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Os Índios antes do Brasil

RESENHAS

FAUSTO, Carlos. 2000. Os Índios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 93 pp.

Francisco Noelli

Professor, Universidade Estadual de Maringá

Este pequeno livro, voltado para a divulgação da arqueologia e etnologia indígenas, apresenta com brilhantismo e erudição as linhas gerais da última grande síntese do campo, assim como as perspectivas mais contemporâneas sobre os povos situados na América do Sul e no Brasil. Muito bem redigido, Os Índios antes do Brasil não está centrado na descrição, mas em modelos e problemáticas, proporcionando a interessados e iniciantes um resumo da espinha dorsal das teorias e debates que regeram a heterogênea comunidade americanista nas últimas cinco décadas. Carlos Fausto parte do princípio de que "Tudo somado, é possível dizer que vivemos em uma ilha de conhecimento rodeada por um oceano de ignorância. Sabemos menos do que deveríamos, mas felizmente ainda podemos saber mais. Para avançar, cumpre fazer as perguntas certas" (:9).

O livro apresenta as perguntas atualmente consideradas "certas", contrapostas às perguntas "erradas". Estas, em parte, foram formuladas durante o período colonial e elaboradas definitivamente no grandioso modelo de Julian Steward no Handbook of South American Indians, a partir de 1946.

A obra de Fausto é uma compacta história das idéias americanistas, pois disseca as estruturas teóricas e expõe as principais questões em debate nas últimas décadas. Revelando como Steward e seus discípulos formularam hipóteses, desenvolveram suas pesquisas e chegaram a determinadas conclusões, Fausto mostra como aqueles que não seguiram o determinismo ecológico stewardiano conseguiram, a partir de outras perguntas, abordagens e metodologias, questioná-lo e torná-lo obsoleto ou, pelo menos, expor suas fragilidades, contribuindo para barrar diversas simplificações reproduzidas na academia.

Dentre os temas enfocados por Fausto, destaca-se a crítica da tipologia evolucionista das populações indígenas desde uma visão continental. É mostrado como Steward elaborou sua classificação de cima para baixo a partir do modelo do império Inca, exemplo do "ápice do desenvolvimento no continente", definindo as demais populações da América do Sul pela "carência, levando à caracterização dos povos das terras baixas pela negativa" (:15). Dessa forma, segundo Fausto, "restringiram-se os problemas a serem enfrentados pela arqueologia a duas perguntas básicas: será que todos os povos das terras baixas, de fato, não tinham aquilo que os incas tinham? E por que não tinham?" (:15)

Baseado em pesquisas recentes, o autor apresenta contrapontos às concepções de Steward no que se refere a demografia, desenvolvimento da agricultura, subsistência, exploração/manejo dos recursos naturais, criação da cultura material, tipos de sociedade e de organização política. Traça, assim, um panorama sugestivo da variabilidade dos povos indígenas, superando chavões em torno de sua falaciosa uniformidade sociopolítica, econômica, cultural e demográfica.

Fausto revela como a relação entre ambiente e níveis de "desenvolvimento cultural", tão cara a Steward, foi tratada de modo superficial e apriorístico, através dos simplificados conceitos de "área marginal" e "área de floresta tropical", elaborados em função de uma suposta (mas não investigada naquele momento) predominância de solos pobres para a agricultura, bem como de um imaginário falacioso sobre a escassez de proteínas longe dos cursos d’água. Essas deficiências, tal como acreditaram erroneamente Steward e muitos outros, especialmente Betty Meggers, levariam as populações a uma constante procura por comida em ambientes pouco produtivos e não permitiriam o desenvolvimento cultural, social e político, forçando-as a permanecer nos estágios mais baixos da imaginada cadeia evolutiva das populações da América do Sul. Apesar de algumas noções centrais do determinismo ecológico terem sido testadas e criticadas por Robert Carneiro menos de uma década após o lançamento do Handbook, em tese defendida em 1957, a influência das idéias de Steward permaneceu forte no Brasil até os anos 90. Mesmo com as novas idéias e fatos de Carneiro, a revisão do determinismo ecológico só ganhou adeptos no final dos anos 60, com as publicações nessa linha tornando-se visíveis após 1975.

Outro aspecto de Os Índios antes do Brasil é o debate sobre a expansão dos povos tupi. Aqui cabe um comentário, pois Fausto faz uma discussão em contraponto a um estudo meu publicado em 1996, na Revista de Antropologia, intitulado "As Hipóteses sobre os Centros de Origem e as Rotas de Expansão dos Tupi". Fausto segue parcialmente a argumentação de Eduardo Viveiros de Castro, apresentada em comentário às teses do meu artigo. O foco da discussão é a validade de certos aspectos da "teoria da pinça" de José Brochado, baseada na hipótese de que parte das expansões tupi, especificamente as dos povos falantes do tupinambá, teria colonizado a costa brasileira rumo ao Sul, partindo da foz do Amazonas. Fausto e Viveiros de Castro entendem, olhando para os dados presentes, que, dada a falta de informações arqueológicas entre a foz do Amazonas e o Rio Grande do Norte, bem como a existência de datações antigas no Rio de Janeiro, "fica difícil crer que tenha havido uma expansão do Norte para o Sul (a não ser que recuemos muito a cronologia desse movimento)" (:74). Fausto reconhece que isto está "longe de ser resolvido" (:74), afirmando contudo que o centro de expansão "pode ter sido a bacia do rio Tietê" (:74).

Concordo que a questão está "longe de ser resolvida". Quanto à sugestão de Fausto, porém, há tão poucos dados sobre a bacia do Tietê quanto sobre a região entre a foz do Amazonas e o Rio Grande do Norte (sendo que ele não menciona os dados do interior do Piauí, Pernambuco, Alagoas...). Fausto defende a primeira hipótese sobre a expansão dos Tupi, sugerida por von Martius na década de 1830 e reciclada várias vezes até a sua mais influente formulação por Alfred Métraux (1928). Como mostrei em 1996, estes veneráveis pesquisadores não dispunham dos dados arqueológicos, lingüísticos e etnológicos obtidos a partir dos anos 60. Apesar dessas novidades, muitos pesquisadores atuais, como Fausto, reproduziram acriticamente a hipótese original e as reciclagens feitas até Métraux sem realizar uma síntese complexa e crítica que integrasse todos os dados disponíveis. Enfim, posso repetir que houve poucas pesquisas no Nordeste brasileiro, comparando-se com a situação no Sudeste e Sul, resultando em um mapa arqueológico desigual, forçosamente distorcido, vulnerável à "confirmação" de uma expansão do Sul para o Norte. Repetirei, resumidamente, conclusões minhas e de outros pesquisadores já publicadas que reforçam a "teoria da pinça", questionando conclusivamente a hipótese da origem dos Tupinambá na bacia do Paraná-Tietê: 1) o horizonte arqueológico nos atuais estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, bem como no Paraguai, não apresenta detalhes característicos da cerâmica tupinambá que são comuns, por outro lado, no baixo Amazonas. Nessa área meridional só existe, considerando povos tupi, evidências históricas e arqueológicas dos Guarani, Guarayo, Xetá e Guayaki; 2) é possível e seguro estabelecer a continuidade histórica entre o registro arqueológico e os povos historicamente descritos como tupinambá na costa e interior, assim como no caso dos Guarani; 3) lingüisticamente, o tupinambá é distinto do guarani. A hipótese da origem meridional ignora a relação da língua tupinambá com as línguas faladas por povos situados apenas na Amazônia, assim como desconsidera a área de origem do tronco tupi proposta e, até agora, não questionada.

A questão do sentido da rota dos Tupinambá será respondida quando existirem novos dados arqueológicos entre a foz do Amazonas e o Piauí. O desafio é realizar isto sem cair em explicações superadas, como aquelas do culturalismo germânico e do difusionismo aplicados aos povos indo-europeus. É necessário banir as conclusões baseadas apenas na lógica ou na tradição estabelecida por Martius, pois elas apenas consideram deslocamentos no espaço em função da posição historicamente determinada dos povos tupi.

Finalmente, há esperança de que este livro de Carlos Fausto seja a semente de um atualizado e completo manual em língua portuguesa sobre as populações indígenas no Brasil, tão necessário para substituir os clássicos que já cumpriram sua tarefa e agora merecem ir para o rol dos livros úteis à pesquisa da história da etnologia e da arqueologia americanista. Sem dúvida, com a escrita desse outro livro, teremos uma obra com os mais novos conhecimentos e, especialmente, a possibilidade de suscitar mais e necessários debates.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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