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Elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade amazônica

Resumos

Este artigo expõe o valor atribuído por um povo amazônico, os Piaroa, à arte da existência cotidiana. Argumenta-se que sua ênfase na criatividade das práticas diárias é próxima de uma poderosa filosofia social igualitária. São também levantadas as dificuldades de se traduzir essa filosofia, onde o eu humano é situado no meio cósmico. O objetivo da tradução seria possibilitar nosso engajamento em um diálogo com os Piaroa a respeito de nossos interesses comuns (sobre a relação do indivíduo com a coletividade, por exemplo, ou sobre a idéia de liberdade, ou a questão da relação entre costumes e formas racionais de tomada de decisão). Os Piaroa são um povo que abertamente evita a idéia de regra social, ainda que valorizem muito a sociabilidade, seus próprios costumes e a mutualidade dos laços comunitários. Ao mesmo tempo, eles demonstram, de modo ainda mais vigoroso, um "individualismo obstinado". Um grande enigma a ser discutido é o fato de que a autonomia pessoal é entendida ao mesmo tempo como uma capacidade social e cultural: o eu volitivo, a relação social e o artifício cultural formam um conjunto de valores associados. Finalmente, é discutida a centralidade das noções de razão reflexiva e confiança pessoal nessa ética igualitária específica.


The article states the high evaluation that an Amazonian people, the Piaroa, place upon the artful skills of everyday existence. It is argued that their emphasis upon the creativity of daily practice is forthcoming from a powerful and egalitarian social philosophy. The difficulties of translating such a philosophy, where the human self are contextualised within a wider cosmic setting, is raised. The aim of translation would be to enable us to engage in dialogue with the Piaroa about common concerns (upon the relation of the individual to the collectivity, for instance, or upon the idea of freedom, or the question of the relation of customs to rational decision making). These are a people who overtly shun the idea of a social rule, yet strongly value sociality, their own customs, and the mutuality of the ties of community. They at the same time demonstrate even more forcefully an "obstinate individualism". A major puzzle to be discussed is the notion that personal autonomy is understood as a social capacity, and a cultural one as well: the volitional I, the social relation, and the cultural artifice are an associated set of values. The centrality of the notions of reflective reason and personal trust to this particular egalitarian ethics will be discussed.


Elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade amazônica* * Aula Inaugural ministrada no Departamento de Antropologia Social da Universidade de St. Andrews, Grã-Bretanha.

Joanna Overing

Como antropóloga (em vez de, por exemplo, filósofa)1 1 O estilo do texto, originalmente uma Aula Inaugural para a cadeira de Antropologia Social, leva em consideração o fato de que minha audiência era ao mesmo tempo multidisciplinar e parte da comunidade. Embora eu tenha incorporado algumas adições "antropológicas", que poderiam em alguns casos ter ofendido parte da audiência leiga, o texto permanece em geral tal como foi apresentado. Por comentários a versões anteriores, agradeço a David McKnight, Alan Passes e Peter Rivière. meu objetivo é compreender e desvelar as visões de mundo de outras pessoas, em particular as dos povos indígenas da floresta tropical amazônica. A versão local que, por muitos anos, venho tentando entender pertence aos Piaroa, um povo que vive ao longo de tributários do rio Orinoco, na Venezuela. Sua subsistência baseia-se ainda hoje, principalmente, na horticultura, pesca, caça e coleta. São descritos por seus vizinhos como "os intelectuais do Orinoco", e eles realmente têm um pendor especial para o debate intelectual, particularmente quando estão em questão aspectos metafísicos da vida cotidiana. São também um dos povos mais pacíficos da Amazônia. Para tentar melhor compreender a paz que tanto prezam2 2 Segundo Paul Oldham, que está realizando pesquisa de campo entre os Piaroa (ver Oldham 1996), esta paz tão valorizada está agora sendo rompida, sob a forma de guerras de feitiçaria entre líderes, como conseqüência das tentativas indígenas de criar estruturas organizacionais capazes de lidar com o Estado nacional. Até o momento, parece que seus modos pacíficos, baseados nas "estruturas" informais das quais me ocupo neste texto, terão dificuldades em sobreviver à introdução de uma organização mais formalmente estruturada. , assim como seus modos informais e igualitários, tenho procurado recentemente focalizar o alto valor que os Piaroa conferem aos assuntos da vida diária, e sua conseqüente ênfase sobre a criatividade cotidiana. Com efeito, a maior parte da produção artística piaroa pertence ao domínio do cotidiano. A beleza e capricho dos implementos que fabricam para uso diário, a atenção prestada à forma e ao design, são impressionantes. Seus belos instrumentos e artefatos exemplificam o esforço constante dos Piaroa em embelezar a maior quantidade possível de aspectos do seu dia-a-dia3 3 Apenas recentemente os especialistas em Amazônia reconheceram a importância de se ligar a produção artística à organização social. Para um exemplo esplêndido, ver David M. Guss (1989), que oferece uma boa discussão da relação entre arte, símbolo e narrativa, de um lado, e a vida cotidiana dos Yekuana, da Venezuela, de outro. Vale também notar que a maior parte da produção artística piaroa pertence ao domínio do cotidiano (ver Overing 1996a). . Os Piaroa atribuem a atividades que tendemos a ver como mera rotina (preparar uma refeição, limpar uma roça, trançar um cesto, alimentar um bebê) um significado bem maior, uma vez que seus principais interesses estão diretamente voltados para habilidades específicas essenciais à arte da vida diária. Tentarei, aqui, introduzi-los nesse mundo. Ao fazê-lo, procurarei mostrar como a arte do cotidiano piaroa está ligada a um princípio de confiança [trust], pois é apenas por meio da confiança que o cotidiano desse povo igualitário pode ser construído. De modo a contextualizá-la gostaria de comentar alguns escritos de filosofia moral que têm relevância considerável para nossos estudos antropológicos na Amazônia.

Filosofia moral feminista: o "cuidado", a "confiança", e sua relevância para a antropologia social

"Cuidado" [care] é a nova palavra-chave da filosofia moral feminista. É desta perspectiva, mais do que da "perspectiva da justiça" (a preocupação central de boa parte da filosofia moral moderna), que a filósofa Annette Baier vem explorando o princípio da confiança e desconfiança "apropriadas". Em seu livro de ensaios, Moral Prejudices (1995), ela defende o foco sobre a confiança como resposta a uma certa contracultura filosófica4 4 Como representantes dessa crescente contracultura filosófica, Baier inclui autores como Carol Gilligan (1982), Alasdair MacIntyre (1980), Michael Stocker (1976a; 1976b), Lawrence Blum (1980), Michael Slote (1983), Claudia Card (1994; 1995), Alison Jagger (1983) e Susan Wolf (1982). Ver Baier (1995:18-19). , aos modelos de moralidade excessivamente coercitivos prevalecentes na filosofia moral contemporânea. Suas teorias, assim como as da antropologia social, parecem

Baier observa (1995:4-5) que os mais influentes teóricos (homens) da era moderna sempre entenderam a obrigação como o conceito moral chave. Deste ponto de vista, as questões principais giram em torno de problemas, tais como: o que justifica tratar uma pessoa como obrigada ou moralmente constrangida a fazer algo? Ou então: quem deve privar quem de que tipo de liberdade? Em outras palavras, o que (em uma "sociedade justa") justifica a coerção? O que justifica o ato de forçar uma pessoa a agir de uma forma determinada? Ao conceito de obrigação acopla-se, dessa maneira, a idéia de punição e de limitação justificada da liberdade, e pouca atenção é dada à noção de confiança e às virtudes (Baier 1995:13-14)5 5 Ver, também, o livro de MacIntyre, After Virtue (1980), no qual ele expressa sua nostalgia por uma ética centrada nas virtudes. . Essa perspectiva assume a necessidade da existência de pessoas ou instituições dotadas de poderes extraordinários de coerção, um importante paradoxo associado à moderna noção de liberdade. Baier argumenta que grande parte do problema está no tipo de caso que os teóricos morais tomam como ilustração. Se contratualistas, por exemplo, usam o contrato como modelo da obrigação, o que é certamente apropriado para a "sociedade civil". O contrato funda-se em um relacionamento frio em que uma confiança mínima é depositada nas partes, de tal forma que se faz necessária a garantia de um poder punitivo considerável (Baier 1995:13,116). Como nota Baier (1995:13), "concentrando-se sobre as obrigações, em vez de sobre as virtudes, os teóricos modernos da moral optaram por enfocar os casos em que maior confiança é depositada nos agentes das sanções que nos agentes morais ordinários, os sujeitos das obrigações". A autora argumenta que tal noção de confiança (imprópria), segundo a qual a manutenção da moralidade depende da confiança na coerção exercida por outros, distorce nossa visão moral, fazendo-nos supor que toda obrigação se conforme ao que é, na verdade, um modelo excepcionalmente coercitivo. A retórica da autora é forte. Ela afirma que se esse tipo de estrutura coercitiva for tomado como coluna vertebral de nossa perspectiva moral, então, "sem dúvida, a vida será mesquinha, emocionalmente pobre e pior que bruta" (Baier 1995:14).

Baier, falando de um ponto de vista feminista ocidental, vê a preocupação com o cuidado e a confiança como, em grande parte, uma questão de gênero, de interesse das mulheres, mas não dos homens. Em outras palavras, para ela, os gêneros têm diferentes perfis morais: enquanto os homens de hoje tendem a discutir a moralidade em termos das noções de obrigação, contrato e justiça (um reflexo de sua própria preocupação com a autonomia e independência pessoais), a visão das mulheres, interessadas principalmente na moralidade relevante para a educação das crianças e para o engendramento de relações de amor, cuidado, confiança e cooperação, é mais comunitária (Baier 1995:323).

Enquanto antropólogos, podemos questionar a relevância do caso ocidental — no qual homens e mulheres parecem se opor em atitude moral — para o entendimento de outras culturas. Quero argumentar, com efeito, que o antagonismo na esfera moral não é necessariamente típico das relações de gênero na Amazônia. Isto porque uma preocupação moral primária expressa por muitos desses povos se refere aos cuidados com as crianças e à confiança embutida nas relações de interdependência daí derivadas6 6 Ver Gow (1989; 1991) sobre os Piro do Peru; Belaunde (1992; 1994) sobre os Airo Pai também do Peru; e McCallum (1989; 1994) sobre os Cashinahua brasileiros. . Para os Piaroa, os valores do cuidado e da confiança são relevantes para o julgamento das ações tanto de homens quanto de mulheres (Overing 1989a; 1989b), pois remetem à concepção do que constitui um tipo aceitável de vida humana na terra. Ao mesmo tempo, o direito à autonomia pessoal é um valor igualmente não marcado quanto ao gênero. Em outras palavras, a tendência ocidental de associar os valores comunitários à mulher, e o valor da liberdade a uma perspectiva basicamente masculina, é um modelo que se aplica muito mal aos Piaroa. O ponto básico está no fato de que uma corrente dominante na teoria moral ocidental, de cuja influência a antropologia não está totalmente isenta, exclui da esfera de suas considerações a domesticidade e as relações cotidianas do agente moral ordinário, em torno das quais freqüentemente gira a socialidade amazônica.

O desinteresse antropológico pela domesticidade e pelo cotidiano

Para compreender as outras pessoas, os antropólogos são obrigados a refletir sobre os seus próprios pontos de vista, tanto quanto sobre aqueles deles divergentes. Nossa abordagem é, necessariamente, perspectiva, pois, no mínimo, nossas próprias maneiras oferecem-nos um meio valioso de entendimento comparativo. No caso da Amazônia, devemos estar atentos para nossa característica falta de interesse pelas habilidades "ordinárias" da vida. Lemos nos textos que a atenção antropológica deve voltar-se para as grandes estruturas: nossa tarefa é descobrir a lógica subjacente ao funcionamento da mente, do parentesco ou mesmo da criação artística. Dada tal ênfase, as práticas e expressões da vida diária são vistas como contingentes e relativamente pouco importantes. Para agravar a situação, o intelectual acadêmico, urbano e ocidental tende a encarar os assuntos do dia-a-dia como entediantes: são os pratos a lavar, as crianças a alimentar, as prateleiras que é preciso espanar. Nós desprezamos estas tarefas, que gostaríamos de ver cumpridas com a maior rapidez possível e, de preferência, por outros!

Encaramos a vida diária como meramente ordinária, e ansiamos pelo conhecimento do extraordinário: a viagem xamânica, a caça com zarabatanas e curare. O fascínio do exótico nos enfeitiça. Em conseqüência, podemos ser maus observadores do cotidiano. O problema é ainda mais grave quando o cenário é a floresta, que pouco conhecemos: somos desajeitados quando nos movemos dentro dela e não sabemos vê-la7 7 Como nota o filósofo norueguês Jacob Meløe (1988:95): "somos maus observadores de quaisquer atividades com as quais não sejamos familiares enquanto agentes". Muito da antropologia (e não apenas da filosofia, sobre a qual ele escreve) é sobre "não ver e não saber que não estamos vendo" (Meløe 1988:89). . Não possuímos as habilidades práticas necessárias para torná-la inteligível. Na Amazônia, o trabalho cotidiano de alimentar, arrumar e limpar, por nós tão facilmente tomado como simples e entediante, não é na verdade nem uma coisa nem outra8 8 Entre os Achuar, as plantas cultivadas são vistas como vampiros canibais sedentos de sangue (Descola 1996). Mas aqui sou culpada de exotização, e este não é meu ponto. . Eu aqui gostaria de falar de como os povos indígenas podem ser interessantes, filosoficamente falando, de diferentes maneiras, quando se trata das questões do dia-a-dia.

A ênfase que os Piaroa põem no cotidiano e nas atividades diárias não é trivial, mas sim o produto de uma poderosa filosofia social, altamente igualitária. Este é um povo, tipicamente amazônico, que recusa abertamente a idéia de regra social e, no entanto, valoriza fortemente a socialidade, seus próprios costumes e a mutualidade dos laços comunitários — ao mesmo tempo que dá provas de um forte apreço pela autonomia pessoal. Povos assim podem ofender sensibilidades antropológicas em uma série de frentes. O truque é oferecer uma tradução que permita que nos engajemos em um verdadeiro diálogo com as idéias indígenas, para inclusive debater preocupações comuns, como as que dizem respeito à liberdade, por exemplo, ou à relação entre tradição e costumes, de um lado, e processos de tomada de decisão racional, de outro. Nossas próprias perspectivas podem, no entanto, prejudicar nossa capacidade de estabelecer tal diálogo. Perguntamo-nos: como as pessoas podem associar mutualidade social com um insistente individualismo? Como é possível conjugar o gosto pela autonomia individual e o apego aos costumes tradicionais? Como é possível combinar contenção na elaboração socioestrutural e riqueza no plano do discurso metafísico? Estas são algumas das questões que devemos explorar.

O cósmico e o cotidiano

Começarei falando da imersão do cotidiano na ordem cosmológica. Os Piaroa dizem que sua posição particular no mundo é a de habitar sob seu próprio "céu dos domesticados". Igualitários, raramente referem-se a status e papéis quando falam de sua vida social. Em vez disso, interessam-se pelas habilidades necessárias à vida social, pelas diversas capacidades requeridas para se viver uma vida harmoniosa, "domesticada", em acordo com os outros — e dos perigos em não utilizá-las. Essa ênfase sobre as habilidades é crucial, pois, de sua perspectiva, eles vivem da maneira que vivem por causa do que fazem. E o que fazem é caçar, plantar, fabricar zarabatanas, fiar algodão, construir casas. Também transformam animais e plantas em comida, casam, têm filhos e os criam no seio de uma comunidade de relacionamentos. Para os Piaroa, estas são as capacidades que permitem aos humanos uma existência nesta terra (Overing 1993a) — é em termos dessas capacidades que a vida propriamente humana se define.

Isto tudo soa prosaico demais? Nem tanto, quando nos damos conta de que, na metafísica piaroa, não há no mundo terreno poderes para uma existência humana até que estes sejam trazidos do exterior da esfera do "céu dos domesticados". A maior parte das capacidades necessárias ao modo de vida humano foi, no fim dos tempos míticos, encerrada em caixas de cristal, agora sob a posse dos deuses celestes Tianawa. Estes deuses protegem o mundo, assim, do uso excessivo das poderosas forças sob sua guarda, mal-utilizadas no tempo mítico. No que toca à origem das capacidades humanas, a visão piaroa é radicalmente externalista: as forças que constituem a "individualidade"III N. T. – A primeira acepção de jural no New English Dictionary (Oxford) corresponde ao nosso adjetivo "jurídico" ("of, or relating to law, or its administration; legal, juristic"), mas o conceito em antropologia refere-se antes ao significado específico que o vocábulo tem para a filosofia moral: "of or pertaining to rights and obligations". É neste sentido que o emprega Radcliffe-Brown, que o introduziu na disciplina. Fortes, em seu Kinship and the Social Order (Routledge and Kegan Paul, 1970:87-92), explicita essa distinção, opondo o "jural" tanto à ordem das sanções puramente morais, quanto à esfera do "legal", cristalizada em instituições e procedimentos jurídicos formais. Para evitar a assimilaçãoindevida de "jural" ao nosso conceito de "jurídico", preferi manter o termo original. II N. T. – Ao longo do texto, traduziremos selfhood como "individualidade" e manteremos o termo self de uso já consagrado na literatura antropológica em português. são na maior parte perigosas e se originam fora do self. Nessa medida, elas adquirem significado no âmbito da ordem cósmica mais ampla. Isto contrasta com a moderna noção ocidental do self, radicalmente interiorizado desde o início, dotado de uma consciência e uma razão concebidas largamente como atributos intrínsecos da mente individual. Para a teoria piaroa não há fundamento biológico, e isto se aplica à vida dos sentidos e do desejo9 9 Há, todavia, na teoria indígena, um relativismo cultural que focaliza a variação nas capacidades de ação, e afirma que cada tipo de ser vive segundo suas atividades e hábitos específicos (e sobrenaturalmente [ other-worldly] adquiridos). Viveiros de Castro (1996:127 e ss.) recentemente classificou essa ênfase amazônica sobre a ação distintiva como uma forma de "multinaturalismo". De minha parte, eu a veria como um aspecto do "multiculturalismo" indígena. Ouso dizer que esse continuará sendo um debate pertinente entre especialistas em Amazônia, que remete à controvérsia em torno da relevância de nossa própria divisão conceitual entre "natureza" e "cultura" para o pensamento indígena. .

As idéias piaroa sobre o cotidiano remetem a um discurso que supõe a existência de muitos outros mundos, além daquele da existência selvática humana: a miríade de outros que habitam esses mundos (e tempos) compõe o pano de fundo sobre o qual são formulados todos os juízos e considerações acerca da vida humana nesta terra. Nesse universo de mundos múltiplos, repleto de "agência"III, as habilidades pessoais para a vida cotidiana, tão valorizadas pelos Piaroa, têm uma história muito longa, que trata dos traumas da criação original e dos perigos que ali emergiram. É por causa das violações que então tiveram lugar (atos de incesto, assassinatos e traições), que viver hoje na segurança do "céu dos domesticados" é considerado pelos Piaroa de tão grande importância para a construção bem-sucedida da vida diária. Voltaremos adiante aos detalhes dessa relação entre o cosmológico e o cotidiano.

Uma comunidade de similares

A vida aldeã dos Piaroa é marcada pelo esforço em alcançar algo que poderíamos traduzir como uma "comunidade de similares". Contraste-se a riqueza do discurso cosmológico piaroa com a pobreza lexical de sua linguagem sociológica. Os Piaroa dispõem de poucos recursos, além dos termos de parentesco, para marcar diferenças sociológicas. Há, portanto, poucas distinções para servir de grão para o moinho antropológico. Conseqüentemente, o poder raramente carrega consigo o peso do que chamaríamos uma "coletividade". Em lugar disto, tende a ser um assunto pessoal, ou, como explicam os Piaroa, o poder humano refere-se à potência do indivíduo. Assim, a "coletividade" como uma força coercitiva, tal como aparece na teoria ocidental, não corresponde à noção indígena de comunidade10 10 Ver, também, por exemplo, Lévi-Strauss (1967) sobre os Nambiquara; Goldman (1963) sobre os Cubeo; Thomas (1982) sobre os Pemon; Viveiros de Castro (1992) sobre os Araweté; Overing (1993b) sobre os Piaroa; Ellis (1996) sobre os Tsimane. Mesmo entre os mais belicosos Achuar (Descola 1994; 1996) e Yanomami (Lizot 1985), relações de coerção parecem ser de natureza pessoal. . Para compreender melhor essa diferença, é preciso fazer uma distinção entre "a coletividade", tal como expressa por imperativos sociais estruturais (através de papéis, status ou regras jurídicas), e "o coletivo", enquanto apego a um modo de ser social e culturalmente específico. "O social", em seu sentido mais positivo, tal como expresso nas ações partilhadas e nas interações pessoais diárias, é provavelmente compreendido, por muitos povos da Amazônia, como um conjunto de meios potentes para se trabalhar ativamente contra o desenvolvimento de relações coercitivas.

Dada essa visão mais positiva do social, enquanto algo que se refere a modos compartilhados de fazer as coisas, os povos indígenas podem ser bastante explícitos quando se trata de afirmar o princípio da homogeneidade comunitária11 11 Ver, por exemplo, Henley (1982) sobre os Panare. Ver, também, Overing (1993a) para etnografia adicional concernente a este tópico. . Certamente, para os Piaroa, a idéia é que aqueles perigosamente "diferentes em natureza" (por exemplo, afins) passem a ser "de mesma natureza", por intermédio do processo da vida comum. Assim, ao longo do tempo, marido e mulher tornam-se similares "em natureza". Como veremos, o que torna os membros de uma comunidade progressivamente similares uns aos outros é um certo tipo de homogeneidade material criado pela mutualidade da vida em comum. Este é o objetivo da vida comunitária: alcançar uma segura, e não obstante fértil, "comunidade de similares".

Precisamos ainda nos perguntar sobre o modo como, nessas culturas, a pessoa individual se relaciona com essa valorizada "comunidade de similares". Para compreender as preocupações nativas, temos de nos colocar a seguinte questão de ordem cosmológica: "qual é a potência do self humano, a agência, que lhe permite atuar de modo especificamente humano?" Como veremos, do ponto de vista dos Piaroa, é por meio das habilidades de seus membros para a autonomia pessoal que a "comunidade de similares" é criada. Cada pessoa é, em última instância, responsável por dominar dentro de si as capacidades que tornam possível uma vida social e uma existência material de tipo humano.

A prática das culturas gerativas

Entre os Piaroa, um rapaz solteiro precisa ser muito cuidadoso ao oferecer os produtos de sua caça. Se ele dá carne a uma moça solteira (que não sua irmã), e se esta a prepara e cozinha, e depois a oferece ao caçador, os dois estão, por este ato, casados. Mediante esse processo informal, ele exibiu diante dela suas habilidades cinegéticas, e ela diante dele sua capacidade de dar ao alimento uma forma comestível. Nenhuma outra cerimônia marca o evento do casamento. Uma piscadela, e eis que passa despercebido um ritual entre os Piaroa — um povo para quem a maior parte das atividades rituais é desempenhada casualmente, como parte da vida diária. Os procedimentos cotidianos de aparência mais prosaica podem conter um significado profundo.

É significativo que o ritual entre os Piaroa tenda a ser focalizado sobre a prática em si mesma. Note-se que o jovem casal dá início a seu relacionamento conjugal, compartilhando suas respectivas habilidades: a caça no caso dele, a transformação da carne em comida, no caso dela. Por escolha e, presumo, desejo mútuos, eles se engajam nas ações produtivas mais enfatizadas no contexto conjugal, a saber, aquelas ligadas à arte de alimentar12 12 Uma atenção cada vez maior está sendo dada à "arte de alimentar" nas etnografias de povos amazônicos. Ver, por exemplo, Gow (1989) e Belaunde (1994). . É por intermédio da partilha de suas respectivas habilidades no domínio das artes culinárias que rapaz e moça legitimam seu relacionamento. No ritual de casamento, não é o status (de casado) alcançado que é importante, mas a prática de estar casado. Da mesma maneira, quando um jovem adquire, em função da iniciação, suas habilidades cinegéticas, ele é aplaudido pela prática da caça, não pelo fato de ter atingido o status de "caçador" (para o qual, tanto quanto eu saiba, não existe categoria na língua piaroa). Caçar, plantar, cozinhar, remetem menos a este ou àquele status que a atividades exercidas por agentes intencionais e experientes.

Seria ocioso pedir que uma terceira pessoa viesse declarar a legitimidade do casamento, pois, no final das contas, a despeito da insistência e planejamento dos parentes mais próximos, tais decisões continuam sendo muito pessoais, concernentes ao par interessado13 13 Ver, todavia, Overing Kaplan (1975) sobre os aspectos políticos dos arranjos matrimoniais entre os Piaroa. O casamento correto é aquele sobre o qual todos concordam, noivo, noiva e os pais de ambos. Não obstante, o princípio normalmente afirmado é de que ninguém pode ser obrigado a se curvar aos desejos dos pais, e muitas vezes a decisão permanece nas mãos apenas do casal. . Assim como a maior parte dos relacionamentos adultos piaroa, relações de casamento fundam-se em um equilíbrio de intenções mútuas, e portanto são criadas (e mantidas) mediante a prática refletida dos participantes. Os Piaroa utilizam-se, na aplicação das categorias de sua terminologia de parentesco, de uma interessante estratégia para fortalecer sua ênfase sobre a autoridade da escolha pessoal. Um rapaz pode, por exemplo, classificar uma moça como casável, traçando seu vínculo com ela por via paterna; caso não tenha nenhum interesse em desposá-la, no entanto, optará por reclassificá-la como "irmã", calculando o relacionamento desta vez através de sua mãe. É preciso dois, porém, para recriar uma relação, e o rapaz tem de esperar para ver se a moça vai corresponder a seus atos "fraternos" com ações "sororais". Como em toda criação, o objeto tem a agência para se submeter, ou não, à intenção do criador14 14 Ver Overing (1992), sobre a agência dos instrumentos. .

Marshall Sahlins (1987:xi-xiii) distinguiu dois tipos muito diferentes de ênfase social, que ele designa pelos rótulos "prescritivo" e "performativo". Povos que enfatizam o prescritivo (bem conhecidos das ciências sociais) são apegados à forma social e à regra institucional, enquanto aqueles que privilegiam o performativo dão prioridade à prática. Entre estes últimos, é o ato que declara a identidade e a inimizade, é o dom que faz o amigo, é a partilha que cria o parentesco. Em outras palavras, a ação apropriada cria a relação, e não o inverso. Há também a questão do afeto. Dada a primazia do performativo, aspectos importantes das relações sociais tornam-se negociáveis, sendo construídos por meio da escolha, do desejo e do interesse (Sahlins 1987:xi-xiii). Tome-se, por exemplo, um homem Piaroa e o filho de sua irmã, que apreciam a companhia um do outro, e freqüentemente caçam juntos; esse relacionamento é tão próximo afetivamente que o homem prefere chamar seu sobrinho adolescente, não de "genro", mas de "filho"; este retribui tratando seu sogro potencial de "pai". É difícil definir um laço desse tipo em termos institucionais — uma ilustração do fato de que a vida social em uma "comunidade de similares" é algo criado diariamente, por intermédio das ações e afetos específicos de cada um de seus membros.

Todavia, no lugar da noção um tanto dramatúrgica de performance, eu preferiria utilizar a expressão "gerativa", de modo a capturar a ênfase amazônica sobre os modos de fecundidade15 15 Ver, por exemplo, na literatura sobre o noroeste amazônico: S. Hugh-Jones (1979); C. Hugh-Jones (1979); e Kaj Arhem (1996). Ver, também, S-E. Isacsson (1993) sobre os Emberá do Chocó colombiano. . O discurso cosmológico dos Piaroa trata, fundamentalmente, da fecundidade, girando em torno dos poderes individuais de criação e destruição da vida, detidos pelos grandes deuses criadores. Da mesma maneira, seu discurso sobre as habilidades cotidianas das pessoas gira em torno de suas próprias capacidades gerativas para atuar neste mundo. É possível argumentar de modo convincente que a socialidade amazônica, em geral, apóia-se mais sobre noções de fecundidade que sobre aquelas de status e papel social, ou de propriedade. Assim, o conceito de "gerativo" captura a ênfase indígena sobre a relação fundamental entre habilidades e práticas cotidianas, de um lado, e processo social, de outro (em oposição à ênfase alternativa sobre a relação entre rito dramático — tal como na sentença "Eu os declaro marido e mulher" — e estrutura social).

Para os Piaroa, certamente, ser social é ser fecundo de um modo especificamente cultural. Eles compreendem as práticas da vida comum como gerativas da transformação pela qual os membros de uma comunidade vão "se tornando de mesma natureza". O poder humano (ou talvez, melhor dizendo, o poder piaroa) é distintivo na medida em que é constituído por aquelas habilidades específicas que permitem ao indivíduo agir materialmente no mundo de um modo particular16 16 Ver Overing (1993a) para um tipo de discussão diferente desta questão. . Por causa da história cosmológica, apenas os seres humanos podem adquirir esses poderes criativos específicos que permitem o engendramento de uma vida comunitária fecunda. Passaremos agora a examinar em maior detalhe que capacidades são estas que apenas os humanos podem adquirir.

A fertilidade da "vida de pensamentos" e os costumes

Os Piaroa conferem um valor privilegiado ao seu próprio modo de existência no universo porque, no plano terreno, a capacidade de conjugar o pensamento (e as habilidades específicas de ação que dele dependem) e uma vida de desejos é uma exclusividade dos humanos. É porque os seres humanos podem, individualmente, adquirir dos deuses Tianawa tanto uma "vida de pensamentos" (ta'kwarü) quanto uma "vida dos sentidos" (kaekwae), que uma forma de criatividade distintivamente humana na terra se torna possível. Do ponto de vista cosmológico, estes são os dois modos de ser que derivam daqueles diferentes aspectos do poder em torno dos quais giram indefinidamente as preocupações dos Piaroa. Sua ênfase, ao distingui-los, não incide tanto sobre a forma ou a aparência (somos nós que falamos em "formas de vida"), mas sobre a atividade — por exemplo, maneiras características de matar ou comer. O foco é sobre o que o ente faz, e sobre o modo como é feito. Por exemplo, o espírito monstruoso do Senhor da Floresta, protetor de todos os habitantes da mata, desempenha suas funções enquanto uma "força sensível" pura: é através da força e poder físicos que lhe é possível realizar seu trabalho de vigilância e proteção (Overing 1996b). Os Piaroa dependem de sua "vida dos sentidos" tanto quanto de sua "vida de pensamentos" para realizar o seu próprio modo de ser particular. Os humanos, sem suas capacidades sensíveis, não poderiam agir de maneira propriamente humana, terrena, pois seriam incapazes de se casar ou de agir concertadamente. Não poderiam sequer comer de modo humano. No espaço terrestre, o agente cognitivo humano precisa também ser um ator17 17 Os Piaroa insistiam na afirmação de que os deuses Tianawa eram também seres humanos. Estes deuses, incapazes de agir no sentido sensível, não são do espaço terreno. . Não obstante, no entendimento dos Piaroa, o fator mais significativo para o desempenho das práticas é a vida do intelecto, pois é por meio da "vida de pensamentos" que os humanos adquirem as habilidades específicas de que tais práticas dependem, bem como a capacidade de refletir sobre elas e, assim, dirigi-las.

Tanto a "vida dos sentidos" como a "vida de pensamentos" são interiorizadas para formar um self internamente construído, altamente privado e belo. Juntas, constituem um embelezamento encerrado dentro da pessoa sob a forma que os Piaroa chamam suas "miçangas vitais" — as miçangas são literalmente denominadas "as miçangas da vida dos sentidos" (kaekwaewa reu). Assim rotuladas, designam as forças que permitem a uma pessoa respirar, comer e beber, ter relações sexuais e manter em geral uma vida física de impulsos e desejos. Isto é um tanto surpreendente dada a ênfase piaroa sobre a importância da "vida de pensamentos" para a existência material. A explicação está no fato de que é o próprio invólucro dessas miçangas que dota a pessoa de uma "vida dos sentidos". Esse invólucro é feito de um granito especial, formado pelas fezes da suprema divindade subterrânea, fonte de todo o poder existente na terra. Cada criança, ao nascer, recebe sua primeira fileira de miçangas vitais (isto é, os invólucros), das caixas de cristal dos deuses Tianawa. Em um ritual posterior, a pessoa obtém destes mesmos deuses as forças para a "vida de pensamentos", que o xamã oficiante cuidadosamente coloca dentro dos invólucros já residentes na pessoa. Assim, as fezes fossilizadas da divindade suprema, que conferem a potência para a vida dos sentidos, encapsulam e contêm as "forças do pensamento". Como disse um Piaroa, "a inteligência reside dentro das miçangas". A imagem das "miçangas vitais" afirma, também, o vínculo existente entre a "vida dos sentidos" e a "vida de pensamentos". É porque são dotados dessas "miçangas vitais" que os Piaroa podem viver sua vida física dos sentidos de um modo distintivamente humano, o que significa dizer que sua vida (selvagem) de desejos pode ser controlada por sua vida intelectual. Para eles, ação, pensamento e afeto são mutuamente constitutivos.

Os Piaroa nem sempre dominaram suas ações via o pensamento. No início dos tempos da criação, seus desejos eram controlados, não pela vida dos pensamentos, mas, de maneira desastrosa, pela vida dos sentidos, centrada em um conjunto peculiar de partes do corpo: o ânus e os genitais, reluzentes e azuis. Uma vinheta mítica conta como esse processo foi revertido no dia que essas "partes pudendas" perderam seu brilho colorido. Isto aconteceu quando os Piaroa adquiriram o conhecimento dos perigos do incesto. Reza a história que um caso de incesto desencadeou uma briga, desagregadora e eterna, entre os deuses criadores. Com a eclosão do conflito, os Piaroa, pela primeira vez, defrontaram-se com os perigos sociais do incesto; foi nesse momento, com a aquisição de uma consciência social, que perderam suas partes coloridas. A partir de então, tornaram-se capazes de dominar sua sexualidade por intermédio da reflexão intelectual. O aspecto da vida de pensamentos de cada pessoa que permite essa reflexão pessoal é referido como ta'kwakomenae (ver abaixo).

Em contraste, a sexualidade dos deuses criadores (que não devem ser confundidos com os deuses Tianawa do presente) foi sempre dominada por sua vida de desejos. Os imensos poderes necessários para a criação eram monstruosos demais para que os deuses os pudessem manipular por meio da razão — o que explica a presença tanto de uma certa perversidade quanto de uma certa loucura na maior parte das criações de tipo mítico. A fertilidade mítica era, freqüentemente, associada à defecação ou à expulsão de outras substâncias residuais pelos diversos orifícios corporais. Vômito, excremento e sangue, eram todos dotados de poderes fertilizantes similares aos do sêmen. No entanto, freqüentemente, o produto da sexualidade divina não era normal, mas mórbido (assumindo a forma dos diversos tipos de doenças que hoje afligem os Piaroa). A lição dos eventos míticos, repetida várias vezes, é a de que apenas mediante uma fertilidade moderada uma pessoa se torna capaz de casar, ter filhos e estabelecer relações de parentesco duradouras. A sexualidade humana tem de ser dominada por intermédio do pensamento reflexivo (ta'kwakomenae), um contraste com a fertilidade potente, mas monstruosa, dos deuses criadores. Deixem-me explicar isto melhor, pois a vida dos desejos não é a única coisa que o pensamento humano precisa dominar18 18 Ver Overing (1985) para um discussão mais antiga, porém mais completa, da teoria da "mente" piaroa. .

As capacidades socialmente reflexivas de ta'kwakomenae constituem apenas um dos aspectos da "vida de pensamentos" de cada pessoa. O segundo aspecto é ta'kwanya. Ta'kwanya é a palavra na língua piaroa mais próxima de nossas noções de "tradição" ou "costumes". Assim, a "vida de pensamentos" de uma pessoa inclui duas forças distintas, mas interligadas: as habilidades para o pensamento reflexivo e a capacidade para a prática cultural. Ambas provêm das caixas de cristal dos deuses. É por intermédio de ta'kwanya que se adquire o conhecimento da floresta, dos hábitos e da história de seus habitantes, tanto plantas como animais. Todavia, ta'kwanya refere-se, sobretudo, àquelas forças ativas e poderosas do self que, originárias da vida de pensamentos, munem um povo das habilidades necessárias para atuar sobre o mundo, transformando-o para usá-lo segundo seus próprios modos. Os costumes (ta'kwanya) para os Piaroa referem-se especificamente a modos particulares de fazer coisas, a atividades e práticas no mundo. Os brancos têm ta'kwanya de construir aviões e arranha-céus. Os Piaroa caçam, plantam, e fabricam zarabatanas.

Para dar à noção de ta'kwanya uma leitura indígena, o conceito pode ser entendido como se referindo às forças da vida intelectual que conferem fertilidade a uma pessoa. Dominados pelo pensamento reflexivo, são esses os poderes que habilitam uma pessoa a criar, a ser produtiva e a ter de modo geral um efeito sobre o mundo, de uma maneira especificamente piaroa. Ta'kwanya inclui a capacidade para o uso da linguagem e os meios de adquirir e processar alimentos; inclui habilidades para o parto, a horticultura, a caça, o ritual e a fabricação de instrumentos. Assim como os bebês, instrumentos e objetos são criados via as forças fecundas do intelecto19 19 O ritual de conclusão de cada cerimônia envolvida na aquisição de ta'kwanya confere também fertilidade às roças e às matas próximas. .

Todas essas práticas são classificadas lingüisticamente como capacidades da "vida de pensamentos". Um homem pode dizer: "'por meio do pensamento' (cha'kwanae) eu canto", e dessa maneira curo doenças; ou "por meio de meus pensamentos" posso fabricar uma zarabatana, ou construir uma casa, ou uma armadilha de pesca. Uma mulher pode dizer que é "por meio de seus pensamentos" (cha'kwahunae) que ela faz sua roça ou dá à luz. O produto de cada ato criativo é visto como "um pensamento" (a'kwa) de seu criador, uma manifestação de ta'kwanya daquela pessoa. Além disso, no vocabulário piaroa, curar, fazer, transformar e criar, são palavras que têm todas a mesma raiz20 20 Pode-se dizer, eu curo ( tü aditusae) esta mulher; eu fabrico ( tü aditusae) esta zarabatana ou tanga. .

Expressões da individualidade

Embora as forças de ta'kwanya sejam distintas da consciência reflexiva (ta'kwakomenae), é imperativo que ambas sigam lado a lado: o pensamento reflexivo (ta'kwakomenae) precisa dominar, na realidade, não apenas a "vida dos sentidos", mas também as poderosas forças de ta'kwanya, que serão embelezadas por essa domesticação. O fato de os Piaroa expressarem "individualidade" via referência direta a suas capacidades para o pensamento reflexivo, mais do que aos poderes de ta'kwanya, é de alguma importância.

Cada indivíduo piaroa atribui grande valor a "viver a vida de seu próprio jeito", mas isto não deve ser confundido com o egoísmo característico de nosso familiar individualismo ocidental. O enigma para nós talvez esteja em que, na visão piaroa, a autonomia pessoal é uma capacidade social e cultural: o Eu consciente (humano) é também o Eu social e cultural — de outro modo, não seria humano! Qual, então, a relação entre o sujeito consciente e independente, e as relações socialmente valorizadas em que está engajado? Qual a relação entre o agente consciente e os modos culturalmente valorizados de fazer as coisas? A reunião de tal conjunto de valores — o eu volitivo, a relação social, o artifício cultural — causa confusão para aqueles de nós que tendem a separá-los firmemente em nossas próprias teorias da mente (sejam estas formuladas pelo senso comum ou por métodos filosóficos mais rigorosos). Mas a teoria piaroa é uma teoria da interdependência, que põe a autonomia pessoal como o ponto de partida do social e, enquanto tal, como algo necessariamente exprimível através do dispositivo cultural.

Isto se deve, em grande medida, ao fato de que os Piaroa não tendem, como nós, a opor pensamento e ação. Nossas glosas "mente" e "corpo" são inadequadas para capturar o entendimento nativo dessa distinção. Os Piaroa, na verdade, não dispõem de um termo para "corpo". Entre eles, o que chamamos "corpo" é dividido, de modo complexo, em elementos funcionais, feixes de músculos ou de partes reprodutivas. O corpo é visto, basicamente, como um instrumento, ou um aglomerado de instrumentos, a ser utilizado para fins reprodutivos, para comer, para o esforço físico da criação. É uma condição da vida humana que esses instrumentos — de músculo, carne e osso — sejam controlados pela "vida de pensamentos" do indivíduo, e assim dirigidos pela atuação concertada de ta'kwakomenae e de ta'kwanya. Podemos nos perguntar acerca das implicações filosóficas da ausência de um conceito de corpo e de corporalidade, pelo menos tal como os concebemos. O que os Piaroa, de sua parte, distinguem, nitidamente, é o pensar e o desejar. Para que a autonomia pessoal seja social, o desejo bruto deve sujeitar-se, antes de tudo, ao pensamento reflexivo — uma capacidade, para os Piaroa, tanto pessoal quanto cultural.

Os Piaroa expressam a "individualidade" por intermédio do conceito de ta'kwakomenae, a que me referi como "pensamento reflexivo". Dependendo do contexto, porém, o conceito pode ser traduzido, variadamente, em termos de capacidades como a consciência, a compreensão, a intencionalidade, a volição e a responsabilidade. Ta'kwakomenae, literalmente, significa "meus pensamentos de pé". A idéia subjacente aqui é a de que a vontade pessoal expressa o uso intencional pela pessoa de suas forças mentais. A noção exprime bem o ideal de domínio pessoal sobre as emoções — isto é, sobre "a vida dos desejos" — consideradas selvagens enquanto não dominadas. A expressão cha'kwakomenae, na primeira pessoa do singular, é freqüentemente utilizada, no trato diário, como uma afirmação enfática de autonomia ou propósito pessoal, uma proclamação da própria individualidade como ator humano — uma reivindicação, em suma, da própria consciência, intencionalidade ou volição. Seu significado é contextual, embora sirva usualmente para declarar ser este ou aquele o jeito próprio da pessoa de fazer as coisas, enfatizando-se assim o valor da escolha pessoal.

Além de vontade, ta'kwakomenae pode expressar, também, compreensão, responsabilidade, falta ou culpa. Outra vez, apenas o contexto permite o entendimento adequado do conceito. "Vontade" é algo que se atribui aos outros, assim como a si próprio, e com freqüência, nesses casos, a conotação é negativa, como quando erro ou culpa são imputados a uma "falta de pensamento" por parte de um homem ou mulher específicos. Há, ainda, uma outra ambigüidade importante no uso de cha'kwakomenae. Foi-me explicado que a expressão pode ter tanto o significado de "eu mesmo" como o de "meus costumes". Assim, cha'kwakomenae pode ser traduzido, alternativamente, como "eu faço porque é minha vontade", "porque eu quero", "porque este é o meu jeito" ou, igualmente, por "eu faço porque é o costume do meu povo". A ênfase no primeiro caso incide sobre o modo particular de uma pessoa fazer algo, enquanto no segundo recai sobre os modos culturalmente distintivos por ela partilhados.

Essa ambigüidade nos conduz ao cerne da noção de ta'kwakomenae, e dessa maneira ao que poderíamos classificar como a versão especificamente piaroa do self: se a ênfase incide sobre a agência individual, há, não obstante, um jogo permanente entre o self autônomo e o uso de um conjunto de habilidades culturalmente específicas. A expressão ta'kwakomenae poderia justamente exibir a tensão entre esses dois aspectos, expressando a noção de que o que é da ordem dos costumes precisa ser dominado pela vontade pessoal.

Note-se, ainda, que a relação entre uma pessoa, de um lado, e uma comunidade de relações, de outro, pode também ser muito perigosa, tanto para a própria pessoa como para os outros.

A criação da vida e a transferência de poderes, ou a fertilidade dos pensamentos e seus perigosos resíduos

Segundo explicam os Piaroa, há uma série de fatores, atos e eventos que contribuem para a criação ou transformação constante das forças vitais de uma pessoa. Por exemplo, o ato de transmitir conhecimento é um ato reprodutivo: é um trabalho que dá vida. Assim, a aquisição da vida não é um processo meramente físico, estabelecido de uma vez por todas através do intercurso sexual. Cada pessoa recebe gradualmente, ao longo do tempo, aspectos adicionais de sua "individualidade" que irão compor sua "vida de pensamentos". É por isso que os velhos são considerados mais fortes que os jovens: eles puderam acumular, no decorrer dos anos, mais dessas forças interiores constitutivas da "individualidade", tão necessárias ao combate aos perigos a que estão expostos os humanos. Segundo a teoria nativa, a "vida de pensamentos" afeta a "vida dos sentidos", e, como já foi observado, estes dois aspectos do self estão intimamente conectados. Assim, homens e mulheres de meia-idade são considerados fisicamente mais saudáveis que os mais jovens por disporem de uma "vida de pensamentos" mais potente. Podem, portanto, freqüentemente, ignorar tabus alimentares impunemente, um lapso que certamente causaria doença a um adolescente. Em suma, o conhecimento e as capacidades não podem ser separados daquilo que significa ser humano, vivo e saudável.

Pessoas que vivem juntas estão continuamente envolvidas em um processo de criação mútua, por meio de um princípio relativo à transmissão de poderes criativos. Por definição, todo trabalho que uma pessoa faz contribui para dar vida a todos os membros da comunidade. Estes, através da cooperação no trabalho, da comensalidade, da partilha e dos cuidados recíprocos diários, se envolvem mutuamente na criação uns dos outros. Melhor dizendo, todo trabalho tem um efeito reprodutivo sobre aqueles em contato próximo e cotidiano. A comida que um come é, em geral, resultado do esforço tanto de outros como dele mesmo, e nessa medida um produto do pensamento desses outros, assim como do próprio sujeito. Portanto, ao consumir a carne produzida, processada ou caçada por um outro, a pessoa incorpora em seu próprio self os poderes pessoais dos produtores. As pessoas estão, assim, cercadas no dia-a-dia por produtos dos pensamentos criados pelos outros. Este é o processo que conduz, com o tempo, ao engendramento de uma "comunidade de similares".

Há, contudo, perigo nessa transferência de poderes, pois poderes gerativos podem ser danosos. Um meio potencialmente desastroso de transmissão são as excreções corporais. Todas elas são tidas como particularmente potentes, e vistas freqüentemente como manifestações não controladas da fertilidade de uma pessoa. Elas têm o poder de impregnar outros com doenças, em vez de vida. Foi por meio de sangramentos, urina e fezes que criações perversas e perigosas tiveram lugar nos tempos míticos. Excreções como o suor são melhor compreendidas como resíduos de ta'kwanya, forças psíquicas que uma pessoa não foi capaz ainda de domesticar, e que deveriam, portanto, ser expelidas no interesse de sua própria segurança e fecundidade. Através da menstruação, vista como um processo de expulsão de forças femininas não domesticadas, a mulher torna-se poderosamente limpa, tornando-se propriamente fértil. O xamã adquire seus poderes de transformação mediante ritos auto-infligidos de menstruação: forçando uma espinha de arraia através da língua, libera toda a fertilidade não domesticada acumulada no convívio com os outros. Por causa da magnificência de sua "vida de pensamentos", o suor e a urina do xamã podem ser especialmente danosos para aqueles que o cercam.

Cada pessoa tem a responsabilidade de proteger os parentes, tanto quanto possível, dos perigos de suas próprias excreções corporais. Quando lida com aqueles muito jovens ou vulneráveis, um adulto tem de ser extremamente cuidadoso com o que come. Assim, tabus alimentares são obedecidos tanto em benefício de outros como de si próprio. Quando a criança é muito pequena, os pais não devem comer a carne de grandes animais, pois estes também podem transmitir doenças aos humanos através de suas excreções, manifestação de sua própria fertilidade perversa, de seus pensamentos não domesticados. Os Piaroa não consomem o sangue dos animais devido a seus poderes para causar doença por impregnação. Um modo de os Piaroa pensarem o processo da doença é como uma gravidez perversa, destruidora de vida.

Podemos bem perguntar: por que o ta'kwanya, em sua forma não domesticada, é algo tão perigoso? A noção piaroa do poder humano envolve uma teoria da materialidade que situa no domínio do pensamento a capacidade de exercer um efeito sobre o mundo. Idealista como isto possa parecer, as belas forças de ta'kwanya provindas das caixas de cristal dos deuses — as habilidades criativas e fecundas para a caça, a pesca, a horticultura, para a cura e o ritual, e para a procriação — são também, originalmente, aquelas mesmas forças poderosas envolvidas na predação e no canibalismo, a preocupação amazônica por excelência. Comer é matar, e matar é ao mesmo tempo impregnar e ser impregnado. O processo é circular, um ciclo de morte e regeneração21 21 Para um outro esplêndido exemplo, ver a discussão de Isacsson (1993, caps. 21 e 34) sobre o simbolismo da "caça sexual" e do "caçador grávido" entre os Emberá da Colômbia. . A preocupação principal dos Piaroa é a de como entrar nesse ciclo com a maior segurança possível, sem, por exemplo, devorar (ou ser devorado por) aqueles de quem mais se precisa. A questão é como alcançar uma existência caracterizada pela predação/fecundidade civilizada. A predação civilizada requer, antes de tudo, a procriação civilizada (quando um homem não impregna, isto é, "emprenha", perversamente, a irmã) e, em segundo lugar, o uso cotidiano das artes culinárias (quando a comida é consumida cozida e não crua). Uma vida do tipo humano é possível apenas quando as forças, feias e violentas, da criação, saídas das caixas de cristal dos deuses Tianawa, são embelezadas e domesticadas pela vontade individual humana. É por isso que os Piaroa tanto enfatizam as artes do cotidiano: é mediante o domínio das práticas diárias de comer e de preparar a comida, no interior de uma "comunidade de similares", que a vida civilizada se faz possível.

Uma questão de confiança: o pensamento reflexivo e a arte da vida social

Para concluir, eu gostaria de retornar à relação entre a versão piaroa da "arte da vida social" e o princípio da confiança.

Os Piaroa são um dentre os muitos povos da bacia amazônica cuja ênfase social está em alcançar uma certa qualidade de vida, a ser usufruída por meio de práticas cotidianas da vivência comunitária. Para eles, o supremo objetivo da vida social é manter alta a moral da comunidade. Este é um fim em si mesmo. Os objetivos políticos concernem à realização da harmonia nas relações diárias de produção e de comensalidade. Aqui, a ênfase não incide sobre a grandiosidade da instituição, mas sobre conjuntos de relações pessoais informais, por intermédio das quais laços íntimos de confiança possam ser criados. A saúde e prosperidade de uma comunidade, particularmente no que toca ao bem-estar de suas crianças, são vistas como conseqüência do sucesso dos membros em estabelecer relações pessoais e interdependentes de confiança.

A confiança relaciona-se de modo crítico à socialidade tão valorizada pelos Piaroa, que são tudo menos ingênuos quanto à capacidade de os seres humanos fazerem mal uns aos outros. Por esta razão, conferem soberania, em questões sociais, ao indivíduo intencional, sujeito de escolhas, e não à instituição ou à coletividade. A pessoa detém poder, não a instituição. A personalização do poder torna o auto-engrandecimento muito difícil (e os Piaroa estão sempre alertas para sinais de pretensões desse tipo): o aspirante a tirano não dispõe de nenhum conjunto de leis e regras institucionalizadas, ou de papéis e status duradouros, mediante os quais possa incrementar e estabilizar seu poder.

A visão piaroa da vida sob o seu "céu dos domesticados" ilustra com clareza os meios pelos quais descentram o poder: eles o "domesticam", personalizando-o e atribuindo ao ator individual, e não ao grupo, a responsabilidade por essa domesticação. Conseqüentemente, o poder converte-se em uma questão de confiança — ou desconfiança — pessoal. Dessa maneira, a vida comunitária passa a apoiar-se fortemente na criação de relacionamentos individuais de confiança. Como foi visto, a saúde e o bem-estar de cada membro da comunidade dependem das habilidades dos outros no desempenho das tarefas diárias, como, por exemplo, a provisão de alimentos. Além disso, uma boa dose de energia social deve ser canalizada para a criação de novos seres humanos, moralmente competentes, dotados das capacidades pessoais indispensáveis à arte de viver em harmonia com os demais: os jovens precisam aprender a confiar e a se tornarem dignos de confiança. Para isto, têm de adquirir as habilidades cotidianas necessárias ao exercício das artes culinárias no contexto da floresta, assim como aquelas que permitem viver uma vida social tranquila. Para tornarem-se competentes em qualquer uma dessas áreas, as crianças precisam aprender a dominar sua "vida de pensamentos", domesticando dessa maneira seus poderes pessoais. São assim ensinadas, antes de mais nada, a usar o pensamento reflexivo (ta'kwakomenae) para orientar seus atos. Tanto o conhecimento quanto a ação, quando não informados pelo pensamento reflexivo, são considerados não confiáveis (ou não bonitos).

Parece-me possível, neste ponto, esclarecer o significado da versão piaroa do self para a criação de um tipo particular de processo social igualitário, distinto do nosso. Por causa de sua ética igualitária, é politicamente necessário aos Piaroa conjugar o Eu consciente e intencional, de um lado, e as capacidades para a ação tanto social como costumária, de outro. Sua insistência sobre a autonomia pessoal, sua valorização do social e seu apego aos costumes, não são valores antagônicos — é apenas do ponto de vista da corrente predominante de nosso próprio individualismo, que afirma a superioridade do Ego independente, que estes aparecem como tal. O indivíduo piaroa, por definição, participa do social e do cultural. Em parte porque se libertaram do peso da solidez institucional, os Piaroa não têm razão para almejar a liberdade que tal independência viria prover. Recusando os imperativos da lei institucional, podem, propriamente falando, socializar o poder pessoal e conectá-lo à ação orientada pelos costumes, sem por isso neutralizar o Eu autônomo. Ao mesmo tempo, personalizando o poder pessoal, inibem ainda mais o desenvolvimento do institucional e os arranjos hierárquicos através dos quais este floresce. Dada sua visão extremamente realista da face negativa, coercitiva e, com efeito, absurda, do poder, os Piaroa decidiram, com bastante razão, que o peso da instituição seria arriscado demais para eles, constituindo um meio através do qual poderes perigosos poderiam ser reunidos e canalizados. Como resultado, ficaram livres para focalizar mais os aspectos produtivos e criativos do poder que sua face coercitiva.

O problema para a antropologia está na equação que fazemos entre a versão da coletividade como uma força coercitiva e a noção mesma do social. Em conseqüência, a sociedade torna-se, por definição, idêntica à ordem prescritiva e às instituições hierárquicas por meio das quais as regras desse todo ordenado são postas em operação. Há, contudo, muitos povos que vêem a coletividade e a socialidade que esta engendra em outros termos. Os informais Piaroa têm deliberadamente poucos mecanismos à mão para construir tal hierarquia. Todavia, como já foi assinalado, valorizam muito sua habilidade em serem sociais. Povos como este acabam se transformando, nas palavras de Marshall Sahlins, em "monumentos ao fracasso da imaginação antropológica — e, para além disso, às limitações do pensamento social ocidental" (Sahlins 1987:26).

Uma saída seria reconhecer que nossos constructos teóricos são, em certa medida, locais e, portanto, certamente, relevantes para nós. Derivados de nossa própria experiência e história, são apenas parcialmente aplicáveis às histórias e experiências de outros povos — o quanto, em cada caso, é impossível prever. Isto não significa, na minha opinião, que devamos negar que individualismo ou coletividade existam entre os Piaroa — ou entre os Trio ou Araweté. Isto implicaria supor que somos culturalmente únicos no interesse pela questão da relação entre o indivíduo e o social, que apenas nós refletimos sobre tais complexidades, tendo desenvolvido a teoria social especialmente para pensar essa questão.

A teoria piaroa da "individualidade" enfatiza o agente moral, autoconsciente, interpretante e sujeito de escolhas. A consciência precede a aceitação (ou rejeição) das maneiras social e culturalmente específicas de fazer as coisas (ta'kwakomenae é ensinado antes de ta'kwanya); uma vez aceitas, seu uso deve ser continuamente monitorado pelo agente moral reflexivo e atuante. O "Eu" reflexivo e responsável é, desde o início, um "Eu" social: a autonomia de um é dependente da autonomia dos outros, e vice-versa. O poder pessoal funciona na sociedade piaroa apenas por causa da prática geral de se estender a autonomia como uma prerrogativa do outro22 22 Ver D. Thomas (1982), que foi o primeiro a fazer essa importante observação sobre um povo amazônico. No seu caso, tratava-se dos Pemon, vizinhos dos Piaroa. . Nessas sociedades "não contratuais", o único contrato é esse imperativo que, na verdade, pode apenas ser sustentado por juízos pessoais de confiança.

Talvez esteja claro agora por que a noção de que socialidade ideal é melhor realizada em uma "comunidade de similares" é tão disseminada entre os povos da Amazônia. Nessa visão de uma "coletividade de similaridades singulares", a ênfase incide sobre o estabelecimento de relações sociais capazes de engendrar suficiente intimidade e identidade de objetivos, de modo que a confiança, e não a competição, venha a se tornar a marca dos relacionamentos cotidianos. Tal identidade não restringe a livre vontade do indivíduo; pelo contrário, é por intermédio do domínio fino e sagaz sobre as habilidades para a convivência íntima que uma pessoa adquire autonomia para viver como um adulto. Nessa imagem amazônica particular do social, quanto mais um povo é capaz de, por meio da livre escolha, chegar a um acordo sobre os modos de fazer as coisas na intimidade, mais provável que vá poder depender de um princípio de confiança em suas práticas gerativas diárias. Em outras palavras, poderá libertar-se, no cotidiano, da dependência em relação aos aspectos mais coercitivos e pessoalmente destrutivos do poder, como aqueles expressos na competição predatória e avara, ou na tirania das regras e regulamentos da lei.

Tradução: Marcela Stockler Coelho de Souza Recebido em 27 de outubro de 1998 Revisão Técnica: Carlos Fausto Aprovado em 7 de janeiro de 1999

Joanna Overing é professora da Universidade de Saint-Andrews, Grã-Bretanha. Entre outras publicações, é autora do livro The Piaroa: A People of the Orinoco Basin (1975) e organizadora da coletânea Reason and Morality (1985).

Notas

III N. T. – O termo "agência" em português é empregado, usualmente, em um sentido mais restrito que seu equivalente em inglês, o qual possui uma dupla acepção. Agency é tanto "a capacidade, condição ou estado de agir e exercer poder; ação ou atividade", quanto "uma pessoa ou coisa através do qual o poder é exercido ou uma finalidade alcançada" (Merriam Webster – International Edition). Nesta dupla conotação do termo – ação e instrumentalidade – reside parte de seu valor antropológico. Para Strathern, isto permite determinar o agente como "fonte de ação independente, mas não necessariamente com objetivos mentalmente concebidos de forma independente" (introdução à Dealing with Inequality, Cambridge University Press, 1987). Nesses termos, seria possível colocar o problema do que constitui a ação efetiva em outras sociedades, sem reduzi-la à questão de como o "sistema" molda a "prática" (e vice-versa), cuja matriz conceitual é nossa oposição entre indivíduo e sociedade. Para resgatar a dupla conotação do termo, preferi traduzir agency por agência.

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Resumo

Este artigo expõe o valor atribuído por um povo amazônico, os Piaroa, à arte da existência cotidiana. Argumenta-se que sua ênfase na criatividade das práticas diárias é próxima de uma poderosa filosofia social igualitária. São também levantadas as dificuldades de se traduzir essa filosofia, onde o eu humano é situado no meio cósmico. O objetivo da tradução seria possibilitar nosso engajamento em um diálogo com os Piaroa a respeito de nossos interesses comuns (sobre a relação do indivíduo com a coletividade, por exemplo, ou sobre a idéia de liberdade, ou a questão da relação entre costumes e formas racionais de tomada de decisão). Os Piaroa são um povo que abertamente evita a idéia de regra social, ainda que valorizem muito a sociabilidade, seus próprios costumes e a mutualidade dos laços comunitários. Ao mesmo tempo, eles demonstram, de modo ainda mais vigoroso, um "individualismo obstinado". Um grande enigma a ser discutido é o fato de que a autonomia pessoal é entendida ao mesmo tempo como uma capacidade social e cultural: o eu volitivo, a relação social e o artifício cultural formam um conjunto de valores associados. Finalmente, é discutida a centralidade das noções de razão reflexiva e confiança pessoal nessa ética igualitária específica.

Abstract

The article states the high evaluation that an Amazonian people, the Piaroa, place upon the artful skills of everyday existence. It is argued that their emphasis upon the creativity of daily practice is forthcoming from a powerful and egalitarian social philosophy. The difficulties of translating such a philosophy, where the human self are contextualised within a wider cosmic setting, is raised. The aim of translation would be to enable us to engage in dialogue with the Piaroa about common concerns (upon the relation of the individual to the collectivity, for instance, or upon the idea of freedom, or the question of the relation of customs to rational decision making). These are a people who overtly shun the idea of a social rule, yet strongly value sociality, their own customs, and the mutuality of the ties of community. They at the same time demonstrate even more forcefully an "obstinate individualism". A major puzzle to be discussed is the notion that personal autonomy is understood as a social capacity, and a cultural one as well: the volitional I, the social relation, and the cultural artifice are an associated set of values. The centrality of the notions of reflective reason and personal trust to this particular egalitarian ethics will be discussed.

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  • WOLF, Susan. 1982. "Moral Saints". Journal of Philosophy, 79:419-439.
  • iluminar melhor a arena normativa do comportamento jural
    II N. T. – A primeira acepção de jural no New English Dictionary (Oxford) corresponde ao nosso adjetivo "jurídico" ("of, or relating to law, or its administration; legal, juristic"), mas o conceito em antropologia refere-se antes ao significado específico que o vocábulo tem para a filosofia moral: "of or pertaining to rights and obligations". É neste sentido que o emprega Radcliffe-Brown, que o introduziu na disciplina. Fortes, em seu Kinship and the Social Order (Routledge and Kegan Paul, 1970:87-92), explicita essa distinção, opondo o "jural" tanto à ordem das sanções puramente morais, quanto à esfera do "legal", cristalizada em instituições e procedimentos jurídicos formais. Para evitar a assimilaçãoindevida de "jural" ao nosso conceito de "jurídico", preferi manter o termo original. II N. T. – Ao longo do texto, traduziremos selfhood como "individualidade" e manteremos o termo self de uso já consagrado na literatura antropológica em português. do que as instâncias morais informais e não-proscritivas em que a maioria de nós está diariamente engajado. Essa filosofia ignora, por exemplo, o papel da confiança quando se trata de prover as crianças dos cuidados de que precisam. Baier, em sua defesa de uma teoria moral que trate, também, dos modos complexos pelos quais a "confiança apropriada" estrutura nossas relações morais diárias, sugere-nos um foco particularmente útil para compreender a categoria de "estruturas performativas" de Sahlins (1987), ou as "
    communities of nurture" de Ingold (1986:227), ou o que chamarei, aqui, de as "culturas gerativas" da Amazônia. Em todos esses casos, a vida social é marcada mais pela ênfase sobre o informal e o íntimo, do que sobre a regra e sua obediência. Aqui, o relacionamento de confiança apropriado pertence mais ou menos ao domínio da intimidade, em oposição ao domínio da lei ou do contrato coercitivos — áreas que a filosofia moral contemporânea tende, precisamente, a enfatizar.
  • *
    Aula Inaugural ministrada no Departamento de Antropologia Social da Universidade de St. Andrews, Grã-Bretanha.
  • 1
    O estilo do texto, originalmente uma Aula Inaugural para a cadeira de Antropologia Social, leva em consideração o fato de que minha audiência era ao mesmo tempo multidisciplinar e parte da comunidade. Embora eu tenha incorporado algumas adições "antropológicas", que poderiam em alguns casos ter ofendido parte da audiência leiga, o texto permanece em geral tal como foi apresentado. Por comentários a versões anteriores, agradeço a David McKnight, Alan Passes e Peter Rivière.
  • 2
    Segundo Paul Oldham, que está realizando pesquisa de campo entre os Piaroa (ver Oldham 1996), esta paz tão valorizada está agora sendo rompida, sob a forma de guerras de feitiçaria entre líderes, como conseqüência das tentativas indígenas de criar estruturas organizacionais capazes de lidar com o Estado nacional. Até o momento, parece que seus modos pacíficos, baseados nas "estruturas" informais das quais me ocupo neste texto, terão dificuldades em sobreviver à introdução de uma organização mais formalmente estruturada.
  • 3
    Apenas recentemente os especialistas em Amazônia reconheceram a importância de se ligar a produção artística à organização social. Para um exemplo esplêndido, ver David M. Guss (1989), que oferece uma boa discussão da relação entre arte, símbolo e narrativa, de um lado, e a vida cotidiana dos Yekuana, da Venezuela, de outro. Vale também notar que a maior parte da produção artística piaroa pertence ao domínio do cotidiano (ver Overing 1996a).
  • 4
    Como representantes dessa crescente contracultura filosófica, Baier inclui autores como Carol Gilligan (1982), Alasdair MacIntyre (1980), Michael Stocker (1976a; 1976b), Lawrence Blum (1980), Michael Slote (1983), Claudia Card (1994; 1995), Alison Jagger (1983) e Susan Wolf (1982). Ver Baier (1995:18-19).
  • 5
    Ver, também, o livro de MacIntyre,
    After
    Virtue (1980), no qual ele expressa sua nostalgia por uma ética centrada nas virtudes.
  • 6
    Ver Gow (1989; 1991) sobre os Piro do Peru; Belaunde (1992; 1994) sobre os Airo Pai também do Peru; e McCallum (1989; 1994) sobre os Cashinahua brasileiros.
  • 7
    Como nota o filósofo norueguês Jacob Meløe (1988:95): "somos maus observadores de quaisquer atividades com as quais não sejamos familiares enquanto agentes". Muito da antropologia (e não apenas da filosofia, sobre a qual ele escreve) é sobre "não ver e não saber que não estamos vendo" (Meløe 1988:89).
  • 8
    Entre os Achuar, as plantas cultivadas são vistas como vampiros canibais sedentos de sangue (Descola 1996). Mas aqui sou culpada de exotização, e este não é meu ponto.
  • 9
    Há, todavia, na teoria indígena, um relativismo cultural que focaliza a variação nas capacidades de ação, e afirma que cada tipo de ser vive segundo suas atividades e hábitos específicos (e sobrenaturalmente [
    other-worldly] adquiridos). Viveiros de Castro (1996:127 e ss.) recentemente classificou essa ênfase amazônica sobre a ação distintiva como uma forma de "multinaturalismo". De minha parte, eu a veria como um aspecto do "multiculturalismo" indígena. Ouso dizer que esse continuará sendo um debate pertinente entre especialistas em Amazônia, que remete à controvérsia em torno da relevância de nossa própria divisão conceitual entre "natureza" e "cultura" para o pensamento indígena.
  • 10
    Ver, também, por exemplo, Lévi-Strauss (1967) sobre os Nambiquara; Goldman (1963) sobre os Cubeo; Thomas (1982) sobre os Pemon; Viveiros de Castro (1992) sobre os Araweté; Overing (1993b) sobre os Piaroa; Ellis (1996) sobre os Tsimane. Mesmo entre os mais belicosos Achuar (Descola 1994; 1996) e Yanomami (Lizot 1985), relações de coerção parecem ser de natureza
    pessoal.
  • 11
    Ver, por exemplo, Henley (1982) sobre os Panare. Ver, também, Overing (1993a) para etnografia adicional concernente a este tópico.
  • 12
    Uma atenção cada vez maior está sendo dada à "arte de alimentar" nas etnografias de povos amazônicos. Ver, por exemplo, Gow (1989) e Belaunde (1994).
  • 13
    Ver, todavia, Overing Kaplan (1975) sobre os aspectos políticos dos arranjos matrimoniais entre os Piaroa. O casamento correto é aquele sobre o qual todos concordam, noivo, noiva e os pais de ambos. Não obstante, o princípio normalmente afirmado é de que ninguém pode ser obrigado a se curvar aos desejos dos pais, e muitas vezes a decisão permanece nas mãos apenas do casal.
  • 14
    Ver Overing (1992), sobre a agência dos instrumentos.
  • 15
    Ver, por exemplo, na literatura sobre o noroeste amazônico: S. Hugh-Jones (1979); C. Hugh-Jones (1979); e Kaj Arhem (1996). Ver, também, S-E. Isacsson (1993) sobre os Emberá do Chocó colombiano.
  • 16
    Ver Overing (1993a) para um tipo de discussão diferente desta questão.
  • 17
    Os Piaroa insistiam na afirmação de que os deuses Tianawa eram também seres humanos. Estes deuses, incapazes de agir no sentido sensível, não são do espaço terreno.
  • 18
    Ver Overing (1985) para um discussão mais antiga, porém mais completa, da teoria da "mente" piaroa.
  • 19
    O ritual de conclusão de cada cerimônia envolvida na aquisição de
    ta'kwanya confere também fertilidade às roças e às matas próximas.
  • 20
    Pode-se dizer, eu curo (
    tü aditusae) esta mulher; eu fabrico (
    tü aditusae) esta zarabatana ou tanga.
  • 21
    Para um outro esplêndido exemplo, ver a discussão de Isacsson (1993, caps. 21 e 34) sobre o simbolismo da "caça sexual" e do "caçador grávido" entre os Emberá da Colômbia.
  • 22
    Ver D. Thomas (1982), que foi o primeiro a fazer essa importante observação sobre um povo amazônico. No seu caso, tratava-se dos Pemon, vizinhos dos Piaroa.
  • I
    N. T. – A primeira acepção de jural no
    New English Dictionary
    (Oxford) corresponde ao nosso adjetivo "jurídico" ("of, or relating to law, or its administration; legal, juristic"), mas o conceito em antropologia refere-se antes ao significado específico que o vocábulo tem para a filosofia moral: "of or pertaining to rights and obligations". É neste sentido que o emprega Radcliffe-Brown, que o introduziu na disciplina. Fortes, em seu
    Kinship and the Social Order
    (Routledge and Kegan Paul, 1970:87-92), explicita essa distinção, opondo o "jural" tanto à ordem das sanções puramente morais, quanto à esfera do "legal", cristalizada em instituições e procedimentos jurídicos formais. Para evitar a assimilaçãoindevida de "jural" ao nosso conceito de "jurídico", preferi manter o termo original.
    II N. T. – Ao longo do texto, traduziremos selfhood como "individualidade" e manteremos o termo self de uso já consagrado na literatura antropológica em português.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Abr 1999

    Histórico

    • Aceito
      07 Jan 1999
    • Recebido
      27 Out 1998
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