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Sopros da Amazônia: sobre as músicas das sociedades tupi-guarani

Resumos

Com base em uma aprofundada resenha crítica do recente livro de Jean-Michel Beaudet, Souffles d´Amazonie, que os autores consideram ter todos os requisitos para se tornar um clássico dos estudos musicais amazônicos, procede-se ao levantamento de algumas das questões fundamentais da etnomusicologia das terras baixas da América do Sul, com foco nas sociedades tupi-guarani. De natureza congenitamente comparativa, essas questões são colocadas a dialogar com algumas das problemáticas importantes da etnologia regional, na direção do avanço do campo como um todo.


Based on an in-depth critical review of Jean-Michel Beaudet’s recent book, Souffles d’Amazonie, which the authors believe to have all the merits for becoming a classic of Amazonian musical studies, this article provides a survey of some of the fundamental questions of South American Lowland ethnomusicology, taking as its focus Tupi-Guarani societies. Of a congenitally comparative nature, these questions are placed in dialogue with some of the important problematics in the regional ethnology, with the aim of advancing the field as a whole.


ARTIGO BIBLIOGRÁFICO

Sopros da Amazônia: sobre as músicas das sociedades tupi-guarani

Rafael José de Menezes Bastos

e Acácio Tadeu de Camargo Piedade

BEAUDET, Jean-Michel. 1997. Souffles d’Amazonie: Les Orchestres "Tule" des Wayãpi. Nanterre: Société d’ Ethnologie (Collection de la Société Française d’ Ethnomusicologie, III), 213 pp., acompanhado de CD com dezenove faixas de exemplos musicais (total: 37’ 22’’).

A Desidério Aytai, in memoriam

O novo livro de Jean-Michel Beaudet, cerne do presente ensaio, está destinado a ser consagrado um clássico, possuindo todas as qualidades para em breve constar entre as obras fundamentais sobre a mesma área etnográfica (terras baixas da América do Sul) e mesmo tema (música), como Camêu (1977), Aytai (1985), Seeger (1987), Hill (1993) e Olsen (1996)1 1 , 1a Convém desde já explicitar que utilizamos a palavra "música" como uma noção analítica (tal como "parentesco, "poder", "linguagem" etc.) que aponta para os discursos e linguagens do universo sonoro vocal-instrumental. Esta colocação é necessária, já que há uma legião de estudiosos que toma a não-existência de "uma palavra para ‘música’" em algumas línguas não ocidentais como base para a construção de uma relação musical, aparentemente essencialista, "nós"(ocidentais)/ "outros". Além de ser um sintoma de uma forma essencialista de estabelecer essa relação, a posição da legião referida, por outro lado, em si mesma é um absurdo hermenêutico. Isto porque injustificadamente (e de maneira etnocêntrica) retira a palavra "música" do território das palavras, obviando-a como coisa cultural. Entre as coisas culturais que a palavra "música" indica no Ocidente, é conveniente lembrar que a forma grega mousike (a arte ( techne) das Musas) foi usada, até pelo menos o século V a.C., para referir não apenas "música", mas também "poesia" e "dança" (Comotti 1979:3). Este nexo faz com que mousike se aproxime de vários conceitos africanos, ameríndios, árabes, melanésios e também conceitos ocidentais modernos ("jamais fomos modernos"). A literatura sobre o tema é vasta, mas veja Nettl (1989) para uma comparação entre nexos Blackfoot, persas e ocidentais; conforme Keil (1979) para os sentidos africanos ocidentais. Dentre os conceitos ameríndios, podemos imediatamente lembrar o suyá ngere (Seeger 1987), o kulina ajie (Silva 1997) e o tukano basa (Piedade 1997). Os kamayurá (ver Menezes Bastos 1978; 1990) constituem um caso um pouco diferente, pois contrastam de forma consistente maraka/porahay/ye’eng (respectivamente "música"/"dança"/"arte verbal"). .

Baseado em dissertação de doutorado defendida em 1983 (Beaudet 1983), o livro resulta de um trabalho de campo de cerca de quinze meses, entre 1977 e 1993. Trata-se de uma etnografia da música dos wayãpi, principalmente da aldeia Zidock (Alto Oiapoque, Guiana Francesa), tendo como centro a música das orquestras de clarinetes tule. O livro, dividido em quatro capítulos, além de uma introdução e conclusão, contém várias transcrições musicais e é bem ilustrado com fotos, mapas e diagramas. O CD que o acompanha tem boa qualidade acústica e suas gravações ilustram bem o texto, sendo que, no final do livro, há explicações sobre cada uma das faixas (:201-204).

Os wayãpi somam cerca de 750 pessoas (dado de 1988 [:28]) e vivem em quatorze aldeias, os meridionais na região dos vales dos rios Jari e Araguari (Amapá) e os setentrionais no vale do Oiapoque (Guiana Francesa). Estes últimos chegaram à Guiana Francesa no século XIX, como resultado de um movimento migratório vindo do norte do Brasil.

Os wayãpi falam uma língua da família tupi-guarani, cujas línguas são largamente utilizadas nas terras baixas, não apenas na Guiana Francesa e em muitas regiões do Brasil, mas também na Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai — onde uma de suas línguas, o guarani paraguaio, é falado por cerca de três milhões de pessoas — e Argentina. Apesar dessa ampla dispersão, as línguas tupi-guarani são muito similares entre si. Dentre elas, o extinto tupinambá (ou tupi antigo) e o guarani antigo têm documentação escrita desde, respectivamente, os séculos XVI e XVII (Rodrigues 1986: 29-39)2 2 Sobre as línguas indígenas no Brasil e na América do Sul, ver, respectivamente, Rodrigues (1986) e Fabre (1994). A família lingüística tupi-guarani pertence ao tronco tupi, que inclui outras famílias e línguas. Cf. Ricardo (1996) e a home page do Instituto Socioambiental (< http://www.socioambiental.org/index.html>) para informações atualizadas sobre as sociedades indígenas no Brasil. .

A literatura sobre as sociedades tupi-guarani é extremamente ampla, datando do século XVI, e inclui muitos clássicos da etnologia das terras baixas, como Nimuendaju (1978); Métraux (1979); Fernandes (1963; 1970); Clastres (1975); Clastres (1972; 1978); Laraia (1986) e Viveiros de Castro (1986)3 3 Ver Viveiros de Castro (1986:82-105) para uma revisão da bibliografia tupi-guarani. Cf. Fernandes (1975) para uma consideração sobre a produção dos cronistas coloniais; Gonçalves (1990) é uma resenha de Laraia (1986); e Laraia (1988) discute Viveiros de Castro (1986). . De acordo com essa literatura, as sociedades tupi-guarani apresentam em comum alguns temas cosmológicos salientes: canibalismo, guerra, xamanismo, morte e construção da pessoa, todos impregnados de forte musicalidade. Estes temas parecem estar acima das diferenças sociomórficas que existem de grupo para grupo (Viveiros de Castro 1984-1985:404). Particularmente sobre os wayãpi, Gallois (1986; 1988), F. Grenand (1982; 1989) e P. Grenand (1980; 1982) são importantes fontes recentes, a segunda referência incluindo uma contribuição crucial para o estudo das conexões entre cosmologia e música entre os wayãpi, a quarta sendo uma excelente lexicografia.

A bibliografia sobre as músicas dos índios tupi-guarani é também bastante extensa. Inclui algumas das mais antigas descrições de "música primitiva" do mundo, como são os casos conspícuos do relato de Jean de Léry sobre alguns cantos tupinambá (do atual Rio de Janeiro), de 1558, e da monumental lexicografia de Antonio Ruíz de Montoya, da qual faz parte um vasto universo de categorias musicais do guarani antigo, de 16394 4 Ver Léry (1585) e Montoya (1639) para as edições originais e, respectivamente, as de 1941 e 1876 para aquelas aqui consultadas. Sobre a primeira obra — considerada como a primeira descrição etnomusicológica do mundo baseada em trabalho de campo (Cooley, 1997:6) —, ver Azevedo (1938; 1941), Camêu (1977) e Veiga (1981). Para uma proposta de leitura etnomusicológica do Tesoro de Montoya, cf. Montardo e Martins (1996) e Montardo (1998). Ver Müller (1990) para um importante estudo sobre história, cosmologia e artes visuais asurini. Alguns dos textos incluídos em Vidal (1992) abordam essas artes entre alguns grupos tupi-guarani. . Além do livro de Beaudet, outras contribuições sobre a música dessas sociedades são: Estival (1994) — que também aborda um grupo de fala karib (os arara) —, Fuks (1989), Menezes Bastos (1978; 1990), Pereira (1995) e Travassos (1984), sendo o livro de Fuks um estudo sobre a música dos wayãpi do Amapá5 5 Para informações sobre vídeos não apenas sobre os wayãpi e outras sociedades tupi-guarani, ver Gallois e Carelli (1995). Para discos, ver Beaudet (1982; 1993) e Ricardo (1995:30, nota 1). .

Na introdução (:15-26), o autor sintetiza os significados da palavra wayãpi tule. Ela aponta simultaneamente para uma categoria organológica — clarinetes grandes, sem orifícios digitais e com apenas uma palheta (no capítulo II, Beaudet mostra que os wayãpi também têm clarinetes com várias palhetas) —, para as orquestras formadas por esses clarinetes, para o repertório dessas orquestras — tipicamente "suítes" — e, finalmente, para as correspondentes sessões musicais, que estão sempre ligadas a encontros regados a cerveja. O autor considera que o nexo central dessas sessões é afirmar e pensar a contradição, o que é expresso em termos da alternância solo/tutti, respectivamente, indivíduo e sociedade. Toda música instrumental ("aerofônica") wayãpi é exclusivamente masculina.

Ainda na introdução, Beaudet apresenta sua ambição: chamar a atenção para a música orquestral amazônica — ignorada pelo público em geral, diferentemente das famosas formações andinas de flautas de Pan —, como uma contribuição para o conhecimento do universo musical da Amazônia, ainda incipiente. Ele parte do princípio de que esse universo não pode ser entendido como autônomo e de que as músicas das terras baixas devem ser estudadas de forma integrada aos outros domínios da cultura. Essa abordagem holística é defendida também para o caso interno, em relação à própria música. Teoricamente, Beaudet professa a idéia de que a música não pode ser vista como uma conseqüência da estrutura social, mas, sim, como um importante meio — entre os wayãpi, tipicamente de comunicação — para constituir e organizar a sociedade. Por fim, o autor compara os wayãpi com os kamayurá, grupo tupi-guarani do Alto Xingu — estudados por Menezes Bastos (1978; 1990) —, afirmando que os primeiros falam sobre música de forma parcimoniosa, tendo em relação aos últimos um vocabulário e uma teorização musicais limitados.

No primeiro capítulo (:27-55), Beaudet apresenta dados sobre a história e a situação atual dos wayãpi, sobre a última, sobretudo, referentes à demografia, à ecologia e às técnicas de subsistência. Em seguida, reporta-se aos dois grandes tipos de música desses índios: dançada e não-dançada. O primeiro é sempre coletivo e relacionado ao ato de beber cerveja — como é o caso da música tule —, o segundo sendo individual e independente desses encontros.

Segue-se, então, uma das maiores realizações do livro: com base no conceito nativo de -lena ("casa", "lugar") — que aponta para a idéia da pertinência social-local de ego (individual ou coletivo) —, na noção de esferas de integração social (desenvolvida por Sahlins 1968) e em características da organização social guianesa (Viveiros de Castro e Fausto 1993) — no caso, a disposição concêntrica do campo social e a ideologia endogâmica —, Beaudet estabelece correspondências muito interessantes entre as esferas social e musical. No núcleo desse quadro de correspondências, está a família nuclear — cerne da organização social wayãpi —, que corresponde a uma configuração musical de expressões individuais, como árias para flauta ou trompa soli (repertório masculino), canções de ninar e de amor (feminino) e lamentações fúnebres (masculino e feminino). O conceito de Beaudet de configurações musicais (:43) é aqui colocado como sendo de ordem intermediária, entre os conceitos de tipo musical e de sistema musical. Ele objetiva a clarificação dos componentes músico-sensíveis dos fatos sociais, assim como dos componentes sociais dos fatos musicais6 6 Este conceito se aproxima do de gênero musical. Para uma aplicação do modelo bakhtiniano de gênero de fala — conjunto de enunciados que têm certa estabilidade em termos de temáticas, de estilos e de estruturas composicionais (Bakhtin 1986) — ao estudo das músicas indígenas (no caso, tukano), ver Piedade (1997). .

A segunda camada de correspondências — formando o nível intermediário da música wayãpi — aponta para a relação entre os reagrupamentos políticos internos da aldeia (as facções) e as suítes orquestrais, principalmente o repertório tule. A aldeia como um todo, bem como a música para dança (cantada) configuram a terceira esfera. Por fim, a quarta é constituída pela relação entre os wayãpi enquanto grupo étnico e as canções de guerra. A musicalidade do xamanismo — caracterizada por um jogo de sopros vocais, cantos e vários tipos de chocalhos — atravessa todas essas esferas, tendo, entretanto, sua melhor definição na última, onde se encontram a guerra e a morte (ou seja, o mundo exterior). A palavra wayãpi malaka refere-se tanto aos chocalhos utilizados nas sessões xamanísticas quanto às sessões, elas próprias (:43).

Ainda nesse capítulo, Beaudet mostra como os instrumentos musicais têm uma correspondência com as esferas sociomusicais (:49). Os wayãpi possuem quatro tipos de idiofones (bastão de ritmo, chocalho de tornozelo, casca de tartaruga e chocalho) e 21 de aerofones (trompas, clarinetes, flautas e zunidor). Na esfera central, encontram-se as melodias individuais, que são tocadas por oito diferentes tipos de flauta e uma de trompa. A segunda esfera é formada pela música dos clarinetes tule, correspondendo ao plano das facções. A terceira, relacionada à aldeia, circunscreve a música para três tipos de clarinete, três de trompa e quatro de flauta. Finalmente, a última esfera aponta para a correspondência entre o grupo étnico como um todo e o zunidor.

Beaudet propõe que se encare o universo dos instrumentos musicais wayãpi como um arquétipo do instrumentarium amazônico em sua totalidade, com sua característica predominância tipológica de aerofones, e aqui está outro ponto interessante do texto em estudo: esse predomínio se relacionaria a uma contigüidade complementar entre as artes do xamanismo — caracterizadas pela emissão, pela voz humana, de sopros audíveis e visíveis (graças à fumaça do tabaco) — e a música (aerofônica) propriamente dita, esta sendo identificada através de sopros audíveis e invisíveis produzidos pelos instrumentos musicais. Em outras palavras, haveria, neste caso, um jogo estrutural entre a visibilidade e a audibilidade dos sopros (:47).

Há também uma crescente afirmação da música vocal, com relação à instrumental, que ocorre ao longo dessas esferas: no âmbito familiar, o repertório vocal é pequeno; no plano das facções, as peças das suítes orquestrais são executadas também vocalmente, em uma espécie de solfeggio; nos grandes ciclos dançados, há um peso igual de músicas vocais e instrumentais; por fim, no último patamar, os cantos de guerra são executados a capella, a vocalidade da música atingindo aqui seu momento mais intenso (:53). As diferentes texturas musicais também são relacionadas às esferas sociais: no nível central, há uma maior precisão de alturas e intervalos e os sons são mais sinoidais; no nível das facções, o timbre é preponderante em relação às alturas (aqui Beaudet refere-se a faixas (plages) de alturas e a uma massa sonora mais espessa); finalmente, nos ciclos dançados, há seqüências de textura ainda mais densa, que utilizam oposições sumárias grave-agudo, sem intervalos. Ocorre, portanto, uma progressão acústica que acompanha a complexificação dos níveis sociais (:50).

Ainda nesse rico capítulo, Beaudet observa que em wayãpi não há um termo genérico equivalente ao de "musique" em francês, sendo que a forma mais próxima que os wayãpi falantes de francês (alguns são bilíngües) utilizam para traduzir o termo é yemi’a. Yemi’a refere-se a qualquer aerofone, exceto o zunidor. Em seguida, o autor diz que nunca encontrou uma classificação nativa dos instrumentos musicais e novamente compara os wayãpi com os kamayurá, em termos de verbalização e teorização sobre música (:46).

Fechando o capítulo, o autor analisa mais um ponto importante: a interseção de seu esquema para a música wayãpi (individual/coletiva) — para ele, de pertinência amazônica — com o de Seeger (1987:6) para os suyá (tipos de música ritual/não-ritual). Ao se perguntar se o último também teria aquele tipo de pertinência, Beaudet mostra como o caso dos wayãpi combina os dois conjuntos de oposições, a música dos tule sendo intermediária por excelência: mais ou menos individual (ou coletiva), mais ou menos ritual (ou não-ritual) [:53].

O segundo capítulo (:57-87) é dedicado aos clarinetes, incluindo um estudo importante da dispersão desses instrumentos nas terras baixas (:58-65). Superando substancialmente a clássica análise de Izikowitz (1935: 252-265), sobre o tema Beaudet mostra como, na região, dois tipos principais de clarinetes encontram-se distribuídos de forma sistematicamente não sobreposta: os pequenos clarinetes, com pavilhão (do "tipo Chaco" [Izikowitz 1935:264]), estariam claramente localizados na periferia do sudoeste amazônico, em um arco formado pela Bolívia, Paraguai e Brasil meridional; os clarinetes grandes (chamados turè ou tule pelo autor [toré por Izikowitz 1935:257 e ss.]) encontram-se situados em relação a dois eixos principais de difusão — norte e centro da região —, mais claramente em sua parte nordeste (seguindo os rios Tapajós, Xingu/Parú, Jarí e Oiapoque) e ao longo da costa do Amapá. Um terceiro tipo de clarinete (com várias palhetas) só aparece entre os wayãpi e seus vizinhos aparai, de fala karib. O primeiro tipo inclui, predominantemente, clarinetes muito pequenos (em geral com cerca de 40cm de comprimento), seu pavilhão sendo feito de cabaça ou chifre de animais. A palheta, quando o instrumento está sendo tocado, encontra-se dentro da boca do músico. O segundo tipo, feito principalmente de bambu, geralmente é grande (de 0,50 cm a 2m). Aqui a palheta está fixa dentro do bocal do instrumento. Note-se que todos os clarinetes referidos não possuem furos para dedos e que eles podem ser idioglotais ou heteroglotais7 7 Em um clarinete idioglotal, a palheta é parte constituinte do bocal, sendo que no heteroglotal, ela é fixada sobre o orifício do bocal, cobrindo-o (Izikowitz 1935:255). .

Em seguida, Beaudet estuda as formações musicais ligadas aos referidos instrumentos: os pequenos clarinetes podem ser tocados em soli, duos e conjuntos homofônicos ou heterofônicos, aparentemente nunca utilizando a técnica de alternância (hocket). No segundo tipo de clarinete, os instrumentos são tocados em pares ou por conjuntos alternantes, nunca aparecendo associados a outras espécies de aerofones. O autor encerra essa parte do capítulo falando sobre a história do clarinete nas terras baixas, debatendo com Izikowitz — que tinha sérias dúvidas sobre sua origem pré-colombiana e, não, européia — e afirmando que ao menos o último tipo de instrumento (grandes clarinetes) pode ser realmente ameríndio, tendo possivelmente se originado na Amazônia central.

Continuando, o autor estuda detalhadamente o tule wayãpi. O tule é uma expressão que ele afirma ser comparável àquela de "quarteto de cordas", pois aponta simultaneamente para uma formação musical, um tipo de composição e um tipo de repertório (:65). Cada suíte — sempre constituída por música dançada — é formada por uma seqüência específica de peças, sendo que apenas uma suíte é tocada em cada sessão. Esta suíte é previamente escolhida, o que é um fator determinante na construção dos instrumentos — todos perecíveis —, já que a constituição dos conjuntos varia de uma suíte para outra. É raro que todas as peças de uma suíte sejam tocadas em uma única sessão: os músicos selecionam quais peças serão tocadas, isto geralmente durante a performance e especialmente nas pausas entre as peças. Todas as suítes têm uma ordem ideal, mas esta, freqüentemente, é modificada durante a sessão. Beaudet apresenta uma lista de doze suítes diferentes, somando um total de 230 peças musicais, adicionando que essa lista não é exaustiva em termos de todas as aldeias wayãpi (:66-68). Em seguida, ele descreve a organologia do tule: o instrumento é formado por um tubo de bambu aberto e uma pequena palheta, que é fixada em seu interior de forma a fechá-lo. Seu comprimento varia de 60cm a 1,60m (:68-73). São apresentados dados sobre a acústica do instrumento (:73-78), mostrando sua riqueza em harmônicos (que não são reconhecidos ou verbalmente cobertos pelos índios) e sua estabilidade espectral ("timbrística"). O autor passa, então, para o estudo das técnicas de execução (:78-80), principalmente a do hocket style. Finalmente, ele informa o leitor acerca da dança tule (:80-87). Em wayãpi, a categoria momolay ("dançar" e também "embalar um bebê") tem em sua base o sentido de criação rítmica através de pulsos produzidos pelos pés (sempre com acento no direito). Os wayãpi caminham — pela floresta, por exemplo — geralmente de forma muito leve e ágil, o que difere de forma significativa de seu estilo de dançar, sempre marcado e mesmo pesado. O autor fala então sobre a predominância da forma circular de movimento na dança wayãpi, trazendo dados sobre seu caráter imitativo (de animais). Finalmente, Beaudet mostra como para os wayãpi dança e música são independentes: com exceção da relação entre os passos da dança e a pulsação rítmica, música e coreografia não são interdependentes, principalmente em termos motívicos.

O terceiro capítulo (:89-122) trabalha o nexo central da música tule — o princípio da alternância —, cujo dinamismo formal é expresso pela associação entre um eixo horizontal (melódico) e um vertical (sucessões de soli pontuais e trechos com partes simultâneas). Dependendo de qual suíte é executada, a orquestra tule pode ser formada por um número de três até seis partes, cada instrumento tocando uma única nota. As partes são as seguintes:

• ta’ù ("pequeno", também um termo de parentesco para "filho" ou "filha"). É a parte mais aguda, sendo tocada por um único músico, chamado "mestre". Em algumas suítes são utilizados dois ta’ù por um único músico, o mais agudo deles sendo usado apenas para vinhetas de introdução.

• yakangapiya ("aquele que responde ao ta’ù" [segundo tradução de informantes bilíngues]). É a segunda parte a tocar, logo após o ta’ù, sendo executada por um único músico.

• mùte ("centro"). Parte executada por vários músicos (dez ou mais), cujos instrumentos não são idênticos em termos de timbre e altura, mas são tocados na região central de suas tessituras. Isto produz uma massa sonora que se distingue claramente das notas mais agudas ou mais graves das outras partes.

• mùte’i ("pequeno centro"). Executada por vários músicos, esta parte substitui a mùte em duas suítes.

• mùtelu ("grande centro" ou "‘pai’ do centro"). Idêntica à parte anterior.

• mãmã ("mamãe"). Parte mais grave, na qual se usa o maior clarinete, tocado por apenas um músico (em algumas suítes por vários). É, geralmente, a última parte a entrar.

O autor sustenta que esta organização é baseada não em intervalos, mas em relações de alturas e que, assim, cada suíte é caracterizada por um contorno melódico e não por uma seqüência exata de intervalos (o que não é o caso do "duplo vocal" que cada peça de qualquer suíte possui e que é cantado em solfejo pelo "mestre" antes da execução instrumental da peça). Essa visão analítica determina o modelo de transcrição empregado por Beaudet (:94-95): os duplos vocais são transcritos através da notação etnomusicológica usual. Já as versões instrumentais — as peças do tule propriamente ditas — são transcritas mediante uma adaptação desse sistema: apesar dos sons específicos que cada instrumento de uma parte toca, cada parte constitui apenas um nível de altura (dada de forma muito aproximada em termos de notas discretas). Assim, o número de alturas (e de linhas na transcrição) é igual ao número de partes e, não, de instrumentos. Por outro lado, o aspecto rítmico-durativo de cada peça é transcrito com os procedimentos usuais (exceto as pausas das partes, freqüentemente muito longas).

Cada peça tule é formada por um tema (de cerca de 10 segundos de duração) que é repetido sem alterações durante vários minutos. Cada tema é formado pela justaposição de dois tipos de motivos: o primeiro (A) caracteriza-se pela alternância das partes solo, possuindo um marcador melódico. O segundo (B) — uma massa sonora — é constituído predominantemente por um tutti da parte central, mas também pela superposição desta parte com as partes solo. Cada peça pode ser entendida como uma seqüência contínua do tipo AB. Os motivos A são variáveis — e identificam cada peça —, enquanto os B não o são e fornecem a assinatura temática da suíte.

Ao fim de uma análise brilhante, Beaudet chega a estabelecer um elegante modelo musical geral — uma síntese, prova de qualquer análise, segundo um grande antropólogo — para as peças tule: (i) + n [A+B] + z. Aqui, i é a fórmula introdutória, n é o número de repetições que ocorre em cada tema, A é o motivo melódico — que caracteriza a peça —, B é a assinatura temática da suíte e z uma fórmula cadencial (que é a mesma para todas as peças de todas as suítes) (:103). Este modelo — que não governa apenas um tipo de suíte, historicamente recente entre os wayãpi de Zidock — é também, em sua generalidade, operativo em relação aos duplos vocais tule (:105).

Beaudet não encontra nenhuma possibilidade semelhante de análise para as escalas e intervalos, mesmo tendo como objeto os duplos vocais tule. Ele toma este fato como base para afirmar que precisão de intervalos e de alturas não é algo importante no sistema musical tule, que operaria por "faixas" de sons (plages). O autor conclui que o princípio formal da música tule é a alternância entre solo e tutti, esta música estando fundada no timbre, como muitas outras na Amazônia (:109).

Na questão do ritmo, o autor afirma que a música tule não está baseada na existência de uma unidade de tempo (pulso) que pode ser subdividida, formando células, motivos e frases. Ao contrário, esta música parece ter sua estrutura temporal dependendo da sucessão contextual de suas partes orquestrais. Isto gera uma contínua flutuação do pulso, que é responsável pela interação música e dança, pela repetição — que é tanto maior quanto mais alta a esfera sociomusical — e pela variação (:114-117). O princípio formal de tudo aqui parece ser a alternância, principalmente entre o tutti do mùte e os solos das outras partes (:120).

O último capítulo do livro (:123-168) retoma os conceitos de configurações sociais e musicais, lembrando que o universo da música wayãpi é um fluxo que parte das expressões solo (individual e familiar) para aquelas dos tutti (aldeia e grupo étnico), a música tule se encontrando no nível intermediário (facções). Note-se que esse fluxo também pode ser lido ao contrário — assim como um conjunto de círculos concêntricos —, e assim seu grau último consistiria em uma espécie de núcleo "duro" da identidade cultural wayãpi, as expressões individuais se encontrando dentro de um círculo periférico e a música tule no interior de um círculo intermediário (:130). Essa configuração tem alta pertinência ecológica, já que quanto mais altos os níveis em termos de identidade cultural, tanto mais ricas as referências ao mundo natural (:138). Tais referências expressam também um aumento progressivo de risco, sendo que a relação entre os wayãpi e a natureza — que constitui, enfim, o próprio conhecimento entre esses índios — é por eles estabelecida como algo essencialmente perigoso (:144-147).

Em seguida, Beaudet estuda a relação entre a música tule e as mulheres, de uma perspectiva comparativa amazônica (:148-156). Toda música "aerofônica" wayãpi é exclusivamente masculina; entretanto a participação das mulheres em todas as sessões de música dançada (incluindo o tule) é de extrema importância: elas são responsáveis por fazer e servir a cerveja para os homens. Além disso, no mito, foram as mulheres que doaram o repertório tule aos homens. O fato de as mulheres wayãpi não tocarem aerofones não tem o sentido dramático de proibição, como é o caso do famoso complexo amazônico das "flautas sagradas" (ver Murphy 1958; Menezes Bastos 1978:171-177; Hugh-Jones 1979; Piedade 1997). O autor propõe que a referida proibição — nos casos dramáticos ou não — tem relação com uma polarização crucial na Amazônia: tocar aerofones/produzir crianças (:153). O capítulo termina com algumas considerações sobre história, política e recentes mudanças na música wayãpi (:156-168).

A conclusão do livro (:171-175) é breve. Rapidamente, é abordada a essência da música wayãpi, que, como um todo, é entendida pelos índios como algo preexistente, natural — isto dentro de uma concepção da natureza e do cosmos plena de culturalidade. Nesse contexto, particularmente a música tule pode ser vista como um jogo político (faccional), por intermédio do qual é possível ouvir a sociedade em sua contínua alternância entre cooperação e competição.

Incorporando alguns dos marcos da recente literatura sobre as Terras Baixas, o livro de Beaudet é uma etnografia que du dedans é, por excelência, comparativa8 8 Para ensaios sobre essa literatura, ver Henley (1996); Menezes Bastos (s/d); e Viveiros de Castro (1996). . Desse modo, ele descreve os wayãpi e sua música em finos detalhes, simultaneamente colocando esse mundo em diálogo com outros da região (e também além), sem limites — senão aqueles de natureza sistemática — de tempo, espaço e assunto. Para a etnomusicologia, particularmente, isso significa uma fértil libertação do modelo dilemático e ilustrativo — que se cristalizou nos anos 60, tipicamente através da obra de Merriam —, segundo o qual a "música" é vista como um exemplo inerte dos significados da "cultura" (Menezes Bastos 1990; 1995; s/d). Ao contrário, Beaudet mostra em seu livro que a melhor antropologia da música é também sua melhor musicologia; esta, no entanto, sendo construída como uma disciplina interessada na forma, conteúdo e contexto.

Seguindo essa linha fértil, o autor convence mesmo o leitor mais rigoroso de que a música tule — e seu mundo inclusivo da música wayãpi — pode ser compreendida em termos de um modelo geral que abarca uma grande quantidade de fenômenos observáveis. Isto se torna possível mediante a utilização do conceito de configurações musicais, através do qual as esferas social e musical são sistematicamente (porque não mecanicamente) articuladas, tudo resultando na abordagem simultânea de fenômenos integrantes de vários domínios: organização social, história, política, gêneros sexuais, etnicidade, cognição, sentimento, organologia e fonologia, sintaxe, pragmática e semântica musicais. O conceito pode mostrar, simultaneamente, como o pensamento social wayãpi está codificado no universo da musicalidade (e vice-versa) e como este último tem um profundo impacto na socialidade.

Além da virtude de ter importantes conseqüências gerais teóricas e metodológicas, o livro tem outras mais, principalmente quanto ao interesse comparativo amazônico. A ligação que o autor propõe haver entre sopro vocal, fumaça de tabaco e música aerofônica é uma delas. Note-se que o verbo wayãpi significa "sopro sonoro" (:9), sendo uma noção fundamental que perpassa todo o livro, compondo-lhe inclusive o título9 9 Em kamayurá (apùap), também uma língua tupi-guarani, pù significa apenas "sopro aerofônico". Embora esta noção seja diferente da de "cantar" ( maraka), ambas são incluídas no conceito de "fazer música" (maraka, em um segundo nível de significação), que se opõe ao conceito de "música de acompanhamento" ( hopopùtùwomaraka). Este esquema aponta para uma profunda similaridade entre "soprar" e "cantar" em kamayurá (Menezes Bastos 1978:112-115). . Tentando compreender a preponderância dos aerofones no instrumentarium amazônico, Beaudet sugere que ela estaria ligada a outras manifestações que envolvem o sopro na região, principalmente àquelas relacionadas ao xamanismo. O quadro resultante configuraria, assim, um jogo estrutural entre visibilidade e audibilidade. Em uma terra famosa pela lógica do sensível que professa, essa avenida explicativa soa extremamente pertinente e fértil (é curioso verificar que o autor não achou esse quadro aplicável ao caso do complexo das "flautas sagradas"10 10 Note-se que, na Amazônia, na maioria dos casos de "flautas sagradas" (que geralmente não são apenas flautas), as mulheres são proibidas de ver os intrumentos, mas não de ouvi-los (para os tukano, ver Piedade 1997). Este fato aponta para um jogo entre visibilidade e audibilidade que é de natureza gnosiológica, como sustenta Menezes Bastos (1978; no prelo). ). Entretanto, seria interessante lembrar que tal preponderância resulta de um modo de leitura (tipológico) que, se não reificado, não deve excluir outros modos de ler, devendo portanto levar em consideração a verificação de que os idiofones — tipicamente o universo dos "maracás" — está obsessivamente presente na musicalidade amazônica e que, em alguns casos, ele constitui o centro mesmo do universo (recordem-se os araweté).

Um segundo ponto de alto interesse comparativo amazônico é o estudo sobre a dispersão dos clarinetes na região conforme dois eixos sistematicamente não sobrepostos (um na periferia sudoeste e o outro no nordeste e costa do Amapá). É curioso notar que uma das razões apresentadas por Izikowitz (1935:262) como fundamento para seu argumento da origem pós-colombiana dos clarinetes ameríndios tenha sido o fato de que os cronistas coloniais nunca falaram (antes do século XVIII) sobre clarinetes indígenas. Beaudet reforça a opinião de Izikowitz, embora sustentando que tal omissão dever-se-ia à imprecisão dos cronistas, que usavam — e adicionamos: como muitos dos etnógrafos atuais continuam a fazer, ao arrepio de qualquer ciência do concreto — rótulos como "flauta" para indicar qualquer aerofone. Muito provavelmente, estamos aqui diante de um lapso por parte de ambos os autores, já que o clarinete, qua clarinete, é um instrumento que foi desenvolvido na Europa apenas a partir de 1700, ou seja, exatamente no início do século XVIII.

Outro ponto que merece nota no estudo sobre os clarinetes, particularmente em relação aos pequenos, é que estes instrumentos são encontrados também no Alto Xingu. Os kamayurá possuem um par deles, chamados tarawi (Menezes Bastos 1978:118), sendo que, na área, ao menos os waurá, de língua aruak, também os têm (talapi, conforme Mello 1998). Por outro lado, note-se que os grandes clarinetes têm atualmente uma dispersão pan-xinguana, com um eixo de difusão provavelmente karib (bacairi) (Menezes Bastos 1978, Mello 1998).

Em muitas partes da obra, o autor afirma que os wayãpi são extremamente econômicos no que se refere a falar sobre música e também que eles não possuem uma teoria musical informada por classificações, mapas e planos. Isto é interessante sob diversos aspectos: primeiramente, porque o próprio Beaudet apresenta, em muitos momentos do trabalho, vários pontos que sugerem a existência de um efetivo sistema de terminologia musical (e de identificação e classificação). Este é o caso das partes da orquestra tule (ta’ù, mùte, mãmã etc. (:90), que parecem claramente constituir uma classificação, que seria, aliás, extremamente similar àquela dos kamayurá para as flautas uru’a e awirare (Menezes Bastos 1978:116-117). Da mesma forma, Beaudet apresenta listas daquilo que muito provavelmente são categorias de altura (:72, 108): ngu (som "gordo", "grave"), koli ("fino" (?), "agudo"), akùtù ("grave"), kunawùi ("agudo"), que também lembram os correspondentes kamayurá (:100, 109). Poderíamos citar muitos outros exemplos aqui. O fato de os termos wayãpi não serem "especificamente musicais" e sim intersensoriais e mesmo "sociológicos" (como é o caso dos termos de parentesco), não me parece um argumento adequado para negar a existência de uma terminologia musical entre os wayãpi ou em qualquer parte do planeta. Por exemplo, no Brasil urbano, o par de noções "agudo"/ "grave" parece ter natureza táctil, originalmente, ao que tudo indica, apontando para as sensações, respectivamente, de "(finamente) penetrante"/ "pesado".

Outro ponto dessa instrutiva questão refere-se ao que exatamente é uma teoria musical. Uma coisa é dizer que os waiyãpi não falam muito sobre música, ou que falam muito pouco sobre ela. Sem problemas. Outra coisa muito diferente é afirmar que eles não possuem uma teoria musical, ao menos no sentido que Menezes Bastos (1978) dá a este conceito, baseando-se no estruturalismo de Lévi-Strauss e na etnociência. Teorias musicais não são programas mentais conscientes: são implícitos e inconscientes. É tarefa do antropólogo analiticamente torná-las explícitas.

Um terceiro ponto sobre o tema em consideração relaciona-se ao problema da tradução científica (antropológica) intercultural. Beaudet — aparentemente inscrevendo-se na legião de estudiosos que constroem uma relação musical essencialista "nós"/ "outros" — sustenta que os wayãpi não têm um termo para a forma francesa musique, dizendo que seus informantes bilíngües a traduzem por yemi’a (originalmente "aerofone", exceto os clarinetes tule e o zunidor). Aproveitamos a oportunidade para postular que essa questão não foi adequadamente tratada pelo autor: o que é musique (e também parenté, pouvoir, por exemplo), conforme os franceses (guianeses) a estabelecem e conforme os wayãpi a compreendem? E o que é yemi’a conforme os wayãpi o constroem e Beaudet o apresenta para nós? Os múltiplos mundos envolvidos nessas duas indagações seriam compatíveis? Como produzir uma possível compatibilidade entre eles a não ser analiticamente (antropologicamente)? Estamos convencidos de que a única cultura que tem "uma palavra para ‘música’" (bem como para "parentesco", "poder" etc.) — como categoria analiticamente válida — são as ciências humanas, neste caso, a antropologia.

Encerrando este texto já extenso — cuja extensão é, em si mesma, uma homenagem ao verdadeiro clássico que busca reportar —, gostaríamos de destacar que a noção de Beaudet de intervalo como algo em si (construído em oposição às suas "faixas", plages), e não exatamente como uma noção relacional — como em qualquer conservatório se aprende —, não nos parece adequada. Naturalmente, o timbre é uma dimensão fundamental nas músicas das Terras Baixas (e, nesse sentido, sinto falta de um diálogo de Beaudet com a literatura, especialmente a tupi-guarani, particularmente aquela sobre os wayãpi do Amapá, estudados por Fuks). Entretanto, isso não deve excluir as alturas e os intervalos, especialmente se estes últimos são estabelecidos em termos analiticamente sólidos, já que os wayãpi não são obrigados a ter o semitom como intervalo significante mínimo na divisão de seu espectro auditivo-musical.

Recebido em 16 de março de 1999

Rafael José de Menezes Bastos é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/Antropologia). Acácio Tadeu de Camargo Piedade é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/Música) e doutorando em Antropologia Social na UFSC. Os autores são membros do núcleo de estudos "Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe" (MUSA), do Departamento de Antropologia/UFSC.

Notas

Referências bibliográficas

Resumo Com base em uma aprofundada resenha crítica do recente livro de Jean-Michel Beaudet,

Souffles d´Amazonie, que os autores consideram ter todos os requisitos para se tornar um clássico dos estudos musicais amazônicos, procede-se ao levantamento de algumas das questões fundamentais da etnomusicologia das terras baixas da América do Sul, com foco nas sociedades tupi-guarani. De natureza congenitamente comparativa, essas questões são colocadas a dialogar com algumas das problemáticas importantes da etnologia regional, na direção do avanço do campo como um todo. Abstract Based on an in-depth critical review of Jean-Michel Beaudet’s recent book,

Souffles d’Amazonie, which the authors believe to have all the merits for becoming a classic of Amazonian musical studies, this article provides a survey of some of the fundamental questions of South American Lowland ethnomusicology, taking as its focus Tupi-Guarani societies. Of a congenitally comparative nature, these questions are placed in dialogue with some of the important problematics in the regional ethnology, with the aim of advancing the field as a whole.

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  • 1
    ,
    1a 5 Para informações sobre vídeos não apenas sobre os wayãpi e outras sociedades tupi-guarani, ver Gallois e Carelli (1995). Para discos, ver Beaudet (1982; 1993) e Ricardo (1995:30, nota 1). Convém desde já explicitar que utilizamos a palavra "música" como uma noção analítica (tal como "parentesco, "poder", "linguagem" etc.) que aponta para os discursos e linguagens do universo sonoro vocal-instrumental. Esta colocação é necessária, já que há uma legião de estudiosos que toma a não-existência de "uma palavra para ‘música’" em algumas línguas não ocidentais como base para a construção de uma relação musical, aparentemente essencialista, "nós"(ocidentais)/ "outros". Além de ser um sintoma de uma forma essencialista de estabelecer essa relação, a posição da legião referida, por outro lado, em si mesma é um absurdo hermenêutico. Isto porque injustificadamente (e de maneira etnocêntrica) retira a palavra "música" do território das palavras, obviando-a como coisa cultural. Entre as coisas culturais que a palavra "música" indica no Ocidente, é conveniente lembrar que a forma grega
    mousike (a arte (
    techne) das Musas) foi usada, até pelo menos o século V a.C., para referir não apenas "música", mas também "poesia" e "dança" (Comotti 1979:3). Este nexo faz com que
    mousike se aproxime de vários conceitos africanos, ameríndios, árabes, melanésios e também conceitos ocidentais modernos ("jamais fomos modernos"). A literatura sobre o tema é vasta, mas veja Nettl (1989) para uma comparação entre nexos Blackfoot, persas e ocidentais; conforme Keil (1979) para os sentidos africanos ocidentais. Dentre os conceitos ameríndios, podemos imediatamente lembrar o suyá
    ngere (Seeger 1987), o kulina
    ajie (Silva 1997) e o tukano
    basa (Piedade 1997). Os kamayurá (ver Menezes Bastos 1978; 1990) constituem um caso um pouco diferente, pois contrastam de forma consistente
    maraka/porahay/ye’eng (respectivamente "música"/"dança"/"arte verbal").
  • 2
    Sobre as línguas indígenas no Brasil e na América do Sul, ver, respectivamente, Rodrigues (1986) e Fabre (1994). A família lingüística tupi-guarani pertence ao tronco tupi, que inclui outras famílias e línguas. Cf. Ricardo (1996) e a
    home page do Instituto Socioambiental (<
    http://www.socioambiental.org/index.html>) para informações atualizadas sobre as sociedades indígenas no Brasil.
  • 3
    Ver Viveiros de Castro (1986:82-105) para uma revisão da bibliografia tupi-guarani. Cf. Fernandes (1975) para uma consideração sobre a produção dos cronistas coloniais; Gonçalves (1990) é uma resenha de Laraia (1986); e Laraia (1988) discute Viveiros de Castro (1986).
  • 4
    Ver Léry (1585) e Montoya (1639) para as edições originais e, respectivamente, as de 1941 e 1876 para aquelas aqui consultadas. Sobre a primeira obra — considerada como a primeira descrição etnomusicológica do mundo baseada em trabalho de campo (Cooley, 1997:6) —, ver Azevedo (1938; 1941), Camêu (1977) e Veiga (1981). Para uma proposta de leitura etnomusicológica do
    Tesoro de Montoya, cf. Montardo e Martins (1996) e Montardo (1998). Ver Müller (1990) para um importante estudo sobre história, cosmologia e artes visuais asurini. Alguns dos textos incluídos em Vidal (1992) abordam essas artes entre alguns grupos tupi-guarani.
  • 5
    Para informações sobre vídeos não apenas sobre os wayãpi e outras sociedades tupi-guarani, ver Gallois e Carelli (1995). Para discos, ver Beaudet (1982; 1993) e Ricardo (1995:30,
    nota 1 1 , 1a Convém desde já explicitar que utilizamos a palavra "música" como uma noção analítica (tal como "parentesco, "poder", "linguagem" etc.) que aponta para os discursos e linguagens do universo sonoro vocal-instrumental. Esta colocação é necessária, já que há uma legião de estudiosos que toma a não-existência de "uma palavra para ‘música’" em algumas línguas não ocidentais como base para a construção de uma relação musical, aparentemente essencialista, "nós"(ocidentais)/ "outros". Além de ser um sintoma de uma forma essencialista de estabelecer essa relação, a posição da legião referida, por outro lado, em si mesma é um absurdo hermenêutico. Isto porque injustificadamente (e de maneira etnocêntrica) retira a palavra "música" do território das palavras, obviando-a como coisa cultural. Entre as coisas culturais que a palavra "música" indica no Ocidente, é conveniente lembrar que a forma grega mousike (a arte ( techne) das Musas) foi usada, até pelo menos o século V a.C., para referir não apenas "música", mas também "poesia" e "dança" (Comotti 1979:3). Este nexo faz com que mousike se aproxime de vários conceitos africanos, ameríndios, árabes, melanésios e também conceitos ocidentais modernos ("jamais fomos modernos"). A literatura sobre o tema é vasta, mas veja Nettl (1989) para uma comparação entre nexos Blackfoot, persas e ocidentais; conforme Keil (1979) para os sentidos africanos ocidentais. Dentre os conceitos ameríndios, podemos imediatamente lembrar o suyá ngere (Seeger 1987), o kulina ajie (Silva 1997) e o tukano basa (Piedade 1997). Os kamayurá (ver Menezes Bastos 1978; 1990) constituem um caso um pouco diferente, pois contrastam de forma consistente maraka/porahay/ye’eng (respectivamente "música"/"dança"/"arte verbal"). ).
  • 6
    Este conceito se aproxima do de
    gênero musical. Para uma aplicação do modelo bakhtiniano de gênero de fala — conjunto de enunciados que têm certa estabilidade em termos de temáticas, de estilos e de estruturas composicionais (Bakhtin 1986) — ao estudo das músicas indígenas (no caso, tukano), ver Piedade (1997).
  • 7
    Em um clarinete idioglotal, a palheta é parte constituinte do bocal, sendo que no heteroglotal, ela é fixada sobre o orifício do bocal, cobrindo-o (Izikowitz 1935:255).
  • 8
    Para ensaios sobre essa literatura, ver Henley (1996); Menezes Bastos (s/d); e Viveiros de Castro (1996).
  • 9
    Em kamayurá (apùap), também uma língua tupi-guarani, pù significa apenas "sopro aerofônico". Embora esta noção seja diferente da de "cantar" (
    maraka), ambas são incluídas no conceito de "fazer música" (maraka, em um segundo nível de significação), que se opõe ao conceito de "música de acompanhamento" (
    hopopùtùwomaraka). Este esquema aponta para uma profunda similaridade entre "soprar" e "cantar" em kamayurá (Menezes Bastos 1978:112-115).
  • 10
    Note-se que, na Amazônia, na maioria dos casos de "flautas sagradas" (que geralmente não são apenas flautas), as mulheres são proibidas de
    ver os intrumentos, mas não de
    ouvi-los (para os tukano, ver Piedade 1997). Este fato aponta para um jogo entre visibilidade e audibilidade que é de natureza gnosiológica, como sustenta Menezes Bastos (1978; no prelo).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Out 1999

    Histórico

    • Recebido
      16 Mar 1999
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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