia o surgimento do conceito de negacionismo acerca da ditadura militar na imprensa. Para a historiadora, o conceito vai aparecer na imprensa brasileira como um fenômeno de impacto apenas em 2014. A partir de 2018, o fenômeno ganha novos contornos, com a disputa eleitoral que traz Jair Messias Bolsonaro como um potencial candidato a ocupar a cadeira presidencial, fato que se confirmou no segundo turno das eleições. O então candidato já era conhecido por seus discursos no Parlamento em defesa dos militares no período da ditadura. Como presidente, apesar de estarmos numa democracia, manteve sua postura e continuou proferindo discursos e promovendo ações como determinar as “comemorações devidas” ao 31 de março, negando o golpe e a existência da ditadura. O porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Bastos, afirmava, em 25 de março de 2019: “Nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964, incluindo a ordem do dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”. 13 13 BOLSONARO determinou “comemorações devidas” do golpe de 1964, diz porta voz. In: Portal T5 . Disponível em: https://www.portalt5.com.br/noticias/single/nid/bolsonaro-\determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-militar-de-1964-diz-porta-voz/ . Acesso em: 19 maio 2023. A Associação Nacional de História (ANPUH) emitiu dias depois nota de repúdio a essa determinação nos seguintes termos:

A ANPUH-Brasil vem, com veemência, repudiar a decisão da presidência da República de determinar “comemorações devidas” à Ditadura Militar iniciada em dia 31 de março de 1964 e que durou 21 anos. As pessoas que pesquisam e ensinam história têm consciência de não ter o que comemorar quando a documentação da Comissão da Verdade e mesmo aquela produzida pelos que estavam no poder, na ocasião, mostram o autoritarismo, a falta de liberdade, a censura, as perseguições, a tortura, a prisão, a morte e os desaparecimentos. Não foram poupados os jovens, as crianças, as mulheres, os adultos e os idosos. Diante disso, a ANPUH-Brasil conclama seus associados a fazerem, a partir de 01 de abril, palestras, mesas redondas, debates de filmes, divulgações nas redes sociais que retratem a tortura, a falta de democracia, a violência e a desumanidade, praticadas pelo Estado, que marcaram os 21 anos de ditadura militar no Brasil. 14 14 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA. Nota de repúdio da ANPUH-Brasil: Comemorações 31 de março. In: ANPUH-Brasil . Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/eventos/item/5209-nota-de-repudio-da-anpuh-brasil-\comemoracoes-31-de-marco . Acesso em: 19 maio 2023.

Em dezembro de 2019, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, declarou seu desejo de extinguir a Comissão da Anistia em 2020, sob a alegação de que ela perdera sua função, afinal, “a lei é muito clara. É para analisar requerimentos de pessoas que foram perseguidas politicamente num período. A maioria dessas pessoas está com idades muito avançadas. Eu não consigo ver pessoas jovens entrando com requerimento agora”. 15 15 Citada por: KADANUS, Kelli; DESIDERI, Leonardo. Damares quer acabar com Comissão da anistia até o fim de 2020. In: Gazeta do Povo , 17 dez. 2019. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/damares-quer-acabar-com-comissao-de-anistia-ate\-fim-de-2020/ . Acesso em: 19 maio 2023. Novamente, a ANPUH emitiu nota repudiando tal proposta. Afinal, eram as vítimas do terrorismo de Estado que entravam com recursos junto à Comissão e, portanto, a idade avançada dos solicitantes é característica previsível. O descaso com as políticas de memória revela a adoção de uma política de esquecimento, já perceptível em governos anteriores, mas recrudescida no governo Jair Bolsonaro.

As demonstrações de negacionismo acerca da ditadura estão assentadas geralmente em quatro afirmações: o golpe teria sido uma contrarrevolução diante de uma suposta ameaça comunista; as possíveis violações de direitos humanos foram resultados de excessos individuais de agentes públicos mal treinados, e não de uma política deliberada do Estado; a ditadura não foi uma ditadura, pois havia uma aparato legislativo e jurídico em funcionamento; a ditadura foi um período de prosperidade e segurança, muito em função de uma memória sobre o crescimento econômico do governo Médici. Todas essas negações já foram amplamente desconstruídas pelos historiadores dedicados ao período.

Para Mateus Henrique de Faria Pereira ( 2022PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ), o negacionismo sobre a ditadura deve ser compreendido como uma guerra cultural marcada pela interação entre o virtual, o atual e o real. O autor analisa a internet como um veículo de memória que promove no espaço público um debate por meio de uma estratégia de guerra. A própria concepção do tempo histórico nessas guerras culturais 16 16 Outro importante pesquisador a usar a categoria de guerra cultural foi João Cezar de Castro Rocha ( 2021 ), ao analisar o fenômeno de escalada da extrema direita no Brasil a partir da construção de um discurso do ódio, autoritário, anticomunista e antipetista. segue uma leitura fatalista, homogênea e determinista. O golpe seria, assim, inevitável, e apenas ele nos poderia livrar da ameaça comunista. Esse tipo de leitura irá prevalecer em diversas produções negacionistas encontradas na internet e em artigos da Metapedia 17 17 A Metapedia é uma enciclopédia virtual similar a Wikipédia . Porém, ao contrário da Wikipédia , ela não estabelece processos confiáveis de verificação das informações, favorecendo a produção de notícias falsas e negacionismos. – onde não há critérios claros de verificabilidade ou controle das informações disponibilizadas. Há outras narrativas negacionistas produzidas por sites e grupos, como Brasil Paralelo, que circulam com enorme visibilidade. Para Pereira ( 2022PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ), tais publicações e produtos audiovisuais fazem parte de um projeto político que envolve grupos, articulados ou não, que atuam no questionamento das bases republicanas e democráticas fundadas com a Constituição de 1988.

A historiadora Caroline Bauer ( 2018BAUER, Caroline. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (Org.). Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018, p. 195-203. ), dedicada aos usos do passado no tempo presente, destaca a especificidade do negacionismo acerca da ditadura no Brasil. Para Bauer, no caso brasileiro, não se trata de uma negação da existência da ditadura, mas de uma negação dos seus sentidos e significados. Neste caso, o que os discursos negacionistas pretendem não é simplesmente uma reabilitação da ditadura ou sua atenuação, como na infeliz expressão “ditabranda”, que circulou na imprensa alguns anos atrás. 18 18 O termo se difundiu a partir de um editorial crítico ao governo venezuelano publicado pela Folha de São Paulo em 2009. Ver: LIMITES a Chávez. In: Folha de São Paulo , 17 fev. 2009. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm . Acesso em: 19 maio 2023. O negacionismo se inscreve na batalha da memória em disputa pelos sentidos da experiência ditatorial brasileira. O negacionismo não se constrói isolado das demais narrativas sobre a ditadura, nem desconsidera o campo de batalhas existente.

Uma das imagens políticas construídas ao longo da Nova República foi a do protagonismo dos movimentos sociais na expansão dos direitos democráticos. Trata-se de uma memória hegemônica amplamente difundida ( NAPOLITANO, 2017NAPOLITANO, Marcos. A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985). Estudos Ibero-Americanos, v. 43, n. 2, p. 346-366, maio/ago. 2017., 2018NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise: História e memória diante de novos enquadramentos teóricos. Saeculum, n. 39, p. 205-218, jul./dez. 2018., 2020NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a história nas encruzilhadas da memória: Entre traumas e tabus. História: Questões & Debates, v. 68, n. 1, p. 18-52, jan./jun. 2020. ). O período de 1979 a 2013 é de uma intensa euforia na participação política de grupos minoritários até então invisibilizados e silenciados. O retorno dos exilados e o avanço da redemocratização, a mobilização civil pelas Diretas Já, a Assembleia Constituinte e a aprovação da nova Constituição, o controle da inflação com o Plano Real, a adoção de políticas de reparação (ainda que limitadas), o avanço das pautas identitárias, a presença de movimentos sociais diversos no cenário público, o crescimento dos índices de escolarização e o ingresso no nível superior com a expansão das escolas técnicas e universidades federais, as políticas redistributivas e o crescimento econômico nos governos do PT (2003-2016) geraram um sentimento de crença em um futuro novo e qualitativamente melhor, com maior equidade social.

É nessa conjuntura de otimismo e esperança no futuro que se constrói uma memória hegemônica sobre a resistência à ditadura e a participação dos movimentos sociais no processo de redemocratização. Tal memória funcionou como elemento legitimador da presença política de atores sociais até então invisibilizados no espaço público. Essa memória, por um lado, silenciou as acomodações, as ambivalências, os colaboracionismos e as participações de setores importantes, como a grande imprensa, no golpe e na ditadura. 19 19 Há uma vasta e consolidada historiografia brasileira dedicada às relações de ambivalências, consentimentos e consensos entre a sociedade e o Estado ditatorial brasileiro, demonstrando as simplificações das análises binárias sociedade civil democrática versus ditadura militar. Ver: Reis ( 2000 ); Rollemberg; Quadrat ( 2010 ); Maia ( 2012 ); Cordeiro ( 2015 ). Por outro lado, também produziu como aspecto positivo a perspectiva da mobilização política, da autonomia dos coletivos sociais, do empoderamento e do protagonismo de diversos setores sociais na redemocratização. Ou seja, essa memória favoreceu a percepção de que havia um espaço político na Nova República para que diversos setores sociais lutassem em busca da execução dos direitos expressos na Carta Constitucional e, ainda, os ampliassem em direção a uma sociedade mais igualitária.

Ainda que setores como a grande imprensa circunscrevessem a mobilização social à luta pela volta das eleições regulares, pela liberdade de imprensa e pelo fim da censura, bem como à adoção de uma nova Constituição, o fato é que, ao lado dessas importantes bandeiras, havia grupos organizados em torno da redemocratização que exigiam a ampliação das pautas e, consequentemente, dos direitos: movimento negro, grupos LGBTQIA+, grupos de direitos humanos, os ex-presos políticos e seus familiares, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, movimento feminista, entre outros. O amplo espectro político que comporia a mobilização pela redemocratização também faria, portanto, usos e apropriações diversos dessa memória no tempo presente. Se há uma memória hegemônica de caráter liberal que defende o modelo político de democracia representativa, ela sofre agenciamentos distintos pelos setores que a acionam nos anos seguintes ao processo de redemocratização.

Ao lado da construção dessa memória hegemônica que circula entre os setores da sociedade civil, as ações do Estado brasileiro no tratamento do seu passado autoritário recente oscilaram entre o silêncio (governos José Sarney e Fernando Collor/Itamar Franco), medidas administrativas circunstanciais (Fernando Henrique Cardoso), abertura parcial dos arquivos (Lula) e, mais recentemente, a valorização da memória com a Comissão Nacional da Verdade, no governo Dilma, em 2014. A promoção da justiça, a reformulação do ensino nas instituições militares e o combate aos legados autoritários não foram efetivados. O silenciamento do Estado acerca das violações dos direitos humanos produzidos pela política de esquecimento promovida pela Lei da Anistia favoreceu a manutenção da cultura política conciliatória intraelites, circunscrevendo o debate sobre direitos humanos no Brasil às vítimas ou familiares de vítimas da ditadura. No restante da sociedade, permanecia a ausência de discussões sobre as torturas, os assassinatos e desaparecimentos forçados, assim como todo o tipo de violação de direitos cometidos pela ditadura.

A impunidade fez parte do projeto conciliatório de nossa transição negociada intraelites. O custo de tal negociação, no entanto, foi produzir uma democracia de baixa qualidade, na qual circulam imagens, ações e discursos de violações de direitos humanos normatizados ou considerados excessos pontuais, quando se trata, na verdade, da necropolítica de contenção dos indesejáveis. A inexistência de uma política sistemática de valorização dos direitos humanos e de promoção de uma justiça de transição que incluísse a punição aos torturadores favoreceu a persistência de um espaço que possibilitou a emergência de discursos que apresentavam os movimentos sociais e os defensores dos direitos humanos como promotores da desordem e defensores do caos. A política do esquecimento adotada pelo Estado favorece tanto novas violações dos direitos humanos por parte dos agentes públicos quanto a existência do que chamamos de “espaço de suspeição”, ocupado por uma extrema direita ávida em criminalizar os movimentos sociais e em promover o negacionismo como estratégia política para o combate à construção e à ampliação dos direitos.

Em artigos recentes, Marcos Napolitano vem apresentando um debate cada vez mais sofisticado dedicado às batalhas de memória sobre a ditadura brasileira. Sem entrar na classificação proposta pelo autor, com suas nuances e interseções, merece nossa atenção aquilo que Napolitano ( NAPOLITANO, 2015NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: As dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, v. 8, n. 15esp., p. 9-44, nov. 2015., 2018NAPOLITANO, Marcos. Aporias de uma dupla crise: História e memória diante de novos enquadramentos teóricos. Saeculum, n. 39, p. 205-218, jul./dez. 2018., 2020NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a história nas encruzilhadas da memória: Entre traumas e tabus. História: Questões & Debates, v. 68, n. 1, p. 18-52, jan./jun. 2020. ) identifica como memória hegemônica aquela construída a partir do processo de redemocratização, assentada em três pilares: 1) na chamada “resistência democrática”; 2) na sociedade civil como radicalmente oposta aos militares; 3) na sociedade brasileira como defensora inconteste dos direitos humanos. Essa memória vai congregar forças políticas distintas e incorporar algumas demandas dos ex-militantes políticos ou dos familiares de mortos e desaparecidos – desde que não ultrapassem o campo administrativo e de memória, porém sem justiça.

Os limites ou possíveis simplificações dessa memória hegemônica podem ter favorecido a existência de silêncios em relação às colaborações/acomodações ou ainda obscurecido o fato de que tivemos uma transição também negociada pelo alto. 20 20 Há um intenso debate historiográfico sobre o processo de redemocratização brasileiro, que pode ser assim sintetizado: alguns pesquisadores defendem que a redemocratização foi fruto do amplo arco político identificado como resistência democrática ( ARAUJO, 2004 ); uma segunda corrente defende que se tratou de um projeto intraelites políticas conduzido pelos militares, no qual a mobilização democrática pouco interferiu na condução do processo de retorno à democracia ( FICO, 2012; D’ARAÚJO, 2012 ); e, por fim, alguns historiadores defendem que o processo de redemocratização é fruto de condicionantes políticos e econômicos externos, da condução protagonista dos militares e da oposição sistemática, ainda que condicionada pela cultura política brasileira da negociação e acomodação ( SILVA, 2003 ). Ainda que com limites, essa memória hegemônica consolida a ideia da defesa das liberdades democráticas por diferentes grupos civis, contribuindo para a emergência de diversos movimentos sociais legítimos. No final dos anos 1970, mas sobretudo ao longo dos anos 1980 e 1990, a nova esquerda se apresentou como protagonista no campo político e passou a exigir a construção de um Estado de direitos. Direitos plurais, diversos e em respeito às diferenças de etnias, de gênero e socioeconômicas. A Constituição de 1988 é popularmente conhecida como Constituição Cidadã justamente por ter incorporado uma série de direitos oriundos das demandas desses grupos sociais. A memória de que houve uma ditadura e uma resistência democrática de diferentes grupos e movimentos sociais organizados em favor de direitos humanos não apenas desqualifica a ditadura, mas fortalece o papel de atores sociais até então silenciados ou invisibilizados como sujeitos com direitos e com potencial de reunião para luta pelos seus direitos.

No atual cenário de ampla e heterogênea participação no campo político, que se associa à crise do modelo de coalizão política, a extrema direita se vê obrigada a construir um novo regime de memória que silencie as vozes que clamam pela ampliação de direitos. A extrema direita busca, assim, desqualificar a ação dos movimentos sociais durante o processo de redemocratização. Afinal, partindo da perspectiva negacionista desses setores políticos: se o golpe foi um contragolpe preventivo para evitar o avanço do comunismo, as violações de direitos humanos foram pontuais e esporádicas, e a ditadura foi um período próspero e de paz social, qual o papel dos movimentos sociais e sua busca por direitos a partir da segunda metade da década de 1970? A resposta da extrema direita é: ameaçar a família brasileira, a ordem, a segurança nacional, implementar o marxismo cultural. O negacionismo faz parte da guerra cultural que ataca a democracia e os direitos humanos, e acusa qualquer grupo progressista de estar vinculado ao “marxismo cultural”, eleito como novo inimigo.

A democracia brasileira nasceu sob a memória hegemônica da reconquista dos direitos, ainda que atravessada por legados autoritários. Os movimentos sociais fortaleceram a perspectiva de uma participação direta e ampla no Estado, não aceitando mais o papel de coadjuvantes na política brasileira. Tais direitos e mobilizações dificultam a adoção de um Estado neoliberal baseado na economia de mercado. A proposta da extrema direita de construir um novo regime de memória favorece a adoção do neoliberalismo. O neoliberalismo ataca justamente um conjunto de direitos que são acionados como necessários à reconstrução da democracia brasileira desde o final dos anos de 1970. A emergência de grupos sociais até então invisibilizados no espaço público ocorreu justamente ao longo dos 35 anos da Nova República. A luta é contra a memória hegemônica triunfante e contra a memória das vítimas, uma estratégia que inclui o esvaziamento do papel dos movimentos sociais no exercício da democracia. A questão que se coloca, portanto, é o uso do negacionismo histórico como parte do projeto político de refundação do regime republicano construído nos últimos 35 anos, que exclui os atores sociais que emergiram na cena pública e que passaram a exigir o cumprimento da Carta Constitucional e a adoção de novos direitos. Esvaziar a memória que consagrou a participação de setores e movimentos sociais na redemocratização do espaço público pela deslegitimação das suas lutas contra a ditadura – pela negação dos sentidos nefastos do regime ditatorial – favorece a adoção de uma nova memória, manipulada pelos interesses políticos da extrema direita.

O negacionismo histórico, portanto, faz parte do marketing político digital da extrema direita, que faz amplo uso das fake news , não apenas no período eleitoral, mas também durante o exercício do mandato. Não é à toa que esse negacionismo foi incorporado pelo governo de Jair Bolsonaro, ainda que não produzido exclusivamente por ele. O negacionismo não deixa de fazer parte da nova propaganda política, que não se dedica mais a apresentar os feitos gloriosos e empreendimentos de sucesso de um regime/governante, como ocorria durante a ditadura civil-militar ( FICO, 1997FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1969-1977). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997. ).

Não estamos mais no século XX. Na atualidade, o propósito da propaganda política da extrema direita é outro e ganhou vários novos aspectos, ainda que possamos observar a reedição de características do fascismo. Como demonstrou Giuliano Da Empoli ( 2019DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019. ), em Os engenheiros do caos , Boris Johnson, Jair Bolsonaro e Donald Trump vão saturar a mídia com o “grotesco”, o “abominável” e o “escandaloso”, sempre apresentados sob o signo da espontaneidade da liderança política – quando, na verdade, há um marketing político a serviço dessas lideranças. Essa extrema direita mobiliza medos e ressentimentos, produzindo uma cultura do ódio que busca eliminar o dissenso, o diálogo e a diversidade do debate público. Se ela vai reeditar algumas características dos fascismos, agora a mobilização ocorrerá por um novo canal, aparentemente menos hierarquizado e, portanto, mais difícil de ser combatido: o ciberespaço. As redes sociais tornaram direto o contato entre a liderança populista e seus eleitores-consumidores. Há empresas e robôs disparando milhares de mensagens, que não seguem uma base ideológica bem definida, diariamente. O próprio Da Empoli ( 2019DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019. ) demonstra a capacidade de adaptarem seus discursos aos desejos expressos por esses eleitores, facilmente mapeados pela exposição de nossos dados de consumo e opiniões nas redes sociais. Trata-se de um projeto de poder com grande capilaridade, pois é facilmente adaptável a diferentes demandas dos grupos sociais mais conservadores no campo dos costumes ou neoliberais no campo econômico. Esse projeto é de chegada e permanência no poder institucionalizado, o que não implica a realização de nada; ao contrário, o objetivo é manter a adesão de eleitores-consumidores dispostos a se engajarem em qualquer discurso simplista que aparentemente atenda às suas demandas imediatas.

O vazio ideológico deixado por essas lideranças, contudo, rapidamente será preenchido – daí a presença constante dos radicalismos religiosos, com sua visão conservadora de sociedade, e do neoliberalismo. Os negacionismos e a extrema direita não são submetidos ao neoliberalismo. O neoliberalismo é que se serve deles, num equilíbrio bastante delicado. O nacionalismo, por seu turno, será acionado como discurso por ser fator de adesão, mas isso não vai implicar um reforço em políticas de valorização do papel do Estado. Ao contrário, o desmonte do Estado reforça o papel da liderança, pois, com menos Estado, temos menos mecanismos institucionais de mediação – cabendo à liderança política a direção direta na sociedade civil. Em artigo recente, Renato Lessa ( 2020, p. 56LESSA, Renato. Homo bolsonarus. Serrote, edição especial Em Quarentena, jul. 2020, p. 46-67. , grifos do autor) define, a partir de uma leitura antropológica, o que considera o Homo bolsonarus:

Estamos hoje diante de um animal artificial com características distintas tanto do fascismo histórico como da própria tradição republicana brasileira pós-1930. Não se trata de pôr a sociedade dentro do Estado, mas de devolver a sociedade ao estado de natureza; de retirar da sociedade os graus de “estatalidade” que ela contém, para fazer com [que] se aproxime cada vez mais de um ideal de estado de natureza espontâneo: um cenário no qual as interações humanas são governadas pelas vontades, pelos instintos, pelas pulsões, e no qual a mediação artificial é mínima, ou mesmo inexistente. É essa a matriz do libertarismo bolsonarista.

O neoliberalismo encontrou na extrema direita o seu parceiro ideal. O avanço das minorias no espaço público significava o avanço da democracia, a ampliação da presença do Estado de direito, com políticas inclusivas, a ascensão dos grupos até então invisibilizados no campo político e na arena pública, com suas demandas, gostos, formas de viver e, sobretudo, a exigência de serem reconhecidos como sujeitos portadores de direitos. Direitos que só poderiam ser implementados com a presença do Estado na sociedade e com a ampliação de conquistas sociais. O projeto neoliberal não é viável com a agenda cidadã. Aproximar-se dos radicalismos religiosos e ideológicos, dos negacionismos, foi a fórmula encontrada para implementar as reformas desejadas. O neoliberalismo percebeu que o Estado de direito construído no Brasil através da democracia, cuja memória hegemônica se assenta na ampla participação da resistência democrática – ou seja, dos movimentos sociais e de direitos humanos – na reconstrução da democracia, cujo maior símbolo foi a Constituição de 1988, é um entrave. Faz-se necessário, assim, refundar essa memória para que os movimentos sociais alijados do debate público e desprestigiados no plano político sejam derrotados e as reformas neoliberais possam ser mais facilmente implementadas.

Considerações finais

Este artigo traz algumas reflexões e também muitas inquietações. Já temos acesso a uma pujante e qualificada produção historiográfica sobre os temas das memórias traumáticas, dos negacionismos, da ascensão da extrema direita e do impacto da história digital na formação da consciência histórica. Por outro lado, ainda há inúmeras questões a serem respondidas e que dependerão de investigações futuras.

Aqui, analisamos o negacionismo sobre a ditadura como parte de um movimento político mais amplo, ainda que multifacetado, de refundação das bases republicanas brasileiras a partir da emergência da extrema direita no cenário político e da tentativa de consagração do modelo neoliberal. Esse fenômeno só é possível diante da crise do regime de historicidade moderno e do recrudescimento do presentismo. O fato é que a cultura política dominante, baseada na acomodação intraelites, que arrastava consigo setores da classe média e grupos conservadores no campo do comportamento, entrou em crise com a emergência de novas pautas identitárias e da revolução comportamental expressa velozmente pela web 2.0. Canalizar os ressentimentos difusos dos segmentos conservadores da sociedade, dos nostálgicos da ditadura e dos religiosos radicais, que entendem as mudanças comportamentais como uma ameaça, foi fundamental na construção desse projeto político.

Por que esses negacionismos conseguem difundir-se amplamente na sociedade? Sobre isso, ainda carecemos de investigação. E, nesse sentido, estamos apenas no início das reflexões. Se as questões em torno do ressentimento têm sido muito profícuas para a análise da força do negacionismo, precisamos estar atentos ao público consumidor desses negacionismos.

Como nós, historiadores, podemos contribuir para evitar a consolidação de um regime negacionista que destrua as nossas conquistas sociais das últimas décadas? Diversos colegas pesquisadores têm insistido na importância da história pública e de ocuparmos as redes sociais, para além daquilo que já temos feito. Já avançamos bastante nessa ocupação, ainda que aprendendo como atingir um público jovem, difuso, não acadêmico. Não é uma transição fácil, nem somos nativos digitais, mas temos esperança de que ainda iremos avançar muito nesse sentido. Por outro lado, a própria reflexão interna sobre a nossa capacidade de produzir conhecimento objetivo, sem ignorar a importância da virada linguística na reavaliação do nosso fazer, tem sido fundamental. Os historiadores trabalham com método, são capazes de controlar a subjetividade, e nossa atividade não pode ser resumida a uma ação voluntarista ou ainda a uma mera disputa entre narrativas. Historiadores fazem seu trabalho baseado em fontes e evidências, constroem o pensamento lógico e, sobretudo, dialogam com o conhecimento pré-existente através do debate com os pares. Investir na defesa da história como conhecimento capaz de contribuir para o desenvolvimento da cidadania é o desafio da atualidade. A função social da história é contribuir para o avanço da cidadania, que a partir dos anos 1970, com a crise da Guerra Fria e a terceira voga democrática, foi compreendida como a valorização dos direitos humanos, da democracia, da pluralidade, das diferenças, em busca de uma sociedade mais justa.

Desejamos que a democracia prevaleça, que o Estado de direito garanta a liberdade de opinião e de pesquisa, e que a promoção da justiça contra qualquer abuso e violação de direitos humanos seja entendido como valor inegociável nos países do Cone Sul. A história é o conhecimento que propõe contribuir para que esses valores sejam plenamente realizados, sempre reassumindo seu compromisso ético com o conhecimento como base para a promoção da igualdade social e da vida coletiva.

Referências

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  • 1
    O conceito de negacionismo histórico trabalhado neste artigo segue a proposta de Henry Rousso ( 1987ROUSSO, Henry. Le syndrome de Vichy: 1944-198…. Paris: Seuil, 1987. ) e Enzo Traverso ( 2012TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: História, memória e política. Lisboa: Unipop, 2012. ), de pensar a negação do passado por parte de grupos vinculados à extrema direita. O negacionismo histórico pretende negar as experiências opressivas e violadoras dos direitos humanos promovidas pelos Estados na modernidade, com destaque para a negação do Holocausto – o extermínio de judeus e a existência de campos de concentração pelo regime nazista. Atualmente, a produção de narrativas negacionistas sobre o passado ultrapassa as experiências europeias e tem foco também na negação de torturas e assassinatos, desaparecimentos forçados e demais violações de direitos humanos promovidos pelas ditaduras latino-americanas nos anos de 1960, 1970 e 1980, assim como a negação sobre os horrores do colonialismo europeu e suas faces mais cruéis: a escravidão moderna e o genocídio indígena ( VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sá; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: História, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, p. 13-36, maio/ago. 2021. ).
  • 2
    BRASIL. Lei n o 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm . Acesso em:19 maio 2023.
  • 3
    NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016. Disponível em: https://www.kooperation-brasilien.org/pt-br/temas-1/politica-economia/a-crise-politica\-brasileira-perspectivas . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 4
    NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016.
  • 5
    Para uma análise detalhada sobre a crise da experiência do tempo na modernidade e o seu resultado direto, o presentismo, ou seja, essa sensação de vivermos num tempo marcado pela supremacia do presente, tendo em vista que o passado é um conjunto de experiências que pouco se relacionam com o presente, e o futuro não é mais o horizonte de expectativas novas e qualitativamente melhor, ver: François Hartog ( 2013HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. , 2022HARTOG, François. Os impasses do presentismo. In: MÜLLER, Angélica; IEGELSKI, Francine (Org.). História do tempo presente: Mutações e reflexões. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2022, p. 133-143. ).
  • 6
    NAPOLITANO, Marcos. A crise política brasileira. In: KoBra , 9 nov. 2016.
  • 7
    A ÚLTIMA pesquisa Datafolha em 10 pontos. In: G1 , 9 jul. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/09/a-ultima-pesquisa-datafolha-de-7-e-8-de\-julho-de-2021-em-10-pontos.ghtml . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 8
    MATOS, Kelly; MATOS, Eduardo. Os bastidores sobre o carro de Médici à espera de Bolsonaro no RS. In: Gaúcha ZH , 31 jul. 2020. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/kelly-matos/noticia/2020/07/os-bastidores-sobre-o-carro-de-medici-a-espera-de\-bolsonaro-no-rs-ckdac1yqg001c013ghq0wiia7.html . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 9
    MOURA, Thiago Rolim de. Bolsonaro mostra cloroquina para apoiadores no RS e causa aglomeração. In: UOL , 31 jul. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-\noticias/2020/07/31/bolsonaro-cloroquina-bage-aglomeracoes.htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 10
    Citado por: MAZUI, Guilherme; RODRIGUES, Paloma. Em discurso no Planalto, Bolsonaro defende militares e deputados réus por atos antidemocráticos. In: G1 , 31 mar. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/03/31/em-discurso-no-planalto-bolsonaro\-defende-ditadores-militares-e-deputado-reu-por-atos-antidemocraticos.ghtml . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 11
    FAUSTINO, Rafael. Jovens brasileiros são mais pessimistas com o futuro do país, mostra pesquisa. In: Época , 28 set. 2018. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2018/09/jovens-brasileiros-sao-os-mais-pessimistas-com-o-futuro-do-pais-mostra\-pesquisa.html . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 12
    FERREIRA, Alex. Pessimismo com o futuro cresce entre jovens no Brasil, diz pesquisa. In: O Tempo , 19 jan. 2022. Disponível em: https://www.otempo.com.br/interessa/pessimismo-com\-o-futuro-cresce-entre-jovens-no-brasil-diz-pesquisa-1.2597746 . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 13
    BOLSONARO determinou “comemorações devidas” do golpe de 1964, diz porta voz. In: Portal T5 . Disponível em: https://www.portalt5.com.br/noticias/single/nid/bolsonaro-\determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-militar-de-1964-diz-porta-voz/ . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 14
    ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA. Nota de repúdio da ANPUH-Brasil: Comemorações 31 de março. In: ANPUH-Brasil . Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/eventos/item/5209-nota-de-repudio-da-anpuh-brasil-\comemoracoes-31-de-marco . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 15
    Citada por: KADANUS, Kelli; DESIDERI, Leonardo. Damares quer acabar com Comissão da anistia até o fim de 2020. In: Gazeta do Povo , 17 dez. 2019. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/damares-quer-acabar-com-comissao-de-anistia-ate\-fim-de-2020/ . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 16
    Outro importante pesquisador a usar a categoria de guerra cultural foi João Cezar de Castro Rocha ( 2021ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: Crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021. ), ao analisar o fenômeno de escalada da extrema direita no Brasil a partir da construção de um discurso do ódio, autoritário, anticomunista e antipetista.
  • 17
    A Metapedia é uma enciclopédia virtual similar a Wikipédia . Porém, ao contrário da Wikipédia , ela não estabelece processos confiáveis de verificação das informações, favorecendo a produção de notícias falsas e negacionismos.
  • 18
    O termo se difundiu a partir de um editorial crítico ao governo venezuelano publicado pela Folha de São Paulo em 2009. Ver: LIMITES a Chávez. In: Folha de São Paulo , 17 fev. 2009. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm . Acesso em: 19 maio 2023.
  • 19
    Há uma vasta e consolidada historiografia brasileira dedicada às relações de ambivalências, consentimentos e consensos entre a sociedade e o Estado ditatorial brasileiro, demonstrando as simplificações das análises binárias sociedade civil democrática versus ditadura militar. Ver: Reis ( 2000REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. ); Rollemberg; Quadrat ( 2010ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. V. 2 – Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ); Maia ( 2012MAIA, Tatyana. Cardeais da cultura nacional: O Conselho Federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975). São Paulo: Iluminuras, 2012. ); Cordeiro ( 2015CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: Comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2015. ).
  • 20
    Há um intenso debate historiográfico sobre o processo de redemocratização brasileiro, que pode ser assim sintetizado: alguns pesquisadores defendem que a redemocratização foi fruto do amplo arco político identificado como resistência democrática ( ARAUJO, 2004ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A luta democrática contra o regime militar, 1974-1985: Estratégias de luta e resistência contra a ditadura. In: FICO, Carlos et al. (Org.). 1964-2004: 40 anos do golpe. Ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras; FAPERJ, 2004, p. 243-251. ); uma segunda corrente defende que se tratou de um projeto intraelites políticas conduzido pelos militares, no qual a mobilização democrática pouco interferiu na condução do processo de retorno à democracia ( FICO, 2012FICO, Carlos. Brasil: A transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Org.). Violência na história: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 25-38.; D’ARAÚJO, 2012D’ARAÚJO, Maria Celina. Limites políticos para a transição democrática no Brasil. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Monica (Org.). Violência na história: Memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012, p. 39-56. ); e, por fim, alguns historiadores defendem que o processo de redemocratização é fruto de condicionantes políticos e econômicos externos, da condução protagonista dos militares e da oposição sistemática, ainda que condicionada pela cultura política brasileira da negociação e acomodação ( SILVA, 2003SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e processo de abertura política no Brasil (1974-1985). In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. V. 4 – O tempo da ditadura: Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003, p. 243-282. ).

Agradecimentos

Agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa através de Bolsa de Produtividade (processo n. 312096/2020-8).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Revisado
    19 Maio 2023
  • Aceito
    19 Maio 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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