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Vichy et l'eternel féminin. Contributions à une sociologie de l'ordre des corps

RESENHAS

MUEL-DREYFUS, Francine. 1996. Vichy et l'Eternel Féminin. Contributions à une Sociologie de l'Ordre des Corps. Paris: Ed. du Seuil. 388 pp.

Laura Masson

Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ

Talvez o próprio silêncio que cercou os fatos ocorridos durante o período da ocupação alemã na França (1940-1944), tenha levado Muel-Dreyfus a considerá-lo como um momento histórico inédito e a analisar tais fatos sob a ótica do surgimento - ou do ressurgimento - de um mito: o mito do eterno feminino. Hoje, seu trabalho soma-se a um debate público na França sobre a assim chamada "Revolução Nacional", constituindo uma contribuição tão singular quanto valiosa.

A questão central da autora é a de que seu país não se conformou em dar uma resposta administrativa à invasão, mas levou adiante também um processo de "Revolução Nacional", em que se propôs a "faire du neuf la France" e, aprendendo com a derrota, iniciar uma cura purificadora. As palavras de ordem foram voltar às origens, à ordem hierarquizada, assumir controle sobre si e ouvir a natureza que não mente. No contexto, as mulheres eram as que mais se aproximavam dessa imagem. Associadas à terra, seu lugar natural era a família e sua única função legítima a maternidade, em sentido amplo. Sua suposta desigualdade natural era invocada em um jogo de metáforas e analogias orientadas para a despolitização e naturalização de outras desigualdades sociais.

O objetivo de Muel-Dreyfus é reconstruir os processos sociais de produção desse "mito", um dos eixos centrais da filosofia política do governo colaboracionista de Vichy. O eterno feminino é a recriação e a re-alimentação de uma representação dualista, naturalizada e eternizada da relação entre os sexos, expressa em uma certa literatura, na propaganda de Estado, em leis, em políticas médicas e demográficas, em planos escolares, nos argumentos religiosos, em símbolos nacionais etc. Essa concepção privilegiada do feminino - que faz referência obrigatória ao masculino, mas não explicitamente - se caracteriza pela repetição excessiva de seu argumento e pela saturação de seu significado, o que resulta, segundo a autora, em uma "violência da banalidade".

Para Muel-Dreyfus, o mito do eterno feminino é parte do "inconsciente social", de "pressupostos pré-reflexivos" - ou de qualquer outro equivalente que pode ser encontrado ao longo do texto, ainda que nunca claramente definido por ela. Não se trata, contudo, apenas de concepções míticas arcaicas, há também um passado de lutas e agentes sociais que encarnam esses "traços milenaristas". É isso que vai permitir à autora dar uma excelente resposta - o que é o mais interessante em seu estudo - à sua inquietude diante da "violência" produzida por uma definição saturada, que diz que "uma mulher é uma mulher" sem precisar acrescentar mais nada. Sua proposta é introduzir uma dimensão histórica, uma "sociogênese", que dê conta de uma complexa realidade social e explique muitas das "adesões" ao regime.

O livro está dividido em três partes que privilegiam a análise de instituições eclesiásticas, escolares e médicas, consideradas lugares estratégicos para estudar o ressurgimento do "mito do eterno feminino". Na primeira parte, "L'hipnose du châtiment", analisa-se a produção dos intelectuais ligados ao regime, que fazem dos camponeses, das mulheres e da terra seus personagens principais. "Realismo" e "regionalismo" estão na base da promoção de valores pretensamente apolíticos. A Action Française e a Igreja também merecem uma atenção privilegiada. Sob o título "La trahison de femmes et l'anémie des civilisés", a autora analisa a condenação do divórcio pelo regime e a visão do aborto como crime contra a sociedade, o Estado e a raça. Ora, se estava provado que as desigualdades naturais existem - a mulher nunca será igual ao homem, como queriam os valores igualitários da Revolução de 1789 -, um francês jamais seria igual a um imigrante ou a um judeu. Diminuição da natalidade e imigração conduziriam à degeneração da raça e ao declínio da França. Nesse contexto, demógrafos e médicos intervêm com voz autorizada, e a demografia e a medicina tornam-se "ciências políticas".

A segunda parte, "La culture du sacrifice", trata da construção de uma única figura feminina legítima: a mãe de família. Analisa o dia das mães como rito público nacional e propaganda de Estado, e a condenação do trabalho feminino, admitindo apenas aquelas tarefas que são uma extensão da função materna aos espaços públicos. Explora o papel do assim chamado "feminismo cristão", desenvolvido nos anos 20 em resposta ao feminismo laico de inspiração republicana, e sua importância como lugar de participação legítima para as mulheres. Este feminismo é considerado como o "bom feminismo" - aquele que é bom para a família/pátria - porque o regime se reserva, diante de qualquer fato, valor ou circunstância, o direito de definir o bom e o real. Por fim, mostra a posição estratégica ocupada pela família - lugar natural da mulher - no dispositivo político do regime.

A terceira e última parte, "Ordre biologique et ordre social", dedica-se, em primeiro lugar, ao âmbito educativo: às disputas em relação à educação laica - anteriores ao regime - e, em seguida, à imposição de um determinado modelo feminino, "une sous-culture scolaire féminine". A educação pública, laica, obrigatória e gratuita é vista como destruidora das diferenças e propagadora dos valores de igualdade responsáveis pela decadência e degeneração da França. Para finalizar, a autora analisa detalhadamente o papel da medicina como uma ciência política, a adesão à representação medicalizada do mundo social nesse período e o uso político da legitimidade médica. Isto sem deixar de ver os interesses profissionais que levaram os médicos, enquanto corpo profissional, funcionários de Estado e/ou ideólogos da Revolução, a aderir ao regime.

Atendendo ao seu objetivo de reconstruir os processos sociais de produção do "mito do eterno feminino", Muel-Dreyfus consegue dar conta da atuação de múltiplos atores com diferentes tipos de interesses (políticos, econômicos, estéticos, éticos, pessoais, profissionais etc.) que, enquanto coincidentes, podem aliar-se, ou enquanto discordantes, disputar espaços de poder. Quais seriam, porém, as limitações de uma explicação que junto a um passado de lutas por interesses antagônicos põe em jogo "concepções míticas arcaicas", que considera a assim chamada Revolução Nacional um fenômeno político de "adesão pré-reflexiva", ainda que fruto de uma longa história?

Conceber a "Revolução Nacional" como o retorno de um mito reduz as lutas sociais e políticas a uma espécie de preparação das condições necessárias para que à "espera" - "attente des recepteurs", "attente croyante", "monstrueuse attente" - suceda o mito do eterno feminino. Isso faz com que aquela sociedade, cujos agentes sociais lutam por interesses antagônicos, se cristalize subitamente em um "acordo consigo mesma", dando lugar a "concepções míticas" e "pressupostos pré-reflexivos". Mas a que racionalidade se opõe essa razão mítica que surge, segundo a autora, em períodos de crise? Por que pensar que esse período da história da França é um período irracional? O que afinal se define, nesse contexto, como racional?

Falar de razão mítica pressupõe a existência de uma razão pura, obscurecendo o fato de que esta última é, também ela, construída por processos sociais similares aos que intervêm na construção da primeira. Talvez não haja surgimento de mitos, mas apenas a conjunção de interesses de determinados atores em um contexto histórico que, longe de ser inédito ou povoado de demônios que ultrapassam os limites do racional, é um contexto particular e de agenciamentos específicos.

Tradução de Maria Macedo Barroso

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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