Acessibilidade / Reportar erro

Leveling crowds. Ethnonationalist conflicts and collective violence in South Asia

RESENHAS

TAMBIAH, Stanley J. 1996. Leveling Crowds. Ethnonationalist Conflicts and Collective Violence in South Asia. Berkeley: University of California Press. 395 pp.

John Cunha Comerford

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

Nos Estados surgidos no sul da Ásia com os processos de independência do Império Britânico, têm havido, recorrentemente, conflitos violentos que duram poucos dias, mas envolvem grande número de pessoas enfrentando-se em ruas e praças das cidades, e nos quais se invocam princípios de pertencimento étnico-religiosos. As análises desenvolvidas por Stanley Tambiah a partir da etnografia de alguns desses eventos no Sri Lanka, na Índia e no Paquistão e da reconstituição histórica do contexto em que surgem, mostram que uma compreensão precisa dos significados por eles assumidos e dos efeitos sociais aí gerados é muito produtiva para entender os processos de formação dos Estados nacionais nessa região e a maneira pela qual comunidades políticas, étnicas e religiosas são construídas ao longo desses processos. A etnografia e a historicização permitem ao autor dialogar com interpretações e construções teóricas a respeito de temas como etnicidade, política, religião, "psicologia das massas", "economia moral" das multidões, violência coletiva, e outros, a partir de uma perspectiva que enfatiza a ação social em sua dimensão "performativa" ou "ritual" e o entrelaçamento dos aspectos semânticos e pragmáticos nos processos de mobilização coletiva, politização e construção de fronteiras sociais.

O autor destaca a importância dos conflitos étnicos no mundo moderno, revelada entre outras coisas pela saliência adquirida pela noção de etnicidade no plano das interpretações teóricas. Não apenas a percepção dos processos globalizantes não deve estar dissociada do reconhecimento da importância continuada dos Estados nacionais e dos seus processos de construção, como também é necessário admitir que esses processos envolvem uma dialética entre diferentes modelos de nacionalismo, um deles pautado pela adoção de princípios como a igualdade formal dos cidadãos e a secularização do Estado, e outro enfatizando os pertencimentos étnicos como princípio de cidadania. Assim, nos casos analisados, a política, colocada a princípio em termos formalmente semelhantes àquela existente nos Estados europeus ocidentais, passou a ser marcada pela competição e conflito entre coletividades étnicas e pelo questionamento dos dogmas unitaristas do Estado-nação. Para Tambiah, a identidade étnica está hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, tornando-se o mais importante princípio orientador de ação sociopolítica, superando outros princípios como a classe social e a integração centrada no Estado-nação. Na construção da etnicidade, haveria dois processos conjugados: a substancialização e reificação de qualidades e atributos identitários, por um lado, e a assimilação/expansão e a diferenciação/ segmentação dos grupos étnicos, por outro.

Do terceiro ao sexto capítulo, o autor apresenta descrições etnográficas de tumultos (riots) étnicos, baseado em fontes como: trabalhos acadêmicos, relatórios governamentais, relatórios de comissões, oficiais ou não, montadas para investigar os tumultos, artigos na imprensa e pesquisa de campo. Tambiah toma essas fontes como narrativas, e a partir delas tenta construir não uma metanarrativa unificadora, mas "várias narrativas de médio alcance forjadas de acordo com certas categorias escolhidas" (:33). Procura também resgatar os vários planos em que, historicamente, se constituem as comunidades étnicas em conflito: a organização da doutrina, do ritual, dos padrões de conduta, da hierarquia religiosa, dos templos; as oscilações entre momentos de organização mais "frouxa", em que as fronteiras do grupo são menos claras, e momentos de revivalismo, em que grupos com determinada origem social, liderados por agentes com interesses específicos, acabam por tornar mais definidos os limites da comunidade étnico-religiosa; a relação desses movimentos revivalistas com o deslocamento e a aproximação ou o distanciamento (no sentido econômico, geográfico e social) de grupos sociais; a relação das organizações religiosas com o Estado, a construção de uma história mítica pelos movimentos revivalistas e a produção de símbolos distintivos em torno dos quais é possível a mobilização para a ação coletiva.

Outro aspecto central é a importância dos eventos públicos, como festividades e procissões, para a mobilização e construção da comunidade étnico-religiosa. Esses eventos são momentos cruciais para a apresentação pública das comunidades diante das outras comunidades étnico-religiosas, diante do Estado e diante de "si mesmas". Por outro lado, processos inerentes à construção do Estado nacional produzem momentos críticos para a afirmação de comunidades étnicas, que são também momentos em que aumentam as tensões. Assim, a discussão sobre a língua a ser adotada como língua nacional, ou a redefinição de fronteiras entre unidades político-administrativas, ou os processos de reassentamento de populações, ou ainda os processos de reorganização da economia, que alteram os padrões de distribuição dos benefícios do crescimento econômico, são freqüentemente o pano de fundo de conflitos étnicos violentos. A competição política entre partidos e as relações entre as administrações provinciais e a administração central, bem como a apropriação do Exército e da burocracia estatal por grupos etnicamente identificados, são também elementos centrais na gestação ou agravamento de tensões e rivalidades étnicas. Esses processos envolvem, simultaneamente, a "grande política" do Estado nacional, e a "pequena política" que mobiliza redes sociais através da patronagem e do clientelismo. Em relação aos tumultos propriamente ditos, Tambiah empenha-se em apontar a composição social das multidões envolvidas (os "rostos na multidão"), evidenciar a presença de agentes que orientam e incentivam a ação das massas e identificá-los socialmente, bem como mostrar que os eventos seguem uma seqüência e uma organização discerníveis e recorrentes. Identifica, ainda, o papel fundamental da circulação de rumores e a "demonização" das vítimas.

Na segunda parte do livro, o autor assume um registro mais generalizante e comparativo, apresentando e desenvolvendo alguns conceitos. Um primeiro par conceitual, focalização e transvaloração (apresentado no capítulo 3), procura dar conta dos processos através dos quais eventos locais e disputas em pequena escala vão, cumulativamente, constituindo conflitos em maior escala, envolvendo antagonistas relacionados apenas indiretamente com as disputas originais. A focalização "desnuda progressivamente os incidentes e disputas locais de suas particularidades contextuais, e a transvaloração distorce, abstrai e agrega esses incidentes em questões coletivas de interesse étnico ou nacional" (:81). Outro par conceitual, simétrico e inverso em relação a esse primeiro, é o da nacionalização e paroquialização. Esse par se refere à reprodução de questões nacionais em contextos diversificados, "engajando-se em estruturas locais de poder e complexos locais de castas, seitas e grupos étnicos" (:257). Ao contrário da focalização/transvaloração, trata-se, nesse caso, de processos "de cima para baixo" e "do centro para a periferia". Por outro lado, as noções de ritualização e rotinização da violência dão conta da observação de que os tumultos seguem um padrão específico, acionando um repertório de ações derivado em boa medida de eventos públicos como procissões, comícios, formas padronizadas de intimidação dos oponentes, mobilização de redes sociais através da distribuição de recompensas, e diversos tipos de "ações detonadoras" que dão início a uma onda de agressões (envolvendo formas padronizadas de insulto, agressão e dessacralização).

Nesse sentido, os processos eleitorais nos países do sul da Ásia são apresentados como ocupando um lugar estratégico, pois, por um lado, geram, acionam, reproduzem e exercitam grande parte dos elementos do repertório empregado nos momentos de violência coletiva (as próprias eleições muitas vezes envolvem atos de violência coletiva), e, por outro, são em si mesmos momentos fundamentais de construção de uma certa configuração da política, na qual as identidades étnica e religiosa têm um lugar de destaque. As análises sobre processos eleitorais nos capítulos 8 e 9 contêm importantes indicações para se pensar os significados que a política assume em um contexto em que as eleições, apesar de formalmente orientadas enquanto mecanismo de escolha de representantes a partir do voto universal e individual, supostamente baseado na "escolha racional" dos indivíduos de acordo com seus valores e interesses, acabam se caracterizando como um momento em que agrupamentos étnico-religiosos se manifestam publicamente.

Nos últimos capítulos do livro, Tambiah faz um duplo movimento: por um lado, a partir de um exercício de generalização e comparação, dialoga com autores como Le Bon, Durkheim, Canetti, Rudé, Thompson, Davis e outros. Nesse diálogo, procura levar a sério a possibilidade de pensar o papel dos momentos de "efervescência coletiva", de que fala Durkheim, nos processos de construção e diferenciação do mundo social. Por outro, tece considerações sobre as condições necessárias para que os Estados do sul da Ásia, caracterizados como Estados nacionais em crise, consigam estabelecer uma política de pluralismo étnico e religioso.

O livro de Tambiah é extremamente rico e sugestivo tanto nas suas análises "empíricas" como nas perspectivas abertas pelo diálogo "teórico". Há, na verdade, um esforço de consolidar um procedimento de análise e construção etnográfica que combina elementos "weberianos" - investigando historicamente os múltiplos planos mediante os quais se configuram processos de diferenciação do mundo social e construção de comunidades, explicitando os diversos agentes e interesses envolvidos - e "durkheimianos" - tanto no sentido de enfatizar a importância heurística da análise da morfologia social (sem deixar contudo de historicizá-la), como no de destacar a produção "ritual" (ou seja, através das formas de ação social) das crenças e representações -, lançando mão, para isso, de uma perspectiva "performativa" já esboçada em trabalhos anteriores do autor, que procura sintetizar diversas contribuições dos estudos de rituais.

O trabalho de Tambiah traz perspectivas sugestivas para a análise dos significados assumidos pela política. O autor mostra que, em contextos historicamente diferenciados daqueles onde foram formulados os padrões formais e "ideais" (ou idealizados) da política representativa democrática, a política configura-se de maneira distinta, com significados específicos a serem explicitados pela análise. No caso do sul da Ásia, por exemplo, ela não pode ser dissociada da delimitação dos grupos étnicos e religiosos e dos interesses envolvidos nesses campos. Ao mesmo tempo, o autor mostra a necessidade de um esforço para relativizar e colocar "em suspenso" certos conceitos, noções e imagens que podem impedir a percepção e análise do jogo social tal como ele se estabelece na e através da política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com