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Les hommes et les machines: la conscience collective dans les sociétés technicisées

RESENHAS

DODIER, Nicolas. 1995. Les Hommes et les Machines: La Conscience Collective dans les Sociétés Technicisées. Paris: Métailié. 385 pp.

Regina Coeli Machado e Silva

Professora de Métodos e Técnicas, UNIOESTE

No âmbito da proliferação de objetos técnicos capazes de associar sob novas formas os seres humanos através do globo, Dodier retoma a interrogação de Durkheim sobre as "formas de solidariedade". Seu objetivo é propor uma teoria geral da "solidariedade técnica" e mostrar quais são os efeitos sociológicos concretos das formas de organização que tendem a se desenvolver em empresas qualificadas como distribuées ou flexíveis. Trata-se de um percurso ao longo do qual ele pretende responder a uma questão sociológica maior das sociedades "tecnificadas": sob quais condições o funcionamento das técnicas permanece compatível com as exigências de uma vida em sociedade?

A partir desse contexto, que suscita novas questões sobre a modernidade, Dodier elege seu campo temático, analítico e etnográfico. Situando-se em um ponto nodal da recente sociologia da ciência e da técnica - desenvolvida a partir de etnografias de laboratórios científicos, como as de Callon e Latour, com suas críticas à epistemologia moderna -, o autor retira sua teoria das "redes sociotécnicas". Segundo ele, esta tem o mérito de mostrar a ilusão da "grande divisão" entre ciência e política, mas acaba por constituir uma nova forma de simetria, colocando-se enquanto porta-voz dos "inovadores" no campo da ciência. O autor inverte essa perspectiva, detendo-se no funcionamento concreto das redes e não em sua gênese, adotando uma sociologia da técnica centrada na "operação" e não na "inovação".

Aplicada ao trabalho industrial, a noção de rede e sua dinâmica remete ao entrelaçamento de canais de influência recíproca pela articulação dos objetos técnicos, graças aos quais seres próximos no espaço pertencem a conjuntos técnicos totalmente estranhos ou, inversamente, seres distantes estão estreitamente associados pela solidariedade técnica. Essa abordagem atinge o centro das interrogações desenvolvidas nos últimos anos quanto às formas de solidariedade atuais e a conseqüente dificuldade em circunscrever a noção de sociedade. Tal dificuldade é reencenada sob o prisma do trabalho e emerge a partir das empresas e de sua administração - campo etnográfico escolhido pelo autor, uma vez que nele se encontram as transformações da noção de objeto técnico, ligadas ao recuo das organizações "taylorizadas" e ao concomitante avanço das "organizações flexíveis". Sobre esse solo, Dodier elabora a noção de "solidariedade técnica", ao mesmo tempo diferente e complementar da solidariedade orgânica de Durkheim, no sentido de que ela cria forte dependência recíproca entre um grande número de pessoas "engajadas" no funcionamento de um conjunto ligado à técnica, cujo contorno pode ser relativamente indefinido. Tal proposição, segundo o autor, ultrapassa as análises das formas de sociabilidade que se constroem em torno das técnicas, como as corporações profissionais de Durkheim, as classes sociais de Marx, os grupos, as equipes, o "fator humano" e a sociabilidade da sociologia industrial.

Conduzida por um método que se inspira em uma "pragmática sociológica" de cunho fortemente empiricista, a "imersão etnográfica" do autor em uma empresa de embalagens metálicas concentra-se na observação direta da condição dos "operadores" encarregados quotidianamente de fazer funcionar as redes técnicas: engenheiros, chefes de equipe, reguladores, operários especializados etc.

As implicações dessa postura teórico-metodológica são muitas. Dentre elas cabe mencionar a presença não relativizada de pressupostos ideológicos do individualismo, manifestos como um pano de fundo nas análises que conferem ao livro seu caráter mais inovador e criativo. Nesse sentido, a obra até poderia ser lida como uma instigante reflexão sobre os processos de individualização no âmbito do trabalho industrial das sociedades contemporâneas, embora não seja essa a pretensão do autor. A estratégia modular de sua argumentação é exemplar dessa possibilidade paralela de leitura, sobretudo nos capítulos mais etnográficos, pela densidade analítica e concentração das questões que o remetem aos níveis observáveis da condição dos "operadores". É importante mencioná-los pois constituem os três temas considerados pelo autor como cruciais para chegar ao seu objetivo: o tema da responsabilidade, que aflora nos incidentes, estudado através de uma comparação entre atitudes acusatórias e funcionais. Dodier explora, de modo inédito, um paradoxo que tanto dilui (no caso de faltas e erros profissionais) quanto acentua (através do incentivo à iniciativa) a responsabilidade individual. Presente na administração através de um movimento conhecido como "Qualidade Total", ao qual o autor faz rápida referência, esse sistema desloca a culpa dos operadores, por um lado, e, por outro, aumenta-lhes a confiança na própria capacidade profissional (cap. 4).

O segundo tema, o tratamento dos "objetos técnicos", é desenvolvido como "regimes de ação" ou "formas de engajamento" dos operadores diante das máquinas e remetido à dimensão moral. Em vez de um engajamento em uma atividade reduzida a uma aplicação de regras, própria do tecnicismo, o manejo dos objetos conduz à valorização de uma engenhosidade individual, manifesta pelo improviso de soluções em proveito de convenções locais e circunstanciais e o resultante abandono da noção de obrigação e obediência a regras preestabelecidas ou codificadas (cap. 5).

O reconhecimento de si, terceiro dos temas, é analisado no cap. 6 através do engajamento no "ethos da virtuosidade", que consiste em tomar a atividade técnica como um experimento de si - um modo pelo qual se põe à prova certas qualidades da pessoa, como "habilidade", "coragem", "sangue-frio" e "concentração". Aliás, o que singulariza o virtuose é o seu fazer-se e refazer-se sem cessar diante de suas audiências, buscando seu reconhecimento como "autor" através da personalização da sua atividade. Para isso, engaja-se em atividades que colocam em jogo sua responsabilidade e constituem sempre um experimento renovado para lhe proporcionar uma verdadeira realização de si. Trata-se, ao mesmo tempo, de experimentar o mundo exterior e a si mesmo, colocando-se em situações limítrofes nas quais nenhum ser humano já esteve. Como reitera o autor, não é espantoso que a atividade técnica possa adquirir uma dimensão mística, colocando em relação homens com elementos além do visível, sob a forma de "experiências pontuais". Dramatizar o ethos de virtuosidade faz do engajamento um ato de devotamento e heroísmo, contrário ao "ethos do bem-estar", em que operadores buscam atividades de resistência contra os danos, ocupando "postos tranqüilos" na empresa.

Apesar da atenção meticulosa de Dodier no campo etnográfico, seu trajeto analítico acaba deixando sem respostas suas duas interrogações. Quanto à primeira - revelar os efeitos sociológicos das "organizações flexíveis", com suas formas de engajamento dos operadores -, ele encontra uma "crise das obrigações". Em termos durkheimianos, prossegue, esse tipo de organização tem como conseqüência a "fragilização" da consciência coletiva na atividade técnica. Tal "erosão", suas conseqüências e limites, não é explorada, como acaba reconhecendo o próprio autor, fato este curioso uma vez que o título do livro enuncia essa promessa.

Quanto à segunda interrogação, a relação entre as duas formas distintas de solidariedade - técnica e em sociedade -, Dodier não exclui a possibilidade de uma dinâmica das redes técnicas capaz de ameaçar a noção de sociedade ao dar prioridade à dimensão funcional. O "fato sociológico maior", segundo sua avaliação, diz respeito à extensão que essas redes vêm adquirindo na constituição da solidariedade técnica, fato crucial e simultâneo à vida em sociedade. Assim, continua, é provável que o devir das organizações flexíveis seja, em primeiro lugar, marcado por uma tensa dinâmica entre as duas formas de solidariedade, nenhuma delas sendo capaz de ocupar todo o horizonte de atividades. Em segundo lugar, coloca-se a possibilidade de a "atitude funcional" tornar-se, por si mesma, a única obrigação de valor. A efervescência da vida em sociedade - que tanto seduziu Durkheim, segundo o autor - pode então estar ligada à "técnica", ela mesma uma dimensão sagrada. Desse modo, é a noção de mobilização na atividade que encontra uma exaltação diante do sagrado. Finalmente, se a solidariedade em sociedade se impõe como obrigação e se a solidariedade em rede se faz por uma geometria variável (que inclui ou não indivíduos por sua contribuição funcional), a "realidade" da sociedade só se torna possível pelo seu contrário: a exclusão, problema que em momento algum do livro é objeto de análise. A questão crucial do pertencimento social é, portanto, deslocada para o problema das zonas intersticiais, criadas pela própria dinâmica das redes, mas visíveis do ponto de vista da sociedade.

Dodier termina sua reflexão com uma indicação mais geral sobre a tendência das redes em substituir o território (como base topográfica da solidariedade social) por uma nova economia moral e espacial. Trata-se, enfim, de um mapeamento de transformações que deixa em aberto possibilidades práticas e analíticas de resolução dos elos entre a "solidariedade técnica" e a vida em sociedade, segundo seus termos. As razões pelas quais Dodier deixa prevalecer o hipotético, justamente onde pretendia desvelá-lo, podem ser diversas. Dentre elas, talvez a mais importante, por seus efeitos de radiação sobre as outras, é um certo descompasso epistemológico contido em sua pergunta, visível sob dois prismas fundamentais e simultâneos: um deles é retomar uma interrogação sociológica do final do século XIX nos dias atuais, sem nenhuma mediação analítica capaz de problematizar as condições históricas e sociais em que se pudesse sustentá-la. Junto a isso, Dodier transpõe, de forma direta, para o funcionamento "concreto" das "organizações flexíveis", um conjunto conceitual proveniente de níveis diferentes de análise como, por exemplo, a referência sociológica durkheimiana para conceber a sociedade como totalidade e todos os seus conceitos correlatos. O resultado é uma etnografia configurada por desencontros entre o campo de observação, o método e a abordagem teórica. Seu grande e indiscutível mérito é o de abrir possibilidades cognitivas criativas para um aprofundamento das questões aí envolvidas, bem como sugerir pistas gerais para abordar o tema das representações da Pessoa nas organizações industriais da sociedade contemporânea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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