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Identidade e antropologia Maori na Nova Zelândia

ENTREVISTA

Identidade e antropologia Maori na Nova Zelândia

Ranginui Walker

Ranginui Walker é antropólogo e chefe do Departamento de Estudos Maori da Universidade de Auckland desde 1992, além de dirigente do Conselho do Distrito Maori de Auckland e membro fundador do Conselho Maori da Nova Zelândia. Sua trajetória vincula-se estreitamente às lutas pela obtenção de direitos políticos e melhorias na condição social dos Maori, nas quais desempenhou papel de destaque nos últimos anos. Natural de Whakatohea, na Ilha do Norte, é descendente dos Opotiki. Publicou dois livros, Nga Tau Tohetoe. The Years of Anger (1987) e Ka Whawhai Tonu Matou: Struggle Without End (1990) - ambos sobre as formas de organização e atuação política do movimento maori -, além de mais de quarenta artigos sobre educação, ativismo e política maori. Esta entrevista foi realizada por Yara Schreiber, mestranda em antropologia da Universidade de São Paulo, em fevereiro de 1996, em Auckland, contando com a supervisão e revisão da professora-doutora Maria Lúcia Montes. A tradução é de Sonia V. B. Faria e a edição de Maria Macedo Barroso.

Schreiber

Como o senhor se tornou antropólogo?

Walker

Comecei a estudar antropologia na Universidade de Auckland em 1955, quando eu tinha 24 anos. Durante a graduação, ensinei em uma escola primária e, posteriormente, quando me formei, em uma escola de segundo grau. Pouco depois obtive um cargo de professor em uma escola de Auckland, e voltei a estudar na universidade. Resolvi estudar antropologia porque era um assunto que me interessava, visto eu ser um nativo e meu povo ter sido colonizado pelos europeus. Graduei-me no regime aqui chamado de meio período: ensinava metade do dia e estudava na outra metade. Eu cursava apenas algumas matérias por ano e, deste modo, levei muito tempo para me formar - sete anos para obter o bacharelado. Fiz o curso de formação de professores e decidi fazer o mestrado novamente em antropologia, dizendo a mim mesmo: não foi tão difícil assim. Em 1967, fui contratado para ensinar na Universidade de Auckland. Foi quando comecei a cursar o doutorado. Minha principal área de interesse era a antropologia social e tive como professor Ralph Piddington, que, por volta de 1950, criou o Departamento de Antropologia. Ele havia estudado com Malinowski e, assim, muito do seu interesse estava voltado para os desenvolvimentos malinowskianos, como a teoria das necessidades, as noções de estrutura e função social etc. Estes foram meus estudos iniciais em antropologia, com uma ênfase muito grande no trabalho de campo. No mestrado, decidi que faria minha dissertação sobre as relações sociais dos estudantes Maori no Teacher's College e os ajustes que lhes era necessário fazer para conviverem com o grupo europeu dominante. Cursei as disciplinas do doutorado entre 1966 e 1967, e escolhi como tema de tese a migração dos Maori do interior para a cidade. As pessoas vinham à procura de emprego e eu queria saber que tipo de ajustes esses Maori tinham de fazer ao vir para a cidade. Concentrei-me em um bairro e fui a todas as reuniões de comitês, grupos e organizações. Encontrei um processo muito dinâmico, com os Maori tendo de aprender a viver em uma economia monetária: a economia de subsistência tinha de ser posta de lado, pois vivendo na cidade não havia meios de buscar alimentos como faziam no campo, ou à beira-mar; era preciso encontrar um emprego, controlar as despesas, enfrentar a vida urbana. Interessava-me a maneira como essas pessoas formavam novas organizações para ajudar umas às outras a se ajustarem.

Schreiber

Quando começou a ocorrer esse processo de migração na Nova Zelândia?

Walker

De fato começou após a Segunda Guerra, mas o movimento do campo para a cidade cresceu realmente nos anos 60. Foi semelhante ao que ocorreu, por exemplo, em muitas partes da América Latina: um movimento que, tirando as pessoas da pobreza rural, de uma existência baseada em uma economia de subsistência - onde plantavam seus próprios alimentos, pescavam seu próprio peixe, caçavam e, no máximo, faziam algum trabalho temporário para conseguir dinheiro -, as fez passar para um trabalho em tempo integral, que exigia dedicação completa. Este era o tipo de compromisso ao qual tinham de se ajustar, no início sem ter de se preocupar demais, pois até meados dos anos 60 era fácil conseguir trabalho e transitar de um emprego para outro. Mas em 1967 houve uma recessão. Nessa época, os Maori já estavam acostumados a gastar dinheiro para encher suas casas de equipamentos modernos, como máquinas de lavar, geladeiras e todos os outros bens de consumo que as pessoas já se haviam acostumado a ter, e que compravam graças às suas horas extras de trabalho. Estas foram cortadas e eles perderam uma parte da sua renda. A legislação previa 48 horas semanais de trabalho com direito a horas extras, inclusive aos sábados, o que ocorria, por exemplo, entre os motoristas de ônibus e nas fábricas de geladeiras. Quando a recessão chegou e os atingiu, não tiveram mais horas extras, seu poder aquisitivo caiu e, além disso, muitos perderam seus empregos. Foram coisas que tiveram de aprender. Além disso, tiveram de transplantar sua cultura para o novo meio. Na sociedade rural havia certas tradições com relação a cerimônias fúnebres, por exemplo, que continuaram na cidade. O que faziam era tirar a mobília da casa e colocar o corpo do morto dentro dela. As visitas vinham prestar-lhe suas últimas homenagens e em seguida alugavam um ônibus para levar o corpo, escoltando-o de volta às áreas rurais para enterrá-lo junto de seus ancestrais. Essa era uma forma de manter a continuidade da cultura. Eles formavam associações de familiares que arrecadavam contribuições para ajudar a levar os mortos de volta à área rural e auxiliá-los nas despesas com os funerais. Alguns também formavam associações culturais para ensinar aos mais jovens as danças e as canções tradicionais, enquanto outros formavam clubes esportivos maori, que jogavam uns contra os outros. As competições em geral tinham lugar aos sábados, enquanto os domingos eram dedicados aos grandes jogos. Após os jogos, reuniam-se, comiam e bebiam. Esses clubes foram, portanto, importantes na integração dos Maori à vida urbana. Finalmente, resolveram construir os Maraes - casas ancestrais - na cidade. Formaram grupos e se ajudaram mutuamente a construir esses lugares. Atualmente, quase todos os bairros de Auckland têm um, e é aí que são celebrados os funerais, as festas, os velórios. Aí também se realizam suas reuniões. Foi isso o que estudei para obter meu doutorado em 1967.

Schreiber

Como se deu o processo de desenvolvimento do Departamento de Estudos Maori? Quando foi criado e qual é a sua história?

Walker

Quando a cadeira de antropologia foi criada, por volta de 1950, Piddington, que era australiano e fora formado por Malinowski, veio para cá para criar o Departamento de Antropologia. Ele disse às autoridades universitárias que, para desempenhar um papel importante, um departamento de antropologia teria de ensinar a língua nativa. Assim, solicitou que a língua maori passasse a fazer parte do currículo de antropologia. Foi então que recrutaram Bruce Biggs, um professor que ensinava maori em escolas primárias. A partir daquele momento, os alunos passaram a estudar a língua maori. Biggs foi convidado a dar cursos, embora não houvesse ainda completado sua graduação. Quando terminou a universidade, entrou para o mestrado e, posteriormente, foi para Indiana a fim de obter seu doutorado. Ele se tornou responsável pela área maori, que era um setor do Departamento de Antropologia. De 1951 a 1986, por 35 anos portanto, Biggs foi o titular da cadeira. Expandiu as atividades do setor, contratou pessoal e a área cresceu tanto que se tornou um departamento autônomo. Sua formação era em lingüística e ele acabou se tornando um grande especialista em lingüística na área do Pacífico. Sob sua orientação, as pessoas podiam graduar-se em Estudos Maori. Na época só podiam fazer a graduação; hoje chegam até o doutorado. Biggs aposentou-se em 1986. Em 1987, quando chegou um novo professor, o departamento se separou do de antropologia. Nessa ocasião, ele convenceu a direção da universidade a criar um Marae no campus para que os estudantes maori pudessem se sentir mais à vontade ali. Também conseguiu que fosse construído um salão de jantar, porque quando se dá boas-vindas às pessoas, elas primeiro assistem às conferências e posteriormente recebem alimentos - como um gesto de hospitalidade. Depois que o salão ficou pronto, surgiu a idéia de se ter na universidade um complexo para abrigar a área de Estudos Maori, que se acrescentaria ao que já havia sido construído. A idéia foi aceita e este belo complexo integrado foi erguido. Entramos neste prédio em junho de 1986. Em 1991, o professor que me antecedeu ajudou a consolidar a área como um departamento independente. Embora fisicamente separada da antropologia, a área de Estudos Maori estava administrativamente a ela subordinada e só se tornou um departamento independente em 1991, passando a fazer parte da Faculdade de Artes.

Schreiber

Mas, por que vocês se separaram do Departamento de Antropologia, uma vez que este já possuía uma área de Estudos Maori?

Walker

Queríamos um departamento totalmente independente. No Departamento de Antropologia, tínhamos as áreas de antropologia social, arqueologia, lingüística e Estudos Maori. No entanto, como os Maori são o povo nativo do país, estávamos falando de independência e autodeterminação. Nós não queríamos ficar sob a tutela do Departamento de Antropologia, embora ainda mantenhamos com ele um intercâmbio acadêmico bastante intenso: há vários cursos que fazem parte tanto do Departamento de Estudos Maori quanto do Departamento de Antropologia. A antropologia tem um curso de "Introdução à Sociedade Maori" que também faz parte do Departamento de Estudos Maori, o que permite que ele possa ser freqüentado por estudantes de antropologia e de Estudos Maori. É assim que mantemos o contato e a cooperação. Além disso, alguns professores de antropologia oferecem disciplinas abertas aos nossos estudantes, que podem cursá-las como parte de seu currículo.

Schreiber

Tudo o que diz respeito aos Maori está neste Departamento?

Walker

Sim, mas como eu disse a matéria de algumas cadeiras é ensinada nos dois departamentos, o que ocorre principalmente no ensino da língua. A maioria de nossos cursos é de língua. Há igualmente um aspecto social que estamos começando a desenvolver também na área da cultura material. Uma das coisas que acontecem na colonização é uma desorganização da cultura: perda da língua, perda de identidade, perda cultural. Acho que é uma das tarefas deste departamento a recuperação dos conhecimentos perdidos. Tomemos como exemplo a tecnologia da pedra e a arte de tecer as fibras. Muitos não consideram que estes sejam temas acadêmicos, mas nós achamos que são. Temos pessoas aqui dedicadas a manter a arte da tecelagem, a trabalhar a fibra e a fazer os antigos machados de pedra - também temos cursos sobre isso. O conhecimento dos Maori sobre como fazer essas coisas se perdeu há 150 anos. Quando chegaram os machados de aço, eles deixaram de fazer os machados de pedra. Agora, na universidade, temos um especialista que sabe como fazê-los e ensina os estudantes. Trata-se de tradição cultural, de recuperação da tecnologia, e a inserção dessa atividade no currículo visa evitar sua perda.

Schreiber

Quais são os principais projetos de pesquisa do Departamento?

Walker

Cada membro do corpo docente organiza sua própria pesquisa, como a dra. Anne Salmond, por exemplo, que é antropóloga e etnógrafa e tem uma alta produtividade, conseguindo do governo muito dinheiro para pesquisa - através do que chamamos Fundo para o Desenvolvimento da Ciência da Fundação para Pesquisa, Ciências e Tecnologia. Ela desenvolve estudos de reconstrução histórica e cultural maori. Entre os últimos projetos que concluiu, encontra-se um trabalho já publicado sobre os primeiros contatos entre os Maori e os europeus, quando o capitão Cook esteve aqui. Ela reconstruiu o período e escreveu um livro a esse respeito, reproduzindo assim dois mundos através de seus relatos. Salmond é professora titular deste departamento, além de ser uma excelente especialista em sua área. Tenho outra colega, a dra. Margaret Mutu, que também recebe bastante apoio financeiro para suas investigações. Atualmente ela está fazendo uma pesquisa sobre sua própria tribo e alguns dos seus líderes. Mutu também desenvolve muitas pesquisas para os grupos nativos quando surgem questões de demanda de terras. Quanto às minhas próprias pesquisas, estou escrevendo a biografia de um dos líderes mais importantes dos últimos cem anos, Apirana Ngata. É um projeto de grande envergadura. Um dos mais novos membros do nosso corpo docente, Robert Were, está escrevendo sua tese de doutorado a respeito da alienação de terras das tribos, mostrando como o governo conseguiu tirá-las dos Maori. Há outros projetos dos meus estudantes. Um deles, que já tem um mestrado sobre navegação na Polinésia, desenvolve um novo projeto para o doutorado sobre soberania e autodeterminação maori - que é um tema muito em voga atualmente. Como se vê, cada membro do corpo docente busca sua própria área de pesquisa e interesse. Maureen Lander, que estuda a tecelagem de fibras, faz diversas exposições e visita inúmeros países e entidades de turismo. Há também diversos projetos dos estudantes do doutorado, como Waerete Norman, que faz parte do corpo docente há dez anos e cuja tese de doutorado é sobre as mulheres Maori, sua especialidade. Há também um outro pesquisando sobre a alienação de uma tribo pelos conquistadores.

Schreiber

Qual é a contribuição deste departamento para os estudos de antropologia na Nova Zelândia e no exterior?

Walker

Como eu disse, este departamento foi criado em 1991, mas seu corpo docente vem contribuindo para o desenvolvimento das idéias antropológicas há mais tempo. Nos anos 60, período em que a área de Estudos Maori fazia parte do Departamento de Antropologia, o dr. Patrick Hohepa fez um estudo sobre a sua própria comunidade. Depois disso, Anne Salmond escreveu três livros. O primeiro, Hur, sobre os rituais de encontro entre os Maori, foi escrito a partir de sua tese, defendida nos anos 70. Em seguida, elaborou mais dois livros, baseando-se em pesquisa etnográfica sobre dois líderes Maori em duas situações diferentes. Tudo isso, surgido neste departamento, é uma contribuição desse quadro de especialistas para a antropologia. Nos anos 70, eu escrevia para o New Zealand Listener, jornal semanal de notícias para a televisão e o rádio, que era considerado liberal na época. Eu escrevia uma coluna chamada Korero, que quer dizer conversa, sobre o aparecimento do maorismo nos anos 70. Comecei a escrever em 1972 e em 1986 publiquei uma coletânea dessas colunas no livro Years of Anger (livro que tem dois nomes: este e outro em maori), que contribuiu para o entendimento do surgimento e ascensão do movimento maori de 1970 a 1990. Em 1990, publiquei Struggle without End, que trata das lutas contra a dominação dos povos neste país, e que se inspira nas obras de Gramsci e Paulo Freire. São livros que contribuem para a compreensão da Nova Zelândia e dos Maori. A maior parte das pesquisas aqui, como eu disse, se preocupa com a terra, com a posse da terra e com a perda da terra. Cada membro do corpo docente e de pesquisadores está em contato com sua própria tribo, pesquisando as reivindicações de terra pelos Maori contra o Estado. A dra. Mutu traz as reivindicações de terra de sua tribo, o dr. Hohepa também. Todo o corpo docente está envolvido nesse tipo de pesquisa. A tese de Robert Were ajudou as tribos em suas reivindicações perante os tribunais. Eu pessoalmente estou envolvido neste assunto, procurando realizar a pesquisa em minha tribo de modo que seu caso possa ir para o tribunal, que possamos defendê-lo exigindo do governo uma indenização adequada.

Schreiber

O departamento filia-se a alguma tendência particular do pensamento antropológico moderno? Por exemplo, as mudanças teóricas introduzidas pela antropologia pós-moderna influenciaram as pesquisas na Nova Zelândia?

Walker

Os Maori estão contribuindo para o desenvolvimento pós-moderno aqui no sentido de que, nos anos 70, tivemos a desconstrução do mérito do grande colonizador pelos jovens ativistas radicais que diziam: "aquela é a sua história, esta é a nossa história". Foi isto o que aconteceu. Esses jovens ativistas, os jovens guerreiros sobre os quais escrevi em Struggle without End, eram jovens politicamente bem-educados que liam os livros nas entrelinhas e desconstruíam a história do colonizador. Tudo isso faz parte do desenvolvimento cosmopolita do país, produzindo esse tipo de discurso contra-hegemônico. E a arena mais importante para esses discursos contra-hegemônicos é constituída pelos tribunais dos brancos. Durante os anos 70, os ativistas estiveram envolvidos em marchas e ocupações de terra, protestos que acusavam o governo de ter usurpado suas terras. Até que em 1976 o próprio governo criou um tribunal para investigar essas acusações. Uma vez criado o tribunal, as pessoas foram lá contar suas histórias, que não fazem parte da historiografia, mas compõem os múltiplos discursos de contra-argumentação da era pós-moderna ou pós-colonial. Os Maori não precisaram ler Gramsci ou Freire, ou as teorias pós-modernas: eles apenas enxergaram a realidade - o colonialismo - e chegaram à compreensão de que eram pessoas dominadas e oprimidas e começaram a fazer pressão. Não precisaram de nenhuma dessas coisas. Eles as sabiam intuitivamente e colocaram suas idéias em prática.

Schreiber

Não se trata, pois, somente, de teoria antropológica, mas de um movimento político.

Walker

A antropologia foi sempre um instrumento do imperialismo. Ela se consolidou para que aqueles que estavam no governo pudessem controlar e manipular os povos que estavam invadindo. E foi apenas recentemente, nesta era pós-moderna, que os antropólogos começaram a questionar seu papel e a se engajar em movimentos de emancipação - somente nos últimos vinte anos. Aqui temos antropólogos que dão cursos sobre como o tribunal dos colonizadores tomou as terras dos Maori através de títulos individuais, de expropriação e de outros mecanismos utilizados pelo Estado. Estes são, portanto, novos desdobramentos na área da antropologia.

Schreiber

Como a universidade se relaciona com a cultura maori e com as outras culturas nativas?

Walker

A universidade, como instituição, é dominada por europeus. É uma instituição eurocentrada, monocultural. Em 1950, pela primeira vez, foi dado espaço aos Maori na universidade. Em 1951, foram criados cursos de língua maori. Anteriormente, havia oposição, pois os lingüistas não consideravam o maori uma língua que merecesse constituir uma disciplina acadêmica: "onde está sua literatura?", se perguntavam. Houve, portanto, oposição quando surgiu a idéia inicial de ensinar a língua maori. Mas, uma vez estabelecida a disciplina, sob a tutela da antropologia, ela começou a se tornar respeitada academicamente, porque o primeiro acadêmico a tratar do assunto, Bruce Biggs, se tornou um reconhecido especialista em lingüística do Pacífico. Ele criou cursos sobre a cultura, sobre canções tradicionais, expandiu o currículo, e assim, gradualmente, nos últimos 35 anos, conquistou o respeito do mundo acadêmico. Uma das conseqüências do ensino do maori na universidade é que outros departamentos tomaram consciência de que há uma visão maori da realidade e passaram a solicitar conferências sobre o assunto. Assim, estive no Departamento de Educação e dei uma ou duas aulas sobre educação maori; fui ao Departamento de História dar aulas sobre a perspectiva histórica dos Maori; fui à Escola de Medicina dar aulas sobre as práticas de saúde maori... Dessa maneira, criou-se um nível de conscientização em outros departamentos de que há uma falha em seus currículos, em seus conhecimentos.

Schreiber

Qual é, atualmente, a importância da cultura maori para a Nova Zelândia como um todo?

Walker

Para começar, a herança indígena remete a uma visão epistemológica, a uma visão da realidade que é diferente daquela dos europeus. Essa visão da realidade se baseia em whakapapa - genealogia -, o aprendizado do conhecimento a partir da criação até o presente. Nessa concepção de tempo, bastante diferente da dos europeus, apenas o passado e o presente são reconhecidos, não se presta atenção ao futuro. O aprendizado do conhecimento começa, portanto, com whakapapa, a partir dos deuses, dos heróis, dos ancestrais, entre o início de tudo e a geração atual. A maioria das pessoas conhece seus pais, seus avós, seus parentes. Mas na tradição maori, elas os conhecem até a criação, juntamente com as histórias associadas a cada nível da genealogia e à criação que os integrou em um mundo natural, onde a terra é concebida como mãe terra, o céu, como pai céu, e assim por diante em relação aos deuses nos vários domínios da natureza. Essa é a concepção do mundo natural. Os Maori não estão acima dele, são parte dele e se vêem assim, acham-se parte da ordem natural. Eles vêem a si próprios olhando o passado, sempre orientados para o passado, que é a realidade conhecida: o presente, o passado imediato e o passado até o início da criação. É isso que compõe sua realidade. E essas coisas são sempre recordadas nas reuniões dos Maori. Portanto, eles se vêem no passado, viajando para trás a caminho do futuro, enquanto o presente continua como uma extensão do passado. Os europeus fazem exatamente o contrário: olham para o futuro em relação ao passado. É uma orientação cultural diferente, o que é fundamental. A geração atual de europeus na Nova Zelândia quer apagar o passado a fim de esquecer os aspectos desagradáveis da colonização, da exploração, do desajuste cultural, e assim, fingindo esquecer o passado, imaginam ser possível partir para um futuro róseo junto com os Maori. Essas duas visões da realidade estão em constante tensão.

Schreiber

É possível falar hoje da existência de tradições culturais maori - religião, língua, narrativas orais, artes... - na Nova Zelândia?

Walker

A língua foi suprimida nas escolas, exatamente como na América do Sul. Os nomes foram substituídos por nomes cristãos, nomes de santos - a mesma dinâmica. A língua foi excluída. Mas isso não significa que a cultura tenha morrido completamente. Muitas práticas se mantêm, ainda que de forma modificada. Os Maraes, onde se conta a história dos Maori, continuam os mesmos e se tornam cada vez mais elaborados. Os valores da família extensa expressam o quanto foram modificados pela sociedade, mas alguns valores fundamentais da cultura chegaram até os tempos modernos e, certamente, o sentido de identidade de um povo oprimido, que ficou cristalizado na visão maori. Basicamente, as pessoas ainda se identificam com uma tribo em particular, mas, em relação à classe dominante, há também uma identidade maori, uma identidade pan-maori. Aqueles que residem nas áreas tribais ainda têm consciência do tribalismo, mas para os que vivem na área urbana, embora saibam onde estão suas tribos, isso é menos importante. Assim, novas formações ocorrem nas cidades, novos grupos pan-tribais aglutinam-se e as organizações que eles desenvolvem são muito dinâmicas. Em Auckland, pessoas de tribos diferentes misturam-se, pois não há um número suficiente de membros de uma só tribo. Isto faz com que se agrupem e formem associações - que se preocupam com a seguridade social, com os empregos, a formação profissional -, tornando-se uma força muito dinâmica. Ao sul de Auckland, há uma outra organização chamada Manuko - que quer dizer Urban Maori Authority, uma espécie de Prefeitura Urbana Maori - que se dedica a essas mesmas atividades. Há movimentos pan-tribais em Auckland que auxiliam as pessoas afastadas de suas raízes tribais, e que funcionam de acordo com o Decreto de Fundos de Assistência. São organizações novas que gravitam em torno de outras entidades maori de auto-ajuda.

Schreiber

E o que aconteceu especificamente em relação à religião maori?

Walker

Bem, no último século, todos foram cristianizados, foram convertidos. Havia uma crença de que o Deus dos brancos era mais forte que os deuses maori. Era evidente que o colonizador era rico, possuía bens materiais, recebia bens do exterior, e as pessoas resolveram converter-se ao cristianismo. Na medida em que os colonizadores tomavam as terras e aprisionavam pessoas as igrejas protestantes começaram a crescer. A mesma coisa ocorreu no mundo inteiro. Por outro lado, novos ramos da igreja cristã começaram a se formar, uma mistura do Velho com o Novo Testamento, que salienta, sobretudo, a importância do Velho. Surgiu também, no século passado, um grupo organizado que pregava através do país a unificação por meio da religião. Na verdade, as novas igrejas protestantes constituíram-se em movimentos de unificação através da espiritualidade, tendo como proposta a manutenção da identidade, da cultura e da língua nativas, bem como a preservação de suas terras. No entanto, não há sacerdotes e padres Maori autênticos. A maioria dos Maori pertence a igrejas ortodoxas - anglicana, presbiteriana ou católica -, ainda que alguns dos desfavorecidos estejam se juntando às novas igrejas carismáticas. Não há religião maori autêntica.

Schreiber

Em que sentido se pode falar hoje de uma identidade maori?

Walker

A identidade maori gravita em torno da cultura. Verifica-se um índice elevado de casamentos entre eles, ainda que um estudo de 1960 tenha demonstrado que, em Auckland, 50% dos casamentos se davam entre culturas diferentes. Apesar disso, as crianças de casamentos mistos tendem a se identificar com a cultura das minorias, a se identificar como Maori. Uma das conseqüências do renascimento cultural que ocorre atualmente é o fortalecimento da cultura pela língua, chamado de kuramareo, graças ao qual as crianças aprendem a língua nativa nos kurapapa - escolas primárias em língua maori e que agora estão sendo desenvolvidas no nível secundário. Tudo isso faz parte da preservação da identidade maori, recuperando a importância da ação cultural e das artes performáticas. Isso é importante para manter a identidade e o orgulho de ser Maori. Os Maraes, os rituais, tudo isso ainda acontece, e é o que diferencia os Maori dos pakehas - a população branca de origem européia. Em geral, a população Maori está aculturada. Mas, atualmente, devido ao fortalecimento da cultura maori, aqueles que se passavam por brancos estão começando a se identificar novamente com suas origens, tornando-se assim Maori renascidos, se podemos falar desse modo.

Schreiber

Nesse sentido, pode-se dizer que uma mudança nos valores culturais está ocorrendo...

Walker

Sem dúvida. No passado, o colonizador via os Maori de forma pejorativa: selvagens, ignorantes, canibais - tudo o que faz parte do discurso da colonização. Os Maori ficavam envergonhados e os que puderam passar por brancos foram assimilados. A reação cultural é tão forte atualmente que as pessoas estão se identificando novamente como Maori. No recenseamento de cinco anos atrás, a população maori era de 300 mil pessoas e no recenseamento mais recente, a população que afirma ter ascendência maori é de meio milhão, ainda que o censo oficial diga que os Maori constituem apenas 10% da população da Nova Zelândia, ou seja, 330 mil pessoas. Números mais recentes, entretanto, indicam que são 500 mil pessoas que sustentam ter ascendência maori. Está ficando na moda dizer que se tem ascendência maori. Há algum tempo, eles esconderiam isto, fingiriam não ter essas origens.

Schreiber

Atualmente os Maori e os descendentes de europeus vivem juntos como parte da mesma sociedade nacional. Como essas duas culturas específicas interagem?

Walker

O povo maori foi marginalizado pela colonização - marginalizado, dominado e excluído das estruturas e instituições do Estado. Em conseqüência disso, e do progressivo reconhecimento dos Maori nos últimos 25 anos, temos exigido o direito de ser representados em todas as instituições do Estado, que agora recruta Maori para seus quadros de funcionários, procurando dar uma dimensão maori às suas atividades. É uma das maiores mudanças que ocorreram nos últimos quinze anos, e uma das razões para isso foram as demandas nos tribunais, que acabaram sendo uma fonte de pressão, levando até a abertura de processos contra o Estado, que perdeu várias causas no Supremo Tribunal. Vendo que teria de aceitar as demandas maori, e visando manter uma retaguarda para se proteger nesses casos, o Estado contratou Maoris para aconselhá-lo. Atualmente, todos os departamentos de Estado têm consultores maori. Algumas vezes ouvem o que eles dizem, outras os ignoram, mas de qualquer forma isso é algo extremamente novo.

Schreiber

Seria possível dizer que a Nova Zelândia é uma sociedade multicultural? Como é viver em uma sociedade culturalmente diversificada, com Maoris, descendentes de europeus, imigrantes iugoslavos, indianos e chineses?

Walker

Ocorreram muitos casamentos entre Maoris e europeus. Os Maori casaram-se com iugoslavos, escoceses, irlandeses e, apesar desses casamentos, pode-se ainda falar de identidade maori. Os Maori argumentam que a Nova Zelândia é uma nação bicultural, porque foram os Maori e os europeus que assinaram o Tratado de Waitangi para fundar o Estado e legitimar o governo. O biculturalismo vem em primeiro lugar. O grupo dominante tem de aprender sobre as culturas dominadas e estas têm de ter suas opiniões ouvidas pela administração do país - é isso o que está acontecendo atualmente, e isso é o biculturalismo, com participação na cultura e no poder. Nos últimos anos, sob a influência de interesses empresariais, do que chamamos "Mesa-Redonda dos Negócios", os capitães de indústria e as grandes empresas transnacionais têm argumentado a favor da abertura da imigração para fora das fontes tradicionais européias. Nos últimos seis anos, nossa política de imigração tem sido orientada para fora da Europa, na direção da Ásia, porque nosso governo, instigado pela "Mesa-Redonda dos Negócios", se inspirou no exemplo inglês. Visto que a Inglaterra entrou para o Mercado Comum, perdeu mercados na Europa e teve de achar outros na Ásia: lá como aqui tudo tem sido orientado na direção da Ásia. Atualmente, a fim de facilitar o intercâmbio comercial com a região, nossa imigração tem favorecido os asiáticos. Como conseqüência disso, e como um contra-argumento à idéia maori do biculturalismo, o governo está dizendo que somos uma nação multicultural. O multiculturalismo é, na verdade, um discurso contra-ideológico, contra a cultura e os direitos dos povos nativos. Portanto, o multiculturalismo é uma ideologia contra a ideologia nativa do biculturalismo. O que os povos nativos estão dizendo é que não se pode entender o que é multiculturalismo se não se entender antes o que é biculturalismo. É necessário aprender a andar antes de poder correr. É fundamental aprender a ser justo com o seu parceiro de tratado, considerando-o com igualdade e justiça, antes de tentar ser justo com as outras culturas que estão chegando. O multiculturalismo é a nova ideologia. Ela pode também ser encontrada na América, nos Estados Unidos, onde se fala muito em multiculturalismo. O problema é que nos últimos vinte ou 25 anos muitas ideologias desse tipo, como a ideologia da assimilação, falharam. Quem sabe o que acontecerá com o multiculturalismo no futuro?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 1997
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