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Continuidade, integração e horizontes em expansão

ENTREVISTA

Continuidade, integração e horizontes em expansão

Stanley J. Tambiah

Stanley Jeyaraja Tambiah nasceu em 1929, no antigo Ceilão, atual Sri Lanka. Graduou-se na Universidade do Ceilão (hoje, Peradeniya) e obteve seu doutorado em sociologia na Universidade de Cornell, em 1954. Trabalhou como assessor da UNESCO na Tailândia entre 1960 e 1963, quando ingressou como lecturer no King's College da Universidade de Cambridge. Em 1973, tornou-se professor da Universidade de Chicago e, em 1976, da Universidade de Harvard, onde se encontra até hoje. É membro da National Academy of Sciences e do National Research Council's Committee for International Conflict Resolution. Em 1991, recebeu, da Universidade de Chicago, o título de doutor honoris causa.

Esta entrevista foi concedida a Mariza Peirano, em 29 de novembro de 1996, na Universidade de Harvard, logo após o retorno de Tambiah de uma visita feita ao Brasil, onde foi um dos conferencistas do XX Encontro Anual da Anpocs.

Peirano

Dada a sua formação, em que momento você percebeu que tinha se tornado um antropólogo?

Tambiah

Em Cornell, eu estava em um Programa de Pós-Graduação que era uma combinação de sociologia, antropologia e psicologia social. Isso ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial, e nessa época vários departamentos, que posteriormente se separaram, foram criados reunindo essas disciplinas. Minha identidade nessa fase em que concluí o doutorado era a de sociólogo. Meu principal professor em Cornell tinha sido Robin Williams, um sociólogo ex-aluno de Talcott Parsons que estava associado a Robert Merton e outros sociólogos dessa linha. Mas a antropologia era uma das minhas áreas de interesse e eu também estudei muita antropologia. Minha tese foi sobre o Sri Lanka, em uma combinação de estilos sociológico e antropológico.

Peirano

Qual dos seus livros é sua tese?

Tambiah

Minha tese nunca foi publicada, mas começou como um projeto sob a supervisão de um sociólogo americano chamado Bruce Ryan - que veio de Harvard, tinha sido aluno de Parsons e contemporâneo de Merton -, que chegou ao Sri Lanka logo após o final da Segunda Guerra, na época em que ingressei na Universidade do Ceilão, convidado para criar o Departamento de Sociologia no Sri Lanka. Na verdade, pela primeira vez, sociologia e antropologia estavam sendo ensinadas na universidade. Na época, eu cursava a graduação em economia, especializando-me em sociologia. No trabalho de campo que fiz no Sri Lanka eu estava interessado, naquele momento, em parte sob a influência de Bruce Ryan, no esquema de Robert Redfield sobre o continuum folk-urbano que ele tinha desenvolvido de maneira muito interessante a partir da sua experiência no México - posteriormente, Redfield também veio a se interessar pela civilização indiana. Minha tese baseou-se em um estudo de três comunidades situadas a diferentes distâncias de Colombo, a capital e a cidade mais urbana do país: uma comunidade era muito próxima a ela, uma era mais distante, já na área de plantação de chá, e a outra era ainda mais afastada, na nova área aberta para reassentamento de camponeses. O estudo comparou essas comunidades a partir de certas atitudes expressas em questionários formais, complementados por alguma observação participante. O objetivo era situar as comunidades no continuum folk-urbano e testar a própria hipótese de Redfield. O estudo nunca foi publicado, embora um artigo meu em parceria com Bruce Ryan tenha aparecido na American Sociological Review1 1 "Secularization of Family Values in Ceylon". American Sociological Review, June 1957. , e eu tenha escrito subseqüentemente alguns artigos sobre assentamentos camponeses que também são pouco conhecidos.

Quando me tornei um antropólogo? Imagino que o ano decisivo foi 1955/56 quando, depois de retornar ao Sri Lanka, vindo de Cornell, comecei a fazer trabalho de campo em colaboração com um economista que também era estatístico, N. K. Sarkar. Realizamos um survey sobre as condições econômicas na área Kandyan do Sri Lanka: regimes de apropriação fundiária, relações de arrendamento, padrões de posse da terra nas aldeias e assim por diante. Combinei com este survey meu próprio trabalho de campo sobre estrutura de parentesco e organização social, realizado nos moldes antropológicos tradicionais. Foi então que encontrei Edmund Leach. Ele tinha concluído seu trabalho de campo em Pul Eliya em 1954, e estava de volta em 1956 para uma última verificação dos dados em função da monografia que estava escrevendo. Eu já havia terminado o survey, bem como minha primeira etnografia sobre parentesco, e tinha escrito alguns trabalhos sobre parentesco e posse da terra. Meu primeiro artigo foi publicado em Man (JRAI), com o auxílio de Leach2 2 "The Structure of Kinship and its Relationship to Land Possession and Residence in Pata Dumbara, Central Ceylon". Journal of the Royal Anthropological Institute, 88(1):21-44, 1958. , e o survey foi publicado, separadamente, em 19573 3 The Disintegrating Village: Report of a Socio-Economic Survey (em colaboração com N. K. Sarkar). Colombo: Ceylon University Press, 1957. . Leach não gostou do survey e escreveu o ensaio no qual afirmava que "Tambiah é um antropólogo inato", mas que ele, pessoalmente, não gostava de análises quantitativas baseadas em dados obtidos através de surveys4 4 LEACH, E. R. "An Anthropologist's Reflections on a Social Survey". In: D. G. Jongmans e P. C. W. Gutkind (orgs.), Anthropologists in the Field. Van Gorcum & Comp. N. V., 1967. . No entanto, ele havia lido a primeira versão do meu artigo, do qual gostou, e quando retornou a Cambridge escreveu-me dizendo que eu deveria publicá-lo em Man. Naquela época eu já tinha para mim que minha concepção do estudo dos fenômenos sociais estava mais sintonizada com a abordagem antropológica. Ou seja, interessava-me mais a observação participante, conversar com as pessoas, observar rituais, e ver situações no seu contexto, tudo aquilo que você não pode fazer em um survey, no qual você faz perguntas em série sem conhecer ou mapear em profundidade suas inter-relações. Assim, eu mesmo estava me convertendo, e Leach tornou isto claro para mim com sua crítica ao survey e com sua demonstração da importância do parentesco e da organização social reveladas pela pesquisa etnográfica. Eu nunca pude entender muito bem o que ele quis dizer quando afirmou que meu ensaio tinha, de algum modo, influenciado sua compreensão de Pul Eliya.

Peirano

Podemos então dizer que Leach o legitimou como antropólogo...?

Tambiah

Não foi assim que vi na época, pois ele ainda era um estranho para mim. Encontrei-o pela primeira vez, durante uma tarde apenas, em 1956, quando ele retornou para completar seu trabalho de campo e esteve na Universidade de Peradeniya. Conversamos e falei a ele dos meus ensaios recentes, que posteriormente lhe enviei. Mais tarde, ele escreveu sua crítica ao survey e apoiou a publicação de meu artigo. Em 1960 parti para a Tailândia. Antes, porém, Gananath Obeyesekere juntou-se ao Departamento de Antropologia da Universidade de Peradeniya, em 1957. Obeyesekere tinha sido treinado na Universidade de Washington, principalmente sob a tutela de Melford Spiro, tendo sido influenciado pela teoria psicanalítica. Ele chegou com uma perspectiva diferente da minha, mas decidimos fazer uma pesquisa antropológica conjunta em uma aldeia distante, Pata Dumbara, no distrito Matale, na área Kandyan. Esta foi efetivamente minha primeira tentativa de trabalho de campo antropológico. De fato, Obeyesekere, eu e alguns alunos que estávamos treinando começamos a viver na aldeia e a fazer trabalho de campo, para o qual contávamos com pouquíssimos recursos. Eu tinha então me tornado um verdadeiro antropólogo.

Peirano

E Obeyesekere sempre se definiu como tal?

Tambiah

Sim, um antropólogo psicológico. Ele estava interessado em perspectivas muito diferentes das minhas, mas nós nos entendíamos bem, e a partir daquele trabalho de campo escrevemos um longo ensaio sobre a poliandria no Ceilão5 5 "Poliandry in Ceylon". In: Von Furer-Haimendorf (org.), Caste and Kin in Nepal, India and Ceylon. New York: Asia Publishing House, 1966. .

Ainda em 1956, antes de encontrar Leach e Obeyesekere, eu tinha começado a trabalhar em um projeto de assentamento de camponeses, o recém-criado Multipurpose Irrigation Scheme and Peasant Ressettlement Program, em Gal Oya. Levei estudantes comigo e a partir desse trabalho publiquei um artigo6 6 "Agricultural Extension and Obstacles to Improve Agriculture in Gal Oya Peasant Colonization Scheme". Proceedings of the Second International Conference of Economic History, Aix-en Provence, 1962. . Foi nesse momento que os primeiros conflitos irromperam no Sri Lanka, no meio de nossa pesquisa, e nós tivemos de ser retirados do campo. A experiência desse conflito foi agora - aproximadamente quarenta anos depois! - incorporada ao meu novo livro, e pode ser encontrada no capítulo 4 de Leveling Crowds7 7 Leveling Crowds. Ethnonationalist Conflicts and Collective Violence in South Asia. Berkeley: University of California Press, 1996. .

Enquanto eu fazia esse tipo de pesquisa na Universidade de Peradeniya, em 1959, Hugh Philp - um amigo, professor de educação na Universidade de Sydney - escreveu-me dizendo que tinha sido indicado para diretor de um novo instituto de pesquisa na Tailândia, patrocinado pela UNESCO e pelo governo tailandês, e que queria que eu fosse o antropólogo da organização. Eu teria liberdade para fazer minha própria pesquisa nas aldeias e, ao mesmo tempo, teria de treinar estudantes tailandeses. A principal área de pesquisa desse instituto era a educação: o governo tailandês tinha acabado de introduzir um programa de educação primária nacional e precisava obter informações acerca das áreas rurais. O dado etnográfico era necessário para que fosse possível estabelecer que tipo de currículo deveria ser transmitido às crianças. Dessa forma, concordei em ir, mas devo mencionar outra coisa acerca da maneira inesperada como esse convite foi feito.

Temos de retornar a 1952, quando cheguei a Cornell. Fiz parte da primeira leva de estudantes selecionados no mundo todo pela Fulbright para estudar nos Estados Unidos, em um programa inovador do governo americano no pós-guerra. Fui selecionado no Sri Lanka; Hugh Philp, na Austrália. E, nos Estados Unidos, fomos enviados para o que era chamado "curso de orientação" - ou seja, destinado a nos orientar na cultura americana -, ministrado no Bennington College, em Vermont. Foi lá que conheci Hugh Philp, que foi para Harvard trabalhar com Allport, o psicólogo social, enquanto eu fui para Cornell. Nós nos tornamos grandes amigos e nos visitávamos com freqüência. Outro que fazia parte de nosso grupo era um sociólogo norueguês chamado Reidar Haavie, que também estava em Cornell. Quando Philp retornou à Austrália para reassumir seu cargo e foi convidado como o primeiro diretor do instituto tailandês, pensou logo: "Bem, preciso de um antropólogo... Vou convidar Tambiah!". O convite chegou assim de modo inesperado. Eu já estava completamente desencantado com o curso dos acontecimentos no Sri Lanka devido ao conflito étnico. O problema tamil-cingalês estava se intensificando e eu já havia testemunhado seu início em 1956. Outros conflitos ocorreram em 1958, 1960 e assim por diante. A violência foi a resposta da maioria cingalesa à minoria tamil. Ao mesmo tempo, questões ligadas à língua passaram a fazer parte da política do Sri Lanka. O inglês havia se tornado, sob a colonização britânica, a língua da administração e a língua distintiva das pessoas cultas: se alguém quisesse ser bem-sucedido, deveria dominá-la.

Peirano

Quando você começou a falar inglês?

Tambiah

Muito cedo, pois a escola que freqüentei ensinava em inglês desde o início, com a minha língua, o tamil, como segundo idioma. As escolas de elite no Sri Lanka ensinavam primordialmente em inglês e produziam os funcionários públicos e os profissionais que viriam a constituir a camada influente no país. Após a independência, houve uma onda de nacionalismo, especialmente entre a maioria cingalesa, focada nos temas de identidade, retomada da cultura, retomada da religião. Todas essas questões fazem parte da política pós-independência. O Sri Lanka adquiriu sua independência em 1948 e um dos principais problemas que logo emergiram foi o da mudança da língua da administração, do inglês para os idiomas locais. Isto fazia parte do que era considerado um processo de democratização: o povo em geral tinha sido alijado das estruturas e centros de poder e o inglês era a língua de um segmento restrito da população. Lamentavelmente, esse movimento gerou, como contrapartida, o problema da escolha entre as duas línguas locais, o cingalês e o tamil. E embora no começo o slogan fosse "queremos duas línguas maternas", logo a maioria cingalesa, budista e nacionalista, reivindicou que o cingalês se tornasse a única língua oficial, o que começou a gerar entre os tamil o sentimento de que eram discriminados pela maioria. Havia outras questões, como o reassentamento camponês em áreas reivindicadas pelos tamil como sua terra natal... Tudo isso fervilhava no Sri Lanka ao mesmo tempo, e em 1959 o governo estava a ponto de exigir que a educação universitária também fosse ministrada nas línguas nativas. Eu sabia, portanto, que logo teria de ensinar em cingalês, e eu não estava apto para isso.

Peirano

Você fala cingalês?

Tambiah

Apenas coloquialmente, não fui educado nem alfabetizado nessa língua. Profissionalmente seria um retrocesso para mim, pois tentar ensinar antropologia na língua nativa consumiria todas as minhas energias. E mesmo se eu quisesse fazer essa mudança, eu estaria fora do sistema internacional de conhecimento: eu tinha de ir para outros lugares e permanecer profissionalmente aberto para os desenvolvimentos internacionais.

Peirano

Nesse contexto, seria possível ensinar antropologia?

Tambiah

Bem, mais tarde percebeu-se que a transformação do cingalês e do tamil em meios de instrução seria um grande problema - especialmente no que se refere ao ensino superior -, justamente porque não é possível traduzir os livros das principais línguas ocidentais nesses idiomas. A maior parte dos estudantes educados nas línguas nativas estava virtualmente excluída da literatura mundial, recebendo uma educação muito limitada. Desse modo, os padrões acadêmicos caíram muito. A Universidade do Ceilão, à qual eu pertencia, era a principal universidade nessa época, que coincide com as últimas fases do colonialismo, porque tinha padrões relativamente elevados; estava vinculada à Universidade de Londres e as provas eram aplicadas por examinadores externos. Pessoas como eu, Obeyesekere e muitos outros, tendo feito a graduação no Sri Lanka, podiam sem nenhum problema vir para o Ocidente e continuar os estudos de pós-graduação. Várias pessoas da minha geração fizeram isso, não apenas na minha área, mas também em economia, política, ciências, história, literatura. Assim, naquele momento percebi que estava na hora de partir. Quando o convite de Hugh Philp chegou, eu aceitei e fui para a Tailândia. Isto ocorreu em 1960.

Peirano

Quando você decidiu estudar religião na Tailândia, essa escolha se baseou em evidências etnográficas ou foi motivada por sua própria curiosidade? Em outras palavras, por que religião?

Tambiah

Efetivamente eu não estava apenas investigando religião na Tailândia, mas realizando um trabalho de campo sobre vários aspectos da vida rural. Coletei material sobre parentesco, organização social, economia agrária, posse da terra... e, paralelamente à organização social, sobre os rituais. Além disso, já que a maior parte das aldeias abrigava monastérios habitados por monges budistas, estudei as relações entre esses monges e a população, bem como vários rituais. Na verdade, entre 1960 e 1963, participei do estudo de três diferentes comunidades: uma, na Planície Central, situada aproximadamente a cem quilômetros de Bancoc; outra, no nordeste; e a terceira, no norte da Tailândia. Como sempre acontece, elaboramos e escrevemos apenas sobre um fragmento do nosso trabalho de campo. Escrevi uma etnografia preliminar a respeito de uma aldeia situada na Tailândia Central, ou seja, focalizei aspectos da economia, estrutura de parentesco, vida familiar, ritual, e assim por diante. Essa monografia nunca foi publicada. Foi aceita para publicação pela Cambridge University Press, mas àquela altura, em 1963, eu já tinha ido para Cambridge e já estava escrevendo minha segunda monografia sobre a segunda aldeia, Buddhism and the Spirit Cults in Northeast Thailand8 8 Buddhism and the Spirit Cults in Northeast Thailand. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. . Nesse estágio, também em Cambridge, entrei em contato com algumas das idéias de Leach: o "estrutural-funcionalismo" estava sendo superado pelo "estruturalismo", perspectiva que me influenciou bastante. Assim, esse livro foi escrito em sua maior parte em Cambridge, mas só foi finalizado no período em que estive no Center of Advanced Studies, em Palo Alto. Então eu disse à editora: "não publiquem a primeira monografia, publiquem esta. E eu reescreverei a primeira".

Peirano

Assim, você ainda nos deve a primeira. Qual era o tema central dela?

Tambiah

Bem, ela é diferente da segunda. Em certo sentido, antecipa alguns escritos de Bourdieu a respeito das escolhas estratégicas e das práticas, mas num estilo e num jargão antropológicos distintos. Como a organização social tailandesa é muito flexível (por exemplo, existem várias maneiras de contrair "casamento"), eu esperava primeiro estabelecer o que eram as normas formalizadas, e então verificar como essas normas eram usadas e aplicadas, e quais seriam seus resultados enquanto práticas. Algum dia tentarei publicar esse livro. De qualquer maneira, a segunda monografia veio a ser escrita de forma diferente. Eu tinha coletado muitos dados nas três aldeias que mencionei, especialmente sobre estruturas bilaterais de parentesco, mas não tive tempo para escrever sobre isso porque passei para outros temas.

Peirano

Gostaria de focalizar essas mudanças. Como você as vê? Existem continuidades, uma coisa leva à outra de modo contínuo?

Tambiah

Bem, existe continuidade e expansão. Esqueci de contar como comecei a estudar religião. Uma das coisas que percebi quando deixei o Sri Lanka foi que, como membro de uma minoria, eu tinha de compreender o que é o budismo, o revivalismo budista como uma resposta ao colonialismo, e o que era o nacionalismo budista no Sri Lanka após a independência. Estas eram questões em relação às quais eu estava "alienado" no Sri Lanka, mas cujo significado era fundamental captar como antropólogo. Percebi que não seria possível estudar plenamente as expressões políticas do budismo no Sri Lanka; no entanto, eu seria capaz de fazê-lo na Tailândia, um país mais distante, com o qual eu poderia desenvolver uma relação de empatia e estudar de dentro. Buddhism and the Spirit Cults... foi escrito para que eu entendesse de que maneira o budismo atuava nas aldeias como uma religião popular. Uma vez que já estava inclinado a compreender o budismo como uma religião, especialmente em seus aspectos políticos e rituais, a Tailândia pareceu-me um bom lugar para investigar o que eu não entendia até então.

Assim, o segundo projeto, que redundou no livro World Conqueror and World Renouncer9 9 World Conqueror and World Renouncer. A Study of Religion and Polity in Thailand Against a Historical Background. Cambridge: Cambridge University Press, 1976. , foi para mim o resultado da elaboração do primeiro, no qual enfoquei a aldeia como um microcosmo do macrocosmo. Em Buddhism and the Spirit Cults... a aldeia fornecia algumas idéias acerca da civilização em sentido amplo, e eu estava interessado justamente em como o budismo, enquanto uma força civilizatória, influenciou a aldeia ao longo do tempo, e como, em contrapartida, o budismo em seu sentido amplo foi tecido e elaborado na vida aldeã e em seu calendário festivo. Mas eu sabia da necessidade de ampliar o enfoque e adotar um referencial mais abrangente para compreender outros aspectos do budismo que vinculam a sociedade à política. Por exemplo: o que é o budismo quando tentamos apreendê-lo em sua dimensão nacional? Essa problemática foi gerada pela redação da minha primeira monografia e pensei que teria então de ampliar meus horizontes para entendê-la. Assim, World Conqueror and World Renouncer foi escrito para compreender o budismo em sua expressão coletiva mais ampla, o que me levou a um envolvimento com a questão da relação entre história e antropologia. Procurei explicar como o budismo enquanto religião, juntamente com as ordens monásticas, esteve sempre relacionado com a monarquia e a organização política, particularmente no que se refere às concepções budistas do "universal king".

Com esse ponto de partida, esbocei a história do budismo e da organização política na Tailândia. Eu sabia, quando escrevi a primeira monografia, que vários monges das aldeias chegavam até a capital, Bancoc, após um percurso marcado pela mobilidade e pelas realizações monásticas. Isso me envolveu em um novo tipo de trabalho de campo, que tentava traçar a trajetória desses monges das aldeias até o centro político-religioso, mapeando as relações entre monastério e organização política, e o envolvimento dos monges com os rituais nacionais. A partir desse trabalho, desenvolvi o modelo que chamei de "galactic polity", como uma maneira de representar a organização política pré-colonial "tradicional", e minha caracterização de como ela mudou no século XIX para o que denominei de "radial polity"10 10 "The Galactic Polity: The Structure of Traditional Kingdoms in Southeast Asia". In: S. Freed (org.), Anthropology and the Climate of Opinion. New York: Annals of the New York Academy of Sciences (vol. 293), 1977; "The Galactic Polity in South Asia". In: Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. . Com esses modelos, procurei sugerir um modo de lidar com as continuidades históricas e as transformações nesses sistemas de longa duração. Percebi, quando estava realizando o segundo estudo, como os monges budistas estavam vinculados à monarquia, à organização política e às estruturas de poder correlatas. Por outro lado, dei-me conta de que havia outra ramificação da irmandade dos monges, os monges da floresta, devotados à tradição meditativa. Esses monges reclusos permaneciam fora da ordem oficial, na periferia, e eu sabia que representavam uma busca diferente pela libertação, por intermédio da meditação, e que estavam afastados dos centros oficiais de poder, vivendo nas florestas. Acreditava-se que através da meditação e do regime ascético eles tinham acesso a poderes supranormais e místicos, de que o público leigo queria muito se apropriar. Assim, decidi que um modo adequado de preencher uma lacuna existente em World Conqueror and World Renouncer era empreender uma nova investigação, que se tornou a base para o meu terceiro livro sobre a Tailândia, The Buddhist Saints of the Forest and the Cult of Amulets11 11 The Buddhist Saints of the Forest and the Cult of Amulets. A Study in Charisma, Hagiography, Sectarianism and Millenial Buddhism. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. .

Escrevendo este livro, ao lado do delineamento de um paradigma do significado histórico do regime de meditação e do ascetismo em uma tradição budista, também fiquei interessado na concepção dos santos e na hagiografia como trabalho preliminar para então focalizar os monges da floresta na Tailândia. Aqui, meu interesse weberiano no carisma e em sua rotinização ficou mais uma vez evidente. De certo modo, tropecei em algo que Weber nunca percebeu, ou seja, como o carisma pode ser transferido para objetos como amuletos e imagens. Creio que uma das minhas contribuições foi abordar o culto dos amuletos: como são produzidos, como o homem santo transfere seu carisma para eles, como esses objetos promovem a conjunção entre os homens santos e os leigos, e como esses objetos são usados e manipulados nos processos históricos, políticos e econômicos.

Para encerrar essa história: embora desde 1983 eu tenha me sentido compelido a levantar questões relativas ao conflito étnico, ao etnonacionalismo e à violência política no Sri Lanka, existe um projeto comparativo de longa duração que se prolonga desde The Buddhist Saints of the Forest..., ou seja, a concepção de santos, o carisma atribuído aos santos e o culto de relíquias, amuletos, túmulos sagrados, em algumas tradições cristãs, budistas, islâmicas e Sufi. Quais são as convergências entre essas religiões tão diferentes em outros planos? Em que esses fenômenos contribuem para essas religiões enquanto vividas e praticadas? Comecei a oferecer alguns cursos sobre esses temas aqui em Harvard, mas precisarei de muitos anos para coletar os dados necessários. Trata-se de uma tarefa de longa duração.

Peirano

Um projeto weberiano executado por um antropólogo através do trabalho de campo...

Tambiah

Sim, estava tentando remeter as teorias weberianas (e outras) ao trabalho empírico concreto...

Peirano

Assim, enquanto, por um lado, você escrevia sobre a Tailândia, por outro, redigia artigos que posteriormente seriam reunidos em Culture, Thought and Social Action. Suas reanálises empíricas, por exemplo.

Tambiah

E teóricas, de um modo distinto.

Peirano

Empíricas e teóricas de um modo distinto...?

Tambiah

Vários desses artigos são uma expressão do meu interesse pela teoria da classificação, que era uma preocupação fundamental de Leach e de Lévi-Strauss. "Animals Are Good to Think and Good to Prohibit"12 12 "Animals Are Good to Think and Good to Prohibit". Ethnology, 8(4):423-459, 1969. é de fato inspirado, antes de mais nada, pelo artigo de Leach, "Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal Abuse"13 13 LEACH, E. R. "Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal Abuse". In: E. H. Lenneberg (org.), New Directions in the Study of Language. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1964. . Leach sempre mostrava seus artigos, assim que os terminava, àqueles que estavam mais próximos. Ele me deu uma cópia do trabalho e isso, de certo modo, inspirou meu artigo. Em uma de minhas viagens à Tailândia naquela época para fazer pesquisa no verão, acabei realizando um trabalho de campo especialmente para esse ensaio. Fui inspirado por Leach, mas eu também estava lendo Lévi-Strauss. Assim, os dados que analisei foram efetivamente coletadas como resposta à obra de ambos.

Peirano

"The Magical Power of Words" é também dessa época.

Tambiah

Sim. Em Cambridge, Malinowski era muito lido. Uma das influências de Leach sobre vários de seus alunos era que nós sempre fazíamos um seminário para reler Malinowski. Não só nós o líamos, como o próprio Leach estava interessado em reanalisar o trabalho de Malinowski, o que explica como passei a me interessar pela etnografia malinowskiana. Ao mesmo tempo, eu tinha lido o ensaio de Jakobson que reinterpreta as noções de magia simpática e por contágio de Frazer em termos de metonímia e metáfora, como formas gerais de pensamento associativo14 14 JAKOBSON, Roman. "Two Aspects of Language and Two Types of Aphasic Disturbance". In: R. Jakobson e M. Halle, Fundamentals of Language. The Hague: Mouton, 1956. . Assim, em função do interesse que eu já tinha no ritual, estava olhando para Malinowski, e disso surgiu "The Magical Power of Words"15 15 "The Magical Power of Words" ( Malinowski Memorial Lecture 1968). Man, 3(2):175-208, 1968. . Quando fui convidado pela London School of Economics para fazer a Malinowski Memorial Lecture, decidi testar minha reanálise de Malinowski sobre a magia trobriandesa.

Peirano

E a Radcliffe-Brown Memorial Lecture sobre ritual?

Tambiah

Esta conferência foi escrita alguns anos depois, ainda durante a minha estada em Cambridge, mas só se completou na Universidade de Chicago, por volta de 1974. A propósito, World Conqueror and World Renouncer surgiu de um trabalho de campo realizado quando eu ainda estava em Cambridge. O trabalho de campo para o terceiro livro estava concluído antes que eu viesse para os Estados Unidos. Assim, todas essas atividades terminaram sendo relevantes para o meu contínuo interesse pelo ritual.

Peirano

Mas há uma implicação de que esses artigos são mais teóricos, e as monografias sobre a Tailândia mais etnográficas?

Tambiah

Não, as monografias sobre a Tailândia são etnográficas e também teóricas.

Peirano

Mas, então, por que separar os dois aspectos?

Tambiah

Eles estão intimamente relacionados. Em Buddhism and the Spirit Cults... há uma interpretação da cosmologia e do ritual e de como estão mutuamente interligados de modo estrutural. Neste livro, eu também estava interessado em como os mitos se relacionam com as ações efetivas das pessoas. Esses vínculos dialéticos foram trabalhados a partir da etnografia. As pessoas podem ler meus livros como etnografias, mas muitas não percebem que eles também são teóricos. Já que diferentes antropólogos trabalham em diferentes áreas do mundo, apenas alguns deles, na melhor das hipóteses, lêem etnografias que não pertencem às suas áreas de especialização. Mas todas as minhas etnografias contêm discussões teóricas referentes a Weber, Mauss, Durkheim, Malinowski, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss, e a todos os autores que supostamente lidaram com o que denomino questões clássicas ou canônicas.

Peirano

Você acha que até mesmo os antropólogos leriam seus ensaios dessa maneira?

Tambiah

Sim, meus ensaios são considerados teóricos porque abordam certos problemas canônicos acerca dos quais certos autores escreveram. Por exemplo, "The Magical Power of Words" é uma reanálise de Malinowski em termos de associações metafóricas e metonímicas, teoria da informação, inter-relação mito/ritual, e assim por diante. Devo mencionar, aqui, que meu livro Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality16 16 Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality (The Lewis Henry Morgan Lectures 1984). Cambridge: Cambridge University Press, 1990. , oriundo das Lewis Henry Morgan Lectures, é considerado um trabalho "teórico", mas é uma continuação dos temas abordados em Culture, Thought and Social Action17 17 Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. .

Peirano

Isso é interessante porque aponta para a questão das diferentes audiências para os trabalhos acadêmicos.

Tambiah

Sim, penso que em geral as pessoas lêem apenas um número limitado de monografias. Muita literatura foi e está sendo produzida, mas só se lê uma pequena amostragem do trabalho fora de nossas áreas específicas de interesse. Há uma impossibilidade física de ler tudo, especialmente com o aumento crescente da literatura. Ao mesmo tempo que estou muito familiarizado com a produção relativa ao Sudeste e Sul da Ásia, leio muito menos os trabalhos concernentes à Amazônia, à Oceania, à Nova Guiné, à China e ao Japão. Mas tenho lido textos que alguns colegas recomendam como significativos, ou que recebem recensões positivas, ou que amigos descrevem para mim como objeto de suas preocupações em nossas discussões... Creio que é por isso que toda a discussão que aparece no final de minha última monografia, sobre Weber, carisma, a noção de objetificação do carisma nos amuletos, a participação das pessoas no carisma, não é amplamente conhecida fora da área dos especialistas. Quando as pessoas lêem a introdução de The Social Life of Things, de Appadurai, não estão conscientes, em sua maioria, de que tenho uma discussão que remete fundamentalmente a esse tópico. Mas se eu comprimisse os últimos capítulos de The Buddhist Saints of the Forest... em um ensaio apresentado explicitamente como teórico e publicado em um periódico, então as pessoas indubitavelmente diriam "esse é um ensaio teórico!". Além do mais, por razões óbvias de extensão, os ensaios são lidos, mas apenas os mais dedicados enfrentam uma longa monografia.

Peirano

É isto o que teria ocorrido com sua discussão sobre mito e ritual nos últimos capítulos de Buddhism and the Spirit Cults in Northeast Thailand?

Tambiah

Sim, essa discussão também não foi considerada como de relevância teórica para o estudo dos mitos e dos rituais. Porque está numa monografia e não se espera que as monografias contenham discussões teóricas desse tipo, embora obviamente a "área dos especialistas" ache o texto de grande interesse pois oferece um quadro de referência para entender as relações entre o budismo e o culto dos espíritos nas aldeias. Se eu o tivesse escrito como um ensaio teórico para Man ou American Ethnologist, ele poderia ter um público maior, fora do campo do Sudeste Asiático. Todavia, é gratificante notar que a discussão sobre a relação entre mito e rito em Buddhism and the Spirit Cults... foi adotada por um estudioso da religião, John Strong, que a utilizou como seu ponto de referência.

Peirano

Passemos, então, ao ritual. Quero repetir o que já lhe disse antes, que em um artigo eu comparo sua abordagem de ritual com o que Jakobson fez com a afasia, Lévi-Strauss com o totemismo, Freud com os sonhos...

Tambiah

Isso é muito lisonjeiro para mim! Obrigado.

Peirano

Em geral, podemos dizer que você identifica um fenômeno que, mesmo na disciplina, é de senso comum, o dissolve analiticamente e, finalmente, mostra sua universalidade em outro nível. Nesse processo, o que era um objeto empírico, ou uma classe de objetos, torna-se uma abordagem analítica. É isso que acredito que você fez com o ritual, entre outras coisas.

Tambiah

Como um prefácio a esse ponto, deixe-me contar que quando estava em Cambridge, descobri Austin acidentalmente, comecei a lê-lo e incorporei minha compreensão de suas idéias em "Form and Meaning of Magical Acts"18 18 In: Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. . Esse é um desenvolvimento pessoal. Leach não gostava dessa tendência e era crítico em relação à filosofia da linguagem desenvolvida em Oxford. A esse respeito, ele era um tanto antiquado e acho que provavelmente concordaria com o ataque de Gellner à filosofia de Oxford, em Words and Things. Mas eu estava convencido de que a idéia de Austin sobre as locuções performativas era importante. Embora isso possa parecer autopromoção, tenho certo orgulho de ter sido um dos primeiros a explorar essas idéias no estudo do ritual.

Meu envolvimento com Austin ocorreu quase no fim da minha estada em Cambridge. O convite para a Radcliffe-Brown Lecture forneceu o incentivo para incorporar e estender a noção de atos performativos, e o desafio para formular algo novo. Anteriormente, o convite para a Malinowski Lecture havia representado um desafio e uma ocasião similares. E "Form and Meaning...", no qual utilizei Austin pela primeira vez, foi escrito para um Fershtcrift para Evans-Pritchard.

Peirano

Poderíamos dizer que Austin, Leach e Evans-Pritchard são alguns de seus interlocutores privilegiados? Quais seriam os outros?

Tambiah

Acho que muitos. Max Weber, é claro; Durkheim; Marx em menor extensão; Malinowski; Evans-Pritchard (o livro sobre os Azande) - "Form and Meaning of Magical Acts" é efetivamente minha resposta à sua compreensão das práticas rituais Azande. Há ainda Lévi-Strauss e Leach, no que se refere à teoria da classificação, liminaridade e temas desse tipo. E a lista estende-se na direção de Austin, Peirce, Foucault, Bourdieu, Bakhtin...

Peirano

E Marcel Mauss com sua noção de eficácia?

Tambiah

Você quer dizer a teoria de Mauss sobre a magia? Sim. Suas formulações sobre a magia, o dom, o sacrifício são parte fundamental do nosso legado e capital clássicos, e ponto de referência do qual não se pode escapar.

Peirano

Quando você passou a se interessar por Peirce?

Tambiah

Passei a me interessar por Peirce quando cheguei a Chicago. Outras pessoas, como Michael Silverstein, também estavam interessadas na semiótica de Peirce. Assim, quando escrevi "A Performative Approach to Ritual"19 19 In: Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985. disse a mim mesmo: "Essa é a ocasião para integrar e reunir diferentes perspectivas". O ensaio contém uma crítica um tanto velada a Victor Turner, que você também partilha. Creio que a estrutura tripartite do ritual, que é um esquema de Van Gennep explorado com sucesso por Victor Turner, é inadequada para uma plena compreensão dos traços dinâmicos do ritual e das diferentes maneiras pelas quais múltiplos meios e modalidades sensoriais estão inter-relacionados. Eu queria dizer algo diferente do que Turner estava dizendo; também creio que meu mergulho na lingüística estrutural e na sociolingüística - Chomsky, Peirce, Langer... - forneceu-me algumas diretrizes no que se refere à questão de como essas reflexões poderiam ser sintetizadas, ou pelo menos situadas.

Peirano

Eu gostaria de conhecer sua reação diante da minha impressão de que seu trabalho se inclina sempre para a dissolução de dicotomias. Por exemplo: ação e pensamento, causalidade e performance, semântica e pragmática, narrativa cultural e análise formal...

Tambiah

Bem, não sei se de fato cheguei a dissolver essas dicotomias, mas acredito que fui desafiado por elas. Existe algo na minha maneira de abordar as questões que não entendo conscientemente. Tenho uma preferência por relacionar dialeticamente componentes que outros separam e dividem. Você pode estar certa ao formular essa tendência que não está clara para mim. Mas há outra preferência que me é cara: sempre gosto de pensar que devemos trabalhar dentro da tradição para transformá-la. Várias pessoas anunciam "estou dizendo algo novo", "isso é realmente revolucionário", e essa grande reivindicação de que todos são inovadores, abolindo o passado, não me soa bem. Pessoalmente, prefiro dizer que estou pensando em como avançar, alargar horizontes, resolver algumas antinomias, expandir fronteiras existentes, e assim por diante. Gosto de pensar que se deve trabalhar dentro da tradição, construída a partir do que outros disseram, selecionando componentes já existentes, recombinando-os e reformulando-os, em vez de me recusar a reconhecer o passado, e reivindicar que "estou dizendo algo maravilhosamente novo". Essa é a maneira pela qual prefiro fazer as coisas. E reajo contra pessoas apressadas e excessivamente ambiciosas que afirmam "tudo está errado com o passado", e "existe um novo caminho a seguir, que é inovador"... Em virtude do meu temperamento, essa não é minha maneira de proceder.

Peirano

É interessante que o próprio Lévi-Strauss tenha dito que estava fazendo algo completamente novo quando também estava combinando...

Tambiah

É que, como você sabe, um tipo de contribuição criativa é tomar uma perspectiva, ou alguma idéia, proveniente de um campo, e aplicá-la a outro domínio, o que abre novas possibilidades. Freqüentemente, essa é a maneira pela qual a biologia, a física e outras ciências ditas "duras" procedem. Esse também é um caminho usual em nossa profissão: não existe tábula rasa. Lévi-Strauss agiu da mesma maneira quando aplicou de maneira criativa as teorias lingüísticas de Saussure e Jakobson à mitologia (e até ao parentesco). Mas acredito que algumas pessoas possam ter a impressão que são inovadoras. Não me considero uma delas.

Peirano

Falando de inovadores, Henri Lefebvre, Lukács e outros, que estavam na vanguarda nos meus tempos de universidade, estão todos novamente na moda hoje.

Tambiah

Sim, reciclados. Outra maneira pela qual as pessoas são consideradas originais é quando colocam novas etiquetas em velhos problemas. Cunhar novos rótulos também é visto como um exercício teórico. Novamente, essa atividade não é verdadeiramente inovadora, pois consiste em recondicionar, reciclar, colocar um novo verniz em um fenômeno conhecido. Você me perguntou se continuo com meu interesse em religião, ritual, política...? Leveling Crowds..., meu último livro, é sobre política e violência, com a violência coletiva como uma forma de atuação política em conflitos etnonacionalistas, especialmente em arenas onde a democracia política é praticada. Mas as idéias sobre o aspecto performativo do ritual estão no centro de minhas considerações, explicando o papel e o padrão da violência coletiva na política moderna. Espero que aqueles que conhecem meu trabalho reconheçam que estou aplicando e estendendo minhas idéias a um novo contexto de modo a iluminar a política etnonacionalista e a violência coletiva em nossa época.

Peirano

E encontrando novos interlocutores...

Tambiah

De fato, voltei, no final do livro, a reler Durkheim e Le Bon. Mas também dialogo com os teóricos que propuseram a noção de "economia moral", como E. P. Thompson, com Natalie Davis, que escreveu sobre "Rites of Violence", com George Rudé, Jim C. Scott, e a Subaltern School dos historiadores indianos modernos. Algumas questões levantadas por esses autores foram debatidas e avaliadas no final do livro.

Peirano

E aí, de novo, a presença de Durkheim.

Tambiah

Existe algo que Durkheim escreveu em As Formas Elementares da Vida Religiosa que os leitores nem sempre notam. Na última parte do livro, ele sugere que é a participação coletiva nos ritos totêmicos que gera a euforia e a experiência da força religiosa. Alguns leitores conhecem essa formulação, mas nem sempre a utilizam. Obviamente, Durkheim foi diretamente influenciado pelas idéias de Le Bon acerca das aglomerações coletivas. Le Bon tinha aversão pelo que aconteceu na Revolução Francesa, mas reconhecia as paixões que eram produzidas entre as multidões. Durkheim também identificou esses sentimentos, mas os utilizou para dizer algo muito distinto. Para Le Bon, os ajuntamentos políticos geravam violência irracional, enquanto para Durkheim os ritos praticados coletivamente produziam forças religiosas positivas que, de fato, celebravam a sociedade. Em Leveling Crowds... tomo essas duas discussões e as transformo, ao considerar processos semióticos intersubjetivos e comunicacionais que ocorrem quando as multidões são mobilizadas para a ação, e como esses processos podem explicar certos aspectos da violência coletiva. Assim, algumas questões clássicas suscitadas por Le Bon e Durkheim foram, espero, esclarecidas, refinadas e ampliadas.

Peirano

Durkheim foi, em geral, apropriado de maneira pobre até mesmo pelos antropólogos, que o consideram como alguém interessado apenas nos aspectos da representação.

Tambiah

Sim, isto é parcialmente verdadeiro até no caso de Lévi-Strauss em seu trabalho sobre o totemismo. Lévi-Strauss leu apenas parte de Durkheim, os animais totêmicos e os objetos totêmicos remetidos às suas próprias idéias acerca da classificação. Ele não estava interessado na discussão de Durkheim sobre como os ritos totêmicos geram sentimentos e fusões interpessoais. Acho que muitas das discussões em torno de As Formas Elementares da Vida Religiosa ignoram o que Durkheim disse sobre a efervescência das grandes aglomerações e a euforia no curso dos rituais coletivos, nos quais as pessoas reunidas se envolvem em tipos especiais de interação.

É interessante e relevante considerar dois aspectos relacionados à violência coletiva das grandes multidões. A violência é parte da política, e é dirigida por certos políticos e por seus agentes. Ao mesmo tempo, desordeiros envolvem-se em incêndios criminosos e em atos de violência contra outros seres humanos, quando se aglomeram e quebram normas que a maioria deles observa na vida cotidiana. Em Leveling Crowds... tento apontar os dois lados da questão. Esses distúrbios são propositais e direcionados: ao mobilizar multidões, certos componentes da cultura pública e do ritual público são usados para encenar procissões e formar assembléias coletivas. Levando tudo isso em consideração, sempre acontece algo mais nessas aglomerações: o jogo das paixões coletivas e o papel incitante dos rumores destrutivos, o entrelaçamento progressivo de fúria e pânico. Existe algo aí que Le Bon, Durkheim, Freud - que também foi influenciado por Le Bon em seu Psicologia de Grupo e Análise do Ego - e Canetti, em Crowds and Power, discutiram em termos de psicologia de grupo, e que poderia ser resgatado, reformulado e desenvolvido em novas direções.

Peirano

São essas mobilizações de massa que fazem com que você se interesse por esportes como o futebol?

Tambiah

Sim, agora você sabe por que eu queria assistir a um jogo de futebol no Rio. Estou interessado em esportes por outras razões também, mas os jogos são fenômenos coletivos e espetáculos de massa que me interessam. A torcida das multidões no estádio é fantástica. As pessoas levantam-se ritmadamente e envolvem-se em movimentos orquestrados de ondas de incentivo, e então gritam insultos para os jogadores do time visitante, o "inimigo", amaldiçoando-os, e até ensaiando brigas ou quase-brigas, e proferindo impropérios para demonizá-los, e assim por diante. E quem são esses participantes no caso do futebol americano em Boston, por exemplo? São provenientes de uma parte da população de Massachusetts: classe trabalhadora, classe média, profissionais, jovens e velhos, homens e mulheres, todos reunidos em contigüidade física nessa encenação da cultura de massa.

Peirano

Bem, mudemos o ângulo da nossa conversa. Gostaria de ouvi-lo falar sobre seu retorno ao Sri Lanka como tema de pesquisa após o trabalho na Tailândia.

Tambiah

A última seção de Sri Lanka: Ethnic Fratricide and the Dismantling of Democracy20 20 Sri Lanka: Ethnic Fratricide and the Dismantling of Democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. contém uma parte da minha biografia que ajuda a explicar meu retorno. Os conflitos de 1983 foram terríveis. Nada nessa escala tinha ocorrido no Sri Lanka antes, em termos de destruição absoluta de propriedades e incêndios criminosos, e cujo alvo premeditado era a minoria tamil, especialmente na cidade de Colombo, mas também em outras partes da ilha. Embora tenham ocorrido conflitos periódicos desde 1956, eles eram de uma escala muito menor. Em 1983, quando ouvi falar dos conflitos, fiquei traumatizado. Sou um membro dessa comunidade minoritária que foi vitimada. As pessoas mais afetadas em Colombo pertenciam à classe média, eram membros estabelecidos da elite, homens de negócios, que não tinham idéia de que algo assim pudesse acontecer com eles. Foi um tipo de pogrom, uma tentativa direta e intencional de prejudicar uma determinada população. Alguns políticos e agentes do Estado também estavam envolvidos e foram coniventes com o trabalho de destruição. E, embora eu tenha deixado o Sri Lanka, sempre trago a convicção de que sou do Sri Lanka, e uma parte fundamental da minha persona é que sou simultaneamente de origem tamil. É claro que também tenho uma identidade transnacional, em virtude de ter vivido e trabalhado fora, e algumas outras identidades também. Esses eventos fraturaram as duas metades da minha identidade, a do Sri Lanka e a tamil. Para retornar à minha narrativa: Ethnic Fratricide... foi escrito para encontrar uma saída da depressão e para lidar com uma necessidade pessoal de atribuir sentido àquela tragédia, que era apenas o começo do pior que ainda estava por vir.

Peirano

Seus parentes foram atingidos nos eventos recentes no Sri Lanka?

Tambiah

Um irmão mais velho, que é médico, vive em Colombo e teve sua casa atacada, mas ninguém foi atingido. Outros membros da minha família não foram atingidos em Colombo. Uma irmã vive em um subúrbio cuja população é metade cingalesa e metade tamil. Felizmente, sua casa, que fica ao lado de uma casa cingalesa, foi poupada porque a proprietária cingalesa se aproximou e ordenou que os desordeiros se afastassem. Mas minha irmã teve de deixar sua casa temporariamente e ir para um campo de refugiados, com sua filha e sua neta. Existem muitas pessoas de origem tamil cujas casas foram queimadas, que tiveram seus negócios arruinados, que foram dispersadas aos milhares. No princípio, a violência visava destruir o que a maioria considerava vantagens desproporcionais gozadas pela minoria tamil. Comecei Ethnic Fratricide... com o objetivo de examinar a gênese e o processo da violência, e usei o material disponível para reconstruir a dinâmica política.

O livro subseqüente, Buddhism Betrayed?21 21 Buddhism Betrayed? Religion, Politics and Violence in Sri Lanka. Chicago: University of Chicago Press, 1992. , é uma continuação dessa questão, mas foi motivado por problemas mais remotos. As pessoas sempre me perguntam: se o budismo advoga a não-violência, por que os budistas no Sri Lanka se envolvem com a violência? É por isso que comecei a escrever esse livro, para tentar explicar a participação de monges e líderes budistas no "budismo político". De fato, não é um livro a favor da maioria cingalesa do Sri Lanka, e foi proibido. Obviamente, muitos cingaleses (existem exceções significativas) pensam no livro como tendencioso de vários modos. Mas isso é inevitável quando alguém tenta comentar a política contemporânea e possui uma posição política. Vejo esses desdobramentos como parte de um discurso moderno e devemos nos abrir tanto para críticas quanto para elogios. Não me incomodo com isso; o que me importa é que existe um grupo de monges e "intelectuais" ativistas que clamou pela proibição do livro, vilipendiando-o como "um ataque ao Buda e ao budismo". O livro não é um ataque ao Buda ou ao budismo; é minha tentativa de caracterizar o modo pelo qual o budismo se desdobrou historicamente no Sri Lanka. Chegam a me acusar de ser um agente terrorista, mas muitos dos meus acusadores nunca leram o livro. No Sri Lanka, o livro tornou-se um joguete nas mãos de políticos locais direitistas de tendências neofascistas.

Peirano

E Leveling Crowds..., o último livro dessa trilogia, é uma continuação dessa análise...

Tambiah

Sim, mas também uma extensão que inclui eventos que estão ocorrendo na Índia, no Paquistão e no Sri Lanka. Examino as questões, as convergências e diferenças que envolvem os conflitos etnonacionalistas e também abordo as implicações do uso da violência como um modo de atuação política democrática. Espero que a população do Sri Lanka venha a compreender que não estou dizendo que a política etnonacionalista seja peculiar ao nacionalismo budista cingalês ou ao nacionalismo tamil. Tenho tentado considerar os conflitos etnonacionalistas em termos mais gerais, e explicar o que são os movimentos etnonacionalistas e que tipo de política desenvolvem. Existem determinadas maneiras através das quais as relações entre minoria e maioria se desenvolvem e cristalizam. E você não tem muita sorte se se encontra do lado da minoria.

Peirano

Gostaria que focalizássemos as diferentes inserções do trabalho dos antropólogos. Em outras palavras: vale a pena ser antropólogo fora das correntes dominantes?

Tambiah

Acredito que sim, pois uma coisa que a Subaltern School indiana certamente está fazendo é escrever sobre o colonialismo e os desenvolvimentos pós-coloniais de um modo que rompe com o primado de um certo tipo de perspectiva orientalista e colonialista. Aliás, essas idéias também informam alguns escritos antropológicos. Eles estão tentando ler os eventos que ocorreram na Índia britânica nos termos da agenda subalterna, que contesta a versão britânica oficial da história colonial.

Peirano

Uma das influências marcantes é Gramsci.

Tambiah

Sim, Gramsci, talvez Foucault, e a tese da "economia moral". De fato, em Leveling Crowds... aponto para a genealogia de suas produções, tal como o ensaio seminal de Thompson sobre a economia moral dos conflitos na Inglaterra do século XVIII, e sua aplicação por Jim Scott à Ásia, em The Moral Economy of the Peasants. Alguns historiadores caracterizaram certos movimentos camponeses ocorridos durante o colonialismo como resistência legítima, o que não é uma interpretação encontrada na literatura oficial. O mesmo poderia ser pensado em relação ao Brasil: trata-se de um grande país, social e geograficamente muito diferenciado, dotado de um passado colonial que constitui um fértil terreno para conduzir suas próprias contestações e diálogos internos sobre um grande número de questões relacionadas com a constituição do Estado-nação, com o pluralismo social e cultural, "etnicidade", "raça", estratificação, identidade etc. Esses diálogos e contestações são relevantes não apenas para o Ocidente, mas também para a Ásia. Você mesma previu isso quando fez a comparação entre intelectuais e tradições intelectuais no Brasil e na Índia.

Peirano

Você mencionou que depois de sua visita ao Brasil você compreendeu melhor as circunstâncias que produzem nossa "locação".

Tambiah

O Brasil parece possuir algumas singularidades importantes. De um certo ponto de vista, é parte de um sistema triangular: está em relação com os Estados Unidos e com a Europa, e essa triangulação fornece um ponto vantajoso e peculiar para o seu envolvimento com os centros metropolitanos. Nesse sentido, vocês são o terceiro componente desse diálogo. Além disso, na América Latina vocês são diferentes dos demais países porque só vocês falam português e grande parte da sua literatura é em português, dirigindo-se à inteligência local. Existem diálogos importantes em sua língua dentro do seu próprio país, o que para mim é uma situação muito especial.

Tomemos, por exemplo, o caso da Tailândia. Quando fui para lá, no começo da década de 60, havia um número muito reduzido de pessoas que falavam inglês ou outras línguas européias. Progressivamente, ao longo das décadas de 60 e 70, um número enorme de estudantes obteve sua formação superior no exterior, e as universidades americanas também começaram a treinar professores e a conduzir programas universitários na própria Tailândia. Hoje existe uma crescente inteligência autônoma nas universidades, e os professores, que conhecem plenamente as fontes e formas de conhecimento ocidentais, também estão gerando sua própria literatura crítica "subalterna". É claro que também existem teóricos ocidentais que adotaram a noção de "resistência". Uma perspectiva vinda de baixo, em contraste com uma perspectiva vinda de cima, pode permitir a emergência da "resistência" ao autoritarismo político na Tailândia. A dita transição para a democracia é um problema recorrente tanto na Tailândia quanto no Brasil. Na Tailândia, apesar do autoritarismo estar bem entrincheirado, existe uma tentativa de promover uma transição para a democracia plena, e o movimento estudantil, os movimentos democráticos e as insurreições são formas de resistência a esse poder autoritário. Essas tendências políticas também estão produzindo uma reavaliação das maneiras de conceber o passado tradicional, especialmente com relação às sublevações que ocorreram no século XIX. A principal narrativa ortodoxa sobre a Tailândia diz que foi a monarquia Chakki que promoveu a modernização a partir do século XIX. Mas o projeto de um Estado-nação não era exatamente homogêneo, já que diferentes segmentos da população, no norte, nordeste e sul, foram integrados de forma coercitiva pela burocracia e pelas Forças Armadas. Os novos intelectuais, historiadores e cientistas sociais estão pesquisando as reações e resistências das populações locais a esse processo de centralização. Acredito que a partir da assim chamada "periferia", ou países do "Terceiro Mundo", estamos em via de ter um número crescente de produções intelectuais que serão diferentes daquelas elaboradas pelos antigos intelectuais metropolitanos.

Peirano

A esse respeito, como você avalia seu próprio trabalho na Tailândia?

Tambiah

World Conqueror and World Renouncer é, em certo sentido, uma narrativa sobre o processo de construção da nação na Tailândia, cobrindo eventos até o início da década de 70, pouco antes da explosão da rebelião estudantil em 1973. Esse trabalho não lida com acontecimentos políticos recentes, e não houve nenhum ataque dos intelectuais tailandeses ao livro. Houve, sim, interesse na noção que desenvolvi sobre a transição de uma "galactic polity" para uma "radial polity". O livro seguinte, sobre os monges budistas e o culto dos amuletos em interação com os processos políticos, corresponde a um interesse moderno e teve um impacto apreciável. Não produzi nenhum trabalho significativo sobre a Tailândia referente a eventos ocorridos no final dos anos 80 e 90. Mas, nos anos 80, comecei um estudo de cinco wats (complexos de templos), em Bancoc, e um outro - que talvez seja até mais interessante para mim - sobre a maior ocupação de Bancoc, o chamado Klong Toei, estudo que continua inacabado. Aliás, foi por causa desse interesse que tive vontade de visitar algumas favelas no Rio.

Comecei a documentar as formas de vida que vinham se constituindo em Klong Toei. A atitude do Estado e das autoridades municipais em relação aos moradores é de negligência deliberada, baseada na suposição de que se trata de criminosos, traficantes e prostitutas. Embora alguns deles possam efetivamente sê-lo, muitos são operários da construção civil, empregados no carregamento e transporte no porto, ou, especialmente as mulheres, empregadas na indústria, na embalagem de alimentos etc. Em outras palavras, essas pessoas participam da economia de Bancoc como trabalhadores especializados ou semi-especializados. Minha intenção é descrever esses traços positivos, e também investigar como elas lidam com os problemas existenciais e as tarefas com as quais se deparam em um ambiente urbano hostil; como estão a um só tempo mantendo e transformando as práticas sociais, rituais e outros capitais sociais que trouxeram das áreas rurais de origem.

Já descobri alguns aspectos interessantes de sua rica vida social: um é a importância da tatuagem corporal para os membros das gangues de jovens, visando à proteção física contra acidentes e ferimentos nas brigas com gangues rivais. Cada gangue tem seu padrão distintivo de tatuagem, elaborado pelo mestre tatuador, que transmite, ritualmente, invulnerabilidade mediante a inscrição de tatuagens. Esta é, como se pode imaginar, uma variante do culto dos amuletos que eu havia descrito antes, mas em outro contexto. Outra atividade interessante é o florescimento de escolas de boxe tailandês nos subúrbios. O boxe tailandês é um esporte nacional, e a maioria dos seus praticantes vem dos subúrbios. Para o indivíduo, o cultivo desse tipo de proeza atlética é um passo para a obtenção de fama e dinheiro. Tal carreira tem duração breve, mas o boxe é o foco de apostas intensas e jogos de azar, que prosperam em uma atmosfera de pobreza temperada pela sorte de fortunas caídas do céu.

Ao lado desse, existe o outro estudo, que já completei mas ainda não redigi, sobre cinco wats situados em diferentes locais de Bancoc. Na Tailândia, a palavra wat refere-se ao templo budista e ao complexo do monastério. Um dos wats que pesquisei fica localizado em uma zona de classe média ou classe média alta, o segundo em uma zona de classe operária ou classe média baixa, o terceiro no extremo do subúrbio de Klong Toei, o quarto no principal centro administrativo, e o quinto na zona comercial de Bancoc. Cada wat atende, assim, a um segmento distinto da população urbana da capital, e em conjunto funcionam como múltiplas janelas abertas sobre a vida social e religiosa da cidade. Esses trabalhos sobre a vida urbana de Bancoc - o grande assentamento popular, os cinco wats - são estudos etnográficos de formas locais de vida, mas estão conectados à questão mais ampla da globalização e das distintas conseqüências da interação de influências globais e formas locais de vida.

Peirano

Em que sentido você pensa ampliar essas idéias sobre a abordagem antropológica das influências globais e das formas locais de vida?

Tambiah

Creio que o potencial do método antropológico reside em investigar de que maneira forças globais e metropolitanas são retratadas através de formas locais de vida, e como em contrapartida são adaptadas pelas formas locais a seus próprios propósitos, gerando criativamente seus padrões distintivos. Ainda não comecei a considerar tais fenômenos como processos transnacionais e diásporas populacionais. Mas me parece que muitos dos chamados tratamentos pós-modernos dos processos transnacionais são etnograficamente superficiais e esparsos porque deslizam sobre vastas distâncias e muitos lugares sem penetrar verticalmente nas formas de vida que se processam nos planos local e regional. De certo modo, tentei incorporar em Leveling Crowds... alguns traços das contribuições pós-modernas, especialmente as noções de narrativa e de multiplicidade de vozes e perspectivas, que levam a resultados abertos mais do que a conclusões fechadas. Ao mesmo tempo, tentei escrever meu texto em uma linguagem simples e direta de modo que um público mais amplo que os antropólogos pudesse compreendê-lo. Uma das fraquezas da prosa pós-moderna é que ela induz ao jargão opaco, a palavras confusas, a fórmulas destinadas apenas aos iniciados. Palavras da moda servem como um substituto para idéias comunicáveis. Um dos nossos objetivos deve ser expressar as idéias em uma linguagem simples, uma linguagem que não anule a comunicação. Além do mais, é uma má concepção pensar que autores como Foucault, Bakhtin e outros são profetas e exemplares do pós-modernismo. Eles são fundamentais para todos nós, modernos.

Peirano

Ao menos em um sentido forte, os cultural studies parecem representar um esforço para esvaziar a antropologia de qualquer vestígio de exotismo. No processo a antropologia se dissolve.

Tambiah

O questionamento pós-moderno do poder autoral e da objetividade, da relação assimétrica de poder entre o antropólogo e o "outro" nativo, bem como a ênfase nas compreensões negociadas entre o antropólogo e os informantes, tenderam a desestabilizar, e até mesmo subverter, a escrita antropológica, especialmente nos Estados Unidos. Minha visão particular é que os antropólogos devem ponderar essas considerações, digerir as críticas, e então prosseguir com seu trabalho de campo e escrita antropológicos, que devem incorporar criativamente as considerações pós-modernas. Por outro lado, devem admitir e assumir que diferentes formas de vida podem ser documentadas e que as circunstâncias e contextos de coleta de dados e representação autoral são parte do texto. Seria um erro dissolver a antropologia como disciplina ou reduzi-la a confrontos de egos altamente personalizados, que revelam mais as preocupações neuróticas de um outro invasor do que a riqueza das formas de vida das outras sociedades, cujo conhecimento vai sempre aprofundar e iluminar nossas próprias vidas e sociedades. Essa é a razão e a justificação para a prática da antropologia.

Tradução: Kátia Maria Pereira de Almeida

Revisão técnica: Mariza Peirano

Notas

  • 1
    "Secularization of Family Values in Ceylon".
    American Sociological Review, June 1957.
  • 2
    "The Structure of Kinship and its Relationship to Land Possession and Residence in Pata Dumbara, Central Ceylon".
    Journal of the Royal Anthropological Institute, 88(1):21-44, 1958.
  • 3
    The Disintegrating Village: Report of a Socio-Economic Survey (em colaboração com N. K. Sarkar). Colombo: Ceylon University Press, 1957.
  • 4
    LEACH, E. R. "An Anthropologist's Reflections on a Social Survey". In: D. G. Jongmans e P. C. W. Gutkind (orgs.),
    Anthropologists in the Field. Van Gorcum & Comp. N. V., 1967.
  • 5
    "Poliandry in Ceylon". In: Von Furer-Haimendorf (org.),
    Caste and Kin in Nepal, India and Ceylon. New York: Asia Publishing House, 1966.
  • 6
    "Agricultural Extension and Obstacles to Improve Agriculture in Gal Oya Peasant Colonization Scheme".
    Proceedings of the Second International Conference of Economic History, Aix-en Provence, 1962.
  • 7
    Leveling Crowds. Ethnonationalist Conflicts and Collective Violence in South Asia. Berkeley: University of California Press, 1996.
  • 8
    Buddhism and the Spirit Cults in Northeast Thailand. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.
  • 9
    World Conqueror and World Renouncer. A Study of Religion and Polity in Thailand Against a Historical Background. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
  • 10
    "The Galactic Polity: The Structure of Traditional Kingdoms in Southeast Asia". In: S. Freed (org.),
    Anthropology and the Climate of Opinion. New York: Annals of the New York Academy of Sciences (vol. 293), 1977; "The Galactic Polity in South Asia". In:
    Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.
  • 11
    The Buddhist Saints of the Forest and the Cult of Amulets. A Study in Charisma, Hagiography, Sectarianism and Millenial Buddhism. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
  • 12
    "Animals Are Good to Think and Good to Prohibit".
    Ethnology, 8(4):423-459, 1969.
  • 13
    LEACH, E. R. "Anthropological Aspects of Language: Animal Categories and Verbal Abuse". In: E. H. Lenneberg (org.),
    New Directions in the Study of Language. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1964.
  • 14
    JAKOBSON, Roman. "Two Aspects of Language and Two Types of Aphasic Disturbance". In: R. Jakobson e M. Halle,
    Fundamentals of Language. The Hague: Mouton, 1956.
  • 15
    "The Magical Power of Words" (
    Malinowski Memorial Lecture 1968).
    Man, 3(2):175-208, 1968.
  • 16
    Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality (The Lewis Henry Morgan Lectures 1984). Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
  • 17
    Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.
  • 18
    In:
    Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.
  • 19
    In:
    Culture, Thought and Social Action. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.
  • 20
    Sri Lanka: Ethnic Fratricide and the Dismantling of Democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 1986.
  • 21
    Buddhism Betrayed? Religion, Politics and Violence in Sri Lanka. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Out 1997
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