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La memoria ritual: locura e imagen del blanco en una tradición chamanística amerindia

RESENHAS

SEVERI, Carlo. 1996. La Memoria Ritual: Locura e Imagen del Blanco en una Tradición Chamanística Amerindia. Quito: Ediciones Abya-Yala. 306 pp.

José Maurício Andion Arruti

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

A consciência que um leigo cuna tem da cura xamânica é a de uma seqüência clara e simples: a enfermidade é a ausência de alma - o purpa raptado por algum espírito maléfico - e a cura é o seu resgate, operado pelos espíritos vegetais que o xamã orienta por meio de uma língua misteriosa. Segundo Carlo Severi, esse funcionalismo ingênuo do informante profano coincide, perfeitamente, com o funcionalismo culto do antropólogo, e seu ponto de partida é justamente a ruptura com essa espécie de ponto pacífico, propondo não só uma nova interpretação do xamanismo cuna, como também, e sobretudo, um novo modelo de análise da cosmologia indígena. Um modelo que em lugar de privilegiar o mito, evidencia o ritual e as diversas e conflitantes modalidades de transmissão do conhecimento tradicional, rompendo com uma percepção unitária daqueles grupos. Para tanto, o autor persegue dois problemas fundamentais que a princípio parecem distantes, mas que ao longo de sua análise revelarão sua necessária confluência.

O primeiro refere-se às questões sobre quem se fala quando em uma etnografia são usadas as expressões "crer", "pensar", "classificar" ou "pensamento indígena" e, sobretudo, quem fala nesses textos, quem são seus co-autores. A partir delas, Severi pretende avançar na formulação de novos instrumentos analíticos e não no seu abandono em direção a um subjetivismo prolixo: propõe uma ampliação dos universos social e simbólico a serem observados, incluindo aí também os instrumentos conceituais de que o pesquisador dispõe para uma "descrição suficiente do objeto".

O segundo campo de problemas é, aparentemente, mais empírico: Severi recorta um objeto que considera bastante distinto daqueles privilegiados nos estudos sobre populações indígenas da Amazônia. Primeiro, escolhe o tema do contato com a sociedade ocidental e, no lugar da mitologia, interessa-se pelo ritual, objeto menos ou não legítimo da perspectiva estruturalista. Esse duplo deslocamento empírico leva-o a substituir a tradicional pergunta sobre o que subsiste da mitologia originária da sociedade primitiva, por outras duas que permearão todo o livro: o que permite e o que obstrui a memória de uma sociedade? Como a tradição - pensada como saber compartilhado - perpetua-se no tempo?

A combinação de problemáticas permite a Severi erigir uma análise ambiciosa pela amplitude dos debates que alimenta ao longo dos sete capítulos do livro. Neles o autor reúne reflexões que já haviam sido expostas em uma série de artigos isolados sobre a pesquisa de campo realizada em uma aldeia cuna localizada no arquipélago Cunaneka, Panamá, nos anos de 1977, 1979 e 1982. Sinteticamente, o tema dominante é a memória que os Cuna guardam do conflito com os brancos, e seu foco teórico é a natureza ritual dessa memória, ligada a estratégias simbólicas que engendram a clara e dramática fronteira que, para os Cuna, os separa dos brancos.

Um traço marcante desse esforço é fazer com que a descrição etnográfica renda teoricamente, demonstrando ora a necessidade de distinções no interior de recortes empíricos ou analíticos consagrados, ora a importância de restituir a necessária unidade de uma realidade que outras abordagens dispersam por diferentes planos analíticos. O objetivo maior associado a esse esforço é a proposição de um modelo, fundado no instrumental da lingüística pragmática, que dê conta do problema fundamental da relação entre estrutura e evento em sociedades "tradicionais" ou "sem escrita".

Assim, depois de ter aparecido nos agradecimentos no lugar dedicado aos mestres, Lévi-Strauss ressurge como o seu grande contraponto, seja no que se refere à interpretação da natureza da cura xamânica, seja no que diz respeito à relação entre rito e mito, ou à dicotomia entre sociedades frias e sociedades quentes, atualizada na forma de outras dicotomias, como entre tradição e memória. Para o autor, trata-se de demonstrar que mesmo naquelas sociedades dominadas pela tradição (representada como um tempo cíclico) existem técnicas e meios de representar a mudança e produzir uma memória (representada como um tempo linear). A redução do mito a um objeto abstrato, marcado pela imobilidade e por um caráter necessariamente coletivo e homogêneo, e a redução da enunciação ritual a mero reflexo do mito, seriam, segundo ele, duas opções metodológicas que têm a mesma razão de ser: eliminar os problemas que tanto a história quanto as experiências individuais trazem para a análise estrutural. Sua tese é a de que a prática xamânica cuna consiste precisamente em dar forma a um tipo de conhecimento - a "memória ritual" - que objetiva interpretar a experiência privada referindo-a à história do grupo.

Nesse ponto, o branco é absolutamente estratégico: sua imagem serve para explicar o sofrimento individual da loucura, remetendo-o à monumental fonte de sofrimento coletivo que é a história do contato. Quando a doença é a loucura, o ciclo xamânico utilizado é o "canto do demônio", que descreve a descoberta do purpa raptado da pessoa doente no "povo" onde os espíritos animais assumem a aparência do homem branco e falam sua língua. Na narrativa cuna, a loucura (marcada pela evolução de um quadro que vai dos delírios e murmúrios à total perda do controle do corpo e da palavra, seguido da fúria homicida) é interpretada como a disputa da mente do louco pelos espíritos animais e como uma ameaça à natureza humana do índio enfermo. Ela é provocada por um ataque do "jaguar do céu", principalmente em sonhos, quando assume a forma de homem branco e seduz suas vítimas, homens ou mulheres, a fazer amor consigo. Consumado o ato sexual, o jaguar aloja-se no corpo da vítima para se alimentar do seu sangue ou do seu esperma e essa quebra do equilíbrio entre mundo humano e selvagem gera a loucura. Para que a cura xamânica se caracterize, é preciso que o enfermo reconheça a sedução, caso contrário interpreta-se que o "jaguar" ainda está presente e que o doente deixou de ser uma vítima do espírito animal/homem branco para assumir uma parceria com ele, tornado-se também um caçador de homens, um branco. Essa presença, entretanto, está nos cantos, mas não na narrativa mítica. Como é possível que o "evento" do contato tenha penetrado a "estrutura" xamânica e não a mítica?

A resposta está na formulação do conceito de "memória ritual", que faz a passagem de uma crítica à dicotomia - persistente - entre escrita e oralidade para uma franca problematização do termo "tradição", bastante distinta daquela já vulgarizada, relativa à idéia de "invenção". A partir da etnografia do processo de transmissão dos conhecimentos tradicionais, Severi critica aquela dicotomia, primeiro porque ela leva a supor a existência de dois conjuntos homogêneos - as sociedades orais e as sociedades da escrita -, do ponto de vista cognitivo ou das técnicas mnemônicas; além disso, porque tal repartição está fundada em uma concepção de escrita estritamente fonética.

Para tanto, o autor opõe-se às interpretações que concebem a pictografia - fundamental nesse processo de transmissão - ou como um tipo de ilustração pessoal e arbitrária dos textos tradicionais ou como uma espécie de pré-escrita destinada a transcrever imprecisamente tais textos. Ao contrário, a iniciação nos cantos, realizada primeiro pela memorização verbal dos seus textos (em uma variação especial da língua cuna) e depois pela memorização de lâminas pictográficas, implica a composição não só de diferentes suportes, mas também de conteúdos distintos.

O que no canto surge apenas como uma seqüência de nomes, nos pictogramas revela-se uma elaborada toponímia repartida em mundos, alturas e vizinhanças. Os pictogramas não transcrevem palavras, mas coisas e lugares, não reproduzem, mas resumem, completam e comentam o texto, sob um léxico próprio. Dessa forma, o conhecimento xamânico depende de uma leitura exegética de texto e imagem, que funciona como uma espécie de sistema de proteção do conhecimento tradicional. Além dessa, as fronteiras lingüísticas também distinguem uma língua especial para a mitologia, com uma diferença fundamental: quando o chefe conta um mito, acompanha sua narrativa a tradução consecutiva por um dos seus assistentes, fazendo com que ao seu mecanismo de proteção se sobreponha uma necessária vulgarização.

Tal ênfase em uma perspectiva pragmática não poderia deixar de repercutir sobre o emprego da idéia de "tradição", que deve ser vista então como sujeita a dois usos. Um, mais corrente, que se refere ao corpus de conhecimentos acumulados por uma determinada cultura; outro, que se refere aos processos e meios de transmissão desse corpus. Ao optar pelo segundo, as perguntas do autor deixam de ser sobre o que é, para voltarem-se para como opera. Dessa perspectiva, a tradição não é mais vista como um conjunto de conhecimentos ao qual vão se agregando outros, em um progressivo enriquecimento coletivo, mas como um domínio marcado por uma forte repartição entre modos e competências que recortam saberes distintos no interior dessa sociedade. Isso faz com que se estabeleça um duplo vínculo de equilíbrio instável, no âmbito do conhecimento tradicional, entre concentração e dispersão: enquanto os cantos, privados e iniciáticos, voltados aos espíritos e à terapia se prestam a uma multiplicação das interpretações exegéticas, os mitos, em suas enunciações públicas e formais, abrem-se à reinterpretação leiga e a um progressivo "empobrecimento do patrimônio tradicional".

Dessa forma, demonstra-se a congruência entre os dois campos de problemas a que me referi. A ruptura com o objeto privilegiado dos mitos e a atenção aos rituais a partir de uma perspectiva pragmática estão necessariamente vinculadas aos problemas de "quem fala" e "sobre quem se fala" em uma etnografia de sociedades indígenas, já que não só em função dos faccionalismos, mas também dos mecanismos íntimos aos processos cognitivos dessas sociedades, a tradição não é um conjunto de conhecimentos partilhados homogênea e harmoniosamente. A descrição que o pesquisador faz dela está necessariamente implicada nas posições de seus informantes.

A análise de Severi apreende esse sistema de lugares e o torna teoricamente produtivo ao evidenciar que o conhecimento do outro passa pelo investimento analítico e pessoal na relação mantida com ele, ainda que as "raízes profundas dessa relação" possam ultrapassar em muito a presença imediata do pesquisador. Nesse sentido, do ponto de vista da antropologia feita no Brasil sobre o "contato cultural" ou "fricção interétnica", temos a demonstração de uma forma de abordar a relação entre "brancos e índios" alternativa àquela que focaliza apenas os "mediadores políticos" e opera por meio de uma descrição histórico-sociológica. Pelo mesmo motivo, no entanto, quando sua análise se volta para a única situação concreta etnografada - o que acontece apenas no último capítulo - essa opção parece deixar um vazio analítico. Nela, a inovação do xamã, que em lugar de queimar ervas em oferta aos espíritos vegetais queima notas de dólar, deixa nativos e antropólogo perplexos, sob a dúvida fundamental sobre quais espíritos agora estariam sendo evocados. A avaliação sobre o fracasso do ritual inovador por parte do pesquisador, no entanto, confunde-se com o fato deste não se encaixar em seu modelo analítico. Fica a dúvida sobre o quanto e apesar de tudo, a câmera de Severi ainda está presa a um enquadramento fixo, deixando escapar aquilo que ela não se preparou para ver; o quanto uma pragmática mais ligada aos agentes concretos e a inserção do pesquisador no grupo e na situação descrita - aspectos não abordados por Severi - deveria ganhar espaço na análise, segundo os objetivos propostos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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