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Crise, adjetivo de democracia

Crisis, Adjective of Democracy

PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020

A crise da democracia liberal, que até outrora parecia infalível, é um dos temas mais discutidos nas ciências sociais atualmente. Somente a biblioteca Widener de Harvard concentra mais de 23 mil livros publicados no século XX com “crise”, essa palavra de ordem, no título (PRZEWORSKI, 2020, p. 26). Ainda faltava, no entanto, a análise aprofundada de um dos cientistas políticos mais conhecidos da atualidade, Adam Przeworski, referência em política comparada e em estudos teóricos e empíricos sobre a democracia. Polonês radicado nos Estados Unidos, doutor pela Northwestern University e vinculado à New York University, já em 1997, publicou O que mantém as democracias? em coautoria com Michael E. Alvarez, Jose Antonio Cheibub e Fernando Limongi ( PRZEWORSKI et al., 1997PRZEWORSKI, Adam et al. O que mantém as democracias? Lua Nova, n. 40-41, p. 113-135, ago. 1997.). Esse artigo foi um estudo pioneiro ao antecipar a recessão democrática global e pensar os elementos que fazem uma democracia implodir – em uma época em que a democracia liberal parecia inevitável. A impressão é que seu novo livro, Crises da democracia, aproveita o momento histórico para retomar e aprofundar seu artigo.

Já no prefácio, Przeworski (2020, p. 11-23) começa a levantar as contradições não apenas da democracia liberal, mas também do projeto social-democrata. A incapacidade da adoção de medidas reformadoras mais firmes escancarou os limites propositais da social-democracia, projeto de “estimular as causas da desigualdade ao mesmo tempo que combatia seus efeitos” (PRZEWORSKI, 2020, p. 13). Esse elemento é particularmente visível no Brasil, no projeto lulista, que teria naufragado, entre outras questões, por seu reformismo limitado e incompleto, como lembra André Singer ( 2018SINGER, André. O lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).

A noção de crise decorre diretamente da noção de estabilidade. Só há o anormal – a crise, que não sem motivo deriva do grego antigo “decisão” (PRZEWORSKI, 2020, p. 34) – porque em outro momento houve estabilidade. Quanto maior a estabilidade, maior será a crise que a sucederá em algum momento – fazendo jus à sabedoria popular de que tempestades e calmarias se sucedem. A crise precisa do extraordinário, da ruptura, do momentâneo. Uma crise permanente não é crise, mas catástrofe. Eis o argumento principal do livro de Przeworski: na estabilidade sem precedentes do pós-Guerra Fria, a instabilidade toma a forma de crise pelo mito que se criou sobre a democracia liberal como inevitável. A crise da democracia contemporânea avisa que, longe de ser permanente, a democracia ainda é um sistema que se destrói com relativa facilidade.

Na prática, como identifica o politólogo polonês, crise implica um interregno sintetizado na oposição clássica de Antonio Gramsci: o velho não morreu, mas o novo não pode nascer (PRZEWORSKI, 2020, p. 34). É uma situação calamitosa que está no meio do caminho de uma mudança. Ou ela ocorre, ou há destruição, mas a situação instável não pode permanecer. É sintomático, então, falar em “crises da democracia”: significa que as democracias estão em um limbo em todo o planeta, dando lugar em muitas nações a novos ou antigos fenômenos autoritários.

A dificuldade em entender a recessão democrática global marca a própria noção de democracia. Mesmo um conceito tão antigo – ou talvez justamente por isso – não possui uma definição consensual. As diferenças atravessam inúmeros adjetivos: “deliberativa”, “agonística”, “minimalista”, “liberal”, para ficar em alguns. Em um entendimento minimalista, como o de Joseph Schumpeter ( 1961SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.) e corroborado pelo próprio Przeworski (2020, p. 29), democracia é “um arranjo político no qual as pessoas escolhem governos por meio de eleições e têm uma razoável possibilidade de remover governos de que não gostem”. Ou seja, eles não negam que democracia pode – e deve – ser mais do que isso, mas sustentam que sua concepção mais essencial perpassa o arranjo eleitoral e, no mínimo, a possibilidade de alternância de poder.

As ideias de Robert Dahl ( 2005DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2005.) sobre poliarquia, longe de contradizerem Schumpeter ou Przeworski, corroboram-nos. Ao visualizar a democracia como um fenômeno em etapas, que evolui em níveis, Dahl também lança mão de um mínimo democrático semelhante. Pensa, contudo, que quanto mais participação e igualdade houver, mais democrático será um Estado. Isso significa, por exemplo, afastar a falácia de que a democracia é um governo da maioria, quando implica a impossível tarefa de satisfazer os grupos majoritários, mas sem ignorar as minorias. Mesmo em seu sentido mais básico, a democracia enfrenta recessão global, a crise tão referida por Przeworski (2020). Isso significa que mais e mais nações a cada ano estão perdendo as capacidades eleitorais essenciais, para além das características democráticas mais elaboradas como liberdade e igualdade.

Cabe pensar no nível dessas democracias pelo planeta. Mesmo nações que ainda são profundamente democráticas, como a Alemanha contemporânea, enfrentam ascensão de partidos de extrema direita como a Alternative für Deutschland (AfD) – que recentemente conquistou seu primeiro cargo distrital. No século XXI, praticamente todos os países lidam com algum partido de extrema direita, ainda que suas respectivas democracias sejam estáveis. Mesmo na permanência, portanto, há uma sombra constante da ameaça da crise. Isso sem mencionar democracias de fachada, cada vez mais esvaziadas, como a Hungria de Viktor Orbán e seu “iliberalismo” – na prática, nome orwelliano para denotar o cerceamento de liberdades básicas. Esses partidos e movimentos acabam por drenar a democracia por dentro, cerceando progressivamente liberdades individuais e coletivas, quando não interrompendo por completo o processo eleitoral.

As crises, importante mencionar, dificilmente caminham sozinhas. Ao contrário, elas se somam, se multiplicam. Uma crise política pode levar a uma crise econômica e vice-versa. A crise social das Jornadas de 2013, no Brasil, gerou as conhecidas turbulências políticas que, por sua vez, respingaram na economia. Há exceções, 1 1 O Uruguai, por exemplo, lidou entre 2001 e 2003 com forte crise econômica sem “nenhum sinal de enfraquecimento da democracia” (PRZEWORSKI, 2020, p. 36). A crise foi rapidamente controlada, e o país logo retomou o crescimento. mas é uma tendência que as crises caminhem juntas. Afinal, tais conjunturas favorecem alternativas políticas extremistas e messiânicas.

Przeworski (2020, p. 40) chama a atenção para outro aspecto relevante: embora seja tomada como inevitabilidade histórica, com carga teleológica, a democracia moderna é um fato recente da história humana. Com exceção de seu equivalente clássico, a democracia como existe hoje surgiu somente no século XVIII, e a alternância de poder só ocorreu no século seguinte. Embora se tenha disseminado depois, esteve longe de ser consenso: “O uso da força – golpes e guerras civis – continuou frequente: entre 1788 e 2008 o poder político mudou de mãos como resultado de 544 eleições e 577 golpes” (PRZEWORSKI, 2020, p. 40). Ou seja, ainda é comum a destituição por meio de uma ruptura.

Como lembra o autor, “a democracia é um fenômeno histórico” (PRZEWORSKI, 2020, p. 40). De certa forma, e jogando com os paradigmas estabelecidos no livro, pode-se pensar que surgiu, ela própria, de uma crise da tradicional distribuição autoritária de poder. Isso nunca a impediu, contudo, de lidar com retornos dessas formas, bem como novas formas de autoritarismo, como o fascismo. Acreditar em sua inevitabilidade é, no mínimo, ingênuo.

Tanto em seu livro quanto no artigo, no entanto, Przeworski (2020, p. 44) destaca um aspecto que entende como fundamental à resiliência democrática: a resiliência econômica. Em seu entendimento (e também no de outros autores, como Yascha Mounk), quanto maior o PIB de um país, maior a tendência de que sua democracia sobreviva a crises. Ao menos historicamente. Mas, como ele próprio ressalta, o passado não necessariamente se reflete no futuro, e nada impede que este tipo de paradigma se altere.

É sob essa lógica que se insere Crises da democracia. Em um subgênero já saturado, Przeworski (2020) consegue contribuir com reflexões e dados perspicazes. Na prática, o livro parece uma versão ampliada e revisada de seu já referido artigo de 1997; o que não é, de forma alguma, demérito. Pelo contrário, tendo prenunciado os limites e contradições da democracia em uma época em que ela se expandia recheada de otimismo, nada mais natural que seu retorno ao tema durante o auge da recessão democrática global. Dessa forma, embora não seja imprescindível, o livro do politólogo polonês se apresenta como um dos mais eficientes para compreender o momento, sendo mais completo e estruturado do que contrapartes como Como a democracia chega ao fim, de David Runciman ( 2018RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.), ou Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ( 2018LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.). Estes dois últimos, embora tragam alguns elementos úteis, sofrem de generalismo e incorrem em certas narrativas do excepcionalismo ao tratarem a recessão democrática global como novidade. Przeworski (2020), ao contrário, evidencia que, na prática, a excepcionalidade é a própria democracia em si.

Referências

  • DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2005.
  • LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
  • PRZEWORSKI, Adam et al. O que mantém as democracias? Lua Nova, n. 40-41, p. 113-135, ago. 1997.
  • RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
  • SCHUMPETER, Joseph A.. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
  • SINGER, André. O lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • 1
    O Uruguai, por exemplo, lidou entre 2001 e 2003 com forte crise econômica sem “nenhum sinal de enfraquecimento da democracia” (PRZEWORSKI, 2020, p. 36). A crise foi rapidamente controlada, e o país logo retomou o crescimento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2023
  • Aceito
    06 Nov 2023
  • Revisado
    15 Out 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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